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O romance de 30
2ª geração- Prosa
CARACTERÍSTICAS GERAIS
Rachel de Queiroz
3o Ciclo: Romances Sociais: discriminação racial, ditadura,
perseguição política, autodeterminação; capitalismo X comunismo.
-O Senhor Embaixador; O Prisioneiro; Incidente em Antares;
O tempo e o vento
Se uma das características da epopéia é narrar a história de um povo, a
obra O Tempo e o Vento, escrita por Erico Verissimo, certamente possui esse
traço épico. Ela foi publicada em três romances: O Continente, O Retrato e O
Arquipélago – os dois primeiros possuem dois volumes, enquanto o terceiro
foi dividido em três. A trilogia narra o processo de formação do estado do Rio
Grande do Sul, misturando ao elemento ficcional, preponderante em toda a
obra, dados e personalidades históricos. Os romances acabam por recriar 200
anos da história gaúcha, de 1745 a 1945, tempos marcados pelo poder das
oligarquias, por guerras internas e guerras de fronteira. O espaço em que a
narrativa se desenvolve é a cidade fictícia de Santa Fé.
“Em relação a seu momento histórico, tem o diferencial de tratar de temas
sobre o sul do país, divulgando costumes e tradições de uma região até então
abandonada pelos enredos dos escritores regionalistas mais conhecidos, que,
em sua imensa maioria, construíram narrativas sobre a Região Nordeste.”
ANA TERRA
“Mal raiou o dia, Ana ouviu um longo mugido. Teve um estremecimento, voltou a
cabeça para todos os lados, procurando, e finalmente avistou uma das
vacas leiteiras da estância, que subia a coxilha na direção do rancho. A Mimosa! —
reconheceu. Correu ao encontro da vaca, enlaçou-lhe o pescoço com os braços,
ficou por algum tempo a sentir contra o rosto o calor bom do animal e a acariciar-lhe
o pêlo do pescoço. Leite pras crianças — pensou. O dia afinal de contas começava
bem. Apanhou do meio dos destroços do rancho um balde amassado, acocorou-se
ao pé da vaca e começou a ordenhá-la. E assim, quando Eulália, Pedrinho e Rosa
acordaram, Ana pôde oferecer a cada um deles um caneco de leite.
— Sabe quem voltou, meu filho? A Mimosa.
O menino olhou para o animal com olhos alegres.
— Fugiu dos bandidos! — exclamou ele.
Bebeu o leite morno, aproximou-se da vaca e passou-lhe a mão pelo lombo,
dizendo: — Mimosa velha... Mimosa valente...
O animal parecia olhar com seus olhos remelentos e tristonhos para as sepulturas.
Pedro então perguntou:
— E as cruzes, mãe?
— É verdade. Precisamos fazer umas cruzes.
Com pedaços de taquara amarrados com cipós, mãe e fi lho fi zeram quatro cruzes,
que cravaram nas quatro sepulturas. Enquanto faziam isso, Eulália, que desde o
despertar não dissera uma única palavra, continuava sentada no chão a embalar a
filha nos braços, os olhos voltados fixamente para as bandas do Rio Pardo.
No momento em que cravara a última cruz, Ana teve uma dúvida que a
deixou apreensiva. Só agora lhe ocorria que não tinha escutado o coração
dum dos escravos. O mais magro deles estava com a cabeça decepada —
isso ela não podia esquecer...
Mas e o outro? Ela estava tão cansada, tão tonta e confusa que nem tivera
a idéia de verificar se o pobre do negro estava morto ou não. Tinham
empurrado o corpo para dentro da cova e atirado terra em cima... Ana
olhava, sombria, para as sepulturas.
Fosse como fosse, agora era tarde demais. “Deus me perdoe” —
murmurou ela. E não se preocupou mais com aquilo, pois tinha muitas
outras coisas em que pensar.
Começou a catar em meio dos destroços do rancho as coisas que os
castelhanos haviam deixado intatas: a roca, o crucifi xo, a tesoura grande
de podar — que servira para cortar o umbigo de Pedrinho e de Rosa —,
algumas roupas e dois pratos de pedra.
Amontoou tudo isso e mais o cofre em cima dum cobertor e fez uma trouxa.
Naquele dia alimentaram-se de pêssegos e dos lambaris que Pedrinho
pescou no poço. E mais uma noite desceu — clara, morna, pontilhada de
vagalumes e dos gemidos dos urutaus. Pela madrugada Ana acordou e
ouviu o choro da cunhada. Aproximou-se dela e tocou-lhe o ombro com a
ponta dos dedos.
— Não há de ser nada, Eulália...
Parada junto de Pedro e Rosa, como um vagalume pousado a luciluzir
entre os chifres, a vaca parecia velar o sono das crianças, como um anjo
da guarda.
— Que vai ser de nós agora? — choramingou Eulália.
— Vamos embora daqui.
— Mas pra onde?
— Pra qualquer lugar. O mundo é grande.
Ana sentia-se animada, com vontade de viver.
Sabia que, por piores que fossem as coisas que estavam por vir, não
podiam ser tão horríveis como as que já tinha sofrido. Esse pensamento
dava-lhe uma grande coragem. E ali deitada no chão a olhar para as
estrelas, ela se sentia agora tomada por uma resignação que chegava
quase a ser indiferença.
Tinha dentro de si uma espécie de vazio: sabia que nunca mais teria
vontade de rir nem de chorar. Queria viver, isso queria, e em grande parte
por causa de Pedrinho, que afi nal de contas não tinha pedido a ninguém
para vir ao mundo. Mas queria viver também de raiva, de birra.
A sorte andava sempre
virada contra ela. Pois Ana estava agora decidida a contrariar o destino.
Ficara louca de pesar no dia em que deixara Sorocaba para vir morar no
Continente. Vezes sem conta tinha chorado de tristeza e de saudade
naqueles cafundós.
Vivia com medo no coração, sem nenhuma esperança de dias melhores, sem a
menor alegria, trabalhando como uma negra, e passando frio e desconforto... Tudo
isso por quê? Porque era a sua sina. Mas uma pessoa pode lutar contra a sorte que
tem.
Pode e deve. E agora ela tinha enterrado o pai e o irmão e ali estava, sem casa,
sem amigos, sem ilusões, sem nada, mas teimando em viver. Sim, era pura
teimosia. Chamava-se Ana Terra. Tinha herdado do pai o gênio de mula.”
(O continente. São Paulo, Cia. das Letras, 2004.)
Um certo Capitão Rodrigo
http://www.youtube.com/watch?v=SrMsWLnZKtI