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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

a vida
e os mistérios

50 reflexões sem data nem geografia


A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

A vida e os mistérios

é uma ideia de livro livre da

Companhia da Palavra

Um Livro com Pistas para outros Livros

dapalavra.wordpress.com

e-book editado e paginado por João Paulo Cruz


jpcruz@gmail.com

Imagens
Capa: © Yanik Chauvin - FOTOLIA
Última: © Stephen Coburn - FOTOLIA

Janeiro de 2008

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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

Leon Tolstoi Marquês de Sade


Hermann Hesse Emil Cioran
Oscar Wilde Primo Levi
Thomas Mann Franz Kafka
Albert Einstein Thomas Hobbes
Carl Sagan James Rachels
Leonardo Boff A. C. Grayling
Henry Miller António Vieira
António Damásio John Stuart Mill
Francis Bacon Jean-Paul Sartre
Bertrand Russel Antoine de Saint-Exupéry
Albert Camus Tuiavii de Tiavéa
Immanuel Kant Francesco Alberoni
Bertolt Brecht Fernando Pessoa
Soren Kierkegaard Thomas Moore
André Malraux Virginia Woolf
José Ortega y Gasset Carlos Drummond de Andrade
Henry David Thoreau Machado de Assis
Miguel de Unamuno Erasmo de Roterdão
Marquês de Vauvenargues René Descartes
Cicero Bento de Espinosa
Arthur Schopenhauer Jiddu Krishnamurti
Sigmund Freud Platão
Epicuro de Samos Konrad Lorenz
Lao Tsé Marguerite Yourcenar

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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

Explicação de um Projecto

Este livro digital A Vida e os Mistérios tem como causa primeira e primária a paixão do
editor pela leitura. Depois, de uma vontade imensa de partilhar. Acho que é dessa massa
básica que se fazem, aliás, todos os editores. Pelo menos os que o fazem por paixão: um pra-
zer imenso de divulgar letras e ideias de outros, de espalhar a palavra. De dar a conhecer
beleza e saber. A Vida e os Mistérios, acreditamos, reúne pensamentos de pessoas que têm
algo realmente importante para nos transmitir a todos, testemunhos alguns contraditórios,
apontando para diferentes caminhos mas todos preciosos. Ficaríamos felizes, por outras
palavras, se qualquer destes excertos levasse ao aprofundamento de pelo menos um dos
autores. São esses os termos de “livro cumprido” para esta edição. O que estas pessoas têm
para dizer é suposto vislumbrar-se nos pedaços que recortámos, por isso, por favor, não se
fique por aqui, vá à procura de mais. Estes 50 pedaços são apenas pequenas pérolas que vou
apanhando na net mas escondem tesouros maiores.
O critério editorial dos autores é estritamente pessoal e subjectivo e só posso esperar
que acrescente algo positivo à vossa vida. Desde logo que acrescente mais leituras, pois é
também essa função deste e-book: abrir portas, desbravar caminhos de leitura, dar a conhe-
cer pedaços de gente que vale a pena conhecer melhor. Pistas para outros livros. Todos os
que aqui estão citados nesta edição, aliás, têm em comum o facto de terem obra, por vezes
vasta, publicada. Sendo um livro de citações, eventualmente mais extensas do que é normal
nesse tipo de livro, esta publicação de distribuição livre e aconselhada constitui também o
primeiro lançamento de um projecto denominado A Companhia da Palavra. Trabalhamos
com palavras, textos e edições, sobretudo na área da memória (biografias, histórias de famí-
lias, memória empresarial, etc.). E além da vertente comercial e eventualmente lucrativa,
inventamos, idealizamos e fazemos livros para toda a gente, gratuitos, em meio digital (pdf).
Os nossos livros digitais são produzidos para serem reenviados e republicados, via
email, linkados em sites ou blogs, o que quiserem: em relação a leituras apaixonadas, somos
totalmente libertários. Só não podem ser comercializados, de resto, exortamos todos os
nossos leitores que gostem, a espalhar também a palavra e a aproveitar esta extraordinária
circunstância de sermos milhões em rede para retransmitir estas reflexões sem data nem
geografia de gente que continua viva nas suas palavras. Ou deve continuar, acreditamos
nós, que acima de tudo somos humanistas e prezamos a liberdade. Os nossos livros preten-
dem e procurarão reflectir a diversidade e a qualidade do pensamento humano, ideias de
valor intemporal e universal. O nosso filtro é vasto e o nosso critério é global, não temos
fronteiras, nem ideologia, nem religião. Acima de tudo: livre pensar.

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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

Os nossos livros digitais procuram ser também, desculpem o palavrão, internet-


friendly, amigos da rede. Por isso têm links para referências externas, permitindo a hiper-
ligação a mais e melhor conhecimento; e por isso tentamos que sejam “leves”, apesar das
imagens, porque sabemos que os ficheiros pesados ajudam a entupir a canalização digital e
que pode ser económico reduzir nos downloads, por isso, apesar de querermos que sejam
bonitos “objectos” de leitura, com imagens e um design apresentável, fazemos o que pode-
mos para os “encolher”. E também aconselhamos a não imprimir, de modo a que o leitor
possa fazer da leitura um acto igualmente ecológico.
Uma última referência aos textos seleccionados. Como já mencionei, são excertos que
vou coleccionando nas minhas incursões pela internet, em sites e blogs dedicados às letras,
às artes ou às filosofias. Às vezes - aficionado de citações e aforismos me confesso! - vou
apanhando algumas gemas no excelente Citador, por exemplo. Não garanto, como tal, que
estes trechos sejam fiéis às traduções oficiais, mas procuram ser fiéis à mensagem original.
Alguns foram traduzidos por nós do original inglês, outros foram editados para português
de Portugal (com alguma fidelidade ao espírito do acordo ortográfico), outros ainda foram
simplesmente corrigidos ou comparados com o originais ingleses ou franceses a fim de aferir
da sua consonância com o texto original, para que, pelo menos, sejam apresentados em por-
tuguês sem erros e sem deturpar as ideias dos autores — dando os créditos de tradução
quando tal é possível. As eventuais imperfeições deste livro deverão, sobretudo, levar o lei-
tor a redobrar a vontade de conhecer mais e melhor as obras que 0 inspiraram.
E, sem mais palavras, sejam assim bem-vindos ao nascituro mundo d’A Companhia da
Palavra e a mais uns passos pela fantástica aventura das ideias!

João P. Cruz

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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

Nunca ninguém se perdeu


Tudo é verdade e caminho

Fernando Pessoa

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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

Q ue religião é a tua? - perguntou um


homem de certa idade, que estava
num extremo da balsa, junto do seu carro.
- Não tenho nenhuma religião. Porque não
creio em ninguém mais do que em mim mesmo -
replicou o velho com ar resoluto.
Como pode uma pessoa crer em si mesma?
Pode enganar-se - objectou Nekliudov, intervin-
do na conversa.
- Nunca! - exclamou o velho abanando a
cabeça.
Porque há então diferentes religiões?-
interrogou Nekliudov.
- Porque as pessoas crêem precisamente
nessas religiões e não crêem em si mesmas. Tam-
bém eu acreditei nos outros e perdi-me como
numa floresta. Estava tão confuso que julguei
não poder mais encontrar o caminho. Conheci
múltiplas religiões diferentes. Todas se louvam a
si mesmas. Todas se foram propagando, tal
como uns carneiros cegos arrastam outros con-
sigo. Há muitas religiões, mas o espírito é único.
É o mesmo em ti, em vós e em mim. Assim, pois,
cada um de nós tem de acreditar no seu espírito,
e deste modo todos estamos unidos.

Leon Tolstoi, in "Ressurreição"

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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

A verdade é um ideal tipicamente


jovem, o amor, por seu turno, um
ideal das pessoas maduras e daqueles que se
fama, reputação e estatuto, passando a olhar
retrospectiva e desapaixonadamente a sua vida
passada. Aprende a esperar, a calar-se, a escu-
esforçam por estar preparados para enfrentar a tar; ainda que porventura alguma dessas virtu-
diminuição das energias e a morte. As pessoas des venha a ser corrompida por quaisquer debi-
que pensam só deixam de ambicionar a verdade lidades ou por algumas fraquezas, nunca deixa-
quando se dão conta que o ser humano está rá de considerar proveitoso este processo.
extraordinariamente mal dotado pela natureza
para o reconhecimento da verdade objectiva,
pelo que a busca da verdade não poderá ser a
actividade humana por excelência.
Mas também aqueles que jamais chegam
a tais conclusões fazem, no decurso das suas
experiências inconscientes, um percurso seme-
lhante. Ter consigo a verdade, a razão e o
conhecimento, conseguir distinguir com preci-
são entre o Bem e o Mal, e, em consequência
disso, poder julgar, punir e sentenciar, poder
fazer e declarar a guerra - tudo isto é próprio
dos jovens e é à juventude que assenta bem. Se,
porém, quando envelhecemos, continuamos a
ater-nos a estes ideais, fenece a já de si pouco
vigorosa capacidade de ‖despertar‖ que possuí-
mos, a capacidade de reconhecer instintiva-
mente a verdade sobre-humana.
(…)
A década que medeia entre os 40 e os 50
anos é para as pessoas temperamentais, para os
artistas, sempre uma época crítica, de inquieta-
ção e frequente insatisfação, uma altura em que
é comum haver dificuldades em lidar com a
vida e com nós mesmos. Depois disso, sobre-
vêm tempos de acalmia. Pude experimentar
isso não só em mim mesmo, como também o
observei em muitos outros. Por muito bela que
seja a juventude, uma época de efervescência e
de combates, também o envelhecer e o amadu-
recimento possuem a sua beleza própria e pro-
porcionam felicidade.
Com 50 anos, o ser humano começa a pôr
de lado certas criancices como a obtenção de Hermann Hesse, in „Elogio da Velhice‟

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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

I nfluenciar uma pessoa é dar-lhe a nossa


própria alma. O indivíduo deixa de
pensar com os seus próprios pensamentos ou de
arder com as suas próprias paixões. As suas vir-
tudes não lhe são naturais. Os seus pecados, se é
que existe tal coisa, são tomados de empréstimo.
Torna-se o eco de uma música alheia, o actor de
um papel que não foi escrito para ele. O objecti-
vo da vida é o desenvolvimento próprio, a total
percepção da própria natureza, é para isso que
cada um de nós vem ao mundo.
Hoje em dia as pessoas têm medo de si
próprias. Esqueceram o maior de todos os deve-
res, o dever para consigo mesmos. É verdade que
são caridosas. Alimentam os esfomeados e ves-
tem os pobres. Mas as suas próprias almas mor-
rem de fome e estão nuas. A coragem desapare-
ceu da nossa raça e se calhar nunca a tivemos
realmente. O temor à sociedade, que é a base da
moral, e o temor a Deus, que é o segredo da reli-
gião, são as duas coisas que nos governam.
(…)
A beleza, a verdadeira beleza, acaba onde a
expressão intelectual começa. O intelecto é já
uma forma de exagero e destrói a harmonia de
qualquer rosto. Assim que nos sentamos a pen-
sar, ficamos só nariz, ou só testa, ou uma coisa
horrível do género. Olha para os homens bem
sucedidos em qualquer das profissões eruditas.
Como são perfeitamente hediondos! A não ser,
evidentemente, na Igreja. Mas a verdade é que
na Igreja eles não pensam. Um bispo continua a
dizer aos oitenta anos o que lhe mandaram dizer
quando era um rapaz de dezoito e, por conse-
guinte, parece sempre perfeitamente encanta-
dor.

Oscar Wilde, in "O Retrato de Dorian Gray"


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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

H á uma beleza espiritual e há outra


beleza que fala aos sentidos. Certas
pessoas pretendem que o belo pertence exclusi-
vamente ao campo dos sentidos, separando dele
por completo o espiritual, de modo que o nosso
mundo apresente uma cisão entre os dois. Nisso
também se baseia o ensinamento verídico:
«Apenas por dois modos a felicidade é cognoscí-
vel em todo o Universo: a que nos vem das ale-
grias do corpo e a que nos vem da paz redentora
do espírito». Desta doutrina, no entanto, segue-
se que o espiritual não se acha, para o belo, na
mesma relação em que o belo se encontra para
com o feio e que, só em certas condições, se con-
funde com este.
O espiritual não é sinónimo de beleza pelo
conhecimento e pelo amor do belo, amor este
que se exprime em beleza espiritual. Tal amor,
em absoluto, não é absurdo ou sem esperança,
pois, pela lei da atracção dos opostos, o belo por
sua vez anseia pelo espiritual, admirando-o e
recebendo-lhe com agrado a corte. Este mundo
não está constituído de tal modo que o espírito
esteja fadado a amar apenas o espiritual, nem a
beleza unicamente votada a procurar o belo. Na
verdade, o próprio contraste entre os dois indi-
ca, com clareza ao mesmo tempo espiritual e
bela, que a meta do mundo é a união entre o
espírito e a beleza, isto é, uma felicidade não
mais dividida porém total e consumada.

Thomas Mann, in 'As Cabeças Trocadas'


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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

R ecuso-me a crer na liberdade e neste


conceito filosófico. Eu não sou livre,
e sim às vezes constrangido por pressões estra-
nhas a mim, outras vezes por convicções ínti-
mas. Ainda jovem, fiquei impressionado pela
máxima de Schopenhauer: ―O homem pode, é
certo, fazer o que quer, mas não pode querer o
que quer‖; e hoje, diante do espetáculo aterrador
das injustiças humanas, esta moral tranquiliza-
me e educa-me. Aprendo a tolerar aquilo que me
faz sofrer. Suporto então melhor o meu senti-
mento de responsabilidade. Ele já não me esma-
ga e deixo de me levar, a mim ou aos outros, a
sério demais. Vejo então o mundo com bom
humor.
(…)
Fascina-me a minha condição humana.
Conheço o limite da minha existência e ignoro
por que estou na Terra, mas às vezes pressinto-
o. Pela existência quotidiana, concreta e intuiti-
va, descubro-me vivo para alguns homens, por-
que o sorriso e a felicidade deles me condicio-
nam inteiramente, mas ainda para outros que,
por acaso, descobri terem emoções semelhantes
às minhas.
E cada dia, milhares de vezes, sinto a
minha vida - corpo e alma - integralmente tribu-
tária do trabalho dos vivos e dos mortos. Gosta-
ria de dar tanto quanto recebo e não paro de
receber. Mas depois experimento o sentimento
satisfeito da minha solidão e quase demonstro
má consciência ao exigir ainda alguma coisa de
outrem. Vejo os homens diferenciarem-se pelas
classes sociais e sei que nada as justifica a não
ser a violência. Sonho ser acessível e desejável
para todos uma vida simples e natural, de corpo
e espírito.

Albert Einstein in Como vejo o Mundo

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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

S erá que tentar perceber de alguma


maneira o universo revela uma certa
falta de humildade? Creio que é verdade que a
lómetros em órbita da Terra? Certamente Deus
seria capaz de fazer isso. certo? É claro, não
criou o universo? Uma coisinha simples como
humildade é a única resposta adequada perante colocar um crucifixo em órbita da terra? Perfei-
o universo, mas não uma humildade que nos tamente possível.
impeça de procurar descobrir a natureza do
universo que estamos a admirar. Se procurar-
mos essa natureza, então o amor pode ser inspi-
rado pela verdade, em vez de se basear na igno-
rância ou na auto-ilusão.
Se existe um Deus criador, será que Ele
ou Ela ou Isso ou seja qual for o pronome apro-
priado preferiria uma espécie de cepo embrute-
cido que o adorasse sem nada compreender? Ou
preferiria que os seus devotos admirassem o
universo real em toda a sua complexidade?
Quanto a mim, parece-me que a ciência é, pelo
menos parcialmente, adoração informada.
A minha crença mais profunda é que, se
existe um deus vagamente do género tradicio-
nal, então a nossa curiosidade e inteligência
provêm desse deus. Não saberíamos apreciar
esses dons se reprimíssemos a nossa vontade de
nos explorarmos a nós próprios e ao universo.
(…)
Essa questão das provas da existência de
Deus, se Deus tivesse querido dar-nos alguma,
não precisa de ficar restrita a esse método meio
questionável de fazer declarações enigmáticas a
sábios antigos e torcer para que elas sobrevi-
vam. Deus poderia ter gravado os Dez Manda-
mentos na Lua. Bem grande. Cada mandamento
com dez quilómetros de comprimento. e nin-
guém poderia vê-los da Terra, até que um dia
grandes telescópios fossem inventados ou uma
nave espacial se aproximasse da Lua, e lá esta-
riam eles, gravados na superfície lunar. As pes-
soas diriam: ―Como aquilo foi parar lá?‖. E
haveria então várias hipóteses, a maioria delas
extremamente interessantes.
Carl Sagan, in As Variedades da Experiência
Ou por que não um crucifixo de cem qui-
Científica. Uma visão pessoal da procura de Deus
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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

T emos que pensar para não desespe-


rar. O primeiro a fazer é assumir
que existe a dimensão de tragédia. Quer quei-
se embate que, na história, não encontra sua
equação adequada. Devemos estar decidida-
mente contra o mal. Isso implica estar contra
ramos ou não, somos confrontados com a con- nós mesmos, pois notamos que ele também
cretude brutal do mal. E o mal representa o nos habita. Por isso somos seres ambiguos,
limite para a nossa razão. Ele é simplesmente cristos e anticristos, anjos e demônios. Mas
incompreensível. E ao mesmo tempo ele é ina- podemos e devemos optar pelo cristo e pelos
ceitável. O segundo a fazer é recusar-se ao mal anjos benfazejos. É a forma como entramos na
e definir-se como um combatente contra o mal. luta e reforçamos aquele lado que, no fim, cre-
Ele não está ai para ser compreendido mas mos ser o único a dar sentido à história.
para ser combatido. Entendemos que o grau
mais alto de humanidade consiste em empe-
nhar sua vida e até em doá-la na luta contra os
poderes do mal. Recusamo-nos a aceitar que
ele tenha a última palavra. Se assim for, então,
definitivamente, nada mais vale a pena. O ter-
ceiro a fazer é aceitar que o mundo não é
redondo, mas inacabado. Ele está nascendo e
ainda não acabou de nascer. Compete a nós,
lutando contra o mal, fazê-lo nascer acabado e
melhor.
A figura histórica de Jesus de Nazaré,
independente da fé que tenhamos, nos oferece
talvez alguma inspiração. Ele se recusou a
explicar a tragédia humana e a presença do
mal. Isso o teria enredado em discussões sem
fim, como se enredaram Sócrates e discípulos
na agorá de Atenas. Mas nem por isso deixou
de lutar. Passou sua vida desmascarando a
mentira, denunciando as ilusões da riqueza e
combatendo as injustiças. E cheio de compai-
xão com os que sofriam, curava e multiplicava
pães e peixes. O mais excelente que se disse
dele foi conservado pelo evangelista Marcos:
"ele passou a vida fazendo o bem".
Que lição devemos tirar disso tudo? Que
na história nos é negada uma síntese harmo-
niosa. Todas as narrativas totais, sistemas filo-
sóficos fechados, caminhos espirituais que
prometem a harmonia completa são enganosos
e ilusórios. Prometem o que não podem dar. O
Leonardo Boff
que podemos e devemos é posicionar-nos nes-
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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

O espírito do homem é como um rio


que procura o mar. Represem-no e
aumentarão a sua força. Não responsabilizem o
homem pelas suas explosões devastadoras! Con-
denem antes a força da vida! O espírito que nos
anima pode assumir as mais diversas formas:
tornar-nos semelhantes a anjos, a demónios ou a
bestas. A cada um a sua escolha. Nada barra o
caminho ao homem para além das fantasmago-
rias dos seus medos.
O mundo é a nossa casa, mas teremos ain-
da que a ocupar; a mulher que amamos está à
nossa espera, mas não sabemos onde encontrá-
la; o atalho que buscamos está sob os nossos pés,
mas não o reconhecemos. Quer sejamos deste
mundo por muito ou pouco tempo, os poderes
por explorar são ilimitados.
(…)
Quanto ao facto de saber se o sexual e o
religioso são antagónicos e opostos, eu respon-
deria do seguinte modo: todos os elementos ou
aspectos da vida, por muito pobres, por muito
duvidosos que sejam (para nós), são susceptí-
veis de conversão, e na verdade devem ser trans-
postos para outro nível, de acordo com a nossa
maturidade e inteligência. O esforço visando eli-
minar os aspectos "repugnantes" da existência,
que é a obsessão dos moralistas, não só é absur-
do, como fútil. É possível ser-se bem sucedido
na repressão dos pensamentos e desejos, dos
impulsos e tendências feios e "pecaminosos",
mas os resultados são manifestamente desastro-
sos. (É estreita a margem que separa um santo e
um criminoso.) Viver plenamente os seus dese-
jos e, ao fazê-lo, modificar subtilmente a nature-
za destes, é o objectivo de todo o indivíduo que
aspira a desenvolver-se. Mas o desejo é soberano
e inextirpável, mesmo quando, como dizem os
budistas, se converte no seu contrário. Para
alguém se poder libertar do desejo, tem de dese-
jar fazê-lo.
Henry Miller, in 'O Mundo do Sexo'
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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

S e não fosse este nível tão alto de cons-


ciência humana, nunca haveria angús-
tia notável, agora ou no amanhecer da humani-
dade. Aquilo que não sabemos não nos pode
ferir. Se tivéssemos o dom da consciência mas
não nos tivesse sido dada a memória, também
não teríamos qualquer angústia. Aquilo que
sabemos, no presente, mas somos incapazes de
colocar no contexto da nossa história pessoal,
apenas nos pode ferir no presente. É a combina-
ção destas duas benesses, a consciência e a
memória, bem como a sua abundância, que cau-
sam o drama humano e que conferem a esse dra-
ma o seu estatuto trágico. Felizmente para nós,
esses mesmos dons são também a fonte da ale-
gria sem limites e da glória humana que lhe cor-
responde. Felizmente que viver uma vida bem
examinada é também um privilégio e não apenas
uma maldição.
Nesta perspectiva, qualquer projecto de
salvação humana – qualquer projecto capaz de
tornar uma vida examinada numa vida feliz –
deve incluir meios para resistir à angústia causa-
da pelo sofrimento e pela morte, meios para
suprimir a tristeza e para a fazer substituir pela
alegria. A neurobiologia da emoção e do senti-
mento diz-nos, em termos bem sugestivos, que a
alegria e as suas variantes são preferíveis à tris-
teza e às suas variantes, que a alegria leva mais
facilmente à saúde e ao florescer criador. Não
parece haver aqui qualquer equívoco: devemos
procurar a alegria, por decreto assente na razão,
mesmo que a procura pareça tola e pouco realis-
ta. Para aqueles que não têm fome e que não
vivem, sob um regime opressivo, é necessário
compreender que estar vivo é um privilégio

António Damásio in “Ao Encontro de Espinosa”

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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

O intelecto humano, quando assente


numa convicção (ou por já bem
aceite e acreditada ou porque o agrada), tudo
arrasta para seu apoio e acordo. E ainda que em
maior número, não observa a força das instân-
cias contrárias, despreza-as, ou, recorrendo a
distinções, põe-nas de parte e rejeita, não sem
grande e pernicioso prejuízo. Graças a isso, a
autoridade daquelas primeiras afirmações per-
manece inviolada. E bem se houve aquele que,
ante um quadro pendurado no templo, como ex-
voto dos que se salvaram dos perigos de um nau-
frágio, instado a dizer se ainda se recusava a aí
reconhecer a providência dos deuses, indagou
por sua vez: ―E onde estão pintados aqueles que,
a despeito do seu voto, pereceram?‖
Essa é a base de praticamente toda a
superstição, trate-se de astrologia, interpretação
de sonhos, augúrios e que tais: encantados, os
homens, com tal sorte de quimeras, marcam os
eventos em que a predição se cumpre; quando
falha o que é bem mais frequente —, negligen-
ciam-nos e passam adiante. Esse mal insinua-se
de maneira muito mais subtil na filosofia e nas
ciências. Nestas, o de início aceite tudo impreg-
na e reduz o que segue. Até quando parece mais
firme e aceitável. Mais ainda: mesmo não estan-
do presentes essa complacência e falta de funda-
mento a que nos referimos, o intelecto humano
tem o erro peculiar e perpétuo de mais se mover
e excitar pelos eventos afirmativos que pelos
negativos, quando deveria rigorosa e sistemati-
camente atentar para ambos. Vamos mais longe:
na constituição de todo o axioma verdadeiro,
têm mais força as instâncias negativas.»

Francis Bacon (in Novum Organum, Livro I - XLVI)


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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

A respeitabilidade, a regularidade, a
rotina - toda a disciplina de ferro
forjada na moderna sociedade industrial - atro-
rar a própria felicidade em lugar de provocar a
desgraça alheia. Não se trata de moral impossi-
velmente austera, e no entanto a sua adopção
fiaram o impulso artístico e aprisionaram o transformaria o planeta num paraíso.
amor de forma tal que não mais pode ser gene-
roso, livre e criador, tendo de ser ou furtivo ou
pedante. Aplicou-se controle às coisas que mais
deveriam ser livres, enquanto a inveja, a cruel-
dade e o ódio se espraiam à vontade com as ben-
çãos de quase toda a bisparia. O nosso equipa-
mento instintivo consiste em duas partes - uma
que tende a beneficiar a nossa própria vida e a
dos nossos descendentes, e outra que tende a
atrapalhar a vida dos supostos rivais. Na pri-
meira incluem-se a alegria de viver, o amor e a
arte, que psicologicamente é uma consequência
do amor. A segunda inclui competição, patrio-
tismo e guerra. A moral convencional tudo faz
para suprimir a primeira e incentivar a segunda.
A moral verdadeira faria exactamente o contrá-
rio.
As nossas relações com os que amamos
podem ser perfeitamente confiadas ao instinto;
são as nossas relações com aqueles que detesta-
mos que deveriam ser postas sob o controle da
razão. No mundo moderno, aqueles que de facto
detestamos são grupos distantes, especialmente
nações estrangeiras. Concebemo-las no abstrac-
to e engodamo-nos para crer que os nossos
actos (na verdade manifestações de ódio) são
cometidos por amor à justiça ou outro motivo
elevado. Apenas uma forte dose de cepticismo
pode rasgar os véus que nos ocultam essa verda-
de. Uma vez que o consigamos, poderíamos
começar a construir uma nova moral, não basea-
da na inveja e na restrição, mas no desejo de
uma vida pródiga e a percepção de que outros
seres humanos são um auxílio e não um obstá-
culo, uma vez curada a loucura da inveja. Não é
uma esperança utópica; foi parcialmente reali-
zada na Inglaterra isabelina. Poderia ser realiza- Bertrand Russell, in 'Ensaios Cépticos: Do Valor
da amanhã se os homens aprendessem a procu- do Cepticismo'
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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

S ó há um problema filosófico verdadeira-


mente sério: é o suicídio. Julgar se a vida
merece ou não ser vivida, é responder a uma ques-
tão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo
tem três dimensões, se o espírito tem nove ou
doze categorias, vem depois. São apenas jogos;
primeiro é necessário responder. (...)
Se pergunto a mim próprio como decidir se
determinada interrogação é mais premente do que
outra qualquer, concluo que a resposta depende
das acções a que elas incitam, ou obrigam. Nunca
vi ninguém morrer pelo argumento ontológico.
Galileu, que possuía uma verdade científica
importante, dela abjurou com a maior das facilida-
des deste mundo, logo que tal verdade pôs a sua
vida em perigo. Fez bem, em certo sentido. Essa
verdade não valia a fogueira. Qual deles, a Terra ou
o Sol, gira em redor do outro, é-nos profundamen-
te indiferente. A bem dizer, é um assunto fútil. Em
contrapartida, vejo que muitas pessoas morrem
por considerarem que a vida não merece ser vivi-
da. Outros vejo que se fazem paradoxalmente
matar pelas ideias ou pelas ilusões que lhes dão
uma razão de viver (o que se chama uma razão de
viver é ao mesmo tempo uma excelente razão de
morrer). Julgo pois que o sentido da vida é o mais
premente dos assuntos ― das interrogações.

Albert Camus, in O Mito de Sísifo

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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

A felicidade é o estado de um ser racio-


nal no mundo no qual em toda a sua
existência tudo está de acordo com o seu desejo
mo do mundo só é possível na medida em que se
pressuponha uma causa suprema da natureza
que tenha uma causalidade em harmonia com a
e vontade, e depende, portanto, da harmonia da disposição moral. Ora, um ser capaz de acções
natureza com todo o seu fim, tal como com o de acordo com a representação de leis é uma
princípio determinante essencial da sua vonta- inteligência (um ser racional), e a causalidade de
de. Ora, a lei moral, enquanto lei da liberdade, tal ser de acordo com esta representação de leis
tem autoridade através da determinação de é a sua vontade. Logo, a causa suprema da natu-
princípios que são para ser totalmente indepen- reza, na medida em que tem de ser pressuposta
dentes da natureza e da sua harmonia com a para o bem supremo, é um ser que é a causa da
nossa faculdade do desejo (enquanto incenti- natureza pelo entendimento e vontade (logo, o
vos); o ser racional actuante no mundo não é seu autor), isto é, Deus. Consequentemente, o
também, contudo, a causa do mundo e da natu- postulado da possibilidade do bem supremo
reza em si. Consequentemente, não há qualquer derivado (o melhor mundo) é igualmente o pos-
fundamento, na lei moral, para a existência de tulado da realidade de um bem supremo origi-
uma conexão necessária entre a moralidade e nal, nomeadamente da existência de Deus. Ora,
felicidade proporcional de um ser que pertence era para nós um dever promover o bem supremo;
ao mundo como sua parte e portanto dele logo, há em nós não apenas a justificação mas
dependente, e que por essa razão não pode, pela também a necessidade, como uma carência
sua vontade, ser uma causa desta natureza e, no conectada ao dever, de pressupor a possibilidade
que respeita à sua felicidade, não pode pelos deste bem supremo que, dado que só é possível
seus próprios poderes fazê-lo harmonizar-se sob a condição de existir Deus, conecta o pres-
completamente com os seus princípios práticos. suposto da existência de Deus inseparavelmente
Contudo, na tarefa prática da razão pura, isto é, com o dever; isto é, é moralmente necessário
na procura necessária do bem supremo, tal pressupor a existência de Deus.
conexão é postulada como necessária: temos o
dever de tentar promover o bem supremo (que
tem portanto de ser possível). Assim, a existên-
cia de uma causa de toda a natureza, distinta da
natureza, que contenha o fundamento desta
conexão, a saber, a correspondência exacta da
felicidade com a moralidade, é também postula-
da. Contudo, esta causa suprema há-de conter o
fundamento da correspondência da natureza
não apenas com uma lei da vontade de seres
racionais, mas também com a representação des-
ta lei, na medida em que fizerem dela o funda-
mento supremo e determinante da vontade, e
consequentemente não apenas com a forma da
sua moral mas também com a sua moralidade
enquanto seu fundamento determinante, isto é,
com a sua disposição moral. Logo, o bem supre- Immanuel Kant, in Crítica da Razão Prática

19
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

1 . prietários.
E só porque toda a gente é tão estúpida
Que há necessidade de alguns tão inteligentes.
Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para 4.
cima. Ou será que
Nem um pedaço de carvão sairia das minas Governar só é assim tão difícil porque a exploração
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o e a mentira
ministro da Propaganda São coisas que custam a aprender?
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o
ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer
o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.

2.
E também difícil, ao que nos é dito,
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam
de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
Ele nunca chegaria ao campo sem
As palavras avisadas do industrial aos camponeses:
quem,
De outro modo, poderia falar-lhes na existência de
arados? E que
Seria da propriedade rural sem o proprietário
rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio
onde já havia batatas.

3.
Se governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclareci-
dos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
E se o camponês soubesse distinguir um campo de
uma forma para tortas
Não haveria necessidade de patrões nem de pro- Bertolt Brecht

20
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

T emos, pois, que ao amor corresponde o


amável, e que este é inexplicável. Con-
cebe-se a coisa, mas dela não se pode dar razão;
vio, por exemplo a idade em que se produz tal
fenómeno, que da escolha da única mulher no
mundo não se possa dar a mínima razão, que se
assim também é que de maneira incompreensível o haja escrito que «Adão não elegeu Eva, porque
amor se apodera da sua presa. Se, de tempos a não teve possibilidade de a distinguir entre as
tempos, os homens caíssem por terra e morressem mulheres».
subitamente, ou entrassem em convulsões violen- Não será igualmente cómica a explicação
tas mas inexplicáveis, quem é que não sofreria a apresentada pelos amantes? Ou melhor, essa
angústia? No entanto, é assim que o amor inter- explicação não servirá para acentuar ainda mais
vém na vida, com a diferença de que ninguém o aspecto cómico? Os amantes dizem que o amor
receia por isso, visto que os amantes encaram tal os cega, e depois de dizerem isso é que tentam
acontecimento como se esperassem a suprema feli- iluminar o fenómeno. Se um homem entrasse
cidade. Ninguém receia por isso, toda a gente ri numa câmara escura para ir lá buscar um objecto
afinal, porque o trágico e o cómico estão em perpé- qualquer, e se respondesse «não vale a pena, a
tua correspondência. Conversais hoje com um coisa não tem importância», a quem lhe dissesse
homem; parece-vos que ele se encontra em estado que procuraria melhor se levasse consigo uma
normal; mas amanhã ouvi-lo-eis falar uma lingua- luz, eu compreenderia muito bem a atitude desse
gem metafórica, vê-lo-eis exprimir-se com gestos homem. Mas se esse mesmo homem me chamas-
muito singulares: é sabido, está apaixonado. Se o se à parte para em grande mistério me confiar
amor tivesse por expressão equivalente «amar que ia buscar uma coisa importantíssima, e que
qualquer pessoa, a primeira que se encontra», por isso mesmo tinha de a procurar às cegas -
compreender-se-ia a impossibilidade de apresen- como poderia a minha pobre cabeça de mortal
tar melhor definição; mas já que a fórmula é muito seguir a subtileza de tão desconcertante lingua-
diferente, «amar uma só pessoa, a única no mun- gem! Evidentemente que não lhe riria na cara,
do», parece que tal acto de diferenciação deve pro- para não ofender; mas, assim que ele voltasse as
vir de motivos profundos. costas, não poderia mais conter a vontade de rir.
Sim, deve necessariamente implicar uma
dialética de razões, e quem não as quisesse ouvir
ou não as quisesse expor, ganharia mais em des-
culpar-se com a inoportuna extensão do discurso
do que em alegar a falência total de explicações.
Ora a verdade é que o amante não pode
explicar nada, não sabe explicar nada. Viu cente-
nas de mulheres; deixou talvez passar muitos
anos sem experimentar o amor; e um dia, de
repente, vê a sua mulher, a única, a Catarina.
Isto é ridículo. Sim, é cómico que tão grande força
que há-de transformar e embelezar a vida inteira
- o amor - nem sequer seja como o grão de mos-
tarda donde deverá surgir uma grande árvore, que
seja menos do que isso, que, em última análise, se
reduza a um quase nada. Sim, é cómico que do
Soren Kierkegaard, in "O Banquete" (Discurso do Mancebo,
amor não se possa apresentar um só critério pré-
sem experiência no amor)
21
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

N ão desenhamos uma imagem ilusó-


ria de nós próprios, mas inúmeras
imagens, das quais muitas são apenas esboços, e
que o espírito repele com embaraço, mesmo
quando porventura haja colaborado, ele próprio,
na sua formação. Qualquer livro, qualquer con-
versa podem fazê-las surgir; renovadas por cada
paixão nova, mudam com os nossos mais recen-
tes prazeres e os nossos últimos desgostos. São,
contudo, bastante fortes para deixarem, em nós,
lembranças secretas que crescem até formarem
um dos elementos mais importantes da nossa
vida: a consciência que temos de nós mesmos
tão velada, tão oposta a toda a razão, que o pró-
prio esforço do espírito para a captar a faz anu-
lar-se.
Nada de definido, nem que nos permita
definir-nos; uma espécie de potência latente...
como se houvesse apenas faltado a ocasião para
cumprirmos no mundo real os gestos dos nossos
sonhos, conservamos a impressão confusa, não
de os ter realizado, mas de termos sido capazes
de os realizar. Sentimos esta potência em nós
como o atleta conhece a sua força sem pensar
nela. Actores miseráveis que já não querem dei-
xar os seus papéis gloriosos, somos, para nós
mesmos, seres nos quais dorme, amalgamado, o
cortejo ingénuo das possibilidades das nossas
acções e dos nossos sonhos.

André Malraux, in 'A Tentação do Ocidente'

22
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

A nossa vida, como repertório de pos- tâncias são o dilema, sempre novo, ante o qual
sibilidades, é magnífica, exuberante, temos de nos decidir. Mas quem decide é o nos-
superior a todas as historicamente conhecidas. so carácter.
Mas assim como o seu formato é maior, trans-
bordou todos os caminhos, princípios, normas e
ideais legados pela tradição. É mais vida que
todas as vidas, e por isso mesmo mais proble-
mática. Não pode orientar-se no pretérito. Tem
de inventar o seu próprio destino.
Mas agora é preciso completar o diagnós-
tico. A vida, que é, antes de tudo, o que pode-
mos ser, vida possível, é também, e por isso
mesmo, decidir entre as possibilidades o que em
efeito vamos ser. Circunstâncias e decisão são
os dois elementos radicais de que se compõe a
vida. A circunstância – as possibilidades – é o
que da nossa vida nos é dado e imposto. Isso
constitui o que chamamos o mundo. A vida não
elege o seu mundo, mas viver é encontrar-se,
imediatamente, em um mundo determinado e
insubstituível: neste de agora. O nosso mundo é
a dimensão de fatalidade que integra a nossa
vida.
Mas esta fatalidade vital não se parece à
mecânica. Não somos arremessados para a exis-
tência como a bala de um fuzil, cuja trajectória
está absolutamente pré-determinada. A fatali-
dade em que caímos ao cair neste mundo – o
mundo é sempre este, este de agora – consiste
em todo o contrário. Em vez de impor-nos uma
trajectória, impõe-nos várias e, consequente-
mente, força-nos... a eleger. Surpreendente con-
dição a da nossa vida! Viver é sentir-se fatal-
mente forçado a exercitar a liberdade, a decidir
o que vamos ser neste mundo. Nem num só ins-
tante se deixa descansar a nossa actividade de
decisão. Inclusive quando desesperados nos
abandonamos ao que queira vir, decidimos não
decidir.
É, pois, falso dizer que na vida «decidem
as circunstâncias». Pelo contrário: as circuns- Ortega y Gasset, in 'A Rebelião das Massas'

23
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

S e a pessoa der ouvidos às subtis mas


constantes sugestões do seu espírito,
sem dúvida autênticas, não vê a que extremos, e
até loucura, ele pode levá-la; contudo, por aí
envereda o seu caminho à medida que cresce em
resolução e fé. A mais leve objecção segura que
um homem sadio fizer, com o tempo prevalecerá
sobre os argumentos e costumes da humanida-
de. Nenhum homem jamais seguiu a sua índole a
ponto de esta o extraviar. Embora o resultado
fosse fraqueza física, ainda assim talvez nin-
guém pudesse dizer que as consequências eram
lamentáveis, já que representariam a vida em
conformidade com princípios mais elevados. Se
o dia e a noite são de tal natureza que vós os
saudais com alegria, se a vida emite uma fragrân-
cia de flores e ervas aromáticas e se torna mais
elástica, mais cintilante e mais imortal - aí está o
vosso êxito.
A natureza inteira é a vossa congratulação
e tendes motivos terrenos para bendizer-vos. Os
maiores lucros e valores estão ainda mais longe
de serem apreciados. Chegamos facilmente a
duvidar de que existam. Logo os esquecemos.
Constituem, entretanto, a realidade mais eleva-
da.
Talvez os factos mais estarrecedores e ver-
dadeiros nunca sejam comunicados de homem a
homem. A verdadeira colheita do meu dia a dia é
algo de tão intangível e indescritível como os
matizes da aurora e do crepúsculo. O que tenho
nas mãos é um pouco de poeira das estrelas e um
fragmento do arco-íris.

Henry David Thoreau, in 'Walden'


24
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

N unca me esquecerei do dia em que,


dizendo-lhe «Mas, senhor padre
Manuel, a verdade, a verdade, acima de tudo»,
ele, a tremer, sussurrou-me ao ouvido - e isso
apesar de estarmos sozinhos no meio do campo:
- «A verdade? A verdade, Lázaro, é porventura
uma coisa terrível, uma coisa intolerável, uma
coisa mortal; as pessoas simples não consegui-
riam viver com ela.»
«E porque é que ma deixa vislumbrar ago-
ra aqui, como confissão?», perguntei-lhe. E ele
respondeu: «Porque se não atormentar-me-ia
tanto, tanto, que eu acabaria por gritá-lo no
meio da praça, e isso nunca, nunca, nunca. Eu
estou cá para fazer viver as almas dos meus
paroquianos, para os fazer felizes, para fazer
com que se sonhem imortais e não para os
matar.
O que aqui faz falta é que eles vivam de
forma sã, que vivam em unanimidade de sentido,
e com a verdade, com a minha verdade, não vive-
riam. Que vivam. E é isto que a Igreja faz, fazer
com que vivam. Religião verdadeira? Todas as
religiões são verdadeiras enquanto fazem viver
espiritualmente os povos que as professam,
enquanto os consolam de terem tido de nascer
para morrer, e para cada povo a religião mais
verdadeira é a sua, a que ele fez. E a minha? A
minha é consolar-me em consolar os outros,
embora o consolo que eu lhes dê não seja o
meu.»
Nunca esquecerei estas suas palavras.

Miguel de Unamuno, in 'São Manuel Bom, Mártir'

25
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

A nossa vida não passaria de uma série


de caprichos, se a nossa vontade se
determinasse por si mesma e sem motivos. Não
objecto. Para resistir à paixão, seria necessário
pelo menos querer resistir-lhe. Mas a paixão
fará nascer em vós o desejo de combater a pai-
temos vontade que não seja produzida por algu- xão, na ausência da razão vencida e dissipada?
ma reflexão ou por alguma paixão. Quando O maior bem conhecido, dizem, determina
levanto a mão, é para fazer uma experiência com necessariamente a nossa alma. Sim, se for senti-
a minha liberdade ou por alguma outra razão. do como tal e estiver presente no nosso espíri-
Quando me propõem um jogo de escolha entre to; mas se o sentimento desse pretenso bem
par ou ímpar, durante o tempo em que as ideias estiver enfraquecido, ou se a lembrança das
de um e de outro se sucedem no meu espírito suas promessas dormitar no seio da memória, o
com rapidez, mescladas de esperança e temor, sentimento actual e dominante vence sem difi-
se escolho par, é porque a necessidade de fazer culdade: entre duas potências rivais, a mais fra-
uma escolha se apresenta ao meu pensamento ca é necessariamente vencida.
no momento em que par está aí presente. Pro-
ponha-se o exemplo que se quiser, demonstrarei
a qualquer homem de boa-fé que não temos
nenhuma vontade que não seja precedida por
algum sentimento ou por algum arrazoado que
a faz nascer. É verdade que a vontade tem tam-
bém o poder de excitar as nossas ideias; mas é
necessário que ela própria seja antes determina-
da por alguma causa.
A vontade não é nunca o primeiro princí-
pio das nossas acções, ela é o seu último móbil;
é o ponteiro que marca as horas num relógio e
que o leva a dar as pancadas sonoras. O que
esconde dos nossos sentidos o móbil das suas
vontades é a fuga precipitada das nossas ideias
ou a complicação dos sentimentos que nos agi-
tam. O motivo que nos faz agir muitas vezes já
desapareceu no instante em que agimos, e não
mais lhe encontramos o rastro. Ora a verdade
ora a opinião nos determinam, ora a paixão; e
todos os filósofos, de acordo nesse ponto, reme-
tem à experiência.
Mas, dizem os sábios, já que a reflexão é
tão capaz de nos determinar quanto os senti-
mentos, oponhamos então a razão às paixões
quando as paixões nos atacam. Eles não atinam
que não podemos nem mesmo ter a vontade de
chamar em nossa ajuda a razão quando a pai- Luc de Clapiers Vauvenargues, in 'Discurso Sobre a
xão nos aconselha e nos preocupa com o seu Liberdade'
26
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

A quele que, numa e noutra sorte, se


mostrou firme, constante e inflexível,
deve ser considerado raro e quase divino.
O fundamento desta estabilidade e desta
constância que procuramos na amizade é a con-
fiança: sem ela, nada é estável. Escolhemos, pois,
um amigo de costumes simples e fáceis, que pen-
se e sinta como nós; tudo isto conserva a fideli-
dade. Uma alma dissimulada e tortuosa não
pode ser fiel. Aquele que não tem o mesmo gos-
to, nem os mesmos sentimentos nossos, não
pode ser um amigo certo e constante.
Acrescentemos ainda que um amigo não
deve forjar nem ouvir com satisfação acusações
contra o seu amigo: tudo isso faz parte dessa
constância sobre a qual insisto há muito tempo.
Assim fica provado o princípio exposto ante-
riormente: de que a amizade não pode existir
senão entre as pessoas de bem.
Porque o homem de bem (poderemos tam-
bém chamá-lo sábio) sabe observar somente
estas duas regras na amizade: nada disfarçar ou
dissimular, porque é mais nobre odiar aberta-
mente do que ocultar seu pensamento sob um
semblante enganador; a segunda, repudiar as
acusações imputadas contra seu amigo, sem
ficar suspeitoso, desconfiado, e sempre pronto a
crer que o amigo faltou em alguma coisa.
Juntemos a tudo isto uma certa amenidade
de linguagem e de costumes: é o mais doce con-
dimento da amizade. Uma austeridade rígida,
uma contínua severidade pode ser de certo
modo digno; mas a amizade deve ser mais indul-
gente, mais franca e mais doce; é mais inclinada
para a cortesia e a afabilidade.

Cicero in Diálogo sobre a Amizade


27
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

D evemos tomar o cuidado de não


construir a felicidade das nossas
vidas sobre grandes alicerces através de gran-
demais. Resulta também disso que não estamos
em condições de ocupar um posto que foi final-
mente alcançado depois de longos anos de aspi-
des pretensões. Sobre tais fundamentos, a feli- ração e esforço; as coisas chegaram demasiado
cidade desmantela-se com maior facilidade, tarde para nós. Ou, contrariamente, fomos nós
visto que oferece mais oportunidades para aci- que chegamos demasiado tarde para as coisas;
dentes, que ocorrem o tempo todo. Nesse res- especialmente quando se trata de obras ou de
peito, a estrutura de nossa felicidade opõe-se produções, o gosto da época mudou; surgiu
àquelas que são tanto mais estáveis quanto uma nova geração sem qualquer interesse por
mais vastas forem suas bases. Assim, o caminho tais assuntos; outros tomaram atalhos e chega-
mais seguro para evitar grandes desgraças é ram antes de nós, e assim sucessivamente.
reduzir as nossas pretensões ao menor grau Horácio tinha todas essas coisas em mente
possível em proporção com os recursos de toda quando disse:
a espécie. quid aeternis minorem
Em geral, fazer grandes preparativos para Consiliis animun fatigas?
a vida, de qualquer maneira que seja, é uma das
[Por que fatigas teu espírito débil com
maiores e mais disseminadas loucuras. Tais
planos eternos? (Odes, II. XI.)]
preparativos pressupõem, em primeiro lugar,
uma vida longa, a plena e completa duração dos A causa desse frequente equívoco deve-se
anos designados ao homem, que poucas pes- à inevitável ilusão óptica dos olhos do espírito,
soas alcançam. Mesmo quando se vive uma em virtude da qual a vida, quando vista do iní-
existência tão longa, o tempo mostra-se dema- cio, parece infinita, mas, quando revista no fim
siado curto para os planos que foram concebi- da jornada, parece muito curta. Essa ilusão,
dos, visto que a sua execução sempre requer todavia, tem um lado bom, pois sem ela não
muito mais tempo do que se supunha. Ademais, produziríamos nada grande.
como tudo o que é humano, tais planos estão
sujeitos a tantos fracassos e tantos obstáculos
que muito raramente são realizados. Por fim,
mesmo quando se consegue realizá-los por
completo, observa-se que as modificações que o
tempo produz em nós não foram consideradas.
Não se refletiu que as nossas capacidades para
as realizações e para os prazeres não duram a
vida inteira. Resulta que frequentemente traba-
lhamos em função de coisas que, uma vez obti-
das, já não nos servem; e que os anos gastos nos
preparativos de uma obra nos subtraem insen-
sivelmente as forças necessárias para sua con-
clusão. Do mesmo modo, muitas vezes não
somos capazes de desfrutar da riqueza que
conquistamos ao custo de grandes esforços e
Arthur Schopenhauer in “Aforismos para a Sabedoria
riscos, e vemos que temos trabalhado para os da Vida”
28
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

E m todas as épocas, a imoralidade


encontrou na religião um apoio não
menor que a moralidade. Se as realizações da
transição inevitável é realizada através de
meias-medidas e insinceridades.
A civilização pouco tem a temer das pes-
religião com respeito à felicidade do homem, soas instruídas e dos que trabalham com o
susceptibilidade à cultura e controle moral não cérebro. Neles, a substituição dos motivos reli-
são melhores que isso, não pode deixar de surgir giosos para o comportamento civilizado por
a questão de saber se não estamos a sobrestimar outros motivos, seculares, se daria discreta-
a sua necessidade para a humanidade e se faze- mente; ademais, essas pessoas são em grande
mos bem em basearmos nela as nossas exigên- parte, elas próprias, veículos de civilização.
cias culturais. Mas a coisa já é outra com a grande massa dos
Consideremos a situação inequívoca do não instruídos e oprimidos, que possuem todos
presente. Escutamos a admissão de que a reli- os motivos para serem inimigos da civilização.
gião não mais possui sobre o povo a mesma
influência que costumava ter. (Estamos aqui
interessados na civilização europeia cristã.) E
isso não aconteceu por que as suas promessas
tenham diminuído, mas porque as pessoas as
acham menos críveis. Admitamos que o motivo
– embora talvez não o único – para essa mudan-
ça seja o aumento do espírito científico nos
estratos mais elevados da sociedade humana. A
crítica desbastou o valor probatório dos docu-
mentos religiosos, a ciência natural demonstrou
os erros neles existentes, e a pesquisa compara-
tiva ficou impressionada pela semelhança fatal
existente entre as ideias religiosas que reveren-
ciamos e os produtos mentais de povos e épocas
primitivos.
O espírito científico provoca uma atitude
específica para com os assuntos do mundo;
perante os assuntos religiosos, ele detém-se um
instante, hesita, e, finalmente, cruza-lhes tam-
bém o limiar. Nesse processo, não há interrup-
ção; quanto maior é o número de homens a
quem os tesouros do conhecimento se tornam
acessíveis, mais difundido é o afastamento da
crença religiosa, a princípio somente dos seus
ornamentos obsoletos e objetáveis, mas, depois,
também dos seus postulados fundamentais. Os
americanos que instituíram o ―julgamento do
macaco‖ em Dayton mostraram-se, somente
eles, coerentes. Em todas as outras partes a Sigmund Freud in “O Futuro de uma Ilusão”
29
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

P rimeiro de tudo considera ser eterno


e feliz o que é divino, como sugere a
noção de divindade que nos é inata. Não lha
existe e estes já não são. A maioria dos homens
às vezes teme a morte e outras vezes a deseja
para dar fim aos males da vida. O sábio, ao
atribuas nada que seja diverso de sua contrário, nem deseja nem teme a morte, já que
imortalidade e nem contrário a tudo o que é a vida não lhe é um fardo, como não crê ser um
feliz. Vê-la sempre conjugada à felicidade. Os mal o não existir. Assim como não é
deuses existem, é evidente a todos, mas eles abundância de alimentos e sim a sua qualidade
não são como a gente comum acredita, pois o que nos apraz, tampouco é a duração da vida
estas são sempre levadas a falsear a noção inata que nos agrada e sim que seja bem vivida.
que temos deles. Porque não é ímpio quem Aqueles que aconselham aos jovens viver bem e
refuta a religião popular, mas sim quem atribui aos velhos a morrer bem são tolos, não somente
aos deuses os falsos juízos que o povo lhes porque a vida tem o seu encanto, inclusive para
atribui. Tal juízo não se baseia nas noções os velhos, mas também porque cuidar de viver
ancestrais, inatas, mas em opiniões falsas. bem e cuidar de morrer bem é a mesma coisa. E
Tal maneira de pensar sobre os deuses muito mais tolo é ainda aquele que pretende
pode acarretar tanto grande sofrimento como o que o melhor é não nascer, ―mas, uma vez
bem mais esplêndido. As virtudes divinas só nascido, o melhor é cruzar o mais cedo possível
aceitam a convivência com virtudes os portões do Hades‖. Porque se ele fala com
semelhantes e consideram estranho tudo o que convicção, por que não se vai desta vida? Ser-
delas seja diferente. lhe-ia fácil, se ele estivesse decidido a fazer
isso. Mas se ele o diz por brincadeira, mostra-
Em segundo lugar, habitua-te a pensar que
se frívolo em uma questão que não o é. Assim,
a morte para nós não é nada, pois o bem e o mal
portanto, convém recordar que o futuro nem
não existem senão como sensações, e a morte é a
está inteiramente em nossas mãos, nem
privação da sensação. Um conhecimento exato
completamente fora de nosso alcance, de sorte
desse fato, que a morte nada é para nós,
que não devemos nem aguardá-lo como se
proporciona o gozo da vida finita, evitando a
tivesse de chegar seguramente nem desesperar,
idéia de uma duração eterna e livrando-nos do
como se não tivesse de chegar com certeza.
anseio de imortalidade. Pois não existe nada a
temer na vida para quem está convencido de que
não há nada a temer em deixar a vida. É tolo,
portanto, quem diz ter medo da morte, não
porque é temível a sua chegada, mas porque é
temível o espera-la. Porque se uma coisa não nos
causa dano algum com sua presença, é tolo
entristecer-se ao espera-la.
Assim, o mais terrível de todos os males, a
morte, não é nada para nós porque, enquanto
vivemos, a morte não está presente, e quando a
morte está presente nós é que não estamos.
Portanto, a morte não existe nem para os vivos
nem para os mortos, porque para aqueles não Epicuro in carta ao discípulo Meneceu (“Carta
sobre a felicidade”)
30
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

A Virtude Superior não é virtude


Assim, possui a Virtude
A Virtude Inferior não perde a virtude
Assim, não possui a Virtude

A Virtude Superior é não-acção


Pois não utiliza acção
A Virtude Inferior é acção
Que faz uso da acção

A Bondade Superior é acção


Porém não utiliza a acção
A Justiça Superior é acção
Que faz uso da acção

A Suprema Polidez é acção que,


se não obtém correspondência,
repele usando o braço como reacção

Por isso, à perda do Caminho segue-se então a Virtude


À perda da Virtude segue-se então a Bondade
À perda da Bondade segue-se então a Justiça
À perda da Justiça segue-se então a Polidez
Assim a Polidez é o empobrecimento da fidelidade e da confiança
É o princípio da confusão

Aquele de conhecimentos avançados


Como a flor do Caminho
É o princípio da estupidez
Por isso, o Grande Homem
Coloca-se no consistente e não se coloca no rarefeito
Habita no Fruto e não habita na Flor
Por isso, afasta esta e persiste naquele

Lao Tsé, in Tao Te Ching (capítulo 38)


31
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

D olmancé ‑ Só os imbecis podem crer


nessas balelas. Deus é ora criado
pelo medo, ora pela fraqueza. Fantasma
explicar o que não compreendo, uma coisa que
compreendo ainda menos? Por meio dos
dogmas da religião cristã, como posso
abominável, inútil ao sistema terrestre. Só examinar, como posso representar vosso
poderia ser nocivo à vida: se a sua vontade fosse horrível Deus? Vejamos como essa religião
justa, nunca se poderia estar de acordo com as nô‑lo descreve...
injustiças essenciais às leis da natureza. Deus O Deus desse culto infame deve ser
deveria desejar somente o bem e a natureza só o inconsequente e bárbaro: cria hoje um mundo
deseja apenas como compensação do mal que de cuja construção se arrepende amanhã. É tão
está ao serviço das suas leis. Deus deveria agir fraco que jamais consegue imprimir no homem
continuamente e a natureza, cuja ação o cunho que deseja. O homem, dele emanado,
constante é lei fundamental, não poderia domina‑o, pode ofendê‑lo e por isso merecer
concorrer com ele em perpétua oposição. Dirão eternos suplícios. Que Deus fraco! Como pôde
talvez: Deus e a natureza são a mesmo coisa. criar tudo quanto vemos, se não conseguiu criar
Que absurdo! Como pode a coisa criada ser o homem à sua imagem! Dirão talvez: se ele
igual à criadora? Como pode um relógio ser tivesse criado o homem perfeito, o homem não
igual ao relojoeiro? Dirão ainda: a natureza não teria mérito. Que chatice! Que necessidade tem
é nada e Deus é tudo. Outro absurdo: como o homem de merecer alguma coisa de seu Deus?
negar que há necessariamente duas coisas no Se ele o tivesse criado perfeito, o homem nunca
universo, o agente criador e o indivíduo criado? poderia praticar o mal e só então essa obra teria
Ora, qual o agente criador? Eis a única sido digna dum Deus. Deixar ao homem a
dificuldade a resolver, a única pergunta à qual é escolha é tentá‑lo. Deus, na sua infinita
necessário responder. paciência, sabia o resultado disso; em
Se a matéria age, move‑se por conseqüência, foi de propósito que ele perdeu a
combinações que desconhecemos, se o criatura por ele mesmo formada. Que Deus
movimento é inerente à natureza, se só ela horrível esse, que monstro! Que celerado, digno
pode, enfim, em razão de sua energia, criar, do nosso ódio, da nossa implacável vingança! E
produzir, conservar, manter, mover nas não contente com o que fez, ainda para
planícies imensas do espaço todos os planetas convertê‑lo, condena‑o ao batismo,
cuja órbita uniforme nos surpreende, nos enche maldizendo‑o, queimando‑o no fogo eterno…
de respeito e admiração. Qual a necessidade de
procurar um agente estranho a tudo isso, se
essa faculdade ativa somente se encontra na
própria natureza que não é outra coisa senão a
matéria que age? A quimera desta virá
esclarecer o mistério? Desafio que alguém me
possa provar. Supondo que eu me engane sobre
as faculdades internas da matéria, pelo menos
só terei uma dificuldade. Que farei eu com o
Deus que me oferecem? É apenas uma
dificuldade a mais.
Donatien Alphonse François de Sade , Marquês in
Como querem que eu admita, para A Filosofia na Alcova
32
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

A esfera da consciência reduz-se na


acção; por isso ninguém que aja
pode aspirar ao universal, porque agir é agarrar
maioria consegue; a infelicidade, no entanto, é
muito mais insidiosa. Já a provásteis? Jamais
vos sentires saciados, procurá-la-eis com avi-
-se às propriedades do ser em detrimento do dez e de preferência nos lugares onde ela não se
ser, a uma forma de realidade em prejuízo da encontra, mas projectá-la-eis neles, porque,
realidade. O grau da nossa emancipação mede- sem ela, tudo vos pareceria inútil e baço. Onde
se pela quantidade das iniciativas de que nos quer que a infelicidade se encontre, expulsa o
libertámos, bem como pela nossa capacidade de mistério e torna-o luminoso. Sabor e chave das
converter em não-objecto todo o objecto. Mas coisas, acidente e obsessão, capricho e necessi-
nada significa falar de emancipação a propósito dade, far-vos-á amar a aparência no que ela tem
de uma humanidade apressada que se esqueceu de mais poderoso, de mais duradouro e de mais
de que não é possível reconquistar a vida nem verdadeiro, e amarrar-vos-á para sempre por-
gozá-la sem primeiro a ter abolido. que, «intensa» por natureza, é, como toda a
Respiramos demasiado depressa para ser- «intensidade», servidão, sujeição. A alma indife-
mos capazes de captar as coisas em si próprias rente e nula, a alma desentravada - como chegar
ou de denunciar a sua fragilidade. O nosso ofe- a ela? E como conquistar a ausência, a liberdade
gar postula-as e deforma-as, cria-as e desfigura- da ausência? Tal liberdade jamais figurará entre
as, e amarra-nos a elas. Agito-me e portanto os nossos costumes, tal como neles não figurará
emito um mundo tão suspeito como a minha o «sonho do espírito infinito».
especulação, que o justifica, adopto o movimen-
to que me transforma em gerador de ser, em
artesão de ficções, ao mesmo tempo que a
minha veia cosmogónica me faz esquecer que,
arrastado pelo turbilhão dos actos, não passo
de um acólito do tempo, de um agente de uni-
versos caducos.
Empanturrados de sensações e do seu
corolário, o devir, somos seres não libertos, por
inclinação e por princípio, condenados de elei-
ção, presas da febre do visível, pesquisadores
desses enigmas de superfície que estão à altura
do nosso desânimo e da nossa trepidação.
Se queremos recuperar a nossa liberdade,
devemos pousar o fardo da sensação, deixar de
reagir ao mundo através dos sentidos, romper
os nossos laços. Ora, toda a sensação é um laço,
tanto o prazer como a dor, tanto a alegria como
a tristeza. Só se liberta o espírito que, puro de
toda a convivência com seres ou com objectos,
se aplica à sua vacuidade.
Resistir à sua felicidade é coisa que a Emil Cioran, in 'Pensar Contra Si Próprio'

33
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

Vós que viveis tranquilos


Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece a paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelo e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa, andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entrave,
Que os vossos filhos vos virem a cara.

Primo Levi, in “Se isto é um homem”

34
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

O imperador - assim consta - enviou-


te, a ti, a ti que estás só, tu, o súbdi-
to lastimável, a minúscula sombra refugiada na
mais remota distância diante do sol imperial,
exactamente a ti o imperador enviou do leito de
morte uma mensagem. Fez ajoelhar o mensagei-
ro ao pé da cama e segredou-lhe a mensagem ao
ouvido; estava nela tão empenhado que o man-
dou ainda repeti-la ao seu próprio ouvido. Com
um aceno de cabeça confirmou a exactidão do
que tinha sido dito. E perante todos os que
assistiam à sua morte - tinham sido derrubadas
todas as paredes que impedem a vista e nas
amplas escadarias que se lançam no alto os gran-
des do reino formavam um círculo - perante
todos eles o imperador despachou o mensageiro.
E este pôs-se imediatamente em marcha; é um
homem robusto, infatigável; estendendo ora um
ora outro braço, abre caminho na multidão;
quando encontra resistência aponta para o peito
onde está o símbolo do Sol; avança facilmente
como nenhum outro. Mas a multidão é tão gran-
de, as suas casas não têm fim. Fosse um campo
livre que se abrisse, como ele voaria! - e certa-
mente que ouvirias logo a esplêndida batida dos
seus punhos na porta. Ao invés disso, porém -
como são vãos os seus esforços! Continua sem-
pre a forçar a passagem pelos aposentos do palá-
cio mais interior; nunca irá ultrapassá-los; e se o
conseguisse, nada estaria ganho: teria de percor-
rer os pátios de ponta a ponta e depois dos
pátios o segundo palácio que os circunda; e
outra vez escadas e pátios; e novamente um
palácio; e assim por diante, durante milénios; e
se afinal ele se precipitasse do portão mais exte-
rior - mas isso nunca pode acontecer, nunca - só
então teria diante de si a cidade-sede, o centro
do mundo, repleto de miseráveis aos montes.
Aqui ninguém penetra; muito menos com a
mensagem de um morto. - Tu, no entanto, estás
sentado junto à janela e sonhas com ela quando
a noite chega. Franz Kafka in A Grande Muralha da China
35
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

P oderá parecer estranho a alguém que


não tenha considerado bem estas
coisas que a natureza tenha assim dissociado os
for, é fácil conceber qual era o género de vida
quando não havia poder comum a recear, atra-
vés do género de vida em que caem os homens,
homens, tomando-os capazes de se atacarem e que anteriormente viveram sob um governo
destruírem entre si. E poderá portanto talvez pacífico, quando entram em guerra civil.
desejar, não confiando nesta inferência feita a Mas mesmo que jamais tivesse havido um
partir das paixões, que a mesma seja confirma- tempo em que os indivíduos isolados se encon-
da pela experiência. Que seja portanto ele a trassem numa condição de guerra de todos con-
considerar-se a si mesmo — ele que, quando tra todos, de qualquer modo em todos os tem-
empreende uma viagem, se arma e procura ir pos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade
bem acompanhado; que, quando vai dormir, soberana, por causa da sua independência,
fecha as suas portas; que, mesmo quando está vivem em constante rivalidade, e na situação e
em casa, tranca os seus cofres; e isto mesmo atitude dos gladiadores, com as armas assesta-
sabendo que há leis e servidores públicos arma- das, cada um de olhos fixos no outro; isto é, os
dos, prontos a vingar qualquer injúria que lhe seus fortes, guarnições e canhões guardando as
possa ser feita. Que opinião tem ele dos seus fronteiras dos seus reinos, e constantemente
compatriotas, ao viajar armado; dos seus conci- com espiões no território dos seus vizinhos, o
dadãos, ao fechar as suas portas; e dos seus que constitui uma atitude de guerra. Mas como
filhos e criados, quando tranca os seus cofres? através disso protegem a indústria dos seus
Não significa isso acusar tanto a humanidade súbditos, daí não vem como consequência
com os seus actos como eu o faço com as aquela miséria que acompanha a liberdade dos
minhas palavras? Mas nenhum de nós acusa indivíduos isolados.
com isso a natureza humana. Os desejos e
outras paixões do homem não são em si um
pecado. Nem tampouco o são as acções que
derivam dessas paixões, até ao momento em
que se tome conhecimento de uma lei que as
proíba; o que será impossível até ao momento
em que sejam feitas as leis; e nenhuma lei pode
ser feita antes de se ter concordado quem a
deverá fazer.
Poderá porventura pensar-se que nunca
existiu tal tempo, nem uma condição de guerra
como esta, e acredito que jamais tenha sido
geralmente assim, no mundo inteiro; mas há
muitos lugares onde actualmente se vive assim.
Porque os povos selvagens de muitos lugares da
América, com excepção do governo de peque-
nas famílias, cuja concórdia depende da concu-
piscência natural, não têm qualquer espécie de
governo, e vivem nos nossos dias daquela
maneira selvagem que acima referi. Seja como Thomas Hobbes in O Leviatã
36
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

P ara supor quão egoísta possa ser o


pior dos homens, há evidentemente
alguns princípios na sua natureza, que lhe inte-
mamos alguma ideia acerca das suas sensações,
e até sentimos alguma coisa que, embora em
menor grau, nunca será no seu conjunto como
ressam relativamente à fortuna dos outros e as dele. As suas agonias, quando as imaginamos
que tornam a sua felicidade necessária para ele, nossas, quando as adoptamos e as fazemos nos-
embora ele nada daí retire a não ser o prazer de sas, começam finalmente a afectar-nos e então
a ver. Deste tipo é a piedade ou compaixão, a estremecemos só de pensar no que estará a sen-
emoção que sentimos por causa da miséria dos tir. Sentir dor ou qualquer tipo de padecimento
outros, quando ou a vemos ou a concebemos de provoca em nós a mais extensa piedade, da
uma forma bastante vívida. Que amiúde senti- mesma forma que conceber ou imaginar que
mos piedade da dor dos outros, é matéria de estamos a sofrer provoca em nós a mesma emo-
facto tão óbvia que não requer qualquer instân- ção num certo grau, em razão directa da vivaci-
cia de prova; pois esse sentimento, como todas dade ou do embotamento da recordação.
as outras paixões originais da natureza huma-
na, não está de forma alguma confinada aos vir-
tuosos, embora eles a possam sentir com uma
sensibilidade mais refinada. O maior dos rufias,
o mais duro violador das leis da sociedade, não
está dela desprovido.
Como não temos experiência imediata
sobre o que os outros homens sentem, não
podemos formar ideia acerca do modo como
elas são afectadas, a não ser supondo aquilo que
sentiríamos nessa situação particular. Ainda
que o nosso irmão esteja a ser torturado, e des-
de que nós próprios estejamos à vontade, os
nossos sentidos nunca nos informarão sobre o
que ele sente. Os nossos sentidos nunca pude-
ram e nunca poderão arrastar-nos para fora de
nós próprios, e só através da imaginação pode-
mos formar qualquer ideia sobre quais são as
suas sensações. Não pode essa faculdade ajudar
-nos de outra forma que não seja representar
para nós o que seriam as nossas sensações se
estivéssemos nessa situação. São apenas as
impressões dos nossos próprios sentidos, e não
as dos dele, que a nossa imaginação copia. Atra-
vés da imaginação colocamo-nos a nós próprios
nessa situação, vendo-nos a nós próprios a
sofrer esses mesmos tormentos, como que
entrando no seu corpo e tornando-nos, em cer-
ta medida, a mesma pessoa que ele, e então for- Adam Smith in Teoria dos Sentimentos Morais

37
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

S e Deus não existe, o que será da ética?


Desde o século XVII que esta tem sido
uma das questões centrais da filosofia. Na idade
promessas, que respeitemos a vida e a proprieda-
de dos outros, e assim por diante:
- Sem o pressuposto de que as pessoas falam
moderna, houve um relativo consenso de que a a verdade, não haveria razão para as pessoas
ética deve ser entendida como fenómeno huma- prestarem atenção ao que os outros dizem. A
no — produto das necessidades, interesses e comunicação seria impossível. E sem comunica-
desejos do homem — e nada mais. ção entre os seus membros, a sociedade entraria
Thomas Hobbes (1588–1679) foi o primeiro em colapso.
pensador moderno importante a fornecer uma - Sem a exigência de as pessoas cumprirem
fundamentação secular e naturalista para a ética. as suas promessas, não poderia haver divisão do
Hobbes, que ganhava a vida como tutor e secre- trabalho — os trabalhadores não acreditariam
tário de famílias aristocráticas, era monárquico e que seriam pagos, os distribuidores não pode-
materialista, o que não raras vezes o colocou em riam confiar nos acordos com os fornecedores, e
sarilhos. assim por diante — e a economia entraria em
Hobbes pressupõe que "bom" e "mau" são colapso. Não haveria comércio, construção civil,
nomes que damos às coisas de que gostamos ou agricultura, ou medicina.
de que não gostamos. Assim, quando tu e eu gos- - Sem a protecção contra assaltos, homicí-
tamos de coisas diferentes, é por considerarmos dios e roubos, ninguém se sentiria seguro. Todos
boas ou más coisas diferentes. Contudo, Hobbes estariam em alerta constante relativamente aos
disse que este é um traço fundamental da nossa outros, e a cooperação social seria impossível.
psicologia. Somos basicamente criaturas egoístas
Assim, para obter os benefícios da vida
que querem viver tão bem quanto venha a ser
social, temos de celebrar um contrato uns com
possível. Isto é a chave para entender a ética. A
os outros, em que cada um de nós concorda em
ética surge quando as pessoas compreendem o
obedecer às regras que este estabelece, desde que
que hão-de fazer para viver bem.
os outros também o façam. Este "contrato social"
Hobbes refere que cada um de nós vive inco- é a base da moralidade. Logo, a moralidade pode
mensuravelmente melhor se viver num sistema ser entendida como o conjunto de regras que
de cooperação social em vez de viver por conta pessoas racionais consentem em obedecer, para
própria. Os benefícios da vida social vão além da seu benefício mútuo, desde que as outras pes-
camaradagem. A cooperação social torna possí- soas também o façam.
vel a existência de escolas, hospitais e auto-
estradas; casas com electricidade e aquecimento
central; aviões e telefones, jornais e livros; filmes,
ópera e bingo; ciência e agricultura. Sem a coo-
peração social perderíamos tudo isso. Assim, é
vantajoso para cada um nós fazer o que é neces-
sário para estabelecer e manter a sociedade coo-
perativa.
Mas parece que uma sociedade mutuamente
cooperativa só pode existir se adoptarmos certas
regras de comportamento — regras que exigem
que se diga a verdade, que cumpramos as nossas James Rachels in Problems from Philosophy
(Tradução e adaptação de Vítor João Oliveira )

38
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

E spantosamente, alguns cientistas são


crentes, afirmando frequentemente que o
melhor argumento que conseguem apresentar
também nos bairros pobres de Londres e Nova
Iorque, sempre convertendo os ignorantes e
analfabetos que não tinham ouvido falar da ciên-
para terem crenças religiosas é o chamado cia — salvaram as igrejas e estabeleceram a base
"argumento da melhor explicação", o qual, neste de muitas denominações fundamentalistas pre-
caso, diz que, dado o nosso estado de conheci- valecentes no mundo actual entre os povos
mento ser inconclusivo, a melhor descrição que outrora colonizados pelas potências europeias.
conseguimos dar do mundo é a de que existe um Os defensores da religião falam muito em
Deus. beleza e bondade, carácter pessoal e experiência
Este argumento é reconhecidamente fraco. Há subjectiva. Na verdade, são estas as coisas mais
duas reflexões que nos dizem porquê. Uma delas importantes. Mas esses defensores cometem o
é que está muito longe de ser claro que o teísmo erro habitual — e muitas vezes fazem-no delibe-
constitua a melhor explicação para a existência e radamente — de aliar estes aspectos elevados e
natureza do mundo, especialmente porque, ao bons da experiência humana a tudo o que seja
referir a existência e actividade de uma divinda- sobrenatural. O nosso sentido de beleza, a
de para responder a questões acerca da razão por decência, a nossa capacidade de amar, a nossa
que existe um mundo e da forma como ele se ori- criatividade — todas as melhores coisas que pos-
ginou, se limita a deslocar o problema, fazendo-o suímos — pertencem-nos, pertencem à expe-
retroceder um passo — até às questões acerca da riência humana no mundo real. Não precisam,
razão por que existe uma divindade e da forma nem colhem benefício, de uma qualquer alegada
como ela se originou. Em segundo lugar, há o ligação com forças sobrenaturais de um ou outro
simples facto de, mesmo que — improvavelmen- tipo. São nossas, tal como o mal, a estupidez, a
te — o apelo à existência de uma divindade ganância e a crueldade a que se opõem. Na ver-
constituísse a melhor explicação que a inteligên- dade, por que não dizem os defensores da reli-
cia humana conseguisse inventar, o facto é que gião que estas coisas más vêm dos deuses e as
aquilo que parece ser a melhor explicação, em boas vêm do Homem, ao invés — como sempre
relação a qualquer assunto, pode estar errado. afirmam — do oposto?
Estes argumentos são intrinsecamente fracos —
equivalem a dizer: "Isto é o melhor que podemos
fazer para explicar tal coisa, no nosso actual
estado de ignorância". E na ignorância é que bate
o ponto: os deuses habitam invariavelmente o
reino sombrio da ignorância, para lá da fronteira
do conhecimento, uma fronteira que recua à nos-
sa frente — levando consigo a sua bagagem
sobrenatural — à medida que a investigação
avança.
Poder-se-ia pensar que a ciência tinha posto
em fuga as antigas superstições. No século XIX
travou-se uma batalha encarniçada acerca desta
questão, a respeito do cristianismo: a sua história
é complicada, mas as missões religiosas — não
apenas em África e no Extremo Oriente, mas A. C. Grayling in O Significado das Coisas
(Tradução de Fátima St. Aubyn )

39
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

A cada homem deu Deus um anjo da


guarda, e não mais que um homem a
cada anjo: e se um anjo que move e governa com
de todos os elementos, em nenhum lugar pára,
com nenhuma fortuna se contenta, nenhuma
ambição nem apetite o farta: tudo perturba,
tanto concerto e ordem todo o Céu das estrelas, tudo perverte, tudo excede, tudo confunde e,
não basta para guardar a um homem de si mes- como é maior que o mundo, não cabe nele.
mo, e governar ordenada e concertadamente a Grande exemplo no mesmo mundo, tão cheio
um homem, entre os outros, como bastará um como hoje está, mas vazio e despovoado com os
só homem para conter dentro das leis e manter filhos de Adão e Noé. A Adão deu-lhe Deus o
em justiça a tantos homens? Não sabe o que são império sobre todo o mundo, sobre os peixes,
homens quem isto não considera e penetra; sobre as aves, sobre os animais da terra, e não
penetrou-o, porém, alta e profundamente S. pôde governar em paz dois homens, e esses
Roque na verdura dos anos, com o siso e madu- irmãos, sem que matasse ao outro. Noé gover-
reza que não vemos em tantas idades decrépi- nou todos os animais e conservou-se pacifica-
tas. mente dentro em uma arca, e fora dela não pôde
Os filósofos antigos chamaram ao homem governar três homens, sem que um o não des-
mundo pequeno; porém, S. Gregório Nazianze- compusesse e afrontasse, sendo todos três seus
no, melhor filósofo que todos eles, e por exce- filhos. Vede se é mais pesada servidão e mais
lência o Teólogo, disse que o mundo compara- dificultosa a de governar, e mandar homens que
do com o homem é o pequeno, e o homem, em a de servir? Quem serve, como não pode servir
comparação do mundo, o mundo grande: Mun- mais que a um, sujeita – se a uma só vontade;
dum in parvo, magnum. – Não é o homem um mas quem manda, como há de governar a todos,
mundo pequeno que está dentro do mundo há de sujeitara si as vontades de todos, e essas
grande, mas é um mundo, e são muitos mundos não de filhos, em que é natural a obediência e o
grandes, que estão dentro do pequeno. Baste amor, nem de irmãos entre si, em que as quali-
por prova o coração humano, que, sendo uma dades são iguais e as naturezas semelhantes,
pequena parte do homem, excede na capacida- mas de tantas e tão diversas condições e incli-
de a toda a grandeza e redondeza do mundo. nações, como são neles os rostos e os intentos.
Pois, se nenhum homem pode ser capaz de
governar toda esta máquina do mundo, que
dificuldade será haver de governar tantos
homens, cada um maior que o mesmo mundo, e
mais dificultoso de temperar que todo ele? A
demonstração é manifesta. Porque nesta
máquina do mundo, entrando também nela o
céu, as estrelas têm seu curso ordenado, que
não pervertem jamais; o soltem seus limites e
trópicos, fora dos quais não passa; o mar, com
ser um monstro indômito, em chegando às
areias pára; as árvores onde as põem, não se
mudam; os peixes contentam-se com o mar, as
aves com o ar, os outros animais com a terra.
Pelo contrário, o homem, monstro ou quimera Padre António Vieira, in Sermões (Sermão de S. Roque)
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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

O s sentimentos morais não são inatos,


mas adquiridos, mas tal não signifi-
ca que não são naturais, pois é natural para o
homem, falar, raciocinar, construir cidades, cul-
tivar a terra, apesar destas competências serem
faculdades que são adquiridas. Os sentimentos
morais, na realidade, não fazem parte da nossa
natureza, se entendermos por tal que deviam
estar presentes em todos nós, num grau apreciá-
vel, realidade que indubitavelmente é um facto
muito lamentável, reconhecido até pelos que
mais veementemente acreditam na origem trans-
cendente destes sentimentos. No entanto, tal
como as outras faculdades referidas, a faculdade
moral, não fazendo embora parte da nossa natu-
reza, vai-se desenvolvendo naturalmente; tal
como as outras, pode nascer espontaneamente e,
apesar de muito frágil, no início, é capaz de atin-
gir, por influência da cultura, um grau elevado
de desenvolvimento. Infelizmente, também, mas
recorrendo, tanto quanto é necessário, às san-
ções externas, e aproveitando a influência das
primeiras impressões, ela pode ser desenvolvida
em qualquer direcção, ou quase, a ponto de não
haver ideia, por mais absurda e perigosa que
possa ser, que não se consiga impor ao espírito
humano, conferindo-lhe, pelo jogo dessas
influências, toda a autoridade da consciência.

John Stuart Mill, in 'Utilitarismo'


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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

O existencialismo ateu, que eu repre-


sento, é mais coerente. Declara ele
que, se Deus não existe, há pelo menos um ser
tudo isto não é mais do que a manifestação
duma escolha mais original, mais espontânea do
que o que se chama vontade. Mas se verdadeira-
no qual a existência precede a essência, um ser mente a existência precede a essência, o homem
que existe antes de poder ser definido por qual- é responsável por aquilo que é. Assim, o primei-
quer conceito, e que este ser definido por qual- ro esforço do existencialismo é o de pôr todo o
quer conceito, e que este ser é o homem ou, homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir
como diz Heidegger, a realidade humana. Que a total responsabilidade da sua existência. E,
significará aqui o dizer-se que a existência pre- quando dizemos que o homem é responsável
cede a essência? Significa que o homem primei- por si próprio, não queremos dizer que o
ramente existe, se descobre, surge no mundo; e homem é responsável pela sua restrita indivi-
que só depois se define. O homem, tal como o dualidade, mas que é responsável por todos os
concebe o existencialista, se não é definível, é homens.
porque primeiramente não é nada. Só depois
será alguma coisa e tal como a si próprio se
fizer. Assim, não há natureza humana, visto que
não há Deus para a conceber. O homem é, não
apenas como ele se concebe, mas como ele quer
que seja, como ele se concebe depois da existên-
cia, como ele se deseja após este impulso para a
existência; o homem não é mais que o que ele
faz.
Tal é o primeiro princípio do existencia-
lismo. É também a isso que se chama a subjecti-
vidade, e o que nos censuram sob este mesmo
nome. Mas que queremos dizer nós com isso,
senão que o homem tem uma dignidade maior
que uma pedra ou uma mesa? Porque o que nós
queremos dizer é que o homem primeiro existe,
ou seja, que o homem antes de mais nada é o
que se lança para um futuro, e o que é conscien-
te de se projectar no futuro. O homem é antes
de mais nada um projecto que se vive subjecti-
vamente, em vez de ser um creme, qualquer coi-
sa podre ou uma couve-flor; nada existe ante-
riormente a este projecto; nada há no céu inteli-
gível, e o homem será antes de mais o que tiver
projectado ser. Porque o que entendemos vul-
garmente por querer, é uma decisão consciente,
e que, para a maior parte de nós, é posterior
àquilo que ele próprio se fez. Posso querer ade-
rir a um partido, escrever um livro, casar-me; Jean Paul Sartre in O Existencialismo é um Humanismo
42
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

O lá, bom dia! disse a raposa.


- Olá, bom dia! - Respondeu delicada-
mente o principezinho...
começo a ser feliz...
Foi assim que o principezinho cativou a
raposa. E quando chegou a hora da despedida:
-Anda brincar comigo - pediu o principezi- - Ai! - exclamou a raposa - Ai que me vou pôr
nho. Estou tão triste... a chorar...
- Não posso ir brincar contigo - disse a rapo- ... Então não ganhaste nada com isso!
sa. - Ainda ninguém me cativou... - Ai isso é que ganhei! - disse a raposa. - Por
Andas á procura de galinhas? (diz a raposa) causa da cor do trigo...
Não... Ando à procura de amigos. O que é Depois acrescentou:
que "cativar" quer dizer? - Anda vai ver outra vez as rosas. Vais perce-
... Quer dizer que se está ligado a alguém, que ber que a tua é única no mundo.
se criaram laços com alguém. O principezinho lá foi... - vocês não são nada
Laços? disse-lhes ele. - Não há ninguém preso a vocês... -
Sim, laços - disse a raposa. - ... não se pode morrer por vocês...
Eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens ... A minha rosa sozinha. vale mais do que
necessidade de mim. Mas, se tu me cativas, nós vocês todas juntar, porque foi a ela que eu reguei,
teremos necessidade um do outro. Serás para que eu abriguei... Porque foi a ela que eu ouvi
mim único no mundo e eu serei para ti, única no queixar-se, gabar-se e até, ás vezes calar-se. Por-
mundo... que ela é a minha rosa.
(raposa) Tenho uma vida terrivelmente E então voltou para ao pé da raposa e disse:
monótona... - Adeus...
Mas se tu me cativares, a minha vida fica - Adeus - disse a raposa. - vou-te contar o tal
cheia se Sol. segredo. É muito simples:
Estás a ver, ali adiante, aqueles campos de Só se vê bem com o coração. O essencial é
trigo? ... não me fazem lembrar de nada. É uma invisível para os olhos...
triste coisa! Mas os teus cabelos são da cor do Foi o tempo que tu perdes-te com a tua rosa
ouro. Então quando eu estiver cativada por ti, vai que tornou a tua rosa tão importante.
ser maravilhoso! Como o trigo é dourado, há-de - Os homens já se esqueceram desta verdade
fazer-me lembrar de ti... - disse a raposa. Mas tu não te deves esquecer
- Só conhecemos as coisas que cativamos - dela.
disse a raposa. - Os homens, agora já não tem Ficas responsável para todo o sempre por
tempo para conhecer nada. Compram as coisas aquilo que está preso a ti. Tu és responsável pela
feitas nos vendedores. Mas como não há vende- tua rosa…
dores de amigos, os homens já não tem amigos. Se
queres um amigo, cativa-me!
E o que é preciso fazer? - Perguntou o princi-
pezinho.
- É preciso ter muita paciência. Primeiro,
sentas-te um bocadinho afastado de mim, assim
em cima da relva. Eu olho para ti pelo canto do
olho e tu não dizes nada . A linguagem é uma fon-
te de mal-entendidos. Mas todos os dias te podes
sentar mais perto...
Se vieres sempre às quatro horas, às três já eu Antoine de Saint-Exupéry in “O Principezinho”
43
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

O Papalagui (…) acima de tudo gosta


de uma coisa que não se pode agar-
rar e que no entanto existe: o tempo. Leva-o
em pedaços. Nunca ele nos deixou desespera-
dos ou acabrunhados. Se algum de nós há aí a
quem falte tempo, que diga! Todos nós o pos-
muito a sério e conta toda a espécie de tolices suímos em quantidade, não temos razões de
acerca dele. Embora não possa haver mais tem- queixa. Não precisamos de mais tempo do que
po do que o que medeia do nascimento ao pôr- o que temos, temos sempre tempo suficiente.
do-sol, isso para o Papalagui nunca é bastante Sabemos que atingiremos o nosso alvo a tempo,
(…) e que muito embora ignoremos quantas luas se
passaram, o Grande Espírito nos chamará
Ao ouvir o barulho da máquina do tempo,
quando lhe aprouver. Devemos curar o Papala-
queixa-se o Papalagui assim: ―Que pesado far-
gui da sua loucura e desvario, para que ele volte
do! mais uma hora passou!‖ E, ao dizê-lo, mos-
a ter noção do verdadeiro tempo que tem perdi-
tra geralmente um ar triste, como alguém con-
do. Devemos destruir as suas pequenas máqui-
denado a uma grande tragédia. No entanto logo
nas do tempo e levá-lo a confessar que há muito
a seguir principia uma nova hora!
mais tempo do nascer ao pôr-do-sol do que ao
Como nunca fui capaz de entender isto, homem lhe é dado a gastar
julgo que se trata de uma doença grave. «O
tempo escapa-se-me por entre os dedos!», «O
tempo corre mais veloz do que um cavalo!», «Dá
-me um pouco mais de tempo» - tais são os
queixumes do homem branco.
(…)
A meu ver, é precisamente por o Papala-
gui tentar reter o tempo com as mãos, que ele
se lhe escapa por entre os dedos, como uma ser-
pente por mão molhada. O Papalagui nunca
deixa que ele venha ao seu encontro. Corre
sempre atrás dele de braços estendidos, não lhe
concede o repouso necessário, não o deixa apa-
nhar um pouco de sol. Tem que ter sempre o
tempo ao pé de si, para lhe cantar ou contar
qualquer coisa. Mas o tempo é calma, é paz e
sossego, gosta de nos ver descansar, estendidos
na nossa esteira. O Papalagui não se apercebeu
ainda do que o tempo é, não o compreendeu. É
por isso que o maltrata com os seus modos
rudes.
Oh! Meus queridos irmãos! Nós nunca
nos queixámos do tempo, amámo-lo e acolhe-
mo-lo tal como ele era, nunca corremos atrás
Tuiavii de Tiavéa in Papalagui - Discursos de Tuiavii
dele, nunca tentamos amalgamá-lo ou cortá-lo chefe de tribo de Tiavéa nos Mares do Sul
(tradução de Luiza Neto Jorge)

44
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

E m todos nós, no mais profundo da


alma, há uma subterrânea inquieta-
ção, o desejo daquilo que parece sempre esca-
encontra-se sempre algum psicoterapeuta que
vê nisso um precioso sintoma neurótico, ou um
crente que tem já a resposta pronta: essa
par-nos, a dor por qualquer coisa que não sabe- inquietação, esse sofrimento é a necessidade de
mos bem o que seja. Até quando estamos ena- Deus e só em Deus pode aplacar-se. Será talvez
morados e somos correspondidos, no momento verdade, mas nós vemos que há tanta gente que
em que nos vamos embora ou o nosso amado acredita em Deus, vai à missa ou se torna sann-
parte, mesmo uma separação breve, aquele yasin e continua a ter essa inquietação. Aliás, se
sofrimento profundo reaparece. Por vezes rea- pensarmos em todos os horrores e infâmias da
parece até num momento de felicidade porque história das religiões, na presunção, na igno-
aquela felicidade se nos revela fugaz. Nós olha- rância, no obscurantismo, na dureza moral, na
mos para o céu, um pedaço de céu azul, como crueldade de tantas religiões e de tantas
que para concentrar nele toda nossa felicidade morais, perdemos qualquer vontade de encon-
e sentimos uma tristeza porque poderemos trar ali a resposta. No fim encontramos os polí-
recordar aquele céu mas não podemos prolon- ticos, os revolucionários, sobretudo os leninis-
gar esse instante. Experimentamos esse sofri- tas, que nos explicam que uma tal inquietação
mento à noite, sem motivo, de manhã ao acor- é o sintoma da alienação da sociedade capitalis-
dar sem saber porquê. A nossa alma está cons- ta, uma forma de doença pequeno-burguesa
truída para desejar algo absoluto e, portanto, que só desaparece com a luta proletária. Tam-
inefável e inacessível. Quando estamos ocupa- bém aqui, porém, quanto sofrimento, quanta
dos não nos apercebemos disso, quando nos dor e, sobretudo, quanta crueldade e quanto
batemos por alguma coisa e toda nossa vontade fanatismo! De cada vez que alguém compreen-
está orientada para a meta, é a própria meta de nossa inquietação e a nossa necessidade e
que se ilumina com aquilo que procuramos nos oferece sua solução, quase sempre nos pro-
sempre. No estado nascente [uma espécie de põe ou uma fórmula gasta, ou uma simplifica-
nascimento, de despertar, a descoberta que o ção fanática. Mais que uma resposta parece um
possível se abre à nossa frente, que o mundo exorcismo, mais que uma cura, uma maldição.
pode ser maravilhoso e que tudo o que tem E então é melhor aceitar este vazio e esta
existido até agora, aquilo a que chamamos a necessidade sabendo que as coisas que faze-
vida real, era, na realidade, uma pobre vida mos, os objectos que compramos, a bonita casa
inautêntica, amargurada] o absoluto para que que construímos, o nosso habitual companhei-
sempre tendemos parece-nos inesperadamente ro, são substitutos de qualquer outra coisa.
próximo, quase ao alcance da mão, encarnado
numa única pessoa, inconfundível, ou então
num ideal, num partido, numa igreja, que nos
prometem o advento de uma perfeição. Não nos
agrada falar desta necessidade inesgotável, des-
te fundo doloroso da nossa alma. Não sabería-
mos o que dizer; os nossos amigos acusar-nos-
iam de atravessarmos uma crise mística. As
convenções sociais exigem que não se pense
nisso, que se esqueça o assunto. Por outro lado
Francesco Alberoni in A Árvore da Vida
45
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

H á Metafísica bastante em não pensar em nada.


O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
Se eu adoecesse pensaria nisso. (Isto é talvez ridículo aos ouvidos
Que ideia tenho eu das cousas? De que, por não saber o que é olhar para as cousas,
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos? Não compreende quem fala delas
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
E sobre a criação do Mundo? Mas se Deus é as flores e as árvores
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos E os montes e sol e o luar,
E não pensar. É correr as cortinas Então acredito nele,
Da minha janela (mas ela não tem cortinas). Então acredito nele a toda a hora,
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
O único mistério é haver quem pense no mistério. E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Quem está ao sol e fecha os olhos, Mas se Deus é as árvores e as flores
Começa a não saber o que é o sol E os montes e o luar e o sol,
E a pensar muitas cousas cheias de calor. Para que lhe chamo eu Deus?
Mas abre os olhos e vê o sol, Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
E já não pode pensar em nada, Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos Sol e luar e flores e árvores e montes,
De todos os filósofos e de todos os poetas. Se ele me aparece como sendo árvores e montes
A luz do sol não sabe o que faz E luar e sol e flores,
E por isso não erra e é comum e boa. É que ele quer que eu o conheça
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? Como árvores e montes e flores e luar e sol.
A de serem verdes e copadas e de terem ramos E por isso eu obedeço-lhe,
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, (Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
A nós, que não sabemos dar por elas. Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Mas que melhor metafísica que a delas, Como quem abre os olhos e vê,
Que é a de não saber para que vivem E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
Nem saber o que não sabem? E amo-o sem pensar nele,
"Constituição íntima das cousas"... E penso-o vendo e ouvindo,
"Sentido íntimo do Universo" ... E ando com ele a toda a hora.
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas,
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos
lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Fernando Pessoa / Alberto Caeiro in O Mistério das
Se ele quisesse que eu acreditasse nele, Cousas
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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

N a Utopia, as leis são pouco numero-


sas; a administração distribui indis-
tintamente seus benefícios por todas as classes
tormentos e desesperos.
Sei que existem remédios que podem ali-
viar o mal; mas estes remédios são impotentes
de cidadãos. O mérito é ali recompensado; e, ao para curá-lo. Por exemplo:
mesmo tempo, a riqueza nacional é tão igual- Decretar um máximo de posse individual
mente repartida que cada um goza abundante- em terras e dinheiro
mente de todas as comodidades da vida.
Premunir-se por meio de severas leis con-
Alhures, o princípio do teu e do meu é con-
tra, o despotismo e a anarquia.
sagrado por uma organização cujo mecanismo é
Denunciar e castigar a ambição e a intriga.
tão complicado quão vicioso. Há milhares de
Não traficar as magistraturas.
leis, e que ainda não bastam, para que um indi-
víduo possa adquirir uma propriedade, defendê Suprimir o fausto e a representação nos
-la e distinguí-la da propriedade de outrem. A altos cargos, a fim de que o funcionário, para
prova é o número infinito de processos que sur- sustentar sua posição, não se entregue à fraude
gem todos os dias e não terminam nunca. e à rapina; ou, a fim de que não seja obrigado a
Quando me entrego a esses pensamentos, faço dar aos mais ricos os cargos que deveriam caber
inteira justiça a Platão e não me admiro mais aos mais capazes.
que ele tenha desdenhado legislar para os Estes meios, repito-o, são excelentes palia-
povos que não aceitam a comunidade dos bens. tivos que podem adormecer a dor e aliviar as
Esse grande génio previra facilmente que o úni- chagas do corpo social; mas não espereis com
co meio de organizar a felicidade pública, fora a isto devolver-lhe a força e a saúde, enquanto
aplicação do princípio da igualdade. Ora, a cada um possuir solitariamente e absolutamen-
igualdade é, creio, impossível num Estado em te seus bens; podeis cauterizar uma úlcera, mas
que a posse é particular e absoluta; porque inflamareis todas as outras; curareis um doente,
cada um se apoia em diversos títulos e direitos e matareis um homem são; porque o que acres-
para atrair para si tudo quanto possa, e a rique- centais ao haver de um indivíduo tirais ao de
za nacional, por maior que seja, acaba por cair seu vizinho.
na posse de um reduzido número de indivíduos
que deixam aos outros apenas indigência e
miséria.
Muitas vezes até a sorte do rico deveria
caber ao pobre. Não há ricos avaros, imorais,
inúteis, e pobres simples, modestos, cujo enge-
nho e trabalho trazem proveito ao Estado mas
não, o trazem a si mesmos?
Eis o que invencivelmente me persuade que
o único meio de distribuir os bens com igualda-
de e justiça, e de fazer a felicidade do género
humano, é a abolição da propriedade. Enquan-
to o direito de propriedade for o fundamento
do edifício social, a esse mais numerosa e mais
estimável não terá por quinhão senão miséria, Thomas Moore in Utopia
47
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

E sses eus de que somos feitos, sobre-


postos como pratos empilhados nas
mãos de um empregado de mesa, têm outros vín-
culos, outras simpatias, pequenas constituições
e direitos próprios - chamem-lhes o que quise-
rem (e muitas destas coisas nem sequer têm
nome) - de modo que um deles só comparece se
chover, outro só numa sala de cortinados verdes,
outro se Mrs. Jones não estiver presente, outro
ainda se se lhe prometer um copo de vinho - e
assim por diante; pois cada indivíduo poderá
multiplicar, a partir da sua experiência pessoal,
os diversos compromissos que os seus diversos
eus estabelecerem consigo - e alguns são dema-
siado absurdos e ridículos para figurarem numa
obra impressa.

Virginia Woolf, in "Orlando"


48
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

O verbo prorrogar entrou em pleno


vigor, e não só se prorrogaram os
mandatos como o vencimento de dívidas e dos
compromissos de toda sorte. Tudo passou a
existir além do tempo estabelecido. Em conse-
qüência não havia mais tempo.
Então suprimiram-se os relógios, as agen-
das e os calendários. Foi eliminado o ensino de
História para que História? Se tudo era a mesma
coisa, sem perspectiva de mudança.
A duração normal da vida também foi
prorrogada e, porque a morte deixasse de exis-
tir, proclamou-se que tudo entrava no regime de
eternidade. Aí começou a chover, e a eternidade
se mostrou encharcada e lúgubre. E o seria para
sempre, mas não foi. Um mecânico que se ente-
diava em demasia com a eternidade aquática
inventou um dispositivo para não se molhar.
Causou a maior admiração e começou a receber
inúmeras encomendas. A chuva foi neutralizada
e, por falta de objetivo, cessou. Todas as formas
de duração infinita foram cessando igualmente.
Certa manhã, tornou-se irrefutável que a
vida voltara ao signo do provisório e do contin-
gente. Eram observados outra vez prazos, limi-
tes. Tudo refloresceu. O filósofo concluiu que
não se deve plagiar a eternidade.

Carlos Drummond de Andrade in Contos Plausíveis

49
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

N o dia seguinte, ao modo concerta-


do, fomos às casas do dito bonzo,
por nome Pomada, um ancião de cento e oito
uma torre, dá claridade a uma campina inteira,
ainda a mais dilatada. Uma tal pedra, com tais
quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém
anos, muito lido e sabido nas letras divinas e jamais a viu; mas muita gente crê que existe e
humanas, e grandemente aceito a toda aquela mais de um dirá que a viu com os seus próprios
gentilidade, e por isso mesmo mal visto de olhos. Considerei o caso, e entendi que, se uma
outros bonzos, que se finavam de puro ciúme. E cousa pode existir na opinião, sem existir na
tendo ouvido o dito bonzo a Titané quem éra- realidade, e existir na realidade, sem existir na
mos e o que queríamos, iniciou-nos primeiro opinião, a conclusão é que das duas existências
com várias cerimónias e bugiarias necessárias à paralelas a única necessária é a da opinião, não
recepção da doutrina, e só depois dela é que a da realidade, que é apenas conveniente. Tão
alçou a voz para confiá-la e explicá-la. depressa fiz este achado especulativo, como dei
- Haveis de entender, começou ele, que a graças a Deus do favor especial, e determinei-
virtude e o saber têm duas existências parale- me a verificá-lo por experiências; o que alcan-
las, uma no sujeito que as possui, outra no espí- cei, em mais de um caso, que não relato, por vos
rito dos que o ouvem ou contemplam. Se puser- não tomar o tempo. Para compreender a eficá-
des as mais sublimes virtudes e os mais profun- cia do meu sistema basta advertir que os grilos
dos conhecimentos em um sujeito solitário, não podem nascer do ar e das folhas de coquei-
remoto de todo contato com outros homens, é ro, na conjunção da lua nova, e por outro lado, o
como se eles não existissem. Os frutos de uma princípio da vida futura não está em uma certa
laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto gota de sangue de vaca; mas Patimau e Langu-
como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém ru, varões astutos, com tal arte souberam meter
os vir, não valem nada; ou, por outras palavras estas duas ideias no ânimo da multidão, que
mais enérgicas, não há espetáculo sem especta- hoje desfrutam a nomeada de grandes físicos e
dor. Um dia, estando a cuidar nestas cousas, maiores filósofos, e têm consigo pessoas capa-
considerei que, para o fim de alumiar um pouco zes de dar a vida por eles.
o entendimento, tinha consumido os meus lon-
gos anos, e, aliás, nada chegaria a valer sem a
existência de outros homens que me vissem e
honrassem; então cogitei se não haveria um
modo de obter o mesmo efeito, poupando tais
trabalhos, e esse dia posso agora dizer que foi o
da regeneração dos homens, pois me deu a dou-
trina salvadora.
Neste ponto, afiamos os ouvidos e fica-
mos pendurados da boca do bonzo, o qual,
como lhe dissesse Diogo Meireles que a língua
da terra me não era familiar, ia falando com
grande pausa, por que o que me deu ideia da
nova doutrina; foi nada menos que a pedra da
lua, essa insigne pedra tão luminosa que, posta Machado de Assis in O Segredo do Bonzo Capítulo
no cabeço de uma montanha ou no píncaro de Inédito de Fernão Mendes Pinto
50
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

S e a prudência consiste no uso comedi-


do das coisas, eu desejaria saber qual
dos dois merece mais ser honrado com o título de
clareza.
Todos vós estais convencidos, por exemplo,
de que um rei, além de muito rico, é o senhor dos
prudente: o sábio que, parte por modéstia, parte seus súbditos. Mas, se ele tiver no peito um cora-
por medo, nada realiza, ou o louco, que nem o ção brutal, se for insaciável na sua cobiça, se nun-
pudor (pois não o conhece) nem o perigo (porque ca se mostrar satisfeito com o que possui, não
não o vê) podem demover de qualquer empreen- concordareis comigo que é miserabilíssimo? Se
dimento. O sábio absorve-se no estudo dos auto- ele se deixar transportar por seus vícios e por
res antigos; mas, que proveito tira ele dessa cons- suas paixões, não se tornará um dos escravos
tante leitura? Raros conceitos espirituosos, mais vis? O mesmo se poderia dizer de tudo mais.
alguns pensamentos requintados, algumas sim- (…) Se alguém se aproximasse de um cómico mas-
ples puerilidades — eis todo o fruto de sua fadi- carado, no instante em que estivesse desempe-
ga. O louco, ao contrário, tomando a iniciativa de nhando o seu papel, e tentasse arrancar-lhe a
tudo, arrostando todos os perigos, parece-me máscara para que os espectadores lhe vissem o
alcançar a verdadeira prudência. Homero, embo- rosto, não perturbaria assim toda a cena? Não
ra cego, enxergava muito bem essas verdades: ―O mereceria ser expulso a pedradas, como um estú-
tolo — disse ele — aprende à própria custa e só pido e petulante? No entanto, os cómicos masca-
abre os olhos depois do fato‖. Duas coisas, sobre- rados tornariam a aparecer; ver-se-ia que a
tudo, impedem que o homem saiba ao certo o que mulher era um homem, a criança um velho, o rei
deve fazer: uma é a vergonha, que cega a inteli- um infeliz e Deus um sujeito à-toa. Querer,
gência e arrefece a coragem; a outra é o medo, porém, acabar com essa ilusão importaria em per-
que, indicando o perigo, obriga a preferir a inérciaturbar inteiramente a cena, pois os olhos dos
à acção. Ora, é próprio da Loucura dirimir todas espectadores se divertiam justamente com a troca
essas dificuldades. Raros são os que sabem que, das roupas e das fisionomias. Vamos à aplicação:
para fazer fortuna, é preciso não ter vergonha de que é, afinal, a vida humana? Uma comédia. Cada
nada e arriscar tudo. Quero observar-vos, além qual aparece diferente de si mesmo; cada qual
disso, que os que preferem a prudência fundada representa o seu papel sempre mascarado, pelo
no julgamento das coisas estão muito longe de menos enquanto o chefe dos comediantes não o
possuírem a verdadeira prudência. faz descer do palco. O mesmo actor aparece sob
Todas as coisas humanas têm dois aspec- várias figuras, e o que estava sentado no trono,
tos, à maneira dos Silenos de Alcibíades, que soberbamente vestido, surge, em seguida, disfar-
tinham duas caras completamente opostas. Por çado em escravo, coberto por miseráveis andra-
isso é que, muitas vezes, o que à primeira vista jos. Para dizer a verdade, tudo neste mundo não
parece ser a morte, na realidade, observado com passa de uma sombra e de uma aparência, mas o
atenção, é a vida. E assim, muitas vezes, o que facto é que esta grande e longa comédia não pode
parece ser a vida é a morte; o que parece belo é ser representada de outra forma.
disforme; o que parece rico é pobre; o que parece
infame é glorioso; o que parece douto é ignorante;
o que parece robusto é fraco; o que parece nobre é
ignóbil; o que parece alegre é triste; o que parece
favorável é contrário; o que parece amigo é inimi-
go; o que parece salutar é nocivo; em suma, virado
o Sileno, logo muda a cena. Estarei falando muito
filosoficamente? Pois vou explicar-me com maior Erasmo de Roterdão in O Elogio da Loucura
51
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

I nexiste no mundo coisa mais bem distri-


buída que o bom senso, visto que cada
indivíduo acredita ser tão bem provido dele que
efeito algum e que não lhe acarretam outra conse-
quência salvo, talvez, a de lhe proporcionarem
tanto mais vaidade quanto mais afastadas do sen-
mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer so comum, por causa do outro tanto de espírito e
outro aspecto não costumam desejar possuí-lo artimanha que necessitou empregar no esforço de
mais do que já possuem. E é improvável que todos torná-las prováveis. E eu sempre tive um enorme
se enganem a esse respeito; mas isso é antes uma desejo de aprender a diferenciar o verdadeiro do
prova de que o poder de julgar de forma correta e falso, para ver claramente as minhas ações e cami-
discernir entre o verdadeiro e o falso, que é justa- nhar com segurança nesta vida.
mente o que é denominado bom senso ou razão, é A verdade é que, ao limitar-me a observar
igual em todos os homens; e, assim sendo, de que os costumes dos outros homens, pouco encontra-
a diversidade das nossas opiniões não deriva do va que me satisfizesse, pois percebia neles quase
facto de serem alguns mais racionais que outros, tanta diversidade como a que notara anterior-
mas apenas de dirigirmos os nossos pensamentos mente entre as opiniões dos filósofos. De forma
por caminhos diferentes e não considerarmos as que o maior proveito que daí tirei foi que, vendo
mesmas coisas. Pois é insuficiente ter o espírito uma quantidade de coisas que, apesar de nos
bom, o mais importante é aplicá-lo bem. As maio- parecerem muito extravagantes e ridículas, são
res almas são capazes dos maiores vícios, como comummente recebidas e aprovadas por outros
também das maiores virtudes, e os que só andam grandes povos, aprendi a não acreditar com
muito devagar podem avançar bem mais, se conti- demasiada convicção em nada do que me havia
nuarem sempre pelo caminho reto, do que aque- sido inculcado só pelo exemplo e pelo hábito; e,
les que correm e dele se afastam. dessa maneira, pouco a pouco, livrei-me de mui-
(…) tos enganos que ofuscam a nossa razão e nos tor-
Aqui está por que apenas a idade me possi- nam menos capazes de ouvir a razão. Porém, após
bilitou sair da submissão aos meus preceptores, dedicar-me por alguns anos em estudar assim no
abandonei totalmente o estudo das letras. E, deci- livro do mundo, e em procurar adquirir alguma
dindo-me a não mais procurar outra ciência além experiência, tomei um dia a decisão de me estu-
daquela que poderia encontrar em mim mesmo, dar também a mim próprio e de empregar todas
ou então no grande livro do mundo, aproveitei o as forças do meu espírito na escolha dos cami-
resto da minha juventude para viajar, para ver nhos que iria seguir. Isso, a meu ver, trouxe-me
cortes e exércitos, para frequentar pessoas de muito melhor resultado do que se nunca me tives-
diferentes humores e condições, para fazer varia- se distanciado do meu país e dos meus livros.
das experiências, para pôr a mim mesmo à prova
nos reencontros que o destino me propunha e,
por toda parte, para refletir a respeito das coisas
que se me apresentavam, a fim de que eu pudesse
tirar algum proveito delas. Pois acreditava poder
encontrar muito mais verdade nos raciocínios que
cada um forma no que se refere aos negócios que
lhe interessam, e cujo desfecho, se julgou mal,
deve penalizá-lo logo em seguida, do que naque-
les que um homem de letras forma no seu gabine-
te a respeito de especulações que não produzem René Descartes in O Discurso do Método
52
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

D esde que a experiência me ensinou


ser vão e fútil tudo o que costuma
acontecer na vida quotidiana, e tendo eu visto
menos a perturba e a embota. Também procu-
rando as honras e a riqueza, não pouco a men-
te se distrai, mormente quando são buscadas
que todas as coisas de que me arreceava ou que apenas por si mesmas, porque então serão
temia não continham em si nada de bom nem tidas como o sumo bem. Pela honra, porém,
de mau senão enquanto o ânimo se deixava muito mais ainda fica distraída a mente, pois
abalar por elas, resolvi, enfim, indagar se exis- sempre se supõe ser um bem por si e como que
tia algo que fosse o bem verdadeiro e capaz de o fim último, ao qual tudo se dirige. Além do
comunicar-se, e pelo qual unicamente, rejeita- mais, nestas últimas coisas não aparece, como
do tudo o mais, o ânimo fosse afectado; mais na concupiscência, o arrependimento. Pelo
ainda, se existia algo que, achado e adquirido, contrário, quanto mais qualquer delas se pos-
me desse para sempre o gozo de uma alegria suir, mais aumentará a alegria e consequente-
contínua e suprema. Digo que resolvi enfim mente sempre mais somos incitados a aumentá
porque à primeira vista parecia insensato que- -las. Se, porém, nos virmos frustrados alguma
rer deixar uma coisa certa por outra então vez nessa esperança, surge uma extrema triste-
incerta. De fato, via as comodidades que se za. Por último, a honra representa um grande
adquirem pela honra e pelas riquezas, e que impedimento pelo fato de precisarmos, para
precisava abster-me de procurá-las, se tencio- consegui-la, adaptar a nossa vida à opinião dos
nasse empenhar-me seriamente nessa nova outros, a saber, fugindo do que os homens em
pesquisa. Verificava, assim, que se, por acaso, a geral fogem e buscando o que vulgarmente
suprema felicidade consistisse naquelas coisas, procuram.
iria privar-me delas; se, porém, nelas não se
encontrasse e só a elas me dedicasse, também
careceria da mesma felicidade.
Ponderava, portanto, interiormente se
não seria possível chegar ao novo modo de
vida, ou pelo menos à certeza a seu respeito,
sem mudar a ordem e a conduta comum de
minha existência, o que tentei muitas vezes,
mas em vão. Com efeito, as coisas que ocorrem
mais na vida e são tidas pelos homens como o
supremo bem resumem-se, ao que se pode
depreender de suas obras, nestas três: as rique-
zas, as honras e a concupiscência. Por elas a
mente se vê tão distraída que de modo algum
poderá pensar em qualquer outro bem. Real-
mente, no que tange à concupiscência, o espí-
rito fica por ela de tal maneira possuído como
se repousasse num bem, tornando-se de todo
impossibilitado de pensar em outra coisa; mas,
após a sua fruição, segue-se a maior das triste-
Bento de Espinosa in Tratado da Correcção do
zas, a qual, se não suspende a mente, pelo Intelecto
53
A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

A través da História, o homem - perce-


bendo que sua vida é breve, aciden-
tada, sujeita ao sofrimento e à morte certa sem-
sibilidade de descobrir por nós mesmos se há
ou não há uma realidade que não seja uma mera
invenção intelectual ou emocional, uma fuga.
pre formulou uma ideia chamada "Deus". Reco- Através da História, o homem sempre disse que
nhecendo - como também hoje reconhecemos - existe uma realidade e que para alcançá-la
que a vida é transitória, desejou experimentar devemos preparar-nos, disciplinar-nos, resistir
alguma coisa de imenso e de supremo, coisa a toda espécie de tentação, dominar-nos, con-
não criada pela mente ou pelo sentimento; trolar o sexo, ajustar-nos a um padrão estabele-
desejou a experiência ou descobrir o caminho cido pela autoridade religiosa, pelos santos,
de um mundo transcendental, inteiramente etc.; ou negar o mundo, recolher-nos a um mos-
diferente deste, com suas aflições e torturas. E teiro, a uma caverna, para meditar a sós e não
nutriu a esperança de descobrir esse mundo estarmos sujeitos a tentações. Salta aos olhos o
transcendental pelo buscar e sondar. Cumpre- absurdo dessa luta, pois é bem evidente que
nos examinar esta questão, a fim de descobrir- não há nenhuma possibilidade de fugirmos do
mos se existe, ou não, uma realidade (cujo mundo, do que é, do sofrimento, da agitação, e
nome não importa) de dimensão inteiramente de tudo quanto a ciência criou. E quanto às
diferente. Para penetrarmos tão fundo, deve- teologias e crenças, evidentemente temos de
mos naturalmente perceber não ser suficiente abandoná-las todas. Se lançarmos à margem
compreender apenas no nível verbal - porquan- toda espécie de crença, já não haverá medo
to a descrição jamais é a coisa descrita, a pala- nenhum.
vra nunca é a coisa. Pode-se penetrar esse mis-
tério, se é um mistério isso que o homem sem-
pre tentou penetrar ou prender, chamando-o, a
ele se apegando, adorando-o, por ele se fanati-
zando?
Sendo a vida como é - bastante superficial,
vazia, cheia de enganos e sem muita expressão
- tratamos de inventar, de lhe dar um significa-
do. Se o indivíduo que inventa tal significação e
finalidade é dotado de certo talento, sua inven-
ção se torna uma coisa bastante complexa. E
nela não encontrando a beleza, o amor, a expe-
riência da imensidade, a pessoa pode tornar-se
pessimista, descrente de tudo. Vê-se, pois,
quanto é absurdo e ilusório, e sem significação,
tratar meramente de inventar uma ideologia,
uma fórmula, afirmar que Deus existe ou não
existe, quando a vida nada significa - o que é
verdade, pela maneira como estamos vivendo.
Portanto, abstenhamo-nos de inventar qual-
quer significado.
Se pudermos viajar juntos, teremos a pos- Jiddu Krishnamurti in O Voo da Águia
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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

T eodoro — Se conseguisses, Sócrates,


convencer todo o mundo da verdade
do que disseste como fizeste comigo, haveria
tanto mais o que julgam não ser, quanto menos
sabem o que são. De fato, todos eles desconhe-
cem qual seja o castigo da injustiça, o que menos
mais paz e menos males entre os homens. do que tudo não se pode ignorar. Não é o que
Sócrates — É certo, Teodoro. Porém não é todos pensam: castigos corporais e morte, de
possível eliminar os males — forçoso é haver que os malfeitores muitas vezes escapam, senão
sempre o que se oponha ao bem — nem muda- penalidade a que ninguém se exime.
rem-se eles para o meio dos deuses. É inevitável Teodoro — A que penalidade te referes?
circularem nesta região, pelo meio da natureza Sócrates — Na própria ordem das coisas,
perecível. Daqui nasce para nós o dever de pro- amigo, há dois paradigmas: um divino e bem-
curar fugir quanto antes daqui para o alto. Ora, aventurado; outro, contrário a Deus e miserabi-
fugir dessa maneira é tornar-se o mais possível líssimo. Porém nada disso eles percebem; a enfa-
semelhante a Deus; e tal semelhança consiste em tuação e a demência em grau máximo os impe-
ficar alguém justo e santo com sabedoria. Mas a dem de sentir que com suas ações injustas eles
verdade, meu excelente amigo, é que não é fácil se aproximam do segundo e cada vez mais se
convencer ninguém de que as razões considera- afastam do primeiro. São castigados pela vida
das válidas pela maioria para fugir do vício e que levam, conforme ao modelo de sua preferên-
procurar a virtude não são as que levam um a cia. E se lhes dizemos que se não renunciarem
cultivar esta e evitar aquela, a fim de não parecer àquela habilidade, depois de mortos não serão
ruim, senão virtuoso. A meu ver, tudo isso não recebidos no local estreme de maldades e aqui
passa de história de velhas, como se diz. Mas a em baixo terão de levar vida conforme seu cará-
verdade, vou declarar-te qual seja: de modo ter: os maus convivendo com a maldade: tudo
nenhum Deus é injusto, senão justo em grau isso eles escutam, sabidíssimos e astuciosos,
máximo, não podendo ninguém ficar semelhante como palavreado vazio, de pessoas desprezíveis.
a ele se não for tomando-se o mais justo possível.
É assim que se avalia com acerto a superioridade
de uma pessoa, ou sua covardia e falta de virili-
dade. O conhecimento de semelhante fato confi-
gura a sabedoria e a verdadeira virtude, e sua
ignorância, maldade e tolice manifestas. As
demais aparências de habilidade e de sabedoria,
quando se mostram no exercício do poder públi-
co, são conhecimentos grosseiros; nas artes, vul-
garidade. Assim, quando alguém é injusto ou
ímpio, por ações ou palavras, será melhor não
conceder-lhe que todo o seu êxito se baseia na
astúcia, pois esse indivíduo se envaideceria com
o reparo, muito ancho por ter ouvido dizer,
segundo crê, que não é néscio ou fardo inútil
sobre a terra, porém homem como terão de ser
os que melhor sabem vencer na vida pública. A
esses tais é preciso dizer-lhes a verdade: que são Platão in Teeteto
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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

D esgraçadamente, a humanidade
aprendeu a dominar todas as forças
do mundo exterior, mas sabe tão pouco sobre si
que ser alargadas, as curvas melhoradas, suposta-
mente para aumentar a segurança, mas na verda-
de só para transitar um pouco mais depressa e
própria que está entregue, sem defesa, às conse- portanto mais perigosamente.
quências fatais da seleção intra-específica. Devemos procurar as razões que motivam
(…) os homens mais atingidos na alma: A paixão cega
A competição do homem com o homem pelo dinheiro, ou a pressa febril? Sejam quais
opõe-se diretamente, como nenhum fator bioló- forem, é do interesse dos homens no poder, inde-
gico havia feito anteriormente, à ―Força benévola pendentemente de qualquer orientação política,
e eternamente criadora‖, para destruir com bru- promover e intensificar as motivações que favore-
talidade diabólica a maioria dos valores que ela cem essa dolorosa obrigação de exceder. Que eu
criou, em nome de considerações puramente saiba, a psicologia profunda ainda não sondou
comerciais e em detrimento de todos os valores essas motivações. Mas me parece muito possível
reais. Sob a pressão dessa concorrência entre que, além da paixão de possuir e do desejo de
homens, aquilo que é bom para toda a humanida- avançar, angústia tenha papel preponderante. A
de, e mesmo que é útil e bom para cada um, per- angústia de ser ultrapassado na corrida, a angús-
deu-se completamente de vista. A esmagadora tia de ficar sem dinheiro, angústia de errar numa
maioria dos nossos contemporâneos só dá impor- decisão e de não estar à altura de uma situação
tância ao sucesso, àquilo que permite vencer os esgotante. A angústia, em todas as suas formas,
outros, na dolorosa obrigação de exceder. Todos contribui essencialmente para minar a saúde do
os meios para fingir essa finalidade aparecem, homem moderno e provocar a hipertensão, a
falsamente, como um valor em si. Podemos dizer atrofia dos rins, e enfarte precoce e outros fenó-
que o erro desastroso do ―utilitarismo‖ consiste menos do mesmo tipo. Sempre apressado, o
em confundir o meio com o fim. A princípio, o homem não é tangido somente pela cobiça. As
dinheiro era um meio, como prova a expressão mais poderosas forças de sedução não seriam
corrente: ―Ele tem meios‖. Mas hoje em dia quan- suficientes para incita-los à autodestruição. Ele
tos são capazes de entender que o dinheiro em si só pode ser movido pela angústia.
não é um valor? O mesmo acontece com o tempo;
Time is Money significa que aqueles que dão
valor ao dinheiro, prezam da mesma forma, cada
segundo de tempo economizado.
Havendo possibilidade de construir um
avião capaz de atravessar o atlântico um pouco
mais rapidamente do que os anteriores, ninguém
se pergunta o preço dessa realização. A obrigação
de prolongar a pista, a aceleração da partida e da
aterragem que aumenta os riscos, o aumento do
barulho, etc., não entram em consideração.
Ganhar meia hora parece de tal valor, que
nenhum sacrifício é excessivo para consegui-lo.
As fábricas de automóveis são obrigadas a produ-
Lorenz Konrad in Civilização e Pecado - Os Oito
zir novos modelos mais rápidos. As estradas têm
Erros Capitais do Homem
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A Vida e os Mistérios A Companhia da Palavra

O s cínicos e os moralistas concordam


em colocar a volúpia do amor entre
os prazeres ditos grosseiros, como o prazer de
e, se possível, impedi-la de sofrer, possa inspirar-
nos uma tal paixão de carícias simplesmente por-
que é animada por uma personalidade diferente
comer e de beber, declarando-a, contudo, menos da nossa e porque representa certos traços de
indispensável do que aqueles, visto que podem beleza sobre os quais, aliás, os melhores juízes
perfeitamente prescindir dela. (…) Não conheço, não estariam de acordo. Aqui, como nas revela-
fora do amor, outra situação em que o homem ções dos Mistérios, tudo se passa além do alcance
deva decidir-se por motivos mais simples e mais da lógica humana. A tradição popular não se
inelutáveis. No amor, o objeto escolhido deve enganou ao ver no amor uma forma de iniciação e
valer exatamente o seu peso bruto em prazer, e é um dos pontos onde o secreto e o sagrado se
ainda no amor que o amante da verdade tem tocam. A experiência sensual equipara-se ainda
maiores probabilidades de julgar a nudez da cria- aos Mistérios quando a primeira aproximação
tura. A partir do desnudamento total, compará- provoca nos não-iniciados o efeito de um rito
vel ao da morte, de uma humildade que ultrapas- mais ou menos assustador, escandalosamente
sa a da derrota e a da prece, maravilho-me ao ver desligado de todas as funções até então familia-
renovar-se, cada vez, a complexidade das recusas, res, como comer, beber e dormir, parecendo antes
das responsabilidades, das promessas, das pobres motivo de gracejo, vergonha, ou terror. Da mesma
confissões, das frágeis mentiras, dos compromis- maneira que a dança das mênades ou o delírio
sos apaixonados entre nosso prazer e o prazer do dos coribantes, nosso amor arrasta-nos para um
Outro, tantos laços impossíveis de romper e tão universo diferente, onde, em situação normal, nos
depressa rompidos! Esse jogo cheio de mistérios, é vedada a entrada e onde cessamos de nos orien-
que vai do amor de um corpo ao amor de uma tar, uma vez apagado o ardor e extinto o prazer.
pessoa, pareceu-me belo o bastante para consa- Cravado no corpo amado como um crucificado à
grar-lhe uma parte de minha vida. As palavras sua cruz, penetrei em certos segredos da vida que
enganam, especialmente as do prazer, que com- começam a desvanecer-se da minha lembrança
portam as mais contraditórias realidades, desde por efeito da mesma lei que faz com que o conva-
as noções de aconchego, doçura e intimidade dos lescente, depois de curado, cesse de encontrar-se
corpos, até as da violência, da agonia e do grito. A nas misteriosas verdades do seu mal, que o pri-
pequena frase obscena de Posidônio sobre o atri- sioneiro posto em liberdade esqueça a tortura, e o
to de duas parcelas de carne, que te vi copiar nos triunfador, a embriaguez da glória.
teus cadernos escolares com aplicação de menino
ajuizado, é incapaz de definir o fenómeno do
amor, assim como a corda que o dedo faz vibrar
não pode explicar o milagre dos sons. O que essa
frase insulta não é tanto a volúpia, mas a própria
carne, esse instrumento de músculos, sangue e
epiderme, essa nuvem vermelha de que a alma é o
relâmpago.
Confesso que a razão permanece confusa
em presença do prodígio do amor, da estranha
obsessão que faz com que essa mesma carne, que
tão pouco nos preocupa quando compõe nosso
corpo, limitando-nos somente a lavá-la, nutri-la Marguerite Yourcenar in Memórias de Adriano
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