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Cuba A madrugada mais longa

31.12.2008, Fernando Sousa


Há meio século, em Cuba, uns foram para a cama a sonhar com o fim de
Batista, outros com medo do que viria a seguir, da revolução e do
homem cujo nome faria eco nas ruas a partir do dia seguinte: "Fidel!
Fidel! Fidel!"
Se o jovem Montaner soubesse no dia 31 de Dezembro de 1958 como iria acordar no
dia seguinte, talvez não tivesse sequer adormecido. Não foi o caso do obediente
Suárez Núnez, o homem de mão de Batista para a comunicação social, acabado de
chegar do centro da ilha desejoso de contar ao Presidente como as coisas corriam
mal para o regime.
O rapaz, um dos muitos estudantes de Havana que desejavam a chegada dos
rebeldes de Fidel Castro, não podia saber o que se passava no interior porque os
media filtravam tudo. Não diziam, por exemplo, que a coluna de Che Guevara
atacava há dois dias Santa Clara. Ou que a de Camilo Cienfuegos tomara Yaguajav,
o último bastião do Governo da província de Las Villas.
José Suárez Núnez sabia e por isso tinha urgência em falar com o ditador, o que
contava fazer na passagem do ano - Batista gostava de festejos.
Mas o tempo corria mais do que Cuba. "Quando cheguei a casa, a minha mulher
contou-me que já não haveria festa em Columbia", disse numa entrevista ao
Granma, em 1989. Estranhou mas foi para a cama, para ser acordado à uma e meia
por um ajudante do Presidente a informá-lo que este tinha renunciado, que se ia
embora e que se quisesse ir também tinha um lugar para ele num avião, o que
recusou.
Arrependeu-se. No dia 1 de Janeiro, Montaner mergulhava na vertigem da
revolução e ele na do medo. As ruas encheram-se de repente de revolucionários aos
gritos de "Fidel! Fidel! Fidel!" E enquanto o rapaz alinhava com os rebeldes, ele
remetia-se a um prudente silêncio.
"Desses dias vertiginosos recordo-me da primeira vez que tive uma arma nas mãos.
Entregaram-me na universidade e ensinaram-me a usá-la. Era uma metralhadora
Thompson. Aos 15 anos, sentia-se a pessoa mais poderosa do mundo empunhando
uma arma!", contou o ainda jovem rebelde ao PÚBLICO.
A memória de Núñez é outra. Meteu-se no meio da multidão, com a mulher,
convenientemente vestida de vermelho e preto, as cores da revolta, tentando passar
despercebido. Perguntaram-lhe por que é que não gritava também. Resposta: "La
emoción! La emoción!"
O antigo sargento-telegrafista autopromovido a coronel, sombra parda de vários
Presidentes e por fim o senhor da ilha, por duas vezes, tinha fugido. Desprezara
sempre os avanços rebeldes. "Por exemplo, quando recebeu a informação do
desembarque de Castro, no dia 2 de Dezembro de 1956, classificou-o como uma
'aventura local sem importância' e fingiu que a notícia não o perturbara nem um
bocadinho. E continuou a jogar a canasta várias horas!", recordou o assessor. "Era
muito ególatra, nunca quis reconhecer as derrotas do Exército às mãos dos
rebeldes", explicou. Os despachos oficiais saíam muitas vezes assinados pelo
comandante Boix Comas, que em muitas ocasiões tomava conhecimento deles pelos
jornais.
Horas depois de Batista chegar à República Dominicana, acolhido por Trujillo,
deixando o poder entregue a uma junta, Santa Clara caía nas mãos dos
guerrilheiros, Santiago de Cuba também e Castro apelava a uma greve geral e
mandava as colunas de Guevara e Cienfuegos para Havana.
Em Candelaria, Félix Sautie hesitou entre a fé e as armas, mas acabou por escolher
estas. Depois do fracasso da greve geral de 9 de Abril, tinha trocado a capital pela
terra dos pais, onde aderiu ao Movimento 26 de Julho e participou no assalto ao
quartel da guarda civil.
"A sensação que tive nesse dia foi de euforia revolucionária porque via o triunfo
muito próximo e os medos e as incertezas tinham-se apagado dentro de mim. Eu
era um homem de paz com vocação religiosa; a luta foi para mim conceptualmente
muito difícil, mas compreendi que o caminho da violência era a saída que a tirania
requeria então", disse ao PÚBLICO.
Mas havia combatentes apreensivos. "A primeira impressão que tive ao ouvir a
notícia pela rádio, que foi como soubemos dela nas montanhas, foi de preocupação
do que podiam 3 mil guerrilheiros contra 80 mil soldados", recordou Rafael Del
Pino, o general que mais tarde desertaria numa avioneta. A dúvida era se o Exército
iria render-se ou apoiar a junta, o que seria "muito sangrento". O objectivo rebelde,
que era expulsar Batista, estava cumprido e podia tornar-se perigoso exigir a
rendição a um Exército que estava "praticamente intacto".
A Alejandro Armengol, em Ciego de Avila, na província, as coisas passaram-lhe um
pouco ao lado. "Era um miúdo", disse ao PÚBLICO. Há dias que não havia
televisão. Os rebeldes tinham deitado abaixo as torres de retransmissão à medida
que iam da zona oriental para o centro. A rádio também não dava nada. Havia
medo. Numa outra ditadura - a ilha foi farta delas -, as pessoas foram para a rua
assim que correu a notícia de que Gerardo Machado fora deposto e foram mortas
tiro a tiro.
Conta o dia como uma anedota: "Lembro-me que pelas dez da manhã o meu pai
gritou 'Viva Fidel Castro!' dentro de casa, um gesto pueril, inofensivo e que denota
temor - e porque não dizê-lo, cobardia, pois quem é que ia ouvir esse grito dentro
de uma casa? Mas a minha mãe assustou-se e pediu-lhe que se calasse."
Mas perto do meio-dia as ruas de Ciego de Avila encheram-se de "revolucionários"
que nunca se tinham levantado contra Batista. "Proliferaram braçadeiras do
Movimento 26 de Julho e muitos começaram a deixar crescer a barba!"
Guevara e Cienfuegos entraram em Havana no dia 2; Fidel Castro, no dia 8; José
Suárez Núñez, que se juntou no próprio dia, por sorte, a Batista, é especialista de
assuntos petrolíferos nos media da Venezuela; Carlos Alberto Montaner, de 65
anos, hoje escritor, e Alejandro Armengol, articulista do Nuevo Herald, saíram de
Cuba para Miami; Rafael Del Pino, de 70 anos, que ajudou a derrotar a invasão da
baía dos Porcos, em 1961, e foi o militar de confiança de Fidel na crise dos mísseis
do ano seguinte, fugiu com a família, em 1987, num Cessna e raramente se sabe
onde está. De todos os cubanos com quem o PÚBLICO falou, só Félix Sautie, de 70
anos, que deixou as armas e o regime, e voltou à sua fé, continua na ilha.
3 mil
Número de guerrilheiros que derrotou o Exército cubano, que na altura estava
calculado em cerca de 80 mil soldados

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