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GUERRA DOS

LUGARES
A COLONIZAÇÃO DA TERRA E
DA MORADIA NA ERA DAS
FINANÇAS
RAQUEL ROLNIK

CAMILA CRUZ – 20/0054007


SOBRE O LIVRO
• Resultado da Tese de Livre-docência da autora;
• Relatora para o Direito à Moradia Adequada da ONU;
• Trata da tendência mundial financeirização da terra e da moradia;
• A titulação de terras como um instrumento de inserção das terras no
mercado;
• A supremacia da propriedade privada individual sobre as demais
formas de registro e titulação possíveis;
• Desconsideração das formas de ocupação dos territórios por
comunidades tradicionais;
INFORMAL, ILEGAL, AMBÍGUO:
A CONSTRUÇÃO DA TRANSITORIEDADE
PERMANENTE
• Nem sempre a situação de ilegalidade se dá pela invasão de terras privadas;
• Processos de loteamento de glebas e venda de lotes à margem da
legislação urbanística;
• Concessão de uso pelo Estado aos moradores
• Exemplo da área do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro;
• Transitoriedade permanente articulada ao estigma territorial;
• “Não eram bandidos, não eram inimigos: era gente.”
• “Zonas de indeterminação entre legal/ilegal, planejado/não planejado,
formal/informal, dentro/fora do mercado, presença/ausência do Estado.”
• Tal situação de indeterminação mantêm essas áreas na condição de
“reserva” de terras
• A categoria de “ilegalidade” não pode ser absolutizada;
• Pluralismo jurídico: Coexistência de duas ordens jurídicas, a oficial e
uma paralela, ou sobreposição de duas esferas da ordem jurídica
oficial;
• Exs: O parcelamento e venda de terras comunais no Benin e no
México, que são vedadas pela legislação oficial, mas aceitas pelas
redes locais;
• A criação de loteamentos irregulares em áreas periurbanas;
• Conforme Pedro Abramo, os assentamentos informais possuem meios próprios de
resolução de conflitos, mediados por autoridades locais constituídas por processos
históricos legitimadores;
• Essa rede de relações legitima contratos informais de compra e venda ou locação,
possibilitando sua validade intertemporal e intergeracional;
• Um direito “interno, não-oficial e precário”;
• Para Alex Magalhães e Boaventura Santos:
• Não se trata de coexistência pacífica de duas ordens jurídicas, mas da
desjuricização permanente dos assuntos afetos às camadas populares;
• A relação entre estas duas esferas de direito, reflete a desigualdade entre os grupos
sociais que a elas recorrem.
• Dada a instabilidade das relações entre as diferentes ordens jurídicas e das
definições de legal e ilegal, a mediação dos conflitos se estende ao campo político;
• Pressão social, mediação política;
• O Estado está presente nos processos de formação, consolidação e remoção dos
assentamentos, seja como proprietário da terra, ou como mediador de conflitos;
• Ex: Países da África Subsaariana nos quais houve a estatização em massa da terra e foi
concedido seletivamente o direito de uso do solo, ou de edifícios, como no Camboja,
tendo sido outros assentamentos, considerados ilegais;
• O poder de negociação e influência política se torna importante capital eleitoral
decidindo, no fim das contas os impasses gerados perante a esfera jurídica.
• Esse processo funciona na consolidação dos assentamentos ou nas decisões de
alocação de equipamentos públicos e/ou investimentos em infraestrutura, que se dão
de forma seletiva e intermediada;
• Partha Chatterjee afirma que os pobres urbanos não têm sido tratados como cidadãos
de plenos direitos, uma vez que sua forma de provisão de moradia e atividades de
subsistência estão à margem da legalidade, o sistema formal-legal não lhes permite
acessar direitos, que são obtidos não pela via da sociedade civil, mas de favores
políticos.
• Sociedade civil x Sociedade política
• “Pacto territorial” – Tolerância seletiva com exceções à regra;
• Tem como objetivo “responder a pressões de massas urbanas ao
mesmo tempo que reafirma a transitoriedade e o estigma territorial”
• Ideologia da doação – Necessidade da doação (Estado), necessidade
de receber + necessidade ética de retribuição (população)
• “uma fatura sem valor nem data de vencimento definidos – e que
pode ser solicitado a qualquer momento, sob distintas formas”
• Instabilidade, irresolução e temporariedade
• “Nós somos ilegais” – Extensão do estigma territorial às demais áreas
da vida, à condição humana em si;
A LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA E A INFORMALIDADE

• Teóricos da economia neoclássica relacionam as exigências da regulação


urbanística à difusão da informalidade;
• os preços do solo urbano e dos imóveis não dependem somente da relação
entre oferta e demanda, pois também há um limite (artificial) da oferta;
• Os parâmetros urbanísticos muito restritivos elevam os preços da terra e
dificultam o acesso dos mais pobres, resultando em territórios fora dos
padrões e que são tolerados pelas autoridades;
• Submetida aos interesses do capital imobiliário, a legislação urbanística se
presta a reservar as melhores terras da cidade para uso das elites, impedindo o
acesso dos pobres a estas, por meio de “barreiras invisíveis”
• O espaço das elites é alvo de extremo detalhamento na legislação, tornando-se
regra, enquanto os bairros populares permanecem ignorados;
• Os espaços informais permitem a utilização de densidades altíssimas, potencializando os
lucros do mercado informal;
• As restrições urbanísticas também podem servir a interesses discriminatórios contra
minorias ético-culturais;
• Ex: Cidades brasileiras em relação a grupos afrodescendentes e em Israel, contra
comunidades árabes e beduínas, ou dos ciganos na Europa, em que a institucionalização
de parâmetros urbanísticos excludentes viabiliza a marginalização desses grupos;
• O Estado de Israel favoreceu a regularização de assentamentos judaicos, e dificultou o
mesmo processo para os não-judaicos. Além de forçar a urbanização de comunidades de
beduínos;
• A situação de irregularidade desses assentamentos impede seu acesso a investimentos
em infraestrutura e a direitos fundamentais, como educação, trabalho e saúde;
• É o planejamento urbano quem define o que é legal e o que é ilegal espacialmente nas
cidades;
• A legislação exclui formas de ocupação típicas dos bairros populares, como o uso misto
ou o uso multifamiliar horizontal;
• Os Kampung em Jacarta, Indonésia, são espaços altamente
adensados, de uso misto e abrigam cerca de 60% da população da
cidade, incluindo imigrantes;
• Os Kampung tradicionalmente eram autônomos em suas regras e a
relação do Estado com estes é variável conforme cada administração;
• O programa de melhoramento dos kampung (Kampung Improvement
Program – KIP), lançado em 1969, é considerado um dos maiores e
mais bem-sucedidos projetos de urbanização de favelas do mundo;
• Parte dos kampung são reconhecidos pelo Estado e parte são
classificados como ilegais (situados em áreas ambientalmente frágeis,
canais, ferrovias), não recebendo investimentos e tendo piores
condições de vida;
HEGEMONIA DA PROPRIEDADE PRIVADA
• Transitoridade permanente – Estigma territorial – Hegemonia da propriedade privada
sobre outras formas de posse – Fundamenta os processos de despossessão;
• A situação de ilegalidade dos assentamentos informais os transforma em entraves à
expansão do capital;
• A propriedade privada torna-se hegemônica nos últimos 250 anos, se consolida com a
construção do Estado liberal e se expande mundialmente com o avanço do capitalismo;
• Segundo Marx, a posse comunal da terra inviabilizaria a apropriação do valor do trabalho
não remunerado;
• A propriedade passa a ser vinculada à ideia de liberdade;
• A liberdade de comerciar com as propriedades constitui parte importante da liberdade
individual – Concepção de Bentham/ Estado liberal moderno;
• Locke - Direito natural - Vida – Liberdade – Propriedade
• A liberdade nesse sentido seria algo da esfera do privado, que implica poder sobre um
conjunto de coisas que exclui os demais;
• Liberdade de alienação da propriedade e do trabalho mediante o contrato;
• A propriedade privada da terra desempenha uma função ideológica ao legitimar as demais
formas de propriedade privada, inclusive a dos meios de produção;
• Tal ideia influenciou a programas de acesso à propriedade privada da moradia, reformas de
sistemas fundiários e de titulação de assentamentos informais;
• Características dos sistemas de gestão fundiária (Banco Mundial):
- Duração: Para retorno dos investimentos;
- Modalidades de demarcação e transferência da propriedade: Baixo custo
- Instituições de enforcement: Respaldo do Estado
• Segurança da posse em segundo plano;
• Supostamente:
- Aumentaria as possibilidades de acesso ao crédito;
- Traria mais segurança às famílias para investimento na melhoria da habitação;
SEGURANÇA DA POSSE COMO INSTRUMENTO DE
COMBATE À POBREZA
• A segurança da posse é defendida desde o lançamento da Campanha Global pela
Segurança da Posse, em 1999, pela UN-Habitat.
• Estava incluída como um dos objetivos do milênio em 2000,sendo retirada por influência
da OCDE e do Banco Mundial;
• Esses organismos passaram a relacionar a redução da pobreza urbana ao crescimento
econômico;
• O atendimento a essa reivindicação foi substituído pelo incentivo a reformas fundiárias e
programas de titulação de terras, por parte de organismos internacionais;
• Hernando de Soto relaciona a riqueza do ocidente à propriedade privada da terra.
Defende que a titularização garantiria a dinamização do “capital morto” dos mais pobres;
• A titularização e reformas fundiárias têm sido pautadas pela eliminação de formas de
transação comuns no mercado informal, regidas por relações de confiança e lealdade, e
priorização do caráter de impessoalidade do mercado formal;
ILHAS MALDIVAS
• Nas Ilhas Maldivas, toda terra é pública e todos os cidadãos têm o direito de nascença de
receber uma gleba.
• O crescimento demográfico tem provocado a subdivisão dos lotes;
• A concentração populacional na capital, Malé, fez prevalecer o sistema de aluguéis de
moradia
• A geografia e vulnerabilidade a eventos climáticos restringe as áreas disponíveis para
moradia;
• Segundo a Comissão de Direitos Humanos das Maldivas, em 2008, cerca de 85% das
famílias em Malé compartilham um pequeno apartamento com outras ou vivem em
espaços temporários ou improvisados.
• Em 60% dos domicílios da cidade, há 2,5 pessoas ou mais por dormitório, o que caracteriza
superlotação. Em 2006, o número médio de pessoas por quarto em Malé era de 3,1.
• Algumas famílias em Malé e em Villingili chegam a gastar 80% de sua renda com aluguel, e,
em alguns casos, mais de quinze pessoas chegam a compartilhar um mesmo cômodo.
ILHAS MALDIVAS
• Ilhas inteiras foram destinadas ao turismo por meio do modelo de leasing, para a construção de
resorts;
• Nova Lei Fundiária de 2003 possibilita a venda de terras, hipoteca e uso da terra como garantia
para empréstimos, sofrendo uma “modernização” em 2004, por recomendação do Banco
Mundial;
• O presidente afirmou que não seria possível alcançar o desenvolvimento nacional e o
crescimento econômico sem libertar a terra de obstáculos legais e procedimentais
desnecessários e sem permitir sua transação comercial;
• Relatório do FMI, em 2005 aponta como positivas as alterações nos sistemas financeiro e
fundiário, como a abertura para fluxos internacionais e a introdução de sistemas de propriedade
individual e hipotecas, como sendo ações de “desenvolvimento econômico recente”;
• Não tem sido desenvolvida uma forma de garantia de acesso à terra aos mais pobres, em
substituição ao sistema fundiário tradicional;
RUANDA
• País marcado por conflitos étnicos entre os Rutus e os Tutsis, que se refletem em conflitos pela
posse da terra;
• Com a alternância de poder entre as duas etnias, a população opositora precisava se refugiar em
outros países, retornando quando possível e retomando a luta pelas terras;
• Regimes tribais de acesso à terra, como arrendamento, parceria, meação, direitos de pastagem,
usufruto e outras, ainda prevalecem sobre a compra, venda e aluguel;
• Uma nova Lei de Terras foi aprovada em 2005, como parte de um processo de paz, enfrentamento
da escassez de terras e promoção do crescimento econômico;
• Tal política adota como modelo a propriedade individual registrada, eliminando as formas comunais
e tradicionais, mas reconhecendo as posses atuais.
• Ainda, institui e regula o arrendamento de terras, e elimina obstáculos para o registro da terra em
nome de mulheres;
• A maior parte das ações judiciais em Ruanda trata de conflitos agrários;
• A reforma fundiária foi orientada pela política de “land consolidation”, que prevê o
remembramento de pequenas glebas e proíbe subdivisões de glebas pequenas;
• Sob o argumento de maior produtividade das terras maiores e possibilidade de mecanização e
modernização da agricultura;
• Agroindústrias arrendatárias ou cooperativas de agricultores podem produzir na terra,
sob o regime de monocultura, a ser definido conforme as necessidades do mercado;
• Direcionamento para a agricultura comercial e afastamento da agricultura de
subsistência e voltada para a produção de alimentos;
• A consolidação é ato voluntário, porém os programas de apoio do governo só estão
disponíveis para as terras consolidadas;
• A reforma fundiária de Ruanda optou, como em outros casos, pelo modelo único da
privatização, formalização, registro e consolidação das propriedades, apostando na
modernização via livre mercado;
• Pode expor os pequeníssimos proprietários às pressões do agronegócio, com a
consequente concentração da propriedade de terras nas zonas rurais e o aumento da
migração para os centros urbanos;
• Não há políticas de habitação para os migrantes na capital, Kigali;
• O Plano Diretor de Kigali, de 2007, zoneou o bairro central da cidade, para uso
residencial de alto padrão e como centro de negócios, tornando-se o padrão de
legalidade;
• Os títulos só poderiam ser emitidos para os imóveis que obedecessem os usos
propostos pelo Plano;
QUEM SE BENEFICIA COM OS TÍTULOS
REGISTRADOS?
• Falta de evidências sobre os resultados econômicos de programas de titulação
- Escassez de evidências independentes para defender ou questionar essa
opção como a política mais apropriada para promover o desenvolvimento
econômico e social e reduzir a pobreza urbana.
- Nas áreas rurais na África, demonstrou-se que o registro de terras teve um
impacto insignificante ou não teve impacto algum no aumento do investimento
ou da renda rural de seus habitantes;

• Os moradores pobres de assentamentos informais titulados passam a acessar


crédito nos bancos?
- Continuidade de barreiras que impedem esse acesso;
- Falta de interesse dos pobres em obtê-lo;
- Perda de flexibilidade existente nos meios informais de acesso ao crédito;
- Regularidade de pagamentos, associada com o aluguel
• O registro formal da propriedade aumenta a segurança da posse?
- A segurança da posse não está necessariamente relacionada com a existência
de um título formal registrado, mas sim com a percepção – política, cultural,
social;
- A maioria dos moradores fundamenta sua avaliação sobre a segurança de sua
posse com base na tolerância oficial para com seus assentamentos e a existência
ou não de melhorias na infraestrutura;
- As pessoas melhoram suas casas quando e na medida em que conseguem
custear as reformas, independentemente de terem título formal da terra ou não;

• Os programas de titulação melhoram a qualidade de vida nos assentamentos?


• Processos de titulação que se limitaram ao registro patrimonial, não
contemplando a infraestrutura, não foram capazes de promover a integração
socioespacial desses locais às cidades onde estão inseridos.
• Revisão de postura do Banco Mundial sobre a titulação/ propriedade privada individual:
“O consenso anterior sobre essa questão mudou [...] já que a maior parte dos analistas e
gestores de políticas deixaram de apenas pressupor que a formalização necessariamente
aumenta a segurança da posse e leva a empréstimos com garantia”

“Agora está amplamente reconhecido que o foco exclusivo em títulos formais do documento
de 1975 era inapropriado e que será necessário prestar muito mais atenção na legalidade e na
legitimidade de arranjos institucionais existentes”

• Continuum de categorias de posse (UN-Habitat)


DIREITOS DIREITOS
FUNDIÁRIOS FUNDIÁRIOS
INFORMAIS FORMAIS

• Dualidade entre arranjos de posse estatutários e consuetudinários, legais e ilegais, formais e


informais.
• Apesar da revisão de postura, os organismos seguem financiando programas de titulação de
terras, justificando ser demanda dos governos locais;

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