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A CRÍTICA SOCIAL NO CONTO “O RAPAZ DOENTE” DE

GABRIEL MARIANO

Cris Érica dos Santos1


Goreth Chaves
Luan Ferreira
Rafael Coimbra
Rhianda Farias

Este artigo tem por objetivo analisar o conto “O rapaz doente” do autor cabo-verdiano
Gabriel Mariano para obtenção de nota referente à disciplina Literatura Africana de
Expressão em Língua Portuguesa, ofertada pela Universidade Federal do Pará, e ministrada
pelo professor Everton Luís Teixeira. Para realização deste artigo foi feita uma pesquisa
bibliográfica de artigos, livros, bem como pesquisa online. Pretendemos com este trabalho
analisar quais são, e como desenrolam-se, as críticas sociais presentes no conto mariano e
também, fazer um pequeno recorte sobre o autor Gabriel Mariano e a Literatura de Cabo
Verde. Observou-se, através da análise do conto mariano, uma forte e rebuscada crítica
social da sociedade burguesa de Cabo Verde, bem como o descaso que a população mais
pobre sofre por parte das autoridades cabo-verdianas.

Palavras-chave: Cabo Verde. Literatura. Análise. Crítica. Sociedade.

INTRODUÇÃO
Muitas das nações africanas que hoje têm a língua portuguesa como oficial, em
princípio, eram ágrafas. No entanto, essas nações mantinham um literatura oral muito rica.
No período da colonização africana, apenas na segunda metade do século XIX, interrompido
o tráfico de escravos em todo mundo, foi que Portugal propiciou condições de
desenvolvimento para essas colônias africanas com a criação de escolas, bem como a criação
da imprensa e a obrigação da língua portuguesa como língua oficial. A partir disso, do início
século XX até 1975, timidamente, surgiram os primeiros indícios de uma produção literária
africana em algumas para que, com as independências das coloniais e passar dos anos,
houvesse a formação de um sistema literário, na concepção de Antonio Candido.
Grande parte da produções literárias africanas em língua portuguesa são de
memórias, nostalgias, lutas sociais, civis, raciais e a busca pela identidade de um povo. Muito

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Autores
Cris Érica dos SANTOS. Universidade Federal do Pará (UFPA). crisericasantos@yahoo.combr
Goreth CHAVES. Universidade Federal do Pará (UFPA). mvkgoreth@gmail.com
Luan FERREIRA. Universidade Federal do Pará (UFPA). luan.ferreira914@gmail.com
Rafael COIMBRA. Universidade Federal do Pará (UFPA). rafael.scoimbra@gmail.com
Rhianda FARIAS Universidade Federal do Pará (UFPA). rhiandafarias@gmail.com

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da particularidade da estética da literatura africana está intrinsecamente relacionada à
história e à construção cultural de seus vários povos.
Faz-se necessário, ao estudar estas literaturas perceber, através texto, o contexto de
da sociedade que o gerou enquanto uma obra que permite vários significados interpretações,
seja esse texto um conto, romance ou poema. Sendo assim, este presente artigo tem como
objetivo analisar o conto “O rapaz doente”, de Gabriel Mariano, buscando na narrativa
compreender e verificar as críticas sociais que perpassam pelo conto.

1. Cabo Verde
Cabo verde é um arquipélago de origem vulcânica formado por 10 ilhas, sendo nove
dessas habitáveis. Cabo Verde fica localizado na costa ocidental da África tendo como
capital a cidade de Praia. Tem como a língua oficial o português, ainda que o crioulo cabo-
verdiano também seja falado no país. O país tem grande influência europeia já que foi
explorado por portugueses desde o século XV tornando-se independente apenas em 5 de
Julho de 1975. A república de cabo Verde conta com pouco mais de 530 mil habitantes e,
atualmente, tem um sistema político semipresidencialista, tendo um presidente e um
ministro. A moeda é o escudo cabo-verdiano e religião a oficial é a católica romana. Uma
das principais fontes de economia cabo-verdiana é o turismo.

2. Gabriel Mariano
José Gabriel Lopes da Silva Mariano nasceu na vila de Ribeira Brava, Ilha de São
Nicolau em 1928, em Cabo Verde, e morreu em Lisboa, Portugal, em 2002. Cursou
licenciatura em Direito na universidade Clássica de Lisboa e, após isso, desempenhou
funções de juiz em Angola, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Portugal.
Gabriel Mariano, além de jurista, foi poeta, ensaísta e contista. Suas obras tem caráter de
incisiva contestação social, pois viveu em um período de busca pela independência de seu
país. Apesar de ter saído para estudar, sempre se orgulhou de suas origens cabo-verdianas;
tanto que voltou para seu país, nos anos 50 onde participou da criação do jornal Restauração,
do Suplemento Cultural e da Revista Claridade. Por sua intensa atividade cultural, no período
em Cabo verde ainda era colônia portuguesa foi acusado de ser revolucionário e, por isso,
foi deportado para Moçambique. Sua família fica em Portugal e, tempos depois, volta para
Portugal; onde fixa residência até sua morte.
Os contos de Gabriel Mariano estão reunidos no volume Vida e morte de João
Cabafume (1976), onde se insere o conto “O rapaz doente”. Segundo Santilli (1985) “nas

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estórias de Gabriel Mariano o espaço e o tempo preenchem-se com personagens que vivem
as agruras de um quotidiano repassado de problemas velhos, de soluções preteridas, que
criam as tensões características às quais se fez referência.” (p.25).

3. Um pequeno recorte sobre a Literatura Cabo-Verdiana


Diferente de outros autores africanos, a literatura cabo-verdiana não trata
profundamente a relação entre o homem africano e o homem europeu; diferentemente de
Angola e Moçambique. Segundo Santilli, isso acontece devido a formação cultural do pais:
Em Cabo Verde, o caldeamento étnico ou cultural de europeus e africanos
foi intenso, o que resulto numa forte mestiçagem marcada desde a língua
corrente no Arquipélago, o crioulo, instrumento de comunicação do cabo-
verdiano nos vários níveis de suas relações sociais. Já não é, portanto, o
homem europeu ou o homem africano que representa essa sociedade, mas
o homem crioulo, em cuja maneira de ser as culturas convergentes teceram
mais cedo a unidade cultural cabo-verdiana. (1985, p.23)

Portanto, através dessas razões elencadas por Santilli, as questões raciais na literatura
cabo-verdiana não têm a relevância que têm na literatura angolana e/ou moçambicana.
Diferente de outros países lusófonos, o colonialismo português não foi tão impactante e
drástico em Cabo Verde. Segundo Fonseca e Moreira (2007), essa situação propiciou
condições necessárias para o surgimento da literatura cabo-verdiana antes mesmo da
independência em 1975. Segundo Fonseca e Moreira (2007), a literatura de Cabo Verde tem
seu surgimento através da revista Claridade (1930-1960). No início, a literatura cabo-
verdiana buscava uma identidade cultural para o povo, pois Cabo Verde ainda era colônia
portuguesa. Após todo esse processo, a literatura cabo-verdiana também, assim como na
literatura nordestina brasileira, passou versar sobre a seca, a fome e a emigração que
massacravam as classes sociais mais baixas, bem como a crítica às classe burguesa que, às
vezes, explorava os mais pobres. Tais abordagens, segundo Santilli (1985), atravessam as
páginas dos prosadores para atingir criticamente a sociedade cabo-verdiana através da
leitura.

4. “O rapaz doente” – A crítica social de Gabriel Mariano


No conto “O rapaz doente”, Gabriel Mariano retrata a história de uma rapaz chamado
Júlio, um rapaz da praia, que vai a São Vicente enviado pelo marido de D. Maninha afim de
obter tratamento para um doença (provavelmente tuberculose), possivelmente contagiosa
(como muitos pensam na narrativa) cujo nome não é mencionado durante toda a narrativa.
A doença que acometera Júlio teve início em São Tomé onde o rapaz era submetido a

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condições extremas de trabalho para poder sobreviver. O conto desdobra-se por
acontecimentos desencadeados pela procura de D. Maninha - que o quer longe de seus filhos
devido a um possível contagio - e outro rapaz para um tratamento da doença ou, pelo menos,
um abrigo para de Júlio que possa passar a noite e assim voltar para casa já que,
desafortunadamente, não consegue obter ajuda de nem dos profissionais da saúde e também
não consegue internação para tratar da doença.
Segundo Ferreira (1977), as narrativas de Gabriel Mariano apresentam uma realidade
de sofrimento, anseios, frustrações e desencontros que eram experimentados por grande
parte da população de Cabo Verde. Esses sofrimentos e frustações, aos quais a população
pobre de Cabo Verde é sujeitada, pode ser percebidos no conto “O rapaz doente”.
Júlio, durante a narrativa, é trata com desdém por D Maninha e por outras pessoas
que poderiam ajudá-lo só que, no entanto, não ajudavam-no. Isso acontecia não apenas fato
da pelo fato doença ser contagiosa – não sabia-se se, de fato, ela era contagiosa – mas
também pela aparência minguada e sofrida que o rapaz tinha. D. Maninha tinha repulsa do
rapaz:
O rapaz, enfraquecido e amarelo, impressionava qualquer um... E o medo
transpareceu no olhar inquieto de D. Maninha. Bem que ela se esforçou
por não o dar a perceber, mas a sensação de repulsa colou-se-lhe ao
espírito. Era evidente o seu esforço em falar com o rapaz. Dobrou a carta e
meteu-a na algibeira do vestido. Os seus olhos caíram sobre o envelope
amarrotado e sujo de gordura. Fora o próprio rapaz o portador da carta. E
afastou o envelope com a ponta do dedo mindinho. (MARIANO, 1985,
p.113)

Além da repulsa e descaso que Júlio sofria, a narrativa mariana avança explorando
os diversificados comportamentos sociais das personagens (FERREIRA, 1977), retratando
a pequena burguesia cabo-verdiana e o tratamento, às vezes, sub-humanos que pessoas de
classe social baixa passavam, como o que Júlio enfrentava antes de ficar doente:
— Que é que tu sentes?
Com o seu ar de menino, o rapaz respondeu:
— Umas vezes febre, outras vezes dor no peito...
Começou em S. Tomé...
E o rapaz doente contou. Tinha sido na roça Zé Maria. Trabalho duro.
Enterrado na lama. Uma vez foi preso por largar trabalho antes do tempo.
— Uma coisinha de nada...
O chicote de cavalo marinho queimava que nem lume. Cortaram-lhe o
cabelo. A cabeça ficou cheia de regos...
— Eu chorei, senhora... Você não acredita?
Durante uma semana sapou capim nas ruas da cidade. Febre pegou-o para
nunca mais. Dia sim, dia não... Quando terminou o contrato regressou a
Praia.
— Nós éramos muitos, senhora... (MARIANO, 1985, p.114-115)

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Deduz-se, assim, que a qualidade de vida no lugar de onde veio o rapaz doente era
precária. Os trabalhos, pesadíssimos e desumanos, a fome, a miséria e as doenças destruíam
a dignidade e a esperança das pessoas.
Segundo Ferreira (1977), nota-se também a presença do picaresco, não na
caracterização do protagonista e nem na inteligência e/ou malandragem como já é clássico
das narrativas picarescas, mas sim na construção textual para se atingir a crítica social através
da narrativa, na crítica social implicada aos acontecimentos pelos quais Júlio passa; há
também, na narrativa, uma construção comportamentais que caracterizam as diversidades
socais cabo-verdianos. Essas são marcas comuns nas narrativas de Gabriel Mariano que,
segundo Ferreira (1977):
Avança por vezes na exploração de comportamentos sociais diversificados,
incluindo a pequena burguesia cabo-verdiana residindo em Lisboa. O
picaresco se introduz neste espaço textual não como intenção gratuita, mas
relevando de um campo semântico autêntico. [...] a tradução oral colada à
intimidade social cabo-verdiana, figuras moduladas na corajosa dignidade
de afrontar os abusos e as prepotências. (p. 66)

O sofrimento que marca certas passagens do conto é ainda mais intenso por se tratar
de uma pessoa pobre, que não tem condições de ter um mínimo tratamento digno e as pessoas
que podem ajudá-lo não querem e/ou não podem, o que fica bem explicitado na fala do
enfermeiro no seguinte trecho do conto: “Sabe, minha senhora, a culpa não é nossa... São
ordens... . E ia acrescentando pesaroso, que todos os dias apareciam casos como aquele: tudo
quanto se fazia era dar consulta e receitar. Se o doente pudesse tratava-se, se fosse pobre...
paciência...” (MARIANO, 1985, p. 120). E na fala de Doutor Nogueira: “— Isto não é
comigo...” (p.118), que ainda completa: “que ele não podia era tratar daquele assunto. Que
só o diretor do hospital autorizava a entrada de doentes. Para mais... [...] para mais o hospital
não o deve receber” (MARIANO, 1985, p.118). A doença do rapaz que vinha da Praia,
possivelmente tuberculose, não podia ser tratada com internação no hospital de São Tomé,
apenas era passada a receita médica para que o paciente se tratasse em sua residência. Por
ser possivelmente uma doença contagiosa e de pouca chance de cura, as pessoas portadoras
eram discriminadas e até isoladas, muitas vezes, do convívio social.
Nota-se, através da narrativa, uma crítica social, não só às autoridades médicas, mas
também ao descaso do governo. Percebe-se também, na personagem de Norberto, o rapaz
que acompanha Júlio, características do sexto sapato – a passividade perante a justiça –
apresentado por Mia Couto no livro E se Obama fosse africano?: e outras intervenções
(2011); segundo Mia Couto afirma: “Estamos menos dispostos quando a injustiça é

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praticada contra os outros” (p.40) onde a injustiça é retrata durante todo conto onde apenas
Norberto compadece-se de Júlio, o rapaz doente, mas, mesmo sabendo da injustiça que o
rapaz estava sofrendo em não ser tratado e nem receber a internação, ou até mesmo ter um
abrigo para passar noite, não toma medidas para ajudá-lo, é a passividade perante a injustiça
do outro.

CONCLUSÃO
Percebe-se no conto a condição de morte está relacionada pobreza em vida
caracterizando-se pela doença que surge incurável em Júlio e, também, pelo fato não haver
esforços para curá-lo. A narrativa leva-nos a perceber o descaso pelas autoridades
responsáveis – médico e enfermeiro e também a repulsa de D. maninha -. Não há uma
preocupação em relação ao bem do rapaz, com a justificativa de que a doença é incurável,
sem ao menos saberem de fato sobre qual doença fazia Júlio padecia. Mariano, nessa
narrativa, mostra assim, o destino de alguém com uma doença que pode ser caracterizada
como uma metáfora para a pobreza, pois os mais pobres padecem aos olhos das autoridades
que, mesmo sabendo dos problemas sociais das minorias desprivilegiadas, preferem ignorá-
los.

Referências
BARROSO, Liliane Batista. Brasil e África: um diálogo literário. In: IX Encontro Regional
dos Estudantes de Letras, 2004.

CANDIDO, Antonio. Estímulos da criação literária. In: Literatura e sociedade [1965]. 5.


ed. São Paulo: Nacional, 1976, p. 41-70.

COUTO, Mia. E se Obama fosse africano?: e outras intervenções. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011. 206 p.

FERREIRA, Manuel. Literaturas Africana de Expressão I. Amadora/Portugal: Livraria


Bertrand. 1977.

FONSECA, Maria Nazareth Soares; MOREIRA, Terezinha Taborda. Panorama das


literaturas africanas de língua portuguesa. In: ______ (Org.). Cadernos CESPUC de
Pesquisa: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte: PUC Minas, 2007, v.
16, p. 13-61.

MARIANO, Gabriel. “O rapaz doente”. In: SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias


africanas: história e antologia. São Paulo: Ática, 1985. p. 112-123.

SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias africanas: história e antologia. São Paulo: Ática,
1985.

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