A notícia passou quase despercebida no rodapé do noticiário das nove: Agostinho
Cebola, da Rinchoa, caíra da cama ao tentar desligar o despertador a pilhas, batendo com a cabeça na mesa-de-cabeceira o que lhe provocara morte imediata. Quinze dias depois, no noticiário regional, fomos informados que um cidadão de Moncorvo vazara inadvertidamente o olho esquerdo da esposa, ao tentar calar um despertador a pilhas. Dois ou três dias mais tarde, um professor de uma universidade privada veio, no horário nobre, alertar para os perigos das radiações dos despertadores a pilhas, susceptíveis de induzir, na sua opinião, um efeito catalizador nos mecanismos de produção de cálculos renais, advertência posteriormente reforçada pelas pesquisas de outros peritos que atribuíram àqueles aparelhos a responsabilidade pelo decréscimo da fecundidade feminina e da inteligência da população em geral. A controvérsia alastrou como fogo, alimentada pelos noticiários televisivos e pelo desperdício de papel dos suplementos jornalísticos de domingo. Os treinadores, jogadores e responsáveis das principais equipas de futebol manifestaram de modo inequívoco a sua preocupação pelos malefícios das pequenas baterias, com particular destaque para as AA que, na perspectiva do melhor marcador do campeonato, eram muito prejudiciais porque produziam muitos prejuízos e prontos, opinião logo partilhada por uma razoável fatia do público telespectador. Paladinos destas causas, os movimentos ecologistas, temendo uma já sensível perda de protagonismo, vieram também à liça alertando para os malefícios do lítio e do cádmio libertos no ecossistema, ponto de vista partilhado pela Federação dos Pensionistas das Extintas Casas do Povo, preocupada com as relações existentes entre os despertadores a pilhas e a artrose do pulso. Em vão tentaram os organismos oficiais desmentir o que consideravam ser um abusivo regabofe de mentiras com objectivos pouco claros mas, era chover no molhado: não havia dia em que as evidências recolhidas em ocasionais entrevistas de rua não os viessem desautorizar. O país estava seriamente preocupado. Tão preocupado que o principal accionista do maior grupo económico teve que demonstrar publicamente porque era o maior accionista do maior grupo económico e o maior amigo do povo: comprou as fábricas de pilhas cujas acções estavam em queda livre e monopolizou os circuitos de importação das mesmas. Mais: fazendo jus à sua reputação de homem com gosto pelo risco, a sua principal cadeia de distribuição lançou de imediato a campanha Um galo na marquise é o campo na cozinha, passando as lojas vender galos, bons cantadores, com um desconto de cinco por cento contra a entrega de um despertador, numa nova secção especialmente criada para o efeito. Havia, além disso, todo um pacote de produtos, a preços de promoção, destinados a instalar o novo espírito: champô Bril-Galo, para a beleza das aves, linha de suplementos proteicos VacaGalo para uma saúde perfeita dos galináceos, poleiros com acesso wireless à net e gaiolas com tv e ar condicionado. A adesão aos produtos foi simplesmente espantosa… Também eu comprei um galo. Também eu me maravilhei, por algum tempo, com os seus trejeitos fadistas ao cantar de manhãzinha. Também eu me senti devolvido à rusticidade da infância, às coisas simples e boas da vida mas, um dia, sem aviso prévio, o galo deixou de cantar. Bem que eu tentei devolvê-lo ao seu estado canoro, à custa de algumas boas palavras e de muitos puxões de crista mas, foi em vão. O animal estava mudo. Tirei-me de bons cuidados e telefonei para a linha verde da empresa. Fiz chinfrim. Ameacei nunca mais lá comprar iogurtes. Exigi falar com o topo da hierarquia e tanto exigi que consegui chegar à palavra com o senhor engenheiro. E disse-lhe assim: ó senhor engenheiro, então o galo, comprado há tão pouco tempo, já está doente. E ele respondeu-me: o galo não está doente, meu caro. O galo simplesmente não funciona. Não funciona? Ó senhor engenheiro, o que é que quer dizer com isso? O que eu quero dizer é que o galo é uma máquina. Ora levante-lhe lá a asa esquerda. Fiz como ele me disse e lá estava, em letras pequeninas: made in China. Quando caí de novo em mim, consegui perguntar-lhe: Ó senhor engenheiro, então e agora o que é que eu faço. É que gastei uma pipa de massa no bicho…no aparelho, digo, e agora tenho que deitá-lo para o lixo? Nada disso, sossegou-me o senhor engenheiro: tudo o que tem a fazer é meter- lhe cinco pilhas no cu todas as semanas. Temos nas nossas lojas embalagens económicas de 250 unidades com oferta de 10 cêntimos para gasolina ou um despertador. Se fosse a si, ia já a correr comprar, antes que se esgotem. Se precisar de algo contacte o nosso sales manager, o senhor Agostinho Cebola ou o nosso public relations que é o senhor…não me lembro do nome…aquele que era presidente do grupo ecologista Os Passarões… Adeus. Foi um prazer falar consigo. Sentei-me sem saber que pensar daquilo tudo. Sentindo a mostarda a chegar-me ao nariz, olhei longamente para o galo que me fitava com escarninho olhar oriental. Peguei no atiçador da chaminé e fui-me a ele. Ergui alto o braço para desferir o golpe e deixei que a voz exprimisse o que me ia na alma. E a voz disse: quá…quá…quá.