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Fernando Correia Pina

Uma procuração no séc. XVIII


um processo de autenticação em cadeia

2009
A procuração, acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes
representativos, de acordo com a definição que dela nos dá o Código Civil Português no
seu art.º 262 é, inquestionavelmente, uma das tipologias documentais mais
representadas nos livros de notas dos antigos tabeliães.

De entre as várias modalidades de que a procuração se podia revestir, interessa-nos, no


âmbito do presente trabalho, a figura da procuração como instrumento público, isto é,
lavrada em cartório, na presença de testemunhas.

Teremos, então, numa primeira fase de um processo tendente à realização de um


qualquer negócio jurídico não directo entre as partes interessadas, o registo em livro de
uma transmissão de poderes entre o representado e o seu procurador, com valor
probatório conferido pelo tabelião e pela presença de duas testemunhas. Além disso, a
figura do procurador deveria, por sua vez, preencher os requisitos previstos na
legislação da época, os quais afastavam do desempenho dos poderes de representação
um número significativo de indivíduos em função do seu estatuto familiar, social ou
profissional.

Porém, esta redução a escrito de uma vontade particular de pouco serviria ao mandatado
dada a impossibilidade deste se fazer acompanhar do livro em que se exarara o
instrumento de procuração.

Passamos, deste modo, à segunda fase do processo: a da produção de cópia autenticada


– pública forma - a ser apresentada como peça indispensável à conclusão do negócio.
Para este acto se requeria novamente a acção do tabelião que, reproduzindo a letra do
instrumento de procuração, lhe acrescentava obrigatoriamente, sob pena de nulidade se
assim não fizesse, o seu sinal público, elemento omisso no original.

A aposição de um símbolo gráfico enquanto meio de identificação pessoal e unívoco


poderá parecer-nos redundante e desnecessária face à presença do sinal raso, isto é, da
assinatura do tabelião. Contudo, o nome não tinha, com hoje, uma forma consagrada e
fixa em documento oficial o que motivava uma imensa fluidez, bem conhecida dos
genealogistas. Contrariamente, o sinal público era, por força da lei, objecto de registo
oficial em livro próprio na Casa da Suplicação, no Tribunal da Relação do Porto ou
ainda nas chancelarias das diferentes comarcas, conforme a área de acção dos tabeliães
ou a natureza do seu ofício e, por isso, susceptível de verificação.

Munido o procurador da respectiva cópia, poder-se-ia concluir estarem já dados todos


os passos necessários à conclusão do processo. Mas, na verdade, tal não acontecia.

Decorrendo do facto já acima apontado da não existência de um documento de


identificação pessoal, tornava-se imprescindível que alguém pudesse identificar o
portador do documento com o indivíduo nele mandatado, o que era apenas possível
através do conhecimento pessoal que dele tivessem os intervenientes na parte final do
processo, de modo a evitar qualquer ilícito.

Idêntica questão de legitimidade se colocava ainda, de modo mais agudo, relativamente


à autenticidade da própria procuração: como provar que os sinais público e raso nela
existentes pertenciam, efectivamente, a um tabelião encartado, mormente se as partes
outorgantes residissem em localidades distantes entre si, excluindo qualquer hipótese de
um conhecimento prévio das marcas tabeliónicas?

Para esta questão que só em princípios do século passado, graças à obrigatoriedade da


troca entre os notários das respectivas assinaturas, viria a ficar solucionada, propuseram
os seus predecessores um conjunto de procedimentos que são o tema principal da
presente exposição.

Para exemplificar quanto atrás ficou dito, recorreremos seguidamente a uma pública
forma de um instrumento de procuração, datada de 1730, lavrada no cartório do tabelião
António Jorge Torres, de Coimbra, pela qual uma residente dessa cidade constituiu seu
procurador bastante, para efeitos de gestão dos bens da herança de um irmão, falecido
na vila de Avis, a um aluno da universidade, natural daquela localidade alentejana

Saibam quantos este público instrumento de procuração em todo bastante virem


que sendo no ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil e setecentos e
trinta anos aos seis dias do mês de Abril do dito ano nesta cidade de Coimbra e casas
de morada de mim tabelião aí apareceu presente Ana Simões mulher de Manuel João
sapateiro desta cidade pessoa que reconheço ser a própria aqui nomeada pessoa que
reconheço de que dou fé e por ela me foi dito em presença das testemunhas ao diante
nomeadas […] constituía por seu certo e em todo bastante procurador […] a José da
Cruz Barradas estudante nesta universidade e morador nesta dita cidade para que ele
ou qualquer de seus substabelecidos de per si in solidum possam procurar os bens que
por morte de seu irmão António Martins que faleceu em a freguesia de Santiago da vila
de Avis […]

Identificados a constituinte e o seu procurador e definido o propósito da procuração,


seguem-se as solenidades internas do estilo, aqui omitidas, culminando o documento
nas assinaturas dos presentes ao acto

Feliciano Duarte Pinto que assinou a rogo dela constituinte por lho pedir e rogar e
Manuel Lourenço e António da Cruz todos desta cidade que aqui assinaram […]

seguindo-se os elementos de autenticação tabeliónicos

Em fé do que este subscrevi e assinei em público e raso de meus sinais de que uso e que
tais são os que se oferecem e eu António Jorge Torres o subscrevi

Sinais do tabelião António Jorge Torres

A partir deste momento, na posse da pública forma, o procurador encontra-se habilitado


a prosseguir a tarefa para que foi mandatado. Porém, como irá provar a autenticidade do
documento ao apresentar-se perante os magistrados de Avis? É o que veremos em
seguida.

Desconhece-se a data exacta da partida de José da Cruz Barradas da cidade do


Mondego. Sabemos, porém, que aos 14 de Abril se encontrava em Penela onde
contactou Francisco Duarte Pereira, boticário, que declarou, por escrito, o seguinte:

Francisco Duarte Pereira boticário do partido de Sua Majestade que Deus guarde e
morador nesta vila de Penela reconheço a letra digo reconheço o sinal da procuração
acima ser de António Jorge Torres tabelião que é de notas na cidade de Coimbra o que
sendo necessário juro debaixo do juramento do meu grau Penela 14 de Abril de 1730.

Na mesma data e ainda em Penela, por razões que desconhecemos, José da Cruz
Barradas apresentou a procuração a um dos tabeliães da vila que reconheceu a letra e
sinal do boticário, em termo assinado com os seus sinais público e raso

Eu José Furtado de Morais tabelião do público judicial e notas em esta vila de Penela
e seu termo que sirvo por provimento do doutor ouvidor desta correição de Montemor-
o- Velho reconheço a letra e sinal acima ser de Francisco Duarte Pereira boticário
nesta mesma vila a qual reconheço por continuamente lho estar vendo fazer em fé de
que o reconheço me assinei de meus sinais publico e raso de que uso em esta dita vila e
seu termo aos catorze dias do mês de Abril de mil e setecentos e trinta anos sob os ditos
o escrevi

No mesmo dia ou no dia seguinte, nos arredores Chão de Couce, novo reconhecimento
de assinatura seria acrescentado ao documento, desta feita por um sacerdote, o padre
Domingos Lopes que, referindo-se aos sinais de Furtado de Morais, deixou registado
que

Por ter o sinal em casa reconheço ser o acima com rabo do sobredito. Reconheço a
letra e sinal
Como já antes acontecera com o sinal do boticário de Penela, também o sinal do padre
Domigos Lopes viria a ser, por sua vez, reconhecido por Francisco Gomes da Silva,
tabelião de Chão de Couce como de seguida se mostra

Sinal do reconhecimento atrás ser do reverendo doutor Domingos Lopes morador na


sua Quinta do Salgueiral termo desta vila de Chão de Couce em fé de verdade me
assinei em público e raso em os quinze de Abril de mil setecentos e trinta anos
Francisco Gomes da Silva tabelião de notas nesta vila de Chão de Couce o escrevi

Continuando o seu itinerário para sul, o procurador deter-se-ia seguidamente em Vila


Nova de Pussos para reconhecer em cartório os sinais do tabelião de Chão de Couce

Reconheço a letra e sinais público e raso de reconhecimento retro ser tudo de


Francisco Gomes da Silva tabelião de notas na vila de Chão de Couce em fé de que me
assinei em público e raso hoje de Abril quinze de mil e setecentos e trinta anos eu Luís
Álvares tabelião do judicial e notas em a Vila Nova de Pussos por provimento do
doutor corregedor desta comarca da notável vila de Tomar que escrevi

A 16 de Abril, vamos encontrar José Barradas em Abrantes, onde foram reconhecidos os


sinais de Gomes da Silva por um dos tabeliães da localidade

João de Andrade Leite escrivão do Judicial em esta vila de Abrantes e seu termo
certifico e ponho por fé que a letra e sinais público e raso retro próximo é tudo de Luís
Alvares tabelião de notas e judicial na vila de Pussos e por tal a reconheço em fé de
que assinei apresente Abrantes dezasseis de Abril de mil setecentos e trinta

Ainda em Abrantes, no mesmo dia, foram os sinais de Luís Álvares reconhecidos por
outro dos tabeliães da vila

Manuel Gonçalves da Silva tabelião público de notas nesta vila de Abrantes e seu
termo por provisão do doutor ouvidor desta comarca certifico que a letra e sinal ao pé
dela é de João de Andrade Leite escrivão do judicial nesta mesma vila pela ter visto
muitas vezes em fé de que me assinei de meus sinais público e raso de que uso e
costumo fazer Abrantes dezasseis de Abril de mil setecentos e trinta anos sobredito o
escrevi
No dia seguinte, atravessado o Tejo, vamos encontrar o procurador na vila das Galveias,
onde, nas pousadas de um dos tabeliães locais, se procedeu ao reconhecimento da letra e
sinal do escrivão de Abrantes

António Gomes de Almada público tabelião do judicial e notas em esta vila das
Galveias e seu termo por sua majestade que Deus guarde certifico que a letra do
reconhecimento retro é de Manuel Gonçalves da Silva tabelião público de notas da vila
de Abrantes e por tal a reconheço em fé de que me assinei de meus sinais público e raso
de que uso e tais são Galveias dezassete de Abril de mil e setecentos e trinta sobredito
que o escrevi

O último dos reconhecimentos viria a ter lugar em Avis, local de conclusão do negócio

Reconheço ser a letra e sinais público e raso deste conhecimento acima ser tudo de
António Gomes de Almada tabelião e escrivão de todos os ofícios em a vila das
Galveias e por tal as reconheço Avis 28 de Abril de 1730 eu João Barata Godinho as
subscrevi

Como se viu, na impossibilidade prática de um reconhecimento directo dos sinais,


recorria-se a uma cadeia de autenticações efectuadas não apenas pelos proprietários e
serventuários dos ofícios tabeliónicos mas também por indivíduos cuja palavra fazia fé,
cremos que em virtude do seu estatuto socioprofissional.1

1
A procuração em causa foi extraída de Testamento nuncupativo com que faleceu António Martins
morador na Herdade de Passarinhos deste termo, pertencente ao fundo da Ouvidoria da Comarca de
Avis, Arquivo Distrital de Portalegre (PT/ADPTG/OCAVS/1-1/699)

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