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A eleição de Renan Calheiros: o Desencanto com a Democracia

Em 1º de fevereiro, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) foi eleito presidente


do Senado com 56 votos de seus pares. Ao longo dos últimos anos o senador
tem sido acusado de diversos atos de corrupção e está sendo processado no
Supremo Tribunal Federal pela prática dos crimes de peculato 1, falsidade
ideológica2 e utilização de documento falso3.

A ação do Senado foi uma ofensa ao povo brasileiro, e uma flagrante


manifestação de desprezo pelos anseios da população. Está claro que os
brasileiros estão cansados da corrupção que, em maior ou menor grau, parece
contaminar todas as esferas e níveis da estrutura de governo do país. Os
escândalos se sucedem, envolvendo ora deputados e senadores, ora
governadores e ministros e, por mais absurdo que isto possa parecer, até
juízes e desembargadores.

Entre os três poderes, o Legislativo tem a pior imagem e, infelizmente, para a


maioria dos brasileiros, a palavra "político" está fortemente associada à palavra
"corrupto". Parece ser generalizada entre o povo a ideia de que o Congresso é
um balcão de negócios, no qual políticos desonestos trocam seus votos por
favores e negociatas. Deputados e senadores são vistos como espertalhões,
que buscam apenas mordomias e vantagens pessoais, sem qualquer
preocupação com o bem comum.

A questão da democracia no Brasil atual tem merecido a atenção de diversos


pesquisadores. Embora a opção pelo regime democrático pareça estar

1
No Código Penal, Peculato: Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou
qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou
desviá-lo, em proveito próprio ou alheio; Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.
2
No Código Penal, Falsidade ideológica: Art. 299 - Omitir, em documento público ou
particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa
ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a
verdade sobre fato juridicamente relevante; Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o
documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, se o documento é particular.
3
No Código Penal, Uso de documento falso: Art. 304 - Fazer uso de qualquer dos papéis
falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302; Pena - a cominada à falsificação
ou à alteração.[reclusão de um a cinco anos, e multa, se o documento for particular, e de dois
a seis anos, e multa, se o documento for público]

1
consolidada, pesquisas tem evidenciado uma situação contraditória. Moisés
(2007, p. 23) descreve o paradoxo:

A democracia é também o regime político preferido pela maioria


dos cidadãos brasileiros, uma atitude que é confirmada pela
rejeição crescente ao longo do tempo tanto ao retorno dos
militares como ao monopartidarismo [...]
Não obstante, a democracia enfrenta um paradoxo: as instituições
democráticas são objeto de ampla e contínua desconfiança por
parte dos brasileiros. Dados provindos de diferentes fontes
mostram que, a despeito do apoio desfrutado pelo regime
democrático “per se”, cerca de dois terços do povo brasileiro não
confia – em graus variados – nos partidos políticos, nas casas
legislativas, nos diversos ramos do executivo, no sistema
judiciário e também nos serviços públicos de segurança, saúde e
educação. Pesquisas realizadas pelo autor em 1989, 1990, 1993 e
2006 revelaram que a percepção negativa em relação às
instituições públicas está disseminada em todos os segmentos da
sociedade, independente da renda, escolaridade, faixa etária e
localização geográfica [...]
As pesquisas também demonstram que o nível de insatisfação
com o funcionamento real da democracia é muito elevado.

Conforme Nolesco (2009, p. 3),

torna-se possível aventar a possibilidade de que, reiterada ou


cumulativamente, tais percepções públicas negativas podem estar
nutrindo um caldo de cultura política de viés autoritário já
existente no país, o que poderia apontar, em circunstâncias
extremas, para o apoio popular a regimes autoritários.

De fato, o desprestígio da classe política provoca em muitas pessoas certo


desencanto com a própria democracia e algumas lembranças de como parecia
haver menos corrupção há algumas décadas, durante o regime militar. Após a
eleição do senador Renan Calheiros, cheguei a ouvir alguns comentários, em
tom entre sério e jocoso, no sentido de que os políticos não têm mesmo jeito e
que seria hora dos Urutus4 saírem para as ruas.

Acredito que este sentimento se deve ao fato de que, para a imensa maioria
dos brasileiros, mesmo para os que viveram aquela época, o regime autoritário
pouco afetou seu cotidiano. É de notar-se que a ditadura à brasileira foi, até
certo ponto, “sui generis”, pois o Congresso funcionou praticamente o tempo
todo e sempre houve um partido de oposição.

4
Neste contexto, blindado anfíbio sobre rodas para transporte de tropas, utilizado pelo Exército
brasileiro, fabricado pela extinta Engesa.

2
Sem querer de forma alguma minimizar o drama vivido pelos familiares dos
mortos e desaparecidos por razões políticas, creio que é possível dizer que a
selvageria do regime militar no Brasil foi incomparavelmente menor do que em
outros países da América Latina. Basta lembrar que a lista de mortos e
desaparecidos durante o regime militar, publicada pela Secretaria Nacional
dos Direitos Humanos em 2007, inclui 382 nomes; na Argentina, cuja
população é cerca de um terço da nossa, houve mais de 30000 mortos e
desaparecidos!

É certo que a corrupção durante o regime militar era menor em termos


absolutos (havia menos o que roubar...) e é bastante possível que o fosse
também em termos relativos. Mas a falta de liberdade da imprensa impedia a
divulgação dos casos de corrupção que ocorriam. Hoje, a imprensa tem um
relevante papel na luta contra a corrupção, investigando e divulgando eventuais
irregularidades no trato do dinheiro público. A corrupção entranhada na
estrutura do estado, mas invisível durante o período autoritário, tornou-se
justificadamente uma das principais preocupações da sociedade e um dos
assuntos mais focados pela mídia.

Seja como for, quando as Forças Armadas depuseram João Goulart, existia um
acalorado debate sobre dois modelos alternativos para o país. Eram outros
tempos, havia a disputa entre o capitalismo e o comunismo, a Guerra Fria, a
Cortina de Ferro, o Muro de Berlim, a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas... Tudo isto ficou no passado e já se disse até que teríamos chegado
ao fim da História, tendo sido demonstrado pelos fatos que o capitalismo e a
democracia representativa são o sistema econômico e a forma de governo que
serão adotadas um dia por todos os países.

Não sei se isto irá acontecer tão cedo nas teocracias islâmicas ou nos regimes
tribais que existem na África, mas no Brasil parece-me que a escolha foi feita e
é irreversível. Alguém consegue imaginar seriamente a volta de eleições
indiretas para presidente, governador, prefeitos das capitais e das estâncias
hidrominerais (?!), senadores biônicos, o "Estadão" publicando trechos de "Os
Lusíadas" para preencher o espaço de reportagens censuradas, o balé Bolshoi
tendo sua exibição proibida? Não, o Brasil e os brasileiros não merecem isto.

3
Assim, só nos resta aprendermos a ser livres através do exercício da
liberdade.

Bibliografia:

1. MOISÉS, J. A. Democracy, Political Trust and Democratic Institutions: the case of


Brazil. Trabalho apresentado no Seminário “Democracy and Citizens Distrust of Public
Institutions in Brazil in Comparative Perspective”, Oxford University, 2007. Disponível em
<http://nupps.usp.br/images/artigos_temp/moises_Paper.Ox2007-3.pdf>. Acesso em: 10
fev. 2013.
2. NOLETO Fº, P. A. A Imagem Pública do Congresso: uma análise político-midiática.
Tese (Doutorado). Universidade de Brasília, 2009. Disponível em
<http://repositorio.bce.unb.br/handle/10482/7605?mode=full>. Acesso em: 10 fev. 2013.
3. SECRETARIA ESPECIAL DOS DIREITOS HUMANOS. Direito à Memória e à Verdade.
2007. Disponível em
<http://portal.mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_direito_memoria_verdade/livro_direito_memori
a_verdade_sem_a_marca.pdf >. Acesso em: 10 fev. 2013.

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