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Fotografias de rituais secretos do candomblé: uma polêmica de várias faces.

(Marina de Mello e Souza)

Bibliografia:

TACCA, Fernando de – Imagens do sagrado. Campinas: UNICAMP/Imprensa


Oficial, 200
- O profano sacralizado: http://www.studium.iar.unicamp.br/sete/4.html

MEDEIROS, José – Candomblé. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009.


Uma matéria publicada em 1951 na revista francesa Paris Match, com fotografias de
Henri-Georges Clouzot, renomado cineasta francês casado com uma brasileira, filha de
Gilberto Amado, escritor baiano primo de Jorge Amado, provocou polêmica no Brasil.
Em tom sensacionalista mostrava cenas de rituais do candomblé, descrito como rito
sanguinário primitivo. Além da reação indignada da intelectualidade brasileira, O
Cruzeiro respondeu a afirmação do periódico francês de que nunca tais imagens
haviam sido mostradas antes com uma matéria escrita por Arlindo Silva, com
fotografias de José Medeiros, que só fez reafirmar a visão preconceituosa e deformada
transmitida pela revista francesa. Pierre Verger, já conhecedor profundo do candomblé
e autor de várias fotografias do culto, se manteve silencioso. Já Roger Bastide, que
havia escrito um texto para reportagem fotográfica de Pierre Verger sobre o
candomblé publicada na revista A Cigarra em 1949, portanto antes da matéria do Paris
Match mas não mencionada na ocasião, escreveu um artigo denunciando a perspectiva
preconceituosa e equivocada dos franceses, mas não reagiu à matéria de O Cruzeiro,
publicada também em 1951. A publicação de fotografias de ritos até então nunca
presenciados por não iniciados deu origem a uma série de boatos acerca dos
envolvidos no caso, que teria resultado na expulsão da Confederação Baiana de Cultos
Afro-Brasileiros da mãe de santo que permitiu a entrada dos jornalistas na camarinha
das iaôs, além da danação destas. Tais versões foram desmontadas por Fernando de
Tacca, que 50 anos depois do ocorrido conversou com pessoas diretamente envolvidas
com o episódio e pesquisou o assunto, extremamente rico para discutir tanto as
maneiras como o candomblé foi considerado em diferentes contextos e épocas, como
os diferentes usos e significados atribuídos a um mesmo conjunto de fotografias.
Paris Match, 12/05/1951
A Cigarra, junho de 1949. Texto Roger Bastide e fotos Pierre Verger.
Fotos de Pierre Verger,
arquivadas na fundação que
leva seu nome. Iniciado no
candomblé, no qual tinha o
nome de Fatumbi, nunca quis
publicar fotografias de ritos
secretos, como a iniciação.
O Cruzeiro, 15/09/1951, texto Arlindo Silva e fotos José Medeiros.
“Seis anos depois da publicação da reportagem de 1951, a mesma editora da revista O
Cruzeiro publicou o livro Candomblé, em 1957, com todas as fotografias veiculadas na
revista, com um acréscimo considerável de mais algumas escolhidas por Medeiros,
totalizando 60 imagens, 22 fotografias a mais. A nova forma de publicação colocou as
mesmas imagens em outro formato e em outra valorização. Se na revista o artifício
jornalístico era o sensacionalismo para atingir um formato popular direto e ofensivo à
religião, já a partir do próprio título, no livro, as imagens passaram a ser um material
etnográfico precioso e único.
O material fotográfico coletado por José Medeiros transforma-se em conteúdo. De uma
primeira publicação marcada por um fotojornalismo sensacionalista transforma-se em
um documento etnográfico na apresentação gráfica e nas marcações das legendas no
formato livro. Na primeira versão temos uma profanação do espaço do sagrado,
permitido somente para os iniciados, ao torná-lo visível ao olhar, um olhar leigo
massificado pela importância da revista O Cruzeiro na opinião pública da época. Na
segunda versão temos as mesmas imagens, mas sem o tratamento sensacionalista, com
uma abordagem que transparece uma aparente neutralidade na explicitação visual do
ritual, transformando-as em documento etnográfico ou ‘científico’, coroando-as com
uma nova aura para o sagrado profanado.”

Fernando de Tacca, Candomblé – Imagens do Sagrado, Campos, Revista de


Antropologia Social, UFPR, ano 3, 2003, Edição Especial da IV Reunião de
Antropologia do Mercosul.
Candomblé, José Medeiros. Instituto Moreira Salles, 2009.
Legenda de José Medeiros para a edição do livro Candomblé, como todas as que seguem: “Toda
cerimônia é iniciada com um despacho para Exu (ou Elêgbara), que corresponde ao Diabo na
religião católica, personificando o espírito do mal. Para que ele não venha perturbar os outros
orixás, dedicam-se-lhe cânticos.” Nota de Vagner Gonçalves da Silva para e edição do IMS: “Por
ser um orixá associado ao dinamismo, à sexualidade e a uma ética que relativiza as noções cristãs
de bem e mal, Exu foi associado paulatinamente ao demônio cristão."
“Na camarinha é feita a raspagem da cabeça da futura filha-se-santo. Do lado de fora, os
atabaques são batidos com mais força.”
“A mãe-de-santo, no interior da camarinha iluminada pela luz de uma vela, conclui a raspagem
da cabeça da iaô.”
“Durante a cerimônia da feitura da filha-de-santo, a cabeça da iaô é raspada. Em cada braço a
noviça recebe sete incisões de navalha, além de outras nas costas, no peito, na língua e na planta
dos pés. Na cabeça já raspada é feita uma incisão em forma de cruz. Os ferimentos são tratados
com ervas sagradas.”
“Depois de todos os sacrifícios iniciais, as iaôs são novamente enclausuradas na camarinha, onde
permanecem até a madrugada seguinte.”
“Sacrifício de aves sobre a cabeça das noviças."
“Depois do sacrifício, as penas das aves são colocadas na cabeça da iaô, em homenagem ao seu
orixá. Segue-se, então, o banho de caráter ritualístico que é preparado com uma infusão de ervas
sagradas.”
“Desprovidos da cabeça e dos órgãos genitais, os animais são colocados por trás das iaôs. Serão
depois servidos em banquete.”
“Após a imolação, uma iaô de Omulu, com o animal de sua preferência já sacrificado e
devidamente desprovido das patas, cabeça e também dos órgãos genitais.”
“Após derramar sobre a cabeça da iaô o sangue do animal sacrificado, a mãe-de-santo, ajudada
pelo axogun (espécie de acólito), deixa escorrer na tijela o resto do sangue, que será bebido sete
dias depois pela iaô, de acordo com a norma ritualística.”
“Tomada do ixé (sangue dos animais sacrificados)
“Toda pintada de pontos brancos ou coloridos, de acordo com as características de cada orixá,
aguarda a noviça a vez de se apresentar em público a dançar.”
“A primeira apresentação pública da iaô, depois de segregada no interior da camarinha para o
período necessário ao aprendizado e que pode variar de suas semanas a um ano de reclusão.”
“Depois da confirmação do nome, sai a iaô pela última vez, já com as vestes características do seu
santo. Esta é a iaô de Omulu, o deus de todas as doenças, sobretudo da bexiga.”
“Iansã, mulher de Xangô, representa o mesmo que Santa Bárbara na religião católica. 4 de
dezembro é o seu dia. Como Xangô, controla também as tempestades e é um orixá irrequieto.
Características: um rabo de boi e uma espada de cobre na mão. Suas cores: vermelho e branco.”
Além das fotografias tiradas por ocasião da iniciação das iaôs, José Medeiros publicou no livro
fotografias tiradas em outras ocasiões, que foram intercaladas às da iniciação. (A ordem das
fotografias aqui apresentadas não segue a sequência do livro.)
“Os caboclos encantados são os mesmos deuses negros, modificados por influências catolicas, espírita e
indígena, identificando-se todos os seus orixás com os silvícolas brasileiros.”
Nota de Vagner Gonçalves para a edição do IMS: “Os caboclos são vistos como espíritos indígenas cujo culto é típico da umbanda, mas
também podem ser encontrados em candomblés, sobretudo os de tradição angola. Usualmente seu culto se distingue do culto aos orixás,
não sendo permitida sua incorporação quando se estão louvando os deuses de origem africana. Na foto 90 vê-se a imagem de um caboclo
no peji (altar) da provável mãe-de-santo fotografada em primeiro plano. À esquerda dela, vê-se uma imagem de Nossa Senhora, mostrando
como o candomblé situa-se entre as influências indígenas e católicas.”
A mencionada foto 90 na nota, não incluída na reportagem de O Cruzeiro nem no livro
Candomblé.
“Oxum Maré ou Bessen, orixá filho de Inlé e de Oxum. Corresponde, na religião católica, a São
Expedito. Seus símbolos são seixos rolados. Oxum Maré tem a praticularidade de ser, durante
seis meses, homem, comer carne e viver de caça, e o resto do ano mulher, alimentando-se de
peixes e vivendo nas águas”. Nota: A descrição e a foto referem-se ao orixá Logunedé ou Logun Edé,
apresentado em primeiro plano e seguido pelos orixás Iansã e Omulu.
“A gameleira branca, morada do deus Lôko, é o lugar das oferendas.”
A filha de uma das iaôs cuja iniciação foi fotografada por José Medeiros mostrou para Fernando
de Tacca um álbum de fotografias com uma edição das fotos que saíram na revista O Cruzeiro, na
qual aparecia sua mãe, “Perrucha”, respeitada mãe de santo que atuou durante toda sua vida no
mesmo bairro do terreiro no qual havia sido iniciada por Mãe Riso.

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