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P rojeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(¡n memoriam)
APRESENTTAQÁO
DA EDI9ÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.
Eis o que neste site Pergunte e
Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questoes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacao.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
Sumario
Póg.

UM DISCURSO A TODOS OS POVOS 441

Cristáos e marxistas:
LUTA DE CLASSES E CRISTIANISMO r 443

Queslao candente :
A RESSURREIQÁO DOS MORTOS ; QUANDO ? 43B

.Géneros literarios na Biblia:


QUE É UM APOCAUPSE ? 485

Devo?áo popular:
E AS CORRENTES DE ORACÓES ? 476

AOS NOSSOS LEITORES E ASSINANTES 3? capa

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA

NO PRÓXIMO NÚMERO:

'<A Igreja e seus modelos» (A. Dulles). — «Idade Medi dia


o que nao no: ensínaram» (R. Pernoud). — «O Evangelho á luz
da psicanólise» (F. DoltoJ. — «Enfoques materialistas da Biblia»
(M. Clévenot).

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Número avulso de qualquer mes OS 18,00

Assinatura anual Cr$ 180,00

Diregáo e Redasao de Estéváo Bettencourt OS B.

ADMINISTBACAO REDACAO DE PR
Uvrarla Mlsslonária Editora Catxa posta, , ggg
Rúa México, 111-B (Castelo)
20.031 Rio de Janeiro (R.T) 20 00° Rl° «Je Janeiro (RJ)
Tcl.: 224-0059
UM DISCURSO A TODOS OS POVOS
M
A figura do Papa Joáo Paulo II vem-se impondo Icomo-a—
de um lider universal, aplaudido nao em virtude de demagogia,
mas, sim, por causa de suas atitudes corajosas e coerentes a
servigo da Verdade e do Bem.

De modo especial, merece atengáo o discurso de S. San-


tidade proferido aos 2/10/79 perante a Assembléia Geral da
Organizado das Nagóes Unidas. Pode-se dizer que, tocando
verdades profundas e fundamentáis, essa alocugáo representa
a voz da sabedoria numa fase difícil da historia humana.

A principio, S. Santidade houve por bem explanar as razóes


de sua presenga na ONU. Convidado por esta, o Pontífice nao
quis furtar-se a falar-lhe, pois a Santa Sé mantém estritos
liames de cooperagáo com a ONU. Com efeito, se a ONU
reúne todos os povos e Estados, a Igreja Católica também o
faz do seu modo, procurando as vías da colaboragáo pacífica
entre os membros dessa grande familia que é a humanidade.
E precisamente a fim de poder cumprir essa missáo, a Sé
Apostólica tem sua soberanía territorial; esta, circunscrita ao
pequeño Estado da Cidade do Vaticano, é justificada pela
necessidade de assegurar ao Pontífice plena liberdade no exer-
cício da sua missáo; o Papa precisa de poder tratar com todos
os homens sem estar sujeito á interferencia de potencias estra-
nhas; sem esta liberdade, o seu ministerio estaría prejudicado.

A tónica do discurso de S. Santidade nao podia ser a


temática da fé como tal. Foi, sim, o servigo ao homem, ser
vigo que todas as instituigóes nacionais e internacionais estáo
obrigadas a prestar; toda atividade política é exerdda em
favor do homem. Isto quer dizer que qualquer forma de tor
tura ou de opressáo carece de justificativa e deveria desapa
recer para sempre na vida das nagóes.

O respeito ao ser humano leva a profligar também as


guerras. Já dizia Paulo VI na própria Assembléia da ONU
em 1965: «Nunca mais a guerra, nunca mais a guerra!...
Nunca mais uns contra os outros»... nem mesmo «um ácima
do outro», mas sempre «uns com os outros». Na verdade, a
Igreja Católica pede ao Senhor pela paz, e educa o homem
para a paz. Esta paz é ameacada hoje em dia pelo armazena-
mento, em diversos países, de armas cujo poder é totalmente
inédito. Se bem que os detentores de tais instrumentos afir-
mem estar apenas assumindo atitudes de precaugáo, esses líde
res mostram que tencionam estar prontos para a guerra; «ora

AA-i
estar pronto guer dizer, em certa medida, provocar a própría
guerra».

A fim de evitar os conflitos armados, requer-se a extin-


gáo das causas que, em última instancia, levam os povos a se
conflagrar... Quais as raizes do odio, do desprezo, da destrui-
gáo? — Vém a ser a violacáo dos direitos inalienáveis da pes-
soa humana, direitos que a ONU promulgou logo nos primor
dios da sua historia (dezembro 1948).

O ser humano vive simultáneamente de valores materiais


e de valores espirituais, cabendo o primado a estes últimos. Os
bens materiais, sendo limitados, nao podem ser distribuidos
com facilidade por todos os homens; em conseqüéncia, entre as
nagóes que os possuem e aquetas que nao os possuem, se criam
nao raro tensóes e discordias aptas a levar á luta aberta. Ao
contrario, os bens espirituais podem ser estendidos a todos os
homens, sem diminuigáo, mas, ao contrario, com engrandeci-
mento e nobilitagáo, para quem os distribuí (é o que se dá, por
exemplo, com as producóes do pensamento, da música, das
artes figurativas, da poesía...). Eis, porém, que nos últimos
tempos os interesses da humanidade tém-se voltado mais e
mais para a producáo e o consumo de bens materiais, de tal
modo que se vem embotando a sensibilidade dos homens para
os valores espirituais. O ser humano se vé assim escravizado
pela conquista da materia (que divide os seus conquistadores)
e perde a estima daquelcs valores que nao dividem, mas, ao
contrario, levam á comunháo todos os seus cultores. — Pois
bem; a Igreja Católica julga ser sua tarefa precisamente lem-
brar aos homens o valor decisivo dos bens espirituais; estes
elevam o ser humano ácima do mundo transitorio e despertam
a consciéncia de que o homem tem urna grandeza indestrutí-
vel,... indestrutível apesar da morte, á qual cada um está
sujeito sobre a térra.

Será, pois, para desejar que doravante as autoridades pú


blicas redobrem seus esforcos no sentido de erradicar as injus-
tigas sociais e levar todos os homens á participagáo de justo
desenvolvimento material. Mas faz-se mister outrossim que
essas rñesmas autoridades se empenhem por respeitar, e fazer
respeitar, «os direitos objetivos do espirito, da consciéncia
humana, da criatividade, inclusive o livre relacionamento do
ser humano com o Senhor Deus>.

O leitor destas ponderagóes sentir-se-á impelido a pedir


ao Senhor Deus queira abrir os coragóes dos homens á sabe-
doria que por elas fala...
E.B.

— 442 —
«PERGUHTE E RESPONDEREMOS»
Ano XX — N« 239 — Novembro de 1979

Cristaos e Marxistas:

luía de classes e cristianismo


Em sintese: O Movimento de "Cristaos para o Socialismo" tem
incitado os cflstáos em geral a tomar parte na I uta de classes apregoada
pelo marxismo-leninismo; o amor crlstáo pacificista seria mera cobertura
para permitir aos opressores que continúen» a violentar os oprimidos.

Ora a propósito observa-se :

1) A nocSo mesma de "lula de classes" é científicamente dlscutlvei.


Pergunta-se: que é classe social ? Os peritos nSo sao unánimes na sua
maneira de a conceituar. Além disto, a dlvisSo da socledade em duas clas
ses — a proletaria e a capitalista — proposta por Marx está hoje em día
ultrapassada. Existem tres ou quatro classes soclais: a dirigente, a media,
a operária e a camponesa. Mais aínda: é difícil trabar os limites entra
as diversas classes; um operarlo altamente qualificado pertence á classe
media ou á classe operária? Em tercelro lugar, deve-se lambrar que nao
so o fator económico divide os homens entre si, mas também a política,
as diversidades raclals, as religiosas, etc. Por último, reconheca-se que
nao é o operarlado quem detém o poder revolucionario em nossos dias.
mas, slm, as "minorías energéticas".

2) Do ponto de vista específicamente crlstáo, deve-se dizer:

O crlstSo reconhece as Injustlcas soclais e se Ihes op5e. — Em prl-


melro lugar, procura os melos da persuasáo e o diálogo, pois acredita
que a pesaoa humana, mesmo que erre, ó reeuperável. Caso os melos
pacíficos nada consigam, recorre á pressáo moral e á resistencia passiva
(tenha-se em vista a greve). Vía de regra, nSo chega á violencia armada,
pols esta gera violencia e é incapaz de criar urna socledade nova. O crls
táo procura respeitar mesmo os Inlmlgos, de modo que nao Ihes aplica
recursos que violem a dignidade humana (a tortura, os seqüestros, a
lavagem de cránio...). De resto, nao há como lludlr-se: nao haverá
sociedade perfcita ou isenta de falhas, enquanto correr a historia dos
homens.

Em suma, o crlstáo é adversario das Injusticas sociais. Opoe-se-lhes,


porém, diversamente do marxlsta, pois tem urna visio própria do que
sejam o homem, a sociedade e a historia, e é movido pelo amor de Deus,
que torna todos os homens Irmaos entre si.

443 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 239/1979

Comentario: Sao muitas e notorias as tentativas de apro


ximado de cristáos e marxistas ocorrentes nos últimos tem-
pos. Uns e outros tentam esquecer certas premissas filosófi
cas que os deveriam distanciar entre si, para deter-se em pon
tos de agáo concreta em que parece poder haver colaboragáo.
Um destes pontos é a «luta de classes», mediante a qual os
oprimidos procurariam derrubar os opressores.

O movimento de «Cristáos para o Socialismo» langou últi


mamente um manifestó que apresentava a luía de classes nos
seguintes termos:

"A luta de classes, com os fenómenos de violencia que a acompanham,


parece a muitos cristaos ser Incompatível com urna orientacáo de fé e de
amor. Esquecem as guerras santas, as cruzadas, as teorias sobre as guer
ras justas de que está cheia a historia da Igreja. Na verdade, a luta de
classes é um fato objetivo e histórico, que a anáüse marxista define e
conceitua. O amor cristáo — que muitos querem opor á luta de classes —
tende a encobrir essa realidade, apregoando a colaboragáo entre oprimidos
e opressores. Esta versáo adocicada do amor inspira a doutrina social do
Cristianismo; serve de cobertura ao inter-classismo e, em última análise,
atende aos interesses da classe burguesa.

O auténtico amor ao próximo nSo impede a luta de classes; ñas


atuals condiedes históricas, o amor se exerce pela solidariedade com a
classe que traz urna esperanca de justlca para toda a humanidade: o
proletariado" (COM-Nuovi Templ 1975, n? 20, pp. 11s).

Quanto ao amor cristáo, diz o documento que «ele tem


ofuscado a visáo do conflito social, constituindo um entrave
para a plena participagáo dos trabalhadores cristáos na luta
de classes». Afirma que se tem feito «um uso político do pre-
ceito do amor cristáo para exorcizar a violencia e inculcar a
pacificagáo social a todo custo, refreando o parausando urna
participagáo mais decidida e vivaz na luta para transformar
as estruturas políticas e económicas da sociedade. Assim o
amor cristáo, em vez de ser forga de solidariedade na luta
de classes, torna-se obstáculo á plena realizagáo dessa luta>
(ib. 6,10).

As afirmagóes ácima tornaram-se comuns entre os cris


táos para o socialismo. Visto que constituem um desafio ao
pensamento cristáo (este seria fautor de acomodagáo e abni-
guesamento covardes), vamos abaixo procurar situar o cris
táo perante o problema proposto pela «luta de classes». Seria
o Cristianismo realmente o «opio do povo»?

— 444 —
LUTA DE CLASSES E CRISTIANISMO

A fim de se perceber melhor o significado do problema,


comegaremos por definir e comentar o que o marxismo chama
«luta de classes».

1. Marxismo e «luta de classes»

1. O marxismo tem assumido facetas cada vez mais


diversas no decorrer dos últimos decenios. Com razáo, G. Mar-
tinet fala de «cinco comunismos: o russo, o iugoslavo, o chinés,
o tcheco, o cubano», aos quais se pode acrescentar o «euro-
comunismo» professado pelos PC da Italia, da Franga e da
Espanha'. Todavía permanece sob qualquer dessas modalida
des a teoría da luta de classes, tida como esquema apto a
fazer compreender a vida social e a promover a mudanga da
sociedade. Se da visáo marxista se cancelasse a tese da luta
de classes, o próprio marxismo se extinguiría.

Na verdade, Marx concebe o desenrolar da historia dos


homens como urna luta incessante determinada pelos bens de
produ;áo. Estes suscitam relagóes entre os homens, fazendo
que uns poucos sejam patróes e outros (multidóes) sejam
escravos; aqueles constiluem a burguesía, e estes, o proleta
riado !. Éa infra-estrutura económica que, em última análise,
rege toda a realidade da historia e da humanidade.

A luta de classss, como tal, nao é objetivo, mas é meio e


etapa. Ela tende primeiramente a estabelecer a ditadura do
proletariado. «Essa ditadura durará até que estejam destrui
das as bases económicas da existencia das classes. Isto quer
dizer que, enquanto subsistirem outras classes e, em particular,
a elasse capitalista, enquanto o proletariado lutar contra esta,
deverá usar de violencia, pois a violencia é um meio de gover-
nar» (palavras de Marx citadas por G. Gurvitch, Etudes sur
les classes sociales. París 1965, pp. 70s).

Urna vez supressa a classe capitalista sobre a qual o pro


letariado exercerá a sua supremacía, desapareceráo o Estado 8,

i Cf. Q. MARTÍ NET, Les clnq communlsires: russe, yougoslave, chlnois,


•cheque, cubaln. París, Ed. du Seull 1971.
= Hoje em día, em vez de talar de "burguesía" e "proletariado", dever-
-se-ia talar dos grandes monopolios ou das sociedades mullinaclonais, que
detém as alias «naneas e os capitals. Em lugar dos trabajadores e dos
camponeses do século passado, dever-se-la talar do "bloco" social que.
de um modo ou de outro, está sujeito á exploracSo capitalista.
3 Marx concebe o Estado como "o poder organizado de urna classe
em vista da opressáo da outra classe".

— 445 —
<rPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 239/1979

o proletariado e a ditadura do proletariado. Haverá entáo a


sociedade sem classes, em que o homem já nao explorará o
homem, mas cada um desenvolverá todas as suas atividades
criadoras num clima de liberdade e solidariedade:

"Dar-se-á o dominio pleno do homem sobre as torgas naturais...


Haverá pleno desdobramento das capacidades criadoras do homem; ...com
outras palavras, ...o desenvolvimento de todas as lonjas humanas como
tais", (K. MARX, Lineamenli fondamentall della critica dell'economla poli-
tica". Firenze 1968.

2. A luta de classes assim concebida é o grande dinamo


da historia, conforme Marx. Este reconhecc que nao há ape
nas conflitos sociais, mas assevera que qualquer tipo de con-
flito se reduz á luta vigente entre as classes sociais por moti
vos económicos:

"Todas as lutas da historia, quer se desenrolem no terreno político,


quer no religioso, quer no filosófico ou em qualquer outro setor ideológico,
nao sao senao a expressáo mais ou menos nítida da luta das classes
sociais. Esta lei, que Marx descobriu como pioneiro, tem para a historia
a mesma importancia que tem para as ciencias naturais a lei da transfor-
magao da energia" (Engels, prefacio a O 18 Brumátio de Luís Bonaparte,
1885).

Isto significa que, para o marxismo, toda a historia d¡i


humanidade se reduz a conflilos sociais. Significa também que
toda a vida social — superestrulura — se explica, em última
análise, pela estrutura económica da sociedade. Isto quer dizer
aínda que a historia há de ser entendida em sentido materia
lista: as estruturas da produc.áo material explicam os fenóme
nos da consciéncia (o direito, a arte, a moral, a religiáo...),
e nao vice-versa.

3. A luta de classes é lambém a norma o o fundamento


da moral. Em outros tex-mos: a moral é regida pelas condi-
góes económicas da sociedade em cada urna das fases desta;
nao há valores moráis absolutos nem transcer.dentais. Sao
palavras de Fr. Engels:

"Rejeitamos toda pretensSo de nos imporem quatquer forma de


dogmática moral que seja lei ética eterna definitiva, imutável... Afirmamos
que qualquer teoría moral até hoje foi, em última análise, o resultado das
condicoes económicas da sociedade do seu tempo. E, visto que a sociedade
até agora se moveu no plano dos antagonismos de classe, assim a moral
sempre foi urna moral de ctasse; ela tem justificado o domfnio e os inte-
resses da classe dominante, ou, nos casos em que a classe oprimida se
lenha tornado suficientemente forte, a moral representou a revolta contra

— 446 —
LUTA DE CLASSES E CRISTIANISMO

esse dominio e exprimlu os Interesses futuros dos homens oprimidos"


(AnH-Duhring. Roma 1950, p. 106).

É, pois, a classe dominante que faz a moral. E, já que


esta é relativa, a classe dominada, o proletariado, tem por mo
ral tudo que o leve a tornar-se classe dominante, ou seja, tudo
o que favorega o seu sucesso revolucionario e a sua ascensáo
ao poder. A moral para os trabalhadores está subordinada aos
objetivos revolucionarios destes, de tal modo que todos os meios
(inclusive a violencia) úteis a esses objetivos sao moráis. Pro-
clamava Lenin nos 2 de outubro de 1920:

"Para nos, a moralidade está subordinada aos Interesses da luta do


ctasses do proletariado... Dlzemos: é moral o que contribuí para a des-
truicSo da antlga sociedade dos exploradores e para a uniao de todos
os trabalhadores em torno do proletariado, que está criando a nova
sociedade".

Marx, já antes, dissera:

"Sem urna vontade de acó, que nSo se deixe deter diante de nenhuma
consideracSo, nada se pode efetuar na historia" (citado por J. D'HONDT,
De Hegel k Marx. Paris 1972, pp. 78s).

4. Note-se aínda que o marxismo-leninismo propóe a


luta entro as classes, sem levar em conta as características
pcssoais dos individuos que componham tais classes. Cada um
é considerado táo somente como membro da classe a que per-
tence (burguesía ou proletariado); é inevitavelmente tido como
portador dos interesses da sua classe ou como personificagáo
da própria classe. Nao aceita, pois, que possa haver capitalis
tas bons e capitalistas maus, mas considera todos os capitalis
tas, independentemente da sua boa vontade, como ministros
do capital e da opressáo, sujeitos a ser violentamente comba
tidos. Também nao admito a distincáo entre trabalhadores
bem intencionados e mal intencionados, mas considera todos os
trabalhadores como vítimas oprimidas... Nao reconhece, por-
tanto, responsabilidades pessoais, mas táo somente as coletivas.

5. Da parte do proletariado, a luta contra o capital nao


é empreendida em nome da Justina. Marx nunca fundamentou
as reivindicagóes comunistas sobre virtudes ou sentimentos mo
ráis, mas sobre a necessidade de destruir o modo de producto
capitalista num processo que se realiza todos os dias diante
dos nossos olhos. Por isto também nao se devem fazer tenta
tivas de reconciliadlo entre as duas classes em nome da jus-

— 447 —
S tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 239/1979

tifia, do amor fraterno ou de sentimentos filantrópicos; ao con


trario, qualquer tentativa desse tipo seria mistificagáo e equi-
valeria a trair os interesses da classe operaría. De resto, diz
Marx, é ilusoria qualquer esperanga de que melhorem as con-
digóes de vida do operario dentro da estrutura capitalista;
donde se vé que é necessário rejeitar qualquer esquema de
reforma pacífica da sociedade e visar á revolugáo violenta que
destrua o capitalismo.

O odio e o terrorismo inspirado por este sao meios nor


máis e moráis pela quais o marxista propugna o seu ideal.
Tenham-se em vista, por excmplo, os dizeres de L. Trotsky,
que, em resposta a Kautsky, defendía as execucóes em massa
e a captura de reféns por parte dos bolchevistas:

"A revolugáo exige da classe revolucionaria que esta cheguo aos


seus objetivos usando todos os meios de que disponha. O terrorismo é
inepto quando aplicado em reagao a uma classe que esteja históricamente
em pleno desenvolvimiento. Mas, utilizado contra uma classe reacionária
que recusa deixar a cena, o terror pode ser eficaz" (Terrorisme et commu-
nisme. Antikautsky. Hambourg 1920).

Eis, em poucas palavras, algumas das características mais


típicas do conceito marxista de luta de classes.

Passemos agora a uma crítica serena e objetiva de tal


conceito, que vem empolgando muitos cristáos.

2. Lufa de classes: reflexoes filosóficas

Apresentaremos algumas objegóes 'á teoría marxista da


luta de classes.

1) Em primeiro lugar, perguntamo-nos: que é propria-


mente «classe social»? — Nem mesmo Marx, que tanto falou
de luta de classes, expós claramente o que entendía pelo con
ceito de «classe». No término de sua vida, em um fragmento
publicado no fim do livro III de O Oapita!, ele perguntava:
«Que é uma classe?». A indecisáo se devia ao fato de que
havia, no pensamento de Marx, dois criterios para distinguir
as classes sociais:

— o primeiro seria o da posse ou nao: posse dos meios


de produgáo, resultando daí a distin^áo entre duas classes fun
damentáis: a dos burgueses e a dos proletarios;

— 448 —
LUTA DE CLASSES E CRISTIANISMO

— o outro criterio seria o da origem dos rendimentos;


nesta perspectiva, Marx distinguía tres classes: a dos trabalha-
dores assalariados (que deveriam viver do seu salario), a dos
capitalistas (que vivem da exploracáo do capital) e a dos lati-
fundiários (que vivem da renda dos seus latifundios).

Na verdade, o conceito de classe social é complexo e difí


cil de ser definido. Os próprios especialistas (como M. Weber,
V. Pareto, P. Sorokim, G. Gurvitch, R. Aron, F. Perroux,
S. Ossowski, E. Pin...) divergem entre si neste particular.
M. Weber, com exemplo, diz que classe é agrupamento no plano
económico ao passo que partido é facgáo no plano político; a
classe constaría, pois, de pessoas que compartilham as mesmas
condigóes de vida, porque tém interesses económicos comuns
no tocante as posses e as vendas; a luta de classes seriam as
divergencias resultantes de relacionamentos económicos em
um contexto de comercio. Ao contrario, M. Halbwachs julga
que urna classe social se caracteriza por urna consciéncia de
classe, represcntacóes coletivas e memoria coletiva ou histó
rica. P. Sorokim, por sua vez, afirma que o fenómeno das clas
ses sociais é característico da sociedade industrial ocidental,
tendo por base a profissáo, a situagáo económica e a situagáo
jurídica dos membros dessa sociedade.

Pode-se dizer que, se o conceito de classe é equivoco nos


livros dos pensadores, ele o é, antes do mais, na realidade social,
que cada qual procura interpretar como pode. Donde se vé
que qualquer teoria sobre «luta de classes» se defronta de ime-
diato com a necessidade de clarear o conceito básico de classe.

2) A teoria marxista da luta de classes supóe a socie


dade capitalista dividida em duas classes antagónicas. Ora tal
bipolarizacáo — já contestável nos tempos de Marx (séc. XIX)
— hoje em dia tem consistencia ainda mais precaria, pois
simplifica excessivamente a realidade social.

Com efeito; em nossos dias é preciso falar nao de duas,


mas de tres ou quatro grandes classes sociais, dentro das quais
se distinguem muitas subdasses, dotadas de interesses diversos
ou mesmo opostos entre si: assim é necessário que reconhe-
camos a existencia da classe superior ou dirigente, a da classe
media, a da classe operaría e, talvez, a da classe camponesa.
Mas, estabelecida esta realidade, pergunta-se: Quem pertence

— 449 —
10 fPEKGUNTK t: RESPONDEREMOS» 239/1979

á classe superior ou dirigente? Como se podem distinguir e


delimitar as classes medias? Um operario altamente qualifi-
cado pertence á classe operaría ou 'á classe media? Os gran
des líderes do sindicatos e os chufes dos partidos dos trabalha-
dores, que dispóem de grande poder político e económico, fazeni
parte da cla.sse operaría? No esquema marxista bipolar, onde
sao colocados os pequeños que nao fazem parte da classe ope-
rária (os anciáos, os aposentados, os enfermos, os excepcio-
nais...)?Na verdade, a realidade social é muito mais com
plexa do que sugere a bipolarizagáo marxista. Esta, de modo
especial, nao leva em conta alguns dados muito significativos
da moderna sociedade industrial, a saber:

— o surto de urna classe media sempre mais densa e pode


rosa e sempre mais variegada;

— a crescente influencia da ciencia, da técnica e, em geral,


da cultura, que as vezes mais valem do que a propriedade dos
bens; a ciencia e a técnica hoje em dia podem conferir mais
poder do que a posse de bens. Assim o esquema dicotómico
adotado por Marx no «Manifestó Comunista» já nao pode ser
tomado por base de urna exposicáo científica da dialética da
historia.

3) A redueáo de todas as lutas sociais a motivos eco


nómicos é outro artificio que nao condiz plenamente com a
realidade. É certo que os fatores económicos tém grande peso
ñas divergencias entre os homens, mas nao sao sempre deter
minantes. Há outros, nao económicos, que entram em jogo e
que muitas vezes desempenham funcáo decisiva: assim os fato
res políticos, raciais, moráis, religiosos, como a ambicáo, o
desejo de poder, o prestigio, o espirito nacionalista, a aspira-
c.áo á liberdade, os valores da fé... Leve-se em conta, por
exemplo, a luta entre o Papado e o Imperio Germánico da
Idade Media; está longe de poder ser assimilada a um confuto
de interesses entre urna classe de opressores e urna classe de
oprimidos!

Pode-se também perguntar se em nossos dias os contras


tes sociais sao devidos 'á posse ou náo-posse dos bens de pro-
dugáo (como pensava Marx) ou se nao há algo mais impor
tante do que estes, a saber: o poder e a parücipagáo no poder
de decisáo. Este poder nem sempre está ñas máos daqueles
que possuem os meios de produgáo, mas, sim, ñas máos daque-

— 450 —
LUTA DE CLASSES E CRISTIANISMO 11

les que dispóem da tecnología (meios de comunicacáo social:


imprensa, televisáo, radio, cinema...) e movem a política. O
contraste essencial nao está sempre entre o proletariado e a
burguesía capitalista, mas entre aqueles que detém o poder e
aqueles que, embora nao sejam privados de bens de produ-
eáo, nao tém poder, nem influem sobre as dccisóes políticas e
económicas.

4) Marx assinalou ao proletariado industrial a fungáo de


libertar a si mesmo e libertar a sociedade inteira destruindo
o capitalismo. — Ora ó provável que no séc. XEX o proleta
riado industrial fosse urna forca revolucionaria; hoje, porém,
na atual sociedade industrial a forga revolucionaria parece
residir no que se chama «as minorías energéticas», pois sao
estas que conseguem manobrar as grandes massas.

Em condusáo, as premissas do esquema marxista da luta


de classes estáo hoje ultrapassadas. Já nao corresponden! ao
estado atual da sociedade industrial, que é pos-capitalista. Já
nao atingem os «mecanismos secretos» da nossa sociedade,
nem podem servir como instrumento de leitura da nossa reali-
dade social.

3. O cristáo frente á luta de classes

O cristáo rao rejeita a luta de classes apenas por motivos


políticos; ele lhe opóe também razóes moráis e religiosas, visto
que a teoría marxista contradiz radicalmente ao conceito cris
táo de homem e de sociedade.

Na verdade, o marxismo concebe a sociedade como divi


dida em duas classes que tendem a se destruir mutuamente,
movidas por odio mortal. Nessa perspectiva considera a luta
como um valor, pois faz progredir a historia.

O cristáo reconhece a situacáo que o marxismo aponta: os


poderosos tándem a explorar os fráeos c pequen inos, ao passo
que estes procuiam unir-se lutando contra a opressáo. Todavía
o cristáo nao vé nisto um fato natural ou urna necessidade
histórica, mas urna situagáo que contraria o plano de Deus
sobre a humanidade; aos olhos do Criador, os homens sao
iguais entre si e devem viver em espirito de fraternidade e
soiidariedade.

— 451 —
12 tPERGUNTE K RESPONDEREMOS» 239/1979

Em conseqüéncia, o cristáo, diante do mal esbogado, nao


cruza os bracos com indiferenga, mas assume as seguintes
atitudes:

1) É preciso, antes do mais, tentar aproximar os homens


entre si mediante a conversáo interior dos iníquos á justiQa.
Só haverá colaboracáo e fraternidade entre os homens se esli-
verem todos convictos de que sao irmáos uns dos outros; é pois,
a motivagáo — motivacáo digna e nobre — que convém, antes
do mais, propor para so obter a solueüo eficaz do problema.
Tenham-se em vista as palavras de Paulo VI no documento
sobre a Evan^elizacáo no mundo contemporáneo, n1 33:

"A Igreja iem certamente como algo importanie e urgente que se


construarn estruturas mais humanas, mais justas, mais respeitadoras dos
direitos da pessoa e menos opressivas e menos ese rav izado ras; mas cía
continua a estar consciente de que ainda as melhores estruturas, ou os
sistemas mslhor idealizados depressa se tornam desuníanos, se as ten
dencias inumanas do coracao do homem nao se acha.-em purificadas, se
nao houvcr urna cor.versáo do coracao e do modo de encarar as coisas
naqueles que vivem em tais estruturas ou que as comandam".

2) O cristao iveonhoce que a propriedade particular pode


ser algo de justo e honesto, áasáe que legítimamente adquirida
e desempenho fuii(?áo social <cm favor dos muñes nquinhou-
dos). Por islo o erislfio eviliirá. roí-iilar luilos os lioinrns t!;is
mesmas condicóes sociais com os musmos ulributos: oprossor,
injusto, iniquo, de um laclo; oprimido, inocente, vítinia, do
outro lado. Dontro de cada «rupo humano, ó necessário levar
em (tonta a personalidad^ própi'ia (!e cada um dos scus com
ponentes. Nenlium ser humano h:i úe ser uulomaticamento
caracterizado peio fato de portencer a determinado grupo
social. Pode haver proprietários e patróes justos e (iesejosos de
implantar a Justina em seu setor de a..áo, como pode haver
operarios que nao sojam meras viíimas da injustica alhoia.

Em nomo da justica, poder-se-iam praticar graves injus-


ti^as se nao se levassem em consideracáo as diversas perso
nalidades que compóem cada grupo da sociedade.

3) É necessário também mover campanhas em favor de


leis justas e em defesa dos interesses dos mais fracos. Faca-se
chegar ao conhecimento das autoridades competentes a situa-
Cáo infra-humana c, por vezes, iniqua em que vivem certas
partes da populacáo, a fim de que, por via legítima e oficial,
os responsáveis pelo bem comum solucionem os problemas.

— 452 —
LUTA DE CLASSES E CRISTIANISMO 13

4) Caso os meios pacíficos e persuasivos nao logrem o


resultado almejado, é lícito ao cristáo recorrer á pressáo mo
ral e á resistencia passiva. É o que se dá, por exemplo, em
toda greve. Este recurso deve representar urna atitude extre
mada, destinada a resolver graves situagóes de opressáo e injus-
tica. Nao há de ser absolutizada nem considerada como mé
todo normal de promocáo social, mas, antes, como atitude de
emergencia.

5) A violencia, ou seja, o emprego das armas e da agres-


sáo física nao é nem crista nem evangélica. Eis como Paulo VI
a caracteriza na sua carta sobre a Evangelizado no mundo
contemporáneo, n? 37:

"A Igreja nao pode aceitar a violencia, sobretudo a forca das armas
— de que se perde o dominio, urna vez desencadeada — e a morte de
pessoas sem discnminagáo, como caminho para a libertagao; ela sabe,
efetivamente, que a violencia provoca sempre a violencia e gera ¡rresisti-
velmente novas formas de opressáo e de escravizacao, nao raro bem mais
pesadas do que aquelas que ela pretendía eliminar. Dizíamos quando da
Nossa viagem á Colombia: 'Exortamo-vos a nao por a vossa confianca na
violencia, nem na revolugáo; tal atitude é contraria ao espirito cristáo e
pode lambém retardar, em vez de favorecer, a elevacáo social pela qual
legitimamente aspiráis'. E ainda: 'Nos devemos reafirmar que a violencia
nao é nem crista nem evangélica e que as mudanzas bruscas ou violentas
das ostruturas seriam falazes e ineficazes em si mesmas e, por certo, nao
conformes á dignidado dos povos" ".

Vc-se assim que a posigáo do cristáo frente as injustieas


sociais nao ó do passividade; o amor cristáo está longe de ser
cobertura para favorecer a oxploi-acáo do bomcm polo homem
ou dos fracos pelos poderosos. O amor crisláo nao consagra
injustiras, mas promove a justiga mediante recursos aptos a
falar á inteligencia e ao senso ético de todos os homens. A
tese que atribuí ao cristáo o irenismo fautor de estruturas iní-
quas, ó forjada pelos adversarios do Cristianismo; para refu-
tá-la, basta recordar, entre outros, o caso do Pe. Joáo Bosco
Penido Burniei, que, aos 12/10/76, faleceu em Mato Grosso,
porque quería, por palavras e atitudes, impedir um soldado de
praticar violencias contra duas pobres mulheres.

6) Leve-se em conta outrossim que a luta de classes está


intimamente associada ao odio, ... ao odio do homem para
com o homem. Ora o cristáo nao pode aceitar urna teoría que
pregue o odio e justifique o terrorismo. O amor para com
todos, mesmo os inimigos, é um dos pontos cardeais do Evan-

— 453 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 239/1979

gelho, que enslna serem todos os homens irmáos, filhos do


mesmo Pai.

Há, porém, quem sustente que a luta de classes nao im


plica o odio das classes entre si. Assim, por exemplo, Giulio
Girardi em seu livro Christianisme. IJbération hiimaine. Luttf
de classes (París 1972, p. 179). Ora esta posicáo nao se con-
cilia com os principios do marxismo-leninismo; leve-se em
conta, por exemplo, a observagáo de V. I. Prokofiev, que, apó?
haver citado o versículo do Evangelho «Amai os vossos inimi-
gos», escreve:

"Os soviéticos rejeitam esta moral religiosa, porque tém um caráter


nítidamente reacionário. Um auténtico humanismo, um verdadeiro amor aos
homens sup5em o odio aos inimigos da humanidade" (Le caractére anli-
humanlste de la morale rellgleuse, em "Cahlers de communisme" 1959,
p. 1081).

Insistem alguns marxistas, dizendo que a luta de classes


é prática de amor cristáo para com os adversarios, pois tende
a libertar do pecado da injustica os poderosos que o cometem
por estarem presos ñas estruturas económicas do capitalismo.
Em resposta, observar-se-á que o amor estaría sendo realmente
praticado, se a luta de classes marxista tivesse em mira a
«conversáo» dos detentores do capital; acontece, porém, que a
luta de classes, no sentido marxista-leninista, tende a supressáo
da classe capitalista; esta, que nao é urna abstracto, mas se
constituí de homens, há de ser eliminada, segundo Marx, por
urna luta sem treguas. Escreve Mao-Tse-Tung:

"Quanto ao pretenso amor á humanidade, nunca exisliu esse amor


universal desde que a humanidade está dividida em classes... Nos nao
podemos amar os nossos inimigos, nao podemos amar os males sociais;
a nossa meta é destrui-los" (citado por R. Guillain, Dans trente ans la
Chine. Paris 1965. p. 269).

A mentalidade que inspira tais palavras, é bem diversa


daquela que move um cristáo a resistir ás estruturas injustas
e a combaté-las. Com efeito, mesmo envolvido em dura luta,
o cristáo há de guardar sempre o respeito ás pessoas, aínda
que inimigas; tratá-las-á como seres humanos, aos quais nao
se podem aplicar recursos desonestos (seqüestros, torturas,
lavagem de cránio, etc.). O cristáo procurará o diálogo, sem
pre que possível, e acreditará que mesmo os piores dos homens
sao recuperáveis ou tém a possibilidade de rever suas posicóes
e converter-se.

— 454 —
LUTA DE CLASSES E CRISTIANISMO 15

7) Por último, há ainda um aspecto da luta de classes


marxista que o discípulo de Cristo nao pode aceitar: é a fun-
gáo salvífica e messiánica que Marx atribuí á dasse proletaria.
Para o crístáo, o único Salvador é Jesús Cristo, ao passo que
todos os homens, sejam proletarios, sejam capitalistas, trazem
em si principios de egoísmo e injustiga, e precisam de ser liber
tados por Cristo. A divisáo entre bons e maus nao coincide
com a classificagáo dos homens em operarios e capitalistas,
como se os bons e justos fossem os operarios pelo fato mesmo
de serem operarios e os maus e injustos fossem os patróes e
capitalistas pelo fato mesmo de serem patróes e capitalistas.
A divisáo entre o bem e o mal passa, sim, pelo coracáo de cada
homem. O cristáo, portanto, nao pode exaltar a classe operá-
ria pelo fato só de ser operaría, nem odiar a classe burguesa
pelo simples fato de ser burguesa. Se o cristáo se coloca do
lado dos operarios, ele nao o faz porque tal classe seja neces-
sariamente portadora de salvagáo, mas porque (e na medida
em que) tal classe se constituí de gente pobre injustamente
explorada.

Conclusao

O rrisláo, sem dúvidn, há de se opor as injusticas da


sociedade e trabalhar pelo surto de nova sociedade; todavía é
incompativel a concepcáo marxista de luta de classes com os
principios da mensagem evangélica. Além do mais, o discípulo
de Cristo nao se ilude a respeito do éxito dos esforgos seus e
de seus companheiros: ele sabe que nunca se realizará uma
sociedade perfeita na térra. Como quer que seja, ele tem cer
teza de que a única via para se tentar criar uma sociedade
nova, mais justa e pacífica é a via do amor e da solidariedade;
a violencia c o odio só podem gerar uma sociedado violenta e
injusta, ainda que movida por novo tipo de violencia e injus-
tiga. A justica e a paz sao frutos exclusivos do amor; tal é a
grande novidade que o Evangelho anunciou ao mundo e que
os cristáos devem evidenciar, inspirando-se no amor, mesmo
quando aplicados aos mais tormentosos problemas sociais.

Este artigo muito deve ao estudo de G. de Rosa, Lolta di classt e


amore cristiano, em "La Civiltá Cattolica" n° 3034, de 20/XI/1976, pp.
322-335.

— 455 —
Questáo candente:

a ressurreicáo dos mortos: guando?

Em sintese: O presente artigo comenta a Carta-lnstrucfio da S.


Congregagao para a Doutrina da Fé publicada em julho de 1979. Este
documento reafirma a escatologia intermediaria assim como a sobrevivencia,
após a morte, de um elemento espiritual, dotado de consciéncia e vontade;
nao menciona a reuniáo de corpo e alma após a morte, mas táo somente
a subsistencia da alma, ficando diferida a ressurreicáo dos mortos para
o fim dos lempos, como sempre ensinou a S. Igreja, baseada ñas epístolas
de S. Paulo.

Em conseqüéncia, a glorificado de María após a morte é caso


único; antecipa o que tocará a todos os justos na consumacSo da historia.

Comentario: Em PR 238/1979, pp. 399-404, publicamos o


texto de urna Declaragáo da Santa Sé concernente a questóes
da escatologia crista. Dada a importancia de tal documento,
propomos, a seguir, alguns comentarios do mesmo, na tenta
tiva de explicitar o seu conteúdo.

De antemáo convém observar que o texto em pauta nao


aborda todos os aspectos da doutrina dos Novissimos, mas ape
nas alguns dos que constituem a chamada «escatologia inter
mediaria»: trata-se de aspectos concernentes ao estado do ser
humano entre o seu desenlace terrestre e a consumagáo da
historia. É justamente a propósito de tal estado que se tém
levantado dúvidas e hipóteses entre teólogos e pastores, dei-
xando o povo de Deus um tanto perplexo:

"Ouve-se discutir a existencia da alma e o significado de urna sobre


vivencia e fazerem-se Interrógaseles quanto ao que se passa entre a
morte do cristáo e a ressurreicáo universal. Ora com todas estas coisas
o povo cristáo fica desorientado, urna vez que já nSo encontra o seu
vocabulario e as nocfies que I he sao familiares".

Cientes do problema, examinemos precisamente o que a


S. Congregagáo para a Doutrina da Fé houve por bem rea
firmar.

T. O conteúdo do documento
Como se pode ver em PR 238/1979, a Declaracáo consta
de sete artigos, que vamos, a seguir, considerar atentamente.

— 456 —
RESSURRE1CA0 DOS MORTOS: QUANDO? 17

1.1. A ressurrei;óo dos mortos (art. 1 e 2)

Os artigos 1 e 2 reafirmam a ressurreisáo dos mortos,


professada por Sao Paulo (ICor 15) e pelo Símbolo da Fé
desde as suas mais antigás formulacóes.

O cristáo nao é dualista nem reencarnacionista. Julga que


a materia é criatura de Deus, de tal modo que ela integra a
realidade do homem; este é psicossomático, a tal ponto que nao
se consuma como anjo nem como espirito desencarnado, mas
como ser composto de espirito e materia ou de alma e corpox.
A teoría da reencarnagáo, afirmando que o espirito hu
mano volta ao corpo em sucessivas reencarnagóes para se
purificar, é dualista: supóe ser o corpo um cárcere ou um ins
trumento de punicüo. Apregoa como ideal a definitiva desen-
carnagáo. Ora isto nao é cristáo, nem se pode fundamentar
sobre provas objetivas.

1.2. A sobrevivencia postuma (art. 3)

Que acontece logo após a morte ou o desenlace terrestre


do ser humano?

1. O art. 3> «afirma a sobrevivencia, depois da morte,


de um elemento espiritual, dotado de consciéncia e de vontade,
de tal modo que o eu humano subsista».

Esta afirmagáo supóe que o homem seja um composto de


corpo e alma. Aquele, sendo material, desgasta-se. Quando
já nao tem condigóes de ser sede da vida humana, a alma se
separa dele e continua a viver (sobrevive), enquanto o corpo

1 Como se compreende, o espirito n§o deve ser concebido como


fluido energético ou corrente elétrlca, mas, slm, como ser incorpóreo,
ineslenso (sem figura, sem dlmensóes, sem peso), dotado de inteligencia
e vontade; nao morre ou n§o se dissolve, porque nao é composto. Dis
tinguimos tres tipos de espirito:

incriado: Deus

para viver sem corpo: anjo


Espirito criado para se realizar plenamente no corpo ou
na materia : alma humana.

Vé-se, pois, que o conceito de espirito é mais ampio que o de alma.


A alma humana é espirito ou espiritual, mas nem iodo espirito é alma
humana.

— 457 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 239/1979

é sepultado. A alma traz em si os constitutivos do eu humano,


isto é, consciéncia e vontade.

Esta afirmacáo da Igreja exdui diretamente a tese segundo


a qual após a morte a alma humana entra em estado de incons
ciencia ou sonó, como pensavam os israelitas de outrora e
alguns autores protestantes (cf. O. Cullman e Ph. ÍH. Me-
noud...). Na verdade, a morte nao extingue a lucidez cons
ciente do ser humano nem a sua capacidade de aderir volun
tariamente ao fim supremo que ele tenha escolhido.

A mesnici aiirmac.no excluí tambcm a tese da ressurrci-


gáo logo após a morte, muito propalada em nossos dias. O
texto menciona apenas a sobrevivencia de um elemento espi
ritual chamado alma, sem mencionar a ¡mediata re-uniáo de
alma e corpo. Esta ó diferida para o fim dos tempos, como se
verá pouco adiante ao estudarmos os artigos 5 e 8.

A tese da ressurreicáo logo após a morte carece de fun-


damenlagáo bíblica. As Escrituras do Novo Testamento pre-
véem a ressurreicáo para o fim dos tempos; cf. ICor 15,22:

"Assim como todos morrem em Adáo, em Cristo todos receberáo a


vida. Cada um, porém, em sua ordem : como primicias, Cristo ; depois,
aqueles que pertencem a Cristo, por ocasiáo da sua vinda". Cf. 1Ts 4,16.

2. Há quem queira defender a lose da ressurreicáo


após a morte referindo-se á antropología semita. Esta nao
conhece vida consciente sem corpo; nao admitiría a possibili-
dade de existencia lúcida para a alma separada do corpo. Ora,
dizem, tal é a concepto bíblica. A idéia de «alma separada
do corpo» seria oriunda da filosofía grega platónica, dualista,
nao bíblica. Por conseguinte, nao poderia ser defendida numa
genuína teología bíblica.

A isto respondemos:

1) AS. Escritura nao tenciona adotar determinado sis


tema filosófico com exclusáo de outros. Se a antropología do
Antigo Testamento freqüentemento acentúa a corporeidade do
homem, a do livro da Sabedoria admite alma sem corpo (cf.
Sb 4 e 5) e a do Novo Testamento é assaz variada; Sao Paulo
chega a propor diversas concepcóes antropológicas, que ele nao
procura conciliar entre si; cf. lTs 5,23; Gl 5,16s; ICor 2,11-15.
Por isto é inconsistente o argumento segundo o qual a fideli-
dade 'á S. Escritura impóe determinada concepeáo antropoló
gica ou excluí a tese de alma separada do corpo.

— 458 —
RESSURREIgAO DOS MORTOS: QUANDO? 19

2) Algumas correntes de pensamento gregas eram dua


listas (a pitagórica, a órfica, a platónica...), isto é, admitiam
oposigáo ontológica entre alma e corpa Todavia o pensamento
de Aristóteles propunha a distingáo entre corpo e alma sem
dualismo, ou seja, afirmando a uniáo harmoniosa de corpo e
alma no homem.

Alias, faz-se mister nao confundir dualismo e dualidada.


O pensamento bíblico e cristáo nao c dualista (nao admite
oposigáo ontológica entre corpo e alma), mas é dual, isto é,
admite a real distingáo e separabilidade de corpo e alma, em-
bora afirme que ambos sao partes complementares do com
posto humano. A dualidade (que nao é dualismo) é fato obvio
na natureza: homem e mulher, dia e noite, frió e calor, veráo
e invernó...

1.3. Ressurreijóo dos morios e eonsumajáo universal


(art. 5 e 6)

1. A tese de que a ressurreigáo dos mortos nao ocorre


logo após a morte, mas é diferida para o momento da consu-
magño universal, vem insinuada pelos artigos 5 e 6 da men
cionada Instrugáo:

1) O artigo 6 «exclui qualqucr explicagáo que lire a As-


sungáo de Nossa Senhora o que ela tem de único e singular»
ou «o fato de ser a antecipagáo da glorificagáo que tocará a
todos os outros eleitos».

Em conseqüéncia, se a glorificagáo de María é algo de


único e antecipativo, deve-se dizer que os outros eleitos nao
sao glorificados, como María, logo depois da morte, mas só o
seráo no fim dos tempos.

2) O artigo 5 ensina que «a gloriosa manifestagáo de


Nosso Senhor Jesús Cristo é distinta e diferida em relagáo
áquela condigáo própria do homem ¡mediatamente depois da
morte».

Distinta... Esta afirmagáo opóe-se á tese que propóe a


identidade do juizo particular e do juízo universal.

Diferida, isto é, postergada, adiada... Estes dizeres enfa-


tizam a existencia da chamada «escatologia intermediaria» e
afirmam que, mesmo depois da morte, há urna expectativa da
parte do ser humano. Com outras palavras: a morte nao dá

— 459 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 239/1979

ao ser humano a fruieáo da eternidade, mas, sim, a da imor-


talidade em sua forma definitiva. Tal afirmagáo opóe-se á
tese de Karl Barth e Emil Brunner, protestantes, bem como á
de autores católicos, segundo os quais a morte póe o homem
fora do tempo; por conseguinte, nao haveria distancia tem
poral entre a morte do individuo e a eonsumagáo da historia
ou a segunda vinda de Cristo.

2. Faz-se misler esclarecer nítidamente a concepcáo de


escatologia intermediaria:

1) Somente Deus ó eterno e frui da eternidade. Com


efeito, a eternidade nao é unía duragáo indefinidamente longa,
mas é a posse simultánea de todo o respectivo sar ou da res
pectiva existencia. Ora somente Deus é tal; só Deus nao tem
passado nem futuro: só Deus possui simultáneamente toda a
sua existencia. Nenhuma criatura goza deste privilegio, pois
toda criatura, pelo tato mesmo de ser criatura, teve comeco;
urna porgáo da existencia de cada homem já passou e nao vol-
tará a ser presente (nem mesmo depois da morte) e outra
porgáo da existencia de cada homem é futura e ficará sendo
futura.

2) Com outras palavras: o ser humano, depois da morte,


emancipa-se do tompo ou da sucossáo de dia c noito imposta
pelo movimento dos astros, mas nem por isto entra na posse
simultánea de toda a sua existencia (peculiaridade exclusiva
do Eterno ou de Deus); a existencia da criatura emancipada
do tempo é chamada o evo ou a eviternidade. No evo há suces-
sáo... nao, porém, de dias e noites ou de momentos cronoló
gicos, mas de atos de maior ou menor intensidade. Pode-se
dizer que, contemplando a Deus face-a-face, o justo descobre
sempre algo do novo; Deus só nao é novo para si mesmo.

Nao se dove, portanlo, crer que, morrcndo, o sor humano


já experimenta o que ainda deverá acontecer no fim dos tem-
pos ou já toca a parusia (a gloriosa manifestado de Nosso
Senhor Jesús Cristo); ele a aguarda, solidáiño com os irmáos
que ainda realizam a historia do mundo; ele vivera a eonsu
magáo da histeria juntamente com seus irmáos que ainda sao
peregrinos.

Alias, nao se entende que alguém, morrendo em 1979, já


atinja a consumacáo da humanidade que ocorrerá em época
incerta para nos, com a provável participagáo de geragóes
humanas que ainda nao vieram á existencia real.

_ 460 —
RESSURREICAO DOS MORTOS: QUANDO? 21

1.4. Céu, inferno e purgatorio (art. 7)

A morte vem a ser a passagem ou o acesso do ser humano


á sua sorte definitiva. Esta pode ser a bem-aventuran;a plena
ou a visáo de Deus face-a-face ou a frustracáo definitiva, cha
mada «inferno». O purgatorio é concebido como estágio pre
vio á bem-aventuranca final para quem ainda nao esteja puri
ficado de todo resquicio de pecado.

Vejamos de per si cada qual destes estados postumos:

1) Céu... É o encontró com o Senhor Deus sem inter


mediario nem símbolo; ó a contemplagáo face-a-face da Be-
leza Infinita. O documento em pauta chama a atengáo do cris-
táo para dois pontos importantes:

— há continuidade entre a vida presente e a postuma; a


visáo de Deus face-a-face ocorrerá na proporcáo do grau de
caridade com que cada qual morrer; colheremos no além o que
tivermos semeado no aquém;

— há também urna ruptura radical entre a realidade pre


sente o a postuma, pois o regime da fé será substituido pelo da
plena luz. A visáo ¡mediata do misterio de Deus é algo que
«o olho jamáis viu, o ouvido jamáis ouviu e o coracáo do
homem jamáis pcrcebeu» (ICor 2,9). A S. Escritura insinúa
essa realidade postuma mediante figuras, que merecem todo o
respeito, mas devem ser tidas como tais, evitando-se a propó
sito os devaneios da fantasía.

2) Inferno... O inferno nada tem a ver com imagens


populares de tanque de enxofre fumegante, nem é algo criado
por Deus. Vem a ser a frustragáo total ou a separagáo de
Deus resultante de livre op;áo da criatura na térra.

Com outras palavras: todo ser humano foi naturalmente


feito para o Bem Infinito; este, explícita ou implícitamente,
exerce um tropismo sobre todo homem, á semelhanga do Norte
que atrai a agulha magnética da bússola. Se alguém, usando
da sua livre vontade, diz Sim a esse Norte (= Deus), encon-
tra repouso e plenitude... Se, porém, voluntariamente lhe diz
Nao e é encontrado pelo Senhor numa atitude final de repulsa
consciente e voluntaria, terá o definitivo distanciamento de
Deus. É isto que se chama inferno; a própria criatura a ele se
condena, sem que o Senhor Deus necessite de proferir alguma
sentenca.

— 461 —
22 cPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 239/3979

Esse estado é definitivo e sem fim, porque a alma humana


é, por si mesma, imortal. O seu estado infernal só terminaría

— se o Senhor aniquilasse a criatura (o que seria contra


rio á sabedoria do Criador);

— se o Senhor forgasse a vontade da criatura a dizer-lhe


um Sim postumo, contrario á livre op;áo da mesma (ora o
Senhor, que deu a liberdade ao homem, nao lha retira);
— se o Senhor cessasse de amar a criatura e deixasse de
lhe aparecer como o Sumo Bem; entáo o pecador se fecharía
em si mesmo ou no seu egoísmo sem experimentar a atragáo
de Deus. Todavía o Senhor nao pode deixar de amar o homem,
porque Ele é incapaz de se contradizer; Ele nao pode dizer Nao
após ter dito Sim; o seu amor é irreversivel.

Eis o que se entende por inferno numa lúcida concepcáo


teológica. Vé-se que tal estado, longe de ser incompatível com
a santidade de Deus, resulta precisamente do fato de que Deus
ama a criatura,... e a ama divinamente, isto é, sem se poder
desdizer e sem poder retirar-lhe o seu amor; cf. 2Tm 2,11-13.
3) Purgatorio... Este nao há de ser concebido como
condenagáo ou a semelhanga do inferno. Entende-se do seguinte
modo:
Se alguém ama fundamentalmente a Deus, mas ó incoe-
rente, alimentando negligentemente falhas e imperfeigóes por
que nao tem a coragem de extirpá-Ias, urna tal pessoa, ao mor-
rer, nao é rejeitada pelo Senhor Deus; está voltada para Ele,
embora portadora de covardia e certa tibieza. Todavía nao
poderá passar diretamente para a visáo face-a-face de Deus,
pois na presenga do Santo nao subsiste a mínima sombra de
faina. Terá, pois, que se purificar das escorias do pecado,
fazendo na vida postuma o que por negligencia deixou de fazer
na vida presente.
Essa purificagáo postuma nada tem que ver com fogo. Ela
se realiza mediante arrependimento sincero, que faz o amor de
Deus penetrar em todas as carnadas da personalidade ñas quais
subsistía o amor próprio desregrado. Pode ser ilustrada por
urna lenda hindú, que assim reza:l

Certo mendigo, sentado á margem da estrada, viu certa


vez a carruagem do rei aproximar-se. Imediatamente pós-se

1 Temos conscléncla de que tal estórla tem suas amblgüldades, mas


eremos que pode ilustrar o que seja o arrependimento postumo.

— 462 —
RESSURRE1CAO DOS MORTOS: QUANDO? 23

a pensar que chegara o seu grande día, pois o monarca haveria


de tirá-lo da sua miseria e lhe daria ricos presentes. Acon-
teceu, porém, que, descendo da carruagem, o rei se lhe che-
gou e pediu-lhe um pouco de trigo! O mendigo sentiu terrível
aecepgáo, mas nao se pode furtar ao soberano; catou, pois,
entre os graos contidos na sua bolsa o menor de todos, e o
entregou ao monarca... Todavía, quando o pobrezinho, no
fim do dia, abriu a sacóla para fazer o balanco da jornada,
verificou que, entre seus graos de trigo, havia um de ouro;
era o menor de todos... Compreendeu entáo que fora mes-
quinho e que, se ele tudo tivesse dado ao rei, estaría rico de
ouro e livre de apuros. Imediatamente entáo pós-se a repudiar
o egoísmo e a incompreensáo; purificou-se dos mesmos, pro-
metendo a si nunca mais ceder aos maus sentimentos...

Esta imagem elucida, ao menos á distancia, o que se pode


entender por purificacáo postuma: é o repudio decidido e radi
cal de toda incoeréncia alimentada, mais ou menos consciente
mente, no decorrer da vida terrestre. Deve-se á misericordia
divina, que oferece á criatura urna ocasiáo postuma de fazer o
que devia ter feito no momento oportuno, ou seja, enquanto
peregrina neste mundo. É durante a vida presente que toca á
criatura preparar a veste nupcial, de modo a passar direta-
mente deste mundo á «ceia da vida eterna*.

Vé-se assim também que o conceito de purgatorio é algo


de lógico e harmonioso no contexto do sabio plano de Deus.

1.5. Sufragios pelos morios (crt. 4)

Eis o teor do artigo:


'1A Igreja excluí todas as formas de pensamento e de expressfio qje,
adotadas, tornarlam absurdos ou Inlntellglvels a sua ora^áo, os seus ritos
fúnebres e o seu culto dos modos, realidades que, na sua substancia,
constiluem lugares teológicos".

Com outras palavras: a Liturgia é um «lugar teológico»,


isto é, um documentário que atesta a fé da Igreja e serve de
referencial ao teólogo para elaborar suas teses. Ora a Liturgia,
desde remotas épocas, supóe a purificagáo postuma, o céu e
o inferno; além disto, ela professa, com a S. Escritura, a ressur-
reigáo universal no fim dos tempos. Os sufragios realizados
pelos defuntos nao pretendem pedir ao Senhor que abrevie a
estada dos fiéis no purgatorio (este nao é um lugar, mas um
estado no qual nao se contam días nem anos), mas rogam a

— 463 —
24 cPKKGUNTE E RESPONDEREMOS» 239/1979

Deus que o amor tibio e covarde possa penetrar até o ámago


da personalidade de quem já passou para a outra vida. Esses
sufragios podem ter efeito retroativo, aplicando-se aos fiéis
que deles necessitem e na medida em que necessitem.

De resto, a respeito do purgatorio, como também no


tocante a vida postuma em geral, a S. Igreja recomenda sobric-
dade de concepcóes e afirmacóes. A fó revela o essencial e
suficiente para a orientacáo do cristáo; abstenham-se os fiéis
e os teólogos de devaneios imaginosos.

2. ConclusSo

Eis, em poucas palavras, o conteúdo do recente documento


da S. Congregacáo para a Doutrina da Fé sobre a escatologia.
Tenciona dirimir dúvidas e firmar a fé dos cristños em pontos
de importancia capital. O cristáo vive mais em fungáo do
futuro do que do passado. É a expectativa dos valores defini
tivos (já presentes em germen na vida terrestre) que norteia
o comportamento diario do discípulo de Cristo.

A S. Igreja insiste em que os teólogos, pregadores e cate


quistas transmitan! com fidelidado os ensinamentos da reta fé.
Os teólogos háo de pesquisar, sem dúvida, em espirito de comu-
nháo com a S. Igroja. Quanto aos catequistas o pregadores,
abstenham-se de novidadcs quo nao condigam com ns verdades
atrás expostas.

De modo especial, incumbe aos Srs. Bispos velar pela


autenticidade da mensagem de fé ensínada aos homens. Daí a
atencáo que devem dar as publicaeñes referentes á escatologia.
Saibam, por si ou mediante adequada comissáo diocesana, dis
tinguir o certo do errado, apontando com nitidez as obras e
os escritos que edifiquen! a fé do povo de Deus e assinalando
devidamente os livros e árticos que de algum modo se Ihe
oponham.

A propósito :

BETTENCOURT, E., A vida que cometa com a morle. — Ed. Agir,


Rio de Janeiro 1955.
BOROS. L., Myslerium Mortis. Olten 1262.

CULLMANN, O., Immortalité de l'érne ou Résurreclion des morts ?


— Neuchatel - Paris 195S.

POZO, C. Teologia del más allá. Cc!e?ao BAC n° 282. — La Editorial


Católica, Madrid 1968.

— 464 —
Géneros literarios na Biblia :

que é um apocalipse ?

Em sintese: A Biblia ó um llvro cuja interpretado é considerada


difícil; muí tos estudiosos a utilizam para fundamentar ou ilustrar as teses
mais contraditórias.

Esta confusáo se deve, em grande parte, ao fato de nSo se levarem


em conta os géneros literarios existentes na Sagrada Escritura. Esta foi,
sim, redigida através de dezenove sáculos, por autores humanos que,
embora inspirados por Deus, utilizavam os melos de expressio da sua
época e das suas regióes. é necessário, pois, que o intérprete contempo
ráneo retroceda no tempo e procure ambientar-se ñas circunstancias em
que es autores bíblicos compuseram seus escritos. Esta tarefa so se
ternou possível a partir do século passado, quando os estudiosos deseo-
briram a existencia de linguas e bibliotecas contemporáneas aos autores
bíblicos no Oriente e no Egito. Tomaram entáo consciéncia de que na
Biblia há géneros literarios, dos quais cada um tem suas peculiaridades
de expressáo próprlas.

Entre esses géneros destaca-se o do apocalipse. Este esteve em


voga no povo de Israel entre o séc. II a.C. e o séc. II d.C. Sucedeu á
profecía, que nessa faixa da historia era rara.

Um apocalipse ó um escrito cujo autor tenciona consolar seus irmáos


submelidos á perseguido ou tribulacao. Em vez de o fazer em seu pró-
prio nomc, atribuí seus oráculos a um personagem bíblico de tempos pas-
sados, cujo nome dé autoridade a tais oráculos. Asslm o apocalipse parece
ser profecía, mas nao o é. Além disto, todo apocalipse se refere sempre
aos aconiecímentos fináis da historia, apresentando o Senhor Deus como
Juiz que há de exaltar definitivamente os bons e punir os maus; esse
julgamento universal se realiza em cenarlo cósmico, com a partícipacáo
dos anjos. 'As "revolacóes" apocalípticas sSo descritas cerno se fossem
ob'idas em sonhos ou visóos; os anjes as elucidam ao vidente, etc.

No Evangclho lomos tragos de Apocalipse em Mt 24 ; Me 13 ; Le 22.


Enlendam-se esses latos no sentido exigido pelas regras do estilo apoca
líptico.

Comentario: Os temas bíblicos sao sempre atuais, visto


que muilos estudiosos, ao proporem suas teses ou hipóteses,
procuram fundamcntá-las na Sagrada Escritura; esta parece
prestar-se a dar autoridade ás mais diversas teorías; as vezes
mesmo senten^as contraditórias sao pretensamente patrocina
das pela Biblia.

— 465 —
2K «rERGUNTK E ItESPONDrORKMOS* 239/1979

Por que se dá táo estranho fenómeno?

Em grande parte, isto se deve ao fato de que as pessoas


nao levam suficientemente em conta a face humana da Escri
tura; esta, na verdade, nao é um livro caído do céu, independen-
temente da tramitagáo dos homens; mas ao contrario, é essen-
cialmente marcado pela mente e o genio de homens mediante
os quais Deus se quis dirigir a toda a humanidade. Se, pois, a
Biblia foi redigida de acordó com as regras de linguagem de
homens — e homens orientáis antigos —, entende-se que só
poderá ser adequadamente entendida se for recolocada no
ambiente cultural e lingüístico em que foi escrita. Há, por-
tanto, regras objetivas de interpretagáo do texto sagrado,
regras que obrigam o estudioso moderno a despojar-se de suas
categorías de linguagem pessoais para poder compreender o
modo de pensar e falar dos antigos.

Ora esta tarefa, em grande parte, coincide com o estudo


dos géneros literarios da Biblia. Nao levando em conta as ver
dades ácima expostas, muitos estudiosos incutem á Biblia as
suas idéias e hipóteses e as apresentam como se fossem dedu-
zidas da Biblia, em vez de fazer paciente e auténtico trabalho
de exegese ou de leitura do pensamento bíblico.

Eis porque, a fim de possibilitar melhor compreensáo das


páginas sagradas, vamos, a seguir, expor sumariamente o que
sejam os géneros literarios e, em especial, o género literario
apocalíptico.

1. Genero literario : que é ?

Leve-se em consideracáo que a linguagem, embora em si


mesma seja algo de convencional, é imposta nos casos con
cretos (com seu vocabulario e suas regras de gramática e sin-
taxe) a quem se queira comunicar. Todavía essa imposigáo
nao é táo precisa quanto a da matemática; admite todo o ma
tizado que a psicología humana podé1'conceber em materia de
expressáo e comunicagáo. Temos vocábulos com duas ou mais
acepg5es (boca, ladráo, porca.... por exemplo), como temos
dois ou mais vocábulos dotados da mesma acepgáo (asno e
burro; bilha e moringa; bambú e taquara..., por exemplo).
Pode alguém exprimir a mesma verdade de muitas maneiras,
nao somente usando vocábulos sinónimos ou alterando a cons-
trugáo da frase, mas também recorrendo a diversos modos de

— 466 —
QULO K UM APOCALIPSIS 27

falar, isto é, usando palavras em sentido exato e próprio ou


lanzando máo de metáforas. Assim posso designar o mesmo
inseto pelos nomes de «borboleta» e de «panapaná», o mesmo
objeto pelos nomes de «bordáo, cajado, bastáo, báculo», como
também posso dizer que Tarzá era uní lutador heroico ou que
era um «leáo».

Assim entramos no terreno dos chamados «géneros litera


rios». Nao raro chama-se «género literario» qualquer exprés-
sionismo (breve ou longo) que, segundo as intengóes de quem
o profere, deve significar algo diverso do que comumente se
entendería. Esta praxe de nomenclatura pode redundar em
generalizares indevidas. Por isto, para precisar propriamente
o que seja um género literario, recorremos a urna cümparacáo
inspirada pela arquitetura.

O arquiteto pode conceber diversos tipos de construcáo:


assim, urna casa residencial, um hospital, urna escola, urna
igreja, urna ponte... Urna vez estipulado o tipo da obra a
ser construida, o arquiteto terá aínda que escolher o materia i
respectivo (pedras, tijolos, ladrilhos, mármores, madeira...),
os motivos ornamentáis (formas de portas, janelas, capiteis)
e a técnica de construcáo (pegas prefabricadas, concreto ar
mado . ..) ... Cada construcáo, em seu estilo, exige material,
ornamentos e técnica próprios; nao se pode adotar qualquer
tipo de ornamento ou qualquer material de eonstrueáo para
qualquer rcalizscáo arquitetónica.

Ora digamos que a linguageni humana é semelhante a urna


construgáo arquitetónica. Quem se exprime, tem a intengáo de
comunicar algo de determinado (um episodio histórico, urna
licáo de ética, unía serie de leis. . .); deve também escolher o
ostilo que usará (prosa, poosia, expressáo jurídica...). Urna
vez estipulados osles elementos, terá que usar o vocabulario e
as regras de sintaxe correspondentes á sua int.enc.ao. Cada
assunto e cada estilo costumam condicionar o respectivo lin-
guajar e expressionismo. Assim chegamos ao conceito de gé
nero literario: este vem a ser a forma literaria própria utili
zada por um escritor em funeáo do assunto que ele aborda e
da finalidade que ele tPm em vista. Todo género literario
resulta, pois, de

1) inten^áo ou finalidade do escritor ao abordar tal ou


tal assunto;

— ltí" —
28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS:- 239/1979 _

2) formas, motivos e pi'ocodimentos literarios adaptados


a tal intengáo.

Em conformidade com este conceito do «género literario»,


distinguimos na Biblia alguns grandes géneros literarios:

1) o género histórico, com seus subgéneros (o midraxe,


o relato etiológico, a historia edificante, a tradigáo de fami
lia...);

2) o género jurídico, que há de ser sempre conciso e


claro:

3) o género poético, que recorre a freqüentes metáforas


e reticencias (á diferenga do género jurídico);

4) o género sapiencial, que procede muitas vezes por pro


verbios, máximas e sentencas ritmadas;

5) o género evangélico, com varias subunidades (apof-


tegmas, frases em «Eu», parábolas...);

6) o género epistolar, com cabecalho, corpo e saudagóes


fináis;

7) o género profético, com a sua subunidade «apocalipse».


A respeito do apocalipse, proporemos consideragócs especiáis
no terceiro subtitulo desle artigo.

Afirma-se, com razáo, que «cada género litex*ário tem a


sua verdade». Isto nao quer dizer que a verdade seja relativa,
mas táo somente que cada género literario aborda a verdade
«do seu modo»; ora coloca-a em plena luz, ora propóe trechos
em que só 70% ou 60 %... dos dizeres contém a mensagem da
verdade e 30% ou 40%... servem de moldura a tanto... ou
vice-versa...

Compete-nos agora esludar

2. O histórico da questao

Pode-se dizer que a tradigáo exegética sempre esteve


atenta á existencia de expressóes figuradas, parábolas e alego
rías na Biblia. Todavía aos exegetas até o séc. XIX faltava o
conhecimento das literaturas orientáis antigás e dos seus diver
sos expressionismos. Este só se tornou possível em conseqüén-
cia de exploragóes arqueológicas levadas a efeito nos séculos
XDC e XX.

— 468 —
QUE £ UM APOCALIPSE 29

Os estudiosos que primeiramente confrontaram os textos


bíblicos com os escritos da Assíria, da Babilonia e do Egito
antigos, eram críticos, racionalistas e liberáis; movidos por seus
principios filosóficos mais do que pela evidencia literaria e
arqueológica, iam impugnando o valor original e sagrado das
Escrituras, reduzindo-as a plagios ou sucedáneos de escritos
oriundos entre os povos vizinhos de Israel. Isto provocou ñas
escolas católicas de exegese urna desconfianca em relagáo aos
métodos modernos de análise literaria do texto sagrado; julga-
vam muitos pensadores católicos que tinham de rejeitar glo-
balmente tudo o que proviesse de autores racionalistas ou libe
ráis. ..

Aos poucos, porém, essa atitude drástica foi sendo substi


tuida por urna consideragáo mais serena e objetiva da reali-
dade. Verificaram os católicos que era possível (e mesmo
necessário) distinguir entre os instrumentos e o método de
pesquisa dos. colegas liberáis, de um lado, e a filosofía dos
mesmos, por outro lado. Enquanto esta era nao crista, aque
les poderiam ser validamente utilizados em perspectiva crista.

0 primeiro autor a perceber a distingáo e pó-la em prá-


tica foi o Pe. Lagrange O. P., que escreveu o artigo «L'ins-
piration et les exigences de la critique» (Revue Bibliquc 5
|1896| 496-518). Em novembro de 1902 o mesmo estudioso
lornava a expor suas idéias em conferencias proferidas no
Instituto Católico de Toulouse. Propunha entáo a adogáo da
tese dos géneros literarios na Biblia: poderia haver passagens
b-blicas aparentemente históricas, as quais se deveria assina-
lar veracidade histórica diminuida (visto que a intenc.áo do
autor sagrado nao teria sido a de narrar historia propriamente
dita). Esta tese suscitou ardentes debates. Dois anos mais
tarde, isto é, em 1904, o Pe. F. von Hummelauer S. J. levou
adiante as idéias do Pe. Lagrange publicando urna obra' que
continha a lista de nove géneros literarios aparentemente his-
tóricos, mas, na verdade, nao plenamente, ou mesmo de modo
nenhum, históricos: a fábula, a parábola, a historia épica, a
historia religiosa, a historia antiga, as tradicóes populares, as
narragóes livres, o midraxe hagádico, o género profético-apo-
calíptico. Desses nove géneros, os dois primeiros sempre foram
reconhecidos como nao históricos; os demais eram apresen-
tados pelo Pe. Hummelauer como expressóes de um conceito

1 Exegelisches zur tnsptratfonsfrage. Biblische Studlen 9. Frelburg


i. Br. 1904. D

— 469 —
30 ^PERPUNTE E RESPONDEREMOS* 239/1979

de historia diverso (porque muito menos crítico e exigente)


do que hoje temos. A tese do autor jesuíta — ao qual se asso-
ciaram outros exegetas católicos — contribuiu para dissipar a
impressáo de que existem erros de historiografía na Biblia;
com efeito, se os autores sagrados nao tiveram a intencáo de
nos transmitir a historia com toda a exatidáo a que está acos-
tumada a ciencia moderna, nao podem ser argüidos de falsos
ou mentirosos; a nos é que compete recuar no espago e no
tempo, a fim de descobrir qual a genuina intencáo dos autores
bíblicos e, conseqüentemente, entender seus escritos como eles
quiseram que fosseni entendidos.

O magisterio da Igreja, a principio reservado quanto aos


géneros literarios, foi-se abrindo aos poucos a esse novo ins
trumental de análise do texto. Finalmente em 1943 o Papa
Pío XII, na encíclica «Divino Afilante Spiritu», houve por bem
nao só reconhecer a existencia de géneros literarios na Biblia,
mas também recomendar a pesquisa dos mesmos:

"Mullas vezes nao é claro o sentido literal das palavras e dos escritos
dos antigos orientáis como também dos escritores de nossa época. Por
que nao é só mediante as leis da gramática ou da filología, nem só me
diante o contexto do discurso que se determina o que os antigos quiseram
significar com as suas palavras. é absolutamente necessário que o Intér
prete se transponha mentalmente aos remotos séculos do Oriente, para
que, devidamentc apoiado pelos recursos da historia, da arqueología, da
etnología e de outras disciplinas, distinga e veja com clareza quals géne
ros literarios (como dizem) quiseram aplicar, e de fato aplicaram, os
escritores daquela época antiga. Pois os orientáis de outrora nao utiliza-
vam sempre as mesmas formas e as mesmas maneiras de dizer que nos,
mas serviam-se das que estavam em uso corrente entre os homens da
sua época e dos seus países. Quais tenham sido essas formas, o exegeta
nao o pode estabelecer de antemáo, mas ele o fará se proceder a escru
puloso estudo da antiga literatura do Oriente" (ene. "Divino Afflante
Spiritu" n<? 643-645).
A encíclica de Pío XII pos termo a receios infundados de
exegetas católicos no tocante as pesquisas bíblicas; estas pode-
riam (e deveriam) tranquilamente valer-se para o futuro de
todos os recursos científicos (lingüística, arqueología, paleo
grafía...) que os estudiosos (nao católicos e católicos) desde
muito utilizavam. Seria licito admitir que relatos aparente
mente históricos na Biblia nao tém valor integralmente histó
rico ... Naturalmente, para poder afirmar tal tese, o exegeta
católico há de se basear em criterios objetivos de análise lin
güística e literaria; jamáis o faz de antemáo ou preconcebida
mente. Estude, antes do mais, o texto sem preconceito, e,
como conseqüéncia desse estudo sereno, defina ou proponha o
género literario em questáo.

— 470 —
QUE É UM APOCAL1PSE _3l

O reconhecimento de géneros literarios na Biblia leva-nos


ainda a importante conclusio: a mensagem que Deus quer
comunicar aos homens através das páginas sagradas está
«encarnada» ou está revestida pela roupagem do género lite
rario e dos expressionismos que cada autor sagrado utilizou.
Por isto, a fim de se perceber a mensagem divina das Escritu
ras, é absolutamente indispensável perceber-se primeiramente
o que o autor sagrado quis dizer através das suas páginas.
Quem negligencia o discernimento dos géneros literarios, sim-
plesmente nao entenderá os livros bíblicos ou atribuir-lhes-á
falsas concepcóes ou ainda as concepcóes que o próprio sujeito
lhes queira imputar.

Passemos agora á consideracáo do género literario apoca


líptico.

3. Que é um apocalipse ?

A palavra grega apokálypsis quer dizer revelagáo. O gé


nero literario das revelacóes (ou apocalíptico) teve grande voga
entre os judeus nos dois séculos ¡mediatamente anteriores e
posteriores a Cristo. A sua origem se deve principalmente ao
fato de que os auténticos profetas foram escasseando em Israel
após o exilio babilónico (587-538 a.C); os últimos profetas
bíblicos — Ageu, Malaquias e Zacarías — exerceram o seu
ministerio nos séculos VI e V a.C.

Ora após o séc. V o povo de Israel conlinuou sujeito ao


jugo estrangeiro: retornando do exilio babilónico em 538 a.C,
ficou sob o dominio persa até Alexandre Magno (336-323 a.C.)
da Macedónia, que conquistou a térra de Israel, anexando-a
ao Imperio Macedónico. Após a morte do Imperador, a Pales
tina ficou sob os egipcios (dinastía dos Ptolomeus) até o ano
de 200 a.C. Nesta data, os sirios ocuparam e dominaram a
térra de Israel, constituindo ai o período dos Antíocos ou Se-
léucidas. Finalmente, os Romanos em 63 a.C. invadiram o
territorio palestinense e impuseram seu jugo aos judeus, jugo
que perdurou até que o povo de Israel foi expulso da sua térra
em 70 d.C. (queda e ruina de Jerusalém revoltada). Ora nes-
sas duras circunstancias de vida o povo de Israel, nao tendo
profeta, sentia necessidade de ser consolado e alentado para
nao resfalecer. Foi entáo que os autores judeus se puseram a
cultivar mais assiduamente o género literario apocalíptico ou
da revelacáo, que tem afinidade com a profecía, mas, na ver-
dado, nao se identifica com esta.

— 471 —
32 «PERCUNTE E RESPONDEREMOS» 239/1979

O apocalipse (revelac.áo) tende a incutir aos leitores urna


confianza inabalável na Providencia Divina. Todavía, em vez
de o fazer de maneira escolar ou meramente teórica, exortando
á fé, o autor recorre a um artificio: atribuí a um famoso perso-
nagem bíblico do passado (Enoque, Moisés, Elias, Daniel) ou
a um anjo do Senhor revelagoes proféticas a respeito da época
que ele e seus correligionarios estáo vivendo. Esse persona-
gem famoso aníigo descreve os tempos atribulados que os
leitores experimentam e assegura que a tormenta passará,
devendo a causa de Deus triunfar da faccáo dos impíos; estes
seráo prostrados, pois ocorreráo em breve o juízo final cía his
toria e a consiimaeáo dos tempos. É isto que dá ao apocalipse
a aparéncia de profecía; todavia note-se que o autor, ao des-
crever os fatos de sua época (como se tivessem sido preditos
por Enoque ou Moisés...), os descreve na base de suas obser
vares e experiencias pessoais. O recurso a personagem famoso
da antigüidade como revelador da mensagem é artificio pró-
prio do género apocalíptico: tende a incutir mais ánimo e espe-
ranga nos leitores; com efeito, se o próprio autor sagrado, con
temporáneo dos leitores imediatos, predissesse dias melhores,
nao teria a mesma autoridade que era inegavelmente reconhe-
cida a Enoque, Moisés, Elias, Daniel... Por sua vez, o escri
tor sagrado tinha fundamentos para consolar seus compa
triotas perseguidos c predizer a vitória final do bem sobre o
mal, porque esta ó anunciada por todas as profecías e pro-
messas feitas a Israel. O autor de um apocalipse nada acres-
centa de novo a essas promsssas: apenas as torna aluais, repe-
tindo-as de maneira solcne e enfática em momento penoso da
historia do scu povo e anunciando para breve o cumprimento
das mesmas. De resto, a Salvacáo, já oferecida por Dous em
fases anteriores de tribuíales de Israel, era penhor do que,
tambóm dessa vez, o Sonhor nao abandonaría seu povo.
As páginas m;iis tipícamonip apocalípticas do Anligo Tes
tamento sao os capítulos 7 a 12 do livro de Daniel. Estas s.?c-
cóes foram escritas no séc. II sob o dominio dos sirios ou Antío-
cos na Palestina; atribuem a Daniel, famoso varáo do séc. VI,
a descríelo simbolista dos acontecimentos que se desenrola-
ram desde o dominio pei'sa (séc. VI a.C.) até o dominio sirio
(séc. II a.C); em estilo de sonhos e visóes, sao apresentados
os reís persas, macedónios, egipcios, sirios que imperaram
sobre Israel até Antíoco IV Epifánio (175-164); para os tem
pos deste, o autor apocalíptico anuncia a intervenoáo final de
Deus e a salvacáo a ser trazida pelo Messias. Nao é fácil
entender um apocalipse, visto que utiliza exuberante simbo-

— 472 —
QUE K UM APOCALIPSE 33

lismo e coloca o leitor diante de um cenário cósmico, que con


juga o céu e a térra.

Mais precisamente, podem-se assim caracterizar os ele


mentos formáis do género apocalíptico:

1) a pseudonímia do autor. Este é um contemporáneo


dos seus primeiros leitores, mas fala-lhes como se fosse um
personagem antigo e veneravel. É o que se vé claramente, por
exemplo, no livro de Daniel. No Apocalipse de Sao Joáo é im
unjo quem revela.

2) O caráter esotérico (ou reservado) das revelagóes.


Estas teráo sido comunicadas outrora ao veneravel personagem
da antigüidade; ueviam, porém, ficar em segredo até os dias
do autor do apocalipse. Veja-se, por exemplo, Dn 8,26; 12,9.

3) Freqüentes intervengoes de anjos. Estes aparecem,


nos apocalipses, ora como ministros de Deus que colaboram
com a Providencia Divina na dispensacáo da salva^áo aos
homens, ora sao intérpretes das visóes ou revelagóes que o
autor do livro doscreve. Cf. Ez 40,3; Zc 2,ls; 2,5-9; 5,1-4;
6,1-8; Ap 7,1-3; 8,1-13.

4) Simbolismo rico e, por vezes, singular. Animáis po-


(iom significar homens e povos; feras e aves representam geral-
mente as nacóes pagas; os anjos bons sao descritos como se
fossem homens, e os maus como estrelas caídas. O recurso
üíjs números é freqüente, explorando-se entáo o simbolismo
dos mesmos (3, 7, 10, 12, 1000 como símbolos de bonama; 3, 1/2
como símbolo de penuria e tribulacáo). É a exuberancia do
simbolismo dos apocalipses que torna difícil a compreensáo dos
mesmos; o leitor ou interprete deve procurar entender esse
simbolismo a partir de passagens bíblicas o exlra-biblicas para
lelas (na verdatk', há símbolos que se repetem com a mosma
significaeüo: gafanhotos, aguas, cedro, tris anos e meio, mi!
anos...).

Os autores de apocalipses sao assaz livres ao conceber


seus símbolos, suas visóes e personificacóes; propóem cenas
estranhas sem se preocupar com a sua verossimilhanca: cf.,
por exemplo, a Jerusalém nova em Ap 21,1-27; Ez 47,1-12.

5) Forte nota escatológica. Os apocalipses se voltam


todos para os lempos fináis da historia e os descrevem com

— 473 —
grandiosidade, aprésente ndo a intervenqáo solene de Deus em
mcio a um cenário cósmico, o julgamento dos povos, o abalo
da natureza, a punicáo dos maus e a exaltagáo dos bons
(estando reservado para Israel nesse contexto um papel de
relevo e de recompensa).

Este trago diferencia beni da profecía o apocalipse. A


profecía é sempre urna palavra dita em nome de Deus (pro-
-pheemi = dizer em lugar de): todavía nem sempre visa ao
futuro: refere-se muitas vezes a situagóes do presente, pro
curando sacudir os homens de sua indiferenga religiosa ou da
hipocrisia de vida, levando-os a conduta moral mais digna e
córrela; a profecía tem, sim, um caráter fortemente morali
zante, válido para os contemporáneos, mas nem sempre vol-
tado para o futuro ou a escatologia. — Ao contrario, nos apo-
calipses a índole moralizante desaparece quase por completo;
o que preocupa o autor sagrado, sao os acontecimentos fináis
da historia, que redundaráo em derrota definitiva dos maus e
premio para os bons; as visóos, os sonhos c os símbolos fanta-
sistas (que já os profetas cultivavam, mas com sobriedade)
tornam-se o elemento dominante na forma literaria dos apoca-
lipses.

6) O género literario apocalíptico foi-se formando, com


suas diversas características, silravís dos séculos ou paulatina
mente. Já se cncontríim alguns de seus elementos nos escri
tos dos profetas, antes do sóc. II a.C. Há mesmo passagens
de profetas que lém estilo apocalíptico, como pode havor nos
escritos apocalípticos trechos de índole profetica. Assim no llvro
de Daniel sao tidas como proféticas as passagens de Dn 2,34.44s;
7,9-14; 12,1-3.

4. O apocalipse sinótico

Nos Evnngelhos sinóticos (MI, Me, Le) há passagens de


estilo apocalíptico: Mt 25,1-51; Me 13,1-37; Le 21,5-36. Cons-
tituem o chamado sprmáo escatofógieo (relativo aos últimos
tempos) de Jesús. A apocalíptica dos Evangelhos nao abrange
todos os elementos atrás atribuidos ao género literario apoca
líptico; assim, por exemplo, nao pretende ser revelagáo de ver
dades outrora comunicadas por Deus a um santo personagem
bíblico e posteriormente manifestadas por um autor sagrado
aos homens atribulados. O que há de apocalíptico ñas passa
gens evangélicas citadas, resume-so nos seguintes elementos:

— 474 —
QUE É UM APOCALIPSK Xj

a) A perspectiva do finí... Os exegelas indagam se o


fiin intencionado por Jesús é o fim dos tempos (como seria
normalmente num apocalipse) ou táo somente o fim de Jeru-
salóm (que ocorreu em 70 d.C). Esta última sentenca é pro
posta por autores de renome. Embora Mt 24,1-51 aprésente
cortos elementos de juizo universal, pode-se admitir que esse
juizo tenha em mira táo somente Jerusalém. Jesús terá des
crito a luta e a queda de Jerusalém num cenário de natureza
abalada ou com elementos do género literario apocalíptico, por
que o juizo sobre Jerusalém é figura do juizo sobre a huma-
nidade que deverá ocorrer no fim dos tempos.

Outra sentenca julga que Mt 24 alude á queda de Jerusa


lém nos vv. 4-28 e ao fim dos tempos nos w. 29-51. A pri
meara seria imagem deste, de modo que Jesús, como profeta,
teria visto urna e outra realidade numa perspectiva de conti-
nuidade o os teria apresentado num único sermáo.

b) O cenário cósmico: «O sol se escurecerá, a lúa nao


dará a sua claridade, as estrelas cairáo do céu e os poderes do
céu seráo abalados» (Mt 24,29). Estas afirmac/óes háo de ser
entendidas h luz do estilo apocalíptico; nao definem, pois,
acontecimentos vindouros, mas significam que a natureza cós
mica, mesmo inanimada, participará do grande evento final da
historia, qunndo o Senhor Deus disser a Palavra definitiva de
vitória do bem o esmagamento do mal.

É de recomendar sobriedade a quem medite sobre o desen


rolar dos eventos escatológicos. A Sagrada Escritura emprega
imagens múltiplas, que háo de ser respeitadas como imagens
o que, por conseguinte, nao permitan ao estudioso aventurar
conjeturas minuciosas sobre táo delicado tema. Entre as pou-
cas verdades que a este dizem respeito, pode-se afirmar com
certeza que Cristo vira como Juiz Universal para rematar a
historia e desvendar os segredos dos coragóes; entáo o bem e
os bons seráo pública e definitivamente exaltados, ao passo
que o mal e os maus seráo reconhecidos como tais.

A propósito veja-se aínda


E. BETTENCOURT, A vida que ce-meca com a morte. Rio de Janeiro.
Agir, 1958.
L BOFF, A vida para atóm da morte. Petrópolis, Vozes, 1973.
S. MUÑOZ IGLESIAS Los géneros literarios y la Interpretación de
la Biblia. Madrid, 1968.
M. De TUYA-J. SALGUERO, Introducción a la Biblia. I y II. Madrid.
BAC, 1967 (vv. 262 y 268).
V. DEN BORN, Diclonário Enciclopédico da Biblia, verbales "Apoca
líptica", ■Escatologia", Peírópolls, Vozes, 1971.

— 475 —
Devogáo popular:

e as correntes de oracoes ?

Em sintese: O presente artigo tende a mostrar que a prática das


cadeias de oracóes é aberrante do ponto de vista da razao tanto quanto
á luz da fé. Com efeito; nada prova existir algum nexo causal entre tal
prece e os efeitos mará vil hosos que se Ihe atribuem. Quanto á Revelacáo
Divina, ela nao aponta fórmulas mágicas que obriguem o Senhor a atender
ao homem no momento e ñas circunstancias ditadas pelo orante; admitir
tal tipo de oracao significa nao ter o conceito de oracáo crista, que é
sempre o diálogo confiante de filhos com o Pa! do céu. Donde se vé
que as correntes de oracóes devem ser interrompidas tranquilamente; se
algum efeito maléfico em qualquer tempo resultou de tal interrupeáo, este
(caso tenha realmente ocorrido) se deve exclusivamente ao sugesliona-
mento e ao medo que afetaram a pessoa crédula e insegura por haver
quebrado a corrente de oracóes.

O artigo se detém ainda sobre a mentalidade da pessoa supersti


ciosa : esta abdica da sua capacidade de pensar e criticar sadiamente,
relacionando efeitos estranhos com causas inadequadas. Verifica-se, porém,
que pessoas de alta intelectualida.de e cultura aderiram a superstigdes
(Emilo Zola, o presidenta Mazaryk, o músico Chopin...). Isto só se
explica pelo fato de que o ser humano é naturalmente religioso; por isto
ou adora o verdadelro Deus ou cultua substitutivos, ou seja, objetos e
fórmulas que Ihe fazem as vezes do verdadeiro Deus. É, sem dúvida, a
nostalgia do Divino que, apesar de tudo, se faz ouvir ñas afirmaedes
erróneas da superstigáo.

Comentario: Nao é raro receber alguém urna carta por


tadora de oragáo «maravilhosa» a ser policopiada e transmi
tida a n pessoas dentro de x dias. Caso o destinatario dessa
carta siga as instruyes do mitente, será feliz c conseguirá
portentos. Caso, porém, negligencie fazé-lo, será vítima de
tremendas desgragas. É mesmo costume citarem-se episodios
de pessoas afortunadas pela sua docilidade as normas recebi-
das, como também os de individuos que se prejudicaram pelo
desprezo das mesmas.

— 476 —
CORKENTES DE ORACOES? 37

1. Que dizer?

Proporemos a respeito tres observacóes:

1.1. Qual o fundamento ?

É preciso, antes do mais, que se indague: com que fun


damento se pode crer na eficacia da oragáo em cadeia? Quem
envía a prece em corrente, nao explica os porqu&s das suas
afirmagóes nem mesmo conhece tais porqués; procede as cegas,
movido pelo medo de ser vítima de desgraga ou pela espe-
ranga (subjetiva ou vaga) de obter algum beneficio.

Ora tais atitudes sao irracionais e deturpam a auténtica


face da vida de fé. O ato de fé é sempre um ato da pessoa
humana, a qual move a sua inteligencia para aderir a urna
proposigáo que se lhe afigura como verdade. O homem, dotado
de razáo, nao foi feito para aceitar as cegas o que se lhe diz;
nem mesmo a mais férvida prática religiosa pode abstrair de
base racional ou inteligente; as auténticas atitudes religiosas
sao sempre o desenvolvimento da personalidade humana como
tal: implicam, portanto, participado da inteligencia do homem
piedoso.

Mais precisamente: no caso em pauta, deve-se reconhecer


que nao se vé por que determinada oracáo seria táo pode
rosa, por que tal causa leva a tais efeitos,... qual o nexo
lógico entre tal fórmula e os resultados a ela atribuidos. Nao
raro se diz que a eficacia de determinada prece foi revelada a
determinado ía) vidente por algum (a) santo (a) no decorrer de
aiguma aparicáo. Ora geralmente nesses casos nao há senao
ilusáo humana e vá superstigáo; a fantasía popular devota ima
gina fácilmente os santos a se comunicarem com os homens
para transmitir-lhes mensagens maravilhosas.

Podemos dizer, portanto, que quem acredita na «onipo-


téncia» de alguma oracáo, já nao está concebendo cristámente
a prece e a piedade, mas está cedendo a atitudes supersticiosas
e mágicas. O Senhor Deus nao está obrigado a dar resposta
no momento predeterminado pelo homem, passando por vias
extraordinarias ou nao habituáis; a insistencia em esperar isto
do Senhor Deus poderia equivaler ao que se chama «tentar a

— 477 —
k iíi:.spondkkí.;mos . ■¿

Deus», ou seja, exigir que o Senhor Deus se adapte a esque


mas imaginosos e proceda por vias extraordinarias.

Explanemos agora um pouco melhor o conceito de

1.2. Ora?6es «todo-poderosas»

Nao é raro ouvir falar de orayóe.s ¿todo-poderosas», pois


há quem julgue que determinadas preces produzem efeitos
infaliveis. — Na verdado, nao existem fórmulas todo-podero
sas; esta concepgáo ó derivada dos ritos mágicos, e nao das
fontes do Cristianismo. Com efeito, o cristáo sabe que Deus
é Pai e que, por conseguinte, deve tomar a atitude de filho
frente ao Pai; isto implica confianca, entrega de si, espe-
ranca...: tal atitude excluí qualquer tentativa de coagir ou
forear a Deus em favor dos homens. Só forcamos um estra-
nho ou um tirano. — Ao contrario, a magia tem por objetivo
canalizar os poderes da Divindade em prol dos planos dos" ho
mens; considera Deus ou os deuses como forgas neutras, que
podem ser aproveitadas por pessoas iniciadas, conhecedoras
dos segredos da Divindade. Ora tal mentalidade evidentemente
nao é "crista. No Evangelho, o Senhor ensina aos discípulos o
seguinte:

"Ñas vossas oragóes nao uséis de vas repelieses como fazem os


gentíos, porque entendem que é pelo palavreado excesslvo que seráo
ouvidos. NSo sejais como eles, porque o vosso Pai sabe do que tendes
necessldade antes de Iho pedirdes" (Mt 6, 7s).

Estes dteeres do Senhor incutem sobriedade de palavras


na oragáo. O Pai sabe que precisamos daquilo que nossos
labios Lhe exprimem. Nao obstante, o Senhor quer que reze-
mos (cf. Mt 7,7-11), nao para dobrar ou inclinar a vontade de
Deus segundo nossos designios, mas porque a oragáo nos leva
a colaborar com o plano de Deus. Recebemos pao, roupa, tra-
balho e outros bens nao como o pássaro, a flor ou as criaturas
irracionais recebem os dons de Deus, mas como criaturas inte
ligentes, que sugerem ao Senhor aquilo que julgam melhor
corresponder aos interesses do Reino. Na oragáo, portante,
apresentamos ao Pai do céu os pedidos que julgamos oportu
nos; fazemo-lo, porém, condicionalmente, acrescentando com
Jesús: «Faga-se, porém, a tua vontade, ó Pai, e nao a minha»
(cf. Mt 26,42; Me 14,36). O que, em última instancia, deso
jamos através da prece, é que se cumpra a vontade de Deus,
a qual é sempre santa e salutar.

— J7S
CORHENTES DE ORACOES? 39

O costume de repetir oracóes — na recitacáo do Rosario,


por exemplo, ou na prática das novenas — nao visa a «con
vencer» ou «forcar» o Senhor Deus, mas se deve á nossa con-
dicáo humana; sim, tem em mira suscitar em nos uma atitude
de confianga e perseveranca; aviva os nossos afetos e dispóe-
-nos a receber de ánimo aberto e consciente o dom de Deus.

O cristáo que reza, tem uma grande certeza: nao a oue


as correntes de oragóes incutem, mas, sim, a garantía de que
nenhuma oragáo feita em uniáo com Cristo (cf. Me 14,36) é
inútil ou perdida. Se o Pai do céu nao concede eslritamente
aquilo que o orante lhe sugere, Ele lhe dá uma gra<;a equiva
lente ou mclhor, porque mais condizente com o plano de Deus.
É certo, pois, que Deus sempre atende a quem ora com humil-
dade e confianza filiáis; tal certeza se deriva das palavras do
próprio Cristo, que diz:

"Pedi, e vos será dado; buscal, e acharéis; batei, e vos será aborto.
Pois todo o que pede, recebe: o que busca, acha; e ao que bate, se
abrirá" (Le 11.9s).

"Em verdade, em verdade, vos digo: se pedirdes alguma coisa ao


Pai em meu nome, Ele vó-la dará. Até agora nada pedisles em meu nome;
pedi e recebereis, para que a vossa alegría seja plena" (Jo 16,23s).

A cxpressáo «em meu nome» tem importancia decisiva


nos dizeres ácima. Significa «em uniiio com Jesusa, *rm eomu-
nháo com a atitude de Jesús»; Este pedia a isenyño ció cálice
de sua Paixáo, mas, ácima de tudo, desejava que se fizesse a
vontade do Pai, e nao a sua (cf. Me 14,36). É com tais sen-
timentos que também o cristao eleva suas preces ao Pai, certo
de quo, de uma maneira ou de oulia, será atendido.

A luz destas verdades, verifica-se que tem significado muito


relativo a rubrica «Com aprovagáo eclesiástica» aposta a algu-
mas preces «lodo-poderosas». Tal fórmula carece de autoii-
dade porque ó anónima, genérica ou vaga.

Eis, porém, que se levanta uma objecáo:

1.3. E os casos de eficacia dos correntes ?

Há quem diga que tal ou tal oragao em cadeia logrou real


mente efeitos benéficos ou maléficos... A propósilo obser
vemos:

— 479 —
40 • FEKGUNTE E RESPONDEREMOS» 239/1979

a) Seria preciso averiguar com exatidáo a veracidade de


tais dizcres. Ocorreram realmente tais beneficios ou maleficios
atribuidos á prece em pauta? Nao raro verificar-se-á que
nada consta de positivo e claro.

b) Dado que algum efeito portentoso tenha decorrido da


prece, pode-se crer que em alguns casos o poder da sugcstáo
predispóe a pessoa a resolver problemas de sua vida ou a incor-
rer em desastres e desgracas; a sugestáo, prometendo benefi
cios ou maleficios, pode desbloquear o psiquismo do paciente,
tornando-o propenso a viver as situacócs que o sugestiona-
mento lhe propóe. Os estudos de Pavlov sobre os «reflexos
condicionados» evidenciam tal proposicáo. A Psicología mo
derna ensina que um órgáo humano pode entrar em atividade
tanto sob a influencia de scus excitantes naturais (remedios
adequados, por exemplo) como sob a excitagáo de estimulan
tes meramente convencionais. Por conseguinte, caso se diga a
alguém que determinado objeto ou determinada fórmula ou
determinado tratamento é benéfico para o corpo, pode acon
tecer que, emboru tais objetos ou fórmulas sejam de todo indi
ferentes e inoperantes, a pessoa experimente um beneficio
corpóreo ao aplicá-los a si. So, pois, ha alguma veracidade nos
portentos ¿¡tribuidos a ora ños «poci:r(:s;is:>, nño se julgue que
so di-ve ;'i eficacia ni.':¡.;ie;i fia fórniul».

Km conseqüencia de quanto acaba de ser dito, vs-se c:ui!


a iititudc coerente do cristáo que recebe urna orae.no em cadeia
para passá-la adiante, ó a de romper tal corrente. Nao somonte
nada lhe acontecerá por ter feiío isto, mas, ao contrario, adqui
rirá mérito diante de Deus, pois praticará obra boa; estará,
sim, contribuindo para dissipar supersticóes o crendiecs, que
desfiguram a verdadeira piedade.

Digamos, pois, por último unía palavra a rcsptñto d;1

2. Supersíicóo

1. A palavra «supersligáo» vem do termo latino supers-


titio, que significa «o excesso» ou também «o que í'esta o sobre
vive de épocas passadas». Em qualquer accepeáo, porém,
designa o que é alheio a atualidade, o que é velho ou degenc-
rescente. Transposto para a linguagem religiosa dos romanos
pagaos, o vocábulo supsrstitio veio a designar as observancias

— 480 —
CORRENTES DE ORACHES? 41

de culto arcaicas, populares, nao mais condizenles com as nor


mas da Religiáo oficial vigente.

Servio, por exemplo, comentador da Eneida de Virgilio, diz que se


dava o neme de "supersticiosas" a certas mulheres que atingiam idade
avancada; já que sobreviviam a mullas contemporáneas suas, superstltes
erant, isto é, "constituiam o resto ou a sobra..." E, como essas mulheres
fossem dadas a vas e aberrantes práticas de piedade, a "supersticao" veio
a coincidir com a religiosidade pouco esclarecida de pessoas simplonas
ou tendentes á decrepitude; cf. Aeneid. VIII 183.

O escritor romano Varráo (t 27 a.C.) exprimía muilo bem, na sua


linguagem politeísta, o que significa essa religiosidade inferior, quando
athmava que "o supersticioso é o homem que teme os deuses como
inimigos, ao passo que o homem religioso os reverencia como país'
(citado por S. Agcstlnho, De civ. Del 6, 9, 2). Quintiliano (t 120 d.C),
por sua vez, notava que "a supersticSo difere da religiáo como o homem
que procura por curiosidade difere do homem que procura por amor"
(De inst. orat. VIII 3).

Em suma, vé-se que já entre os romanos pagaos a supers


ticao era tida como urna deterioracáo ou contrafapáo da Reli
giáo. — Ora é com este mesmo aspecto que ela so apresenta
também entre os cristaos.

Focalizemo-la tal como ola aparece nos países do civiliza-


cño crislñ.

2. A expressáo mais comum da superstigáo entre nos


consiste em querer elucidar certos fenómenos (explicareis pe
las leis da natureza) por causas de índole sobrenatural ou
misteriosa; introduz-se assim o «pseudo-sobrenatural» ou o
«pseudo-divino» em objetos e acontecimentos naturais. E no-
te-se bem que a superstigáo nao prova suas teses, mas supóe,
por parle dos adeptos, piedosa credulidade. O homem supers
ticioso nao indaga por que deva haver relac.áo de causa e
efeito entre tal agente e tal fenómeno; ao contrario, ele aceita
essa relacáo como fato indiscutivel.

Ora urna tal atitude é assaz irracional. Com efeito; nao


se poderia dizer que, aos olhos da inteligencia, aparega evi
dente nexo entre «ferradura de cávalo» e «felicidade do ho
mem», entre «sentarem-se treze pessoas á mesa» e «morte de
um dos convivas». Quem considera a essencia de cada um des-
ses fenómenos, nao vé embebido na mesma o vinculo de causa
e efeito que se Ihes atribuí vulgarmente.

— 481 —
42 «PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 239/1979

Na melhor das hipóleses, verifica-se afinidade extrínseca e vaga


entre os fenómenos que a voz popular relaciona entre si.

Assim, objetivamente falando, "entrega de urna faca a alguém" é


urna coisa; "ruptura de amizade com essa pessoa" é outra coisa, por si
totalmente independente da anterior. A voz popular, porém, afirma que
"dar urna faca a alguém acarreta ruptura de amizade". Na base de que
o afirma? Nao na base de afinidade Intrínseca, como se um dos dols
conceitos naturalmente evocasse o outro na mente de quem raciocina,
mas apenas na base de urna semelhanca extrínseca, simbolista, entro
faca (instrumento cortante) e corte de amizade. Dessa semelhanca.
porém, é afeito e gratuito concluir que quem entrega urna faca terá tam-
bém que cortar urna amizade!... Numa tal afirmacáo a fantasía toma a
dianteira sobre a razáo.

Dizem outrossim que "quem finca um prego, se preserva do mal e


fixa o seu destino para o bem" ! De novo urna semelhanca meramente
extrínseca, simbolista, funda tal associacSo de idéias ("fincar"... "fixar"),
desta vez, porém, já om confuto com a sá razáo, pois esta ensina que
nao há destino ou torca cega que prevaleca sobre o livre arbitrio do
homem.

Seja mencionado também o trevo de quatro folhas, "portador de


felicidade"... No Piemonte, na Suica e na Franca acredita-se que quem
encontra tal portento, pode estar seguro de quo será feliz por toda a
vida. E por qué ? — Porque o trevo de quatro folhas é coisa rara, como
a felicidade é rara... Á guisa de comentario, seja licito repetir: analogía
meramente extrínseca nao implica nexo intrínseco; a associacao de con
ceitos no caso obedece a urna intuicüo infra-racional; o homem, poróm,
tem que vtver como ser racional.

Observemos mesmo que ás vezes é t§o pouco lógica a assoclacSo


de causa e eíeito professada pelos supersticiosos que o mesmo objeto
aparece associado a realidades contraditórias. Assim, por exemplo, o
número 13 é tido ora como sinal de infortunio, ora como símbolo de
bom agouro.

É, sim, considerado como símbolo de desgrasa, já que treze eram


os convivas da úllima ceia de Cristo, dos quais Jesús morreu crucilicado
e Judas Iscariotes se enforcou: a sexla-íeira (dia em que Jesús morreu)
foí conseqüentemente associada ao horror que a cifra 13 provocava ñas
geracces cristas. Por islo muitas pessoas evltam viajar em sexta-feira 13;
em álguns hoteis, nao há quarto n? 13, mas, sim, n? 12-a; a numeracáo
dos camarotes de tealro omüe por vezes a cifra 13. ..

Como se vó, a crenca na má sorto do n? 13 parece estar baseada


ao menos no testemunno da S. Escritura... — Este testemunho, porém, é
tSo arbitrariamente entendido e as observancias que a ele se prendem
sao táo pouco ditadas pela natureza intrínseca das coisas que o mesmo
número 13 em vastas regióes da térra (ató em países cristáos) é estimado
como símbolo justamente da boa sorto.

O argumento dos otimislas se básela no fato de que 13 ó número


afim a 4 (1 e 3 dáo 4) ; ora 4 ó símbolo de próspera fortuna... Con-

— 482 —
CORRENTES DE ORACHES? 43

seqüentemente, na india 13 é cifra religiosa multo apreciada: os pagodes


hindus apresentam normalmente treze estatuas de Buda. Na China, os
dísticos místicos dos templos sio encabegados nSo raro pelo número 13.
Também os mexicanos primitivos conslderavam o número 13 como algo
de santo; adoravam, por exemplo, treze cabras sagradas. — Passando
agora a ambientes de clvilizacSo crista, lembraremos que nos EE.UU. da
América do Norte o número goza de estima, porque treze eram os Estados
que Iniclalmente constituiam a uniao norte-americana; além disto, o lema
da Uniao (E pluribus unum) consta de treze letras; a águla norte ameri
cana está revestida de treze penas em cada asa; Jorge Washington hasteou
o estandarte republicano com urna salva de treze tiros. Mesmo em outros
países da América e na Europa o n? 13 pode figurar em medalhas e
bibelós como símbolo portador de felicidade; por vezes as loterías afixam
o cartaz: "Hoje sexta-feira 13, dia de boa sorte..."

Os exemplos ácima dáo claramente a ver quanto a assoclagSo dos


conceitos de sorte e azar com a idéia de 13 é arbitraria. Ninguém, por-
tanto, se deixará abalar pelos prognósticos espalhados "em nome do
número 13"...

Para concluir, diga-se aínda algo sobre

3. A mentalidade do homem supersticioso

O que até aqui dissemos, permite-nos concluir que a supers-


ti<;áo é expressáo do senso religioso decadente. Este, nao sa-
bendo mais a qucm se dirigir, atribuí poderes e efeitos sobrc-
naturais ou divinos a causas por si inadequadas.

1. Explica-se a supersticao (mas nao se justifica) pelo desejo, Inato


em todo homem, de encontrar a razao de ser dos fenómenos misteriosos
que o cercam. Em vez de raciocinar para chegar á devida solucáo, a pessoa
pode delxar-se mover pela preguica de pensar ou pela covardia (em suma,
pela leí do menor esforco); relaciona entao efeitos estranhos com cau
sas ineptas, que ¡mpressionam o observador por motivos acidentais ou por
semelhanca meramente externa com os ditos efeitos. Em última análise,
como dlzfamos, tal atitude significa decrepitude do pensamiento, luga do
homem a si mesmo e á sua dignidade de criatura racional.

Verifica-se que principalmente em períodos de guerras a superstlclo


campeía. Mullos, nao sabendo mals como se defender razoavelmente das
Ingentes calamidades que os ameacam, recorrem a solucoes irraclonais
ou a objetos apotropélcos (espantalhos do mal). Nao tendo mals energías
em si para conceber e justificar suas atltudes, mullos entfio tendem a se
definir, guiados nSo proprlamente pelo raciocinio (o que acarretaria res-
ponsabilidade), mas pelo encontró de sinais que eles indevidamente julgam
reveladores de um plano superior ou divino (julgando asslm, desembara-
cam-se da responsabilldade de suas atitudes). Precario paliativo, que
tende a levar ao fatalismo! O supersticioso se assemelha ao doente deses
perado, que costuma acreditar em todos os remedios e receitas que Ihe
recomendam sem refletir multo, ¡mpressionado, de um lado, pelo seu
esgotamento e, de outro lado, pela aparente autoridade de quem tala.

— 483 —
•14 :PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 239/1979

2. Contudo, apesar de reprovável, a superstlcSo nfio delxa de ler


seu significado positivo.

Chama, sim, nossa atengáo o (ato de que n3o somente os Ignorantes


aderem freqüentemente á superstlcao, mas também pessoas de alta cultura.

Grandes adeptos do positivismo e do ateísmo, como o escritor Émlla


Zola e o Presidente Mazaryk, da Tcheco-Eslováquia, professaram aberta-
mente suas crendices supersticiosas, apesar de alirmarem n§o ter fó re
ligiosa.

Zola, por exemplo, julgava que os múltiplos de 3 eram números lavo-


ráveis; mais tarde preferiu os de 5 e 7. Do seu lado, o músico Chopin
tinha horror do número 7; Mérimée, o artista, tinha o número 13 na conta
de benfazejo, enquanto Vítor Hugo e Gabriel d'AnnunzIo Ihe eram con»
trários. Schub'ert chava a cor verde "cor malvada" e abominava-a a ponto
de dizer que estava pronto a Ir ás extremidades do globo para poder
evitá-la (outros julgam que precisamente o verde é a cor da esperance).

Perguntamo-nos: táo estranhas afirmacóes seráo simples-


mente vazias de sentido?

Nao. Elas atostam urna realidadií profunda, isio é, o senso


religioso inato em iodo homem. A Religiáo é expressáo carac
terística e indelével do ser humano como tal; em conseqüéncia,

ou ela se aplica ao seu Objeto devido — o Deus transcen


dente e pessoal, uno, Criador e Salvador do homem —, e assim
a inteligencia se dignifica;

ou, caso o honiem queira negar Deus e crenga religiosa, a


Religiáo, longe de se extinguir, toma a forma de um subpro-
duto ou substitutivo, aplicando-se a objetos indignos, levando
o homem a cair em contradigáo consigo mesmo e a desfigu-
rar-se no absurdo e ridículo.

É, sem dúvida, a nostalgia do Divino que, apesar de ludo,


se faz ouvir ñas afirmacóes erróneas da superstigáo.^ Em
outros termos: quando o homem perde fé numa Providencia
Divina que goveme sabiamente o universo e cada individuo,
esse homem tende a curvar a cabega sob o imperio de urna
forca dominadora e brutal, criada pela própria fantasia humana.

Estéváo Bettencourt O.S.B.

— 484 —
AOS NOSSOS LEITORES E ASSINANTES
CARO(A) AMIGO(A),

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A QUEM TANTAS DÁDIVAS OESTE.

QUE ASSIM, SENHOR, EU ME APROXIME DE UM SANTO,

OU MELHOR, SEJA COMO TU QUERES :

PERSEVERANTE COMO O PESCADOR

E ESPERANCOSO COMO O CRISTÁO I

QUE PERMANECA NO CAMINHO DO TEU FILHO,

E NO SERVICO DOS IRMÁOS !

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