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Os Camões de Évora e Luís Vaz de Camões

Uma referência inédita ao autor dos Lusíadas

Sobre o ramo dos Camões que, ao longo de séculos, teve Évora por sua pátria não
escasseiam as notícias. Muitos foram os que, ao correr dos anos, se debruçaram sobre a
matéria que aqui de novo se retoma, dando continuação ao trabalho de cabouqueiro a
que, humoradamente, Túlio Espanca se referiu, em comunicação apresentada à
Academia Portuguesa de História, corria o já distante ano de 1980.
De facto, apesar do muito considerável volume de dados já coligidos e publicados sobre
esta família eborense, continua a ser notória, em termos genealógicos, a ausência de um
estudo mais aprofundado. Os valiosos contributos de uma plêiade de ilustres camonistas
não bastaram para esclarecer as muitas incertezas que teimam em rodear as suas origens
ou os percursos de vida dos seus membros, tal como o de Luís Vaz de Camões, seu
parente próximo, cuja hipotética presença na cidade tem sido abordada por diversos
investigadores.
Se bem que a presença dos Camões em Évora na centúria de quatrocentos não careça de
confirmação, porque de há muito documentalmente comprovada propusemo-nos, em
trabalho a publicar, de que o presente artigo faz resumo, restringir o âmbito da pesquisa
ao horizonte temporal da segunda metade de quinhentos, porquanto é dado adquirido a
permanência na cidade de muitos dos membros da família. De não menor peso na
tomada dessa orientação da pesquisa foi o facto da existência, nos acervos documentais
locais, de uma vastíssima documentação de importância capital para o estudo, não
apenas na perspetiva local, mas também de um ponto de vista regional, já que muitos
dos Camões de que nos ocupamos se podem localizar, periodicamente, noutras áreas do
atual distrito de Évora e mesmo no de Portalegre, onde alguns deles foram nados e
criados.
À semelhança da restante nobreza, a manutenção do lustre familiar escorava-se na
perceção de rendas provenientes da tenência de bens de raiz, vinculados em capelas e
morgados, localizadas nos termos de Évora, Avis, Estremoz, Montemor-o-Novo e
Elvas, entre outros.
Em Évora sabe-se terem residido, alguns deles, às Portas de Moura e outros na Rua de
Machede, na Rua dos Mercadores, ou ainda no outeiro da Vila Nova, com foro de
fidalgos da casa d´el-rei, ligados por casamento a outras destacadas linhagens naturais
da cidade ou com assento em outras terras do reino, tal como sucedeu com os Macedos,
de raízes escalabitanas. Também em Évora tiveram a sua última morada, em jazigos de
família na igreja de São Francisco e na sé catedral, na capela de S. Pedro,
posteriormente capela da Vera Cruz.
Foi na sequência de um daqueles consórcios, como mais adiante se verá, que chegou até
nós o que, eventualmente, será mais uma referência direta ao vate, a juntar às
pouquíssimas já localizadas, produzidas no âmbito do perdão real pela agressão a

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Gonçalo Borges, da concessão de tença por D. Sebastião, ou do imprimatur da epopeia,
de todos bem conhecidos.
Entre os membros da família contava-se D. Francisca de Castro, filha de António Vaz
de Camões, primo do poeta, e de D. Isabel de Castro, sua esposa. Esta D. Francisca era
já, em 1551, órfã de pai e mãe, falecidos ambos em meados da década de quinhentos e
quarenta, tendo ficado por seu tutor Duarte de Camões, seu tio paterno.
Nesse mesmo ano, aos quinze dias do mês de dezembro, nas pousadas de D. Diogo de
Castro, capitão-mor de Évora, igualmente tio de D. Francisca, estando aí presentes o
dito tutor e procurador, Duarte de Camões, e Francisco Figueira, estribeiro-mor do
infante D. Luís, como procurador de seu sobrinho D. Martinho de Távora, residente na
alcáçova de Santarém, celebrou-se o contrato de casamento e arras dos respetivos
constituintes, lavrado na nota do tabelião Álvaro Ramalho. Para o casal levou D.
Francisca seis mil cruzados e diversos bens, rendas e propriedades situadas,
maioritariamente, nos termos de S. Mansos, Pavia, Avis e Évora.
Três semanas mais tarde, a sete de janeiro do ano seguinte de 1552, encontrava-se em
Évora D. Martinho de Távora para tomar contas e dar quitação a Duarte de Camões no
respeitante à administração dos bens patrimoniais de D. Francisca de Castro.
Nestas circunstâncias apresentou Duarte de Camões diversos documentos, em papel e
pergaminho, relativos à gestão dos bens da sua sobrinha e tutelada, na presença do
tabelião Fernão de Arco que em sua nota, conservada no Arquivo Distrital de Évora,
lavrou o auto de que a seguir se transcreve, em leitura atualizada o que, acautelando
erros sempre possíveis, não dispensa a consulta do original:
Saibam os que este instrumento de conhecimento e quitação virem que no ano do
nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quinhentos e cinquenta e dois em os
vinte e sete dias do mês de janeiro em a cidade de Évora nas casas do senhor Duarte de
Camões fidalgo da casa del rei nosso senhor estando aí presente o senhor dom
Martinho de Távora outrossim fidalgo da casa do dito senhor e por ele foi dito que era
verdade que o dito Duarte de Camões que presente estava fora tutor da senhora dona
Francisca de Castro sua mulher e sobrinha dele Duarte de Camões filha de António
Vaz de Camões e de dona Isabel de Castro sua mulher que santa glória hajam /fl.94/
[desde?] o tempo do falecimento da dita dona Isabel por a qual fora ele dito dom
Martinho tomar a conta a ele dito Duarte de Camões da fazenda da dita dona
Francisca sua mulher assim dos bens móveis como de raiz rendimentos deles prata
ouro joias e mais coisas contidas nas partilhas dos ditos seus pai e mãe a qual conta é
escrita por Afonso Gomes de Araújo escrivão dos órfãos desta cidade que fica junta
aos processos do dito António Vaz e dona Isabel principiados os do dito António Vaz
em vinte dias do mês de fevereiro do ano de mil e quinhentos e quarenta e cinco e os da
dita dona Isabel principiados em vinte nove de março do ano de mil e quinhentos e
quarenta e seis e por remate da dita conta o dito Duarte de Camões ficava devendo a
ele dito dom Martinho três mil e duzentos réis e porquanto ficavam de fora da dita
conta os rendimentos da vinha de Pera Manca se mostrava nos rendimentos dela ter o
presente doze mil réis e deles se tiraram dois mil réis de gastos de conhecimentos das
casas das herdades da ribeira de Tera em Pavia de Trás os Montes e Figueira os quais
tirados ficam treze mil e duzentos réis os quais logo ele Duarte de Camões aí entregou

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ao dito dom Martinho que os contou e recebeu perante mim tabelião e testemunhas ao
diante escritas por moeda de prata nestes reinos corrente por que os houve e assim
mais recebeu as escrituras seguintes Item o contrato de /fl.94v./ casamento dos ditos
António Vaz e dona Isabel escrito por Diogo Gonçalves tabelião desta cidade item
outra escritura pelo dito Diogo Gonçalves do oitavo do Cimo da Azinheira item três
escrituras duas em papel e uma em pergaminho de uns quinhões que se compraram na
herdade dos Mouchões com uma sentença de vencimento dela item outra escritura em
pergaminho feita pelo dito Diogo Gonçalves item a quitação de pagamento de um moio
de foro que se comprou a Henrique Pratas na herdade dos Pratas item uma sentença
escrita em pergaminho que Lopo Vaz de Camões que deus tem houve contra Rodrigo
Cabral sobre a serra de S. Bartolomeu em a qual Luís Vaz de Camões também tem sua
parte item mais a cédula de testamento da dita dona Isabel de Castro item outra
escritura em papel por mim tabelião feita de um quinhão dos moinhos item outra
escritura em pergaminho de um quinhão que se comprou na herdade do Torrão a João
Fernandes item outra escritura por que Diogo Anes vendeu outro quinhão na dita
herdade do Torrão das quais escrituras e assim dos ditos bens e fazenda da dita dona
Francisca a quem outrossim as ditas escrituras pertencem ele dom Martinho se deu por
entregue pago e satisfeito com inteiro e real efeito sem desfalecimento algum e ao dito
Duarte de Camões e a seus herdeiros e assim a seus cunhados e mais herdeiros dos
ditos António Vaz e dona Isabel por quites e livres deste dia para todo o sempre de todo
o sobredito e rendimentos dele até o presente dia e assim do contrato e dote de seu
casamento que lhe o dito Duarte de Camões fez por mim tabelião escrito nesta mesma
nota e começa /fl.95/ às vinte e sete folhas dela e ele dom Martinho disse que lhe levara
em conta ao dito Duarte de Camões todas as despesas que a dita dona Francisca sua
mulher e com sua fazenda e compras que ele lhe fez e tinha feito e porque de tudo disse
que se dava por pago e satisfeito segundo disse e conhecia e confessava ter em si
recebido se obrigou por sua fazenda bens e rendas havidas e por móveis e de raiz e
para em todo o tempo cumprir esta quitação como em ela se contém em testemunho de
verdade lhe outorgou este instrumento e mandou dar desta nota as que cumpram que
ele Duarte de Camões em si em seu nome e de seus herdeiros aceitou e eu tabelião
como pessoa pública em nome dos ausentes a quem convém em futuro vir por ele
outrossim a este [palavra ilegível] e assinei testemunhas testemunhas (sic) que foram
presentes o dito Afonso Gomes de Araújo escrivão dos órfãos e João Calado morador
no Cano e o senhor Lopo Vaz de Camões irmão dela dona Francisca e outros e eu
Fernão de Arco tabelião que o fiz e entrelinhei /deste dia para sempre/e risquei/ e
pagamento/ verdade/

ADEVR, Notariais de Évora, tabelião Fernão d`Arco, Livro 31, fl. 94v

Será este Luís Vaz de Camões o nosso épico ou estaremos perante mais um caso de
homonímia numa família em que a semelhança dos nomes tantas vezes tem sido motivo
de embaraço para genealogistas e outros estudiosos? Recordemos, a este propósito, que
de um Luís de Camões, padrinho de um casamento celebrado na igreja de Santo Antão,

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aos 6 de maio de 1576, deu já notícia o camonista eborense António Francisco Barata,
em opúsculo publicado em 1882, com o título Luiz de Camões em Évora no ano de
1576 e que, por outro lado, a presença do autor em Évora tem sido proposta
repetidamente avançada.
Ora, recorrendo ao nobiliário de Felgueiras Gayo e percorrendo a descendência de
Vasco Pires de Camões, verifica-se ter sido o poeta o primeiro daqueles Camões a usar
o nome de Luís que, em posteriores gerações, viria ser reiterado em Luís Álvares ou
Gonçalves de Camões, irmão da esposa de D. Martinho de Távora, falecido em Alcácer
Quibir, e outro Luís Gonçalves de Camões, filho de Duarte de Camões da Câmara e de
D. Isabel Lobo, não identificáveis com o filho de Simão Vaz de Camões, seu
contemporâneo. Existia, ainda, um outro Luís, não referido expressamente na
genealogia em questão, dado que teve o nome alterado para Gonçalo, por disposição
testamentária de seu pai. Não cremos, porém, dadas as circunstâncias do seu nascimento
que, enquanto Luís, tivesse usado dos apelidos paternos com que na Índia ficou
conhecido.
A propriedade na posse de Luís Vaz de Camões será a Serra de S. Bartolomeu, situada
na freguesia da Casa Branca do concelho de Sousel, a curta distância da herdade do
Álamo, em tempos também chamada dos Castros, onde se erguem as ruínas de uma
edificação, ainda hoje conhecida pelo nome de Torre de Camões. Esta herdade onde a
permanência de alguns parentes do poeta é detetável desde 1541 encontrava-se, em
princípios de seiscentos, já dividida em duas partes, uma pertencente a António Vaz de
Camões, marido de D. Francisca da Silveira e sobrinho da D. Francisca de Castro
acima, e outra a Luís Gonçalves de Camões, filho de Duarte de Camões da Câmara e de
D. Isabel Lobo.
Parece, assim, a fazer fé na genealogia apontada que, como outras, vale o que vale que,
por exclusão de partes e por dedução dos factos patrimoniais, o Luís Vaz de Camões
mencionado na escritura do tabelião Fernão d`Arco será o poeta, o que confirmaria a
hipótese da sua estreita relação com os Camões de Évora, obrigando, por outro lado, a
rever a tão romântica visão do poeta sem meios de fortuna… Porém, em matéria em que
as nuvens da fantasia têm obscurecido tanto a luz da verdade histórica, convém usar de
cautela para não as engrossar ainda mais até que outros elementos que, certamente,
haverá ainda por revelar possam esclarecer, definitivamente, a tão incómoda questão da
biografia do homem que cantou uma nação que persiste em nada saber dele.

Fernando Correia Pina

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