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P rojeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
responderemos
- SUMARIO
Z3

<
Peregrinado, jejum e oracáo
ID

O Para que ter Religiáo?


t-

m O Porqué do Sofrimento

O "Luz sobre a Idade Media"

oo A Inquisicao Espanhola?
<

5 O caso Neimar de Barros

O
ce
Q.

ANO XXVIII - FEVEREIRO - 1987

m«im):^
PERGUNTE E RESPONDEREMOS FEVEREIRO- 1987
Publicacao mensal N9 297

SUMARIO
Direto r- Responsável:

Estévao Bettencourt OSB


Autor e Redator de toda a materia PEREGRINAgAO, JEJUM E ORAgÁO 49
publicada neste periódico
Diretor-Administrador Muitos inda9am:
D. Hildebrando P. Martins OSB PARA QUE TER RELIGIÁO? 50

.... _ . _ Aínda o debate


Adminrstrafao e distribuicao:

Edic5es Lumen Christi 0 PORQUÉ DO SOFRIMENTO 61


Dom Gerardo, 40-5? andar. S/5Ü1
Tel.: {021)291 7122 Que sabemos?
Caixa postal 2666
20001 - Rio de Janeiro RJ "LUZ SOBRE A IDADE MEDIA"
por Régine Pernoud 70

Composlcflo e Impre&iao

MM '™£*°í"'¿*™',Vf. A INQUISIQÁO ESPANHOLA? 82


Wl<L Rui Santo» Rocrigini, 240-
EUldSi

O CASO NEIMAR DE BARROS 95

ASSI NATURA EM 19S7:


NO PRÓXIMO NÚMERO
A partir de Janeiro de 1987 CzS 200,00
Número avulso: CzS 20,00 298 - Marco - 1987

Carta sobre o Homossexualismo (Congr. Dou-


Queira depositar a importancia no Banco
do Brasil para crédito na Conta Corrente trina da Fé). — "A Trindade, a Sociedade e a Líber-
n- 0031 304-1 em nome do Mosteiro de tacáo" (L. Boff). - Pena de morte: sim ou nao? - O
Sao Bento do Rio de Janeiro, pagável na surto da Igreja na Coréia. — Urna parábola do nosso
Agencia da Praca Mauá (n? 0435) ou en tempo. - Vaticano alterou texto de Joao XXIII?
viar VALE POSTAL pagável na Agencia
Central dos Correios do Rio de Janeiro. COM APROVAQÁO ECLESIÁSTICA

RENOVÉ QUANTO ANTES COMUNIQUE-NOS QUALQUER


ASUA ASSINATURA MUDANCADE ENDERECO
Peregrinado, jejum e oracáo

Aos 27 de outubro pp. o mundo pode acompanhar um acontecí men


tó totalmente inédito na historia da humanidade: a convite do S. Padre JoSo
Paulo II, 169 representantes das doze grandes correntes religiosas do mundo
se reuniram em Assis (Italia), a fim de celebrar urna Jornada de peregrina-
gao, jejum e oracao. O programa durou das 8h 45min até as 17h aproxima
damente.
- PeregrinacSo. . . Diversos grupos, vindos dos quatro cantos da térra,
convergiram para um só lugar, especialmente no fim do dia, quando secon-
gregaram para as preces fináis di ante da basílica inferior de Sao Francisco.
Esta convergencia era bem a imagem do que há de ser a caminhada do géne
ro humano em demanda do seu Fim Supremo ou do encontró final com
Deus; a mesma fome e sede do Absoluto deveria mover os homens para a
fruicao da Plena Verdade.
Jejum. . . Este é praticado por povos anteriores a Cristo e por cristSos.
É fator de amortecimento das pa¡x6es desregradas e de purificapab dos cora-
cees. Sem esta pureza interior, ná*o é possCvel ao homem unir-se a Deus. O
Evangelho, alias, nos refere as palavras de Cristo: "Esta especie de demonios
nato pode satr a nao ser mediante a. oracSo e o jejum" (Me 9,29 var.).
Oracáo.. . É a forca dos homens; é o segredo que dá eficacia a todos
os empreendimentos dos grandes e peqoeninos. É ela que sustenta o mundo,
como diziam os antigos Padres da Igreja. Precisamente numa hora em que
se avolumam os problemas da familia humana, as correntes religiosas reco-
nheceram o valor insubstituível da prece, que obtém de Deus o que os ho
mens nao podem efetuar.

No final do discurso que encerrava a Jornada, dizia o Santo Padre;


"O que hoje f izemos em Assis, rezando e testemunhando o nosso com-
prontitso com a paz, devenios continuar a faz8-lo todos os dias da nossa vi
da. O que hoja realizamos, é vital para o mundo. Se o mundo deve continuar
e se os homens e as mulheres devem sobreviver, o mundo nffo pode ditpen-
sar-se da oracffo".
O Santo Padre coloca em íntima conexSo a sobrevivencia do género
humano e a prática da oracSo. O Senhor quer dar aos homens os bens de
que necessitam, mas Ele os quer dar mediante a colaboracfo do homem que
é a oracao (cf. Lc11,9s).
Assim a Jornada de Assis deixa a sua mensagem a toda pessoa de boa
vontade até hoje: na vida cotidiana devemo-nos sentir peregrinos em deman
da da Casa do Pai, elevando a Deus nossas mentes purificadas pela ascese,
para pedir-Lhe Chalom, o dom da Paz, que está indissoluvelmente associado
á obra do Messias (cf. Mq 5,4). Assim procedendo, estaremos construindo o
Reino de Deus. £_g.
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
ANO XXVIII - n? 297 - Févereiro de 1987

Muitos ¡ndagam:

Para que ter religiao?

Em slntese: A religiao é a única resposta cabal as aspiragóes funda


mentáis do ser humano, pois o eleva ao Transcendental e Absoluto. A tentati
va de procurar na ciencia e na técnica a solucao para os anseios congénitos
do homem tem decepcionado o cidadáo de nossos días; atesta-o o ressurgh
mentó da reSgiáo nos países submetidos a regimes ateus como também o
surto de novas e novas seitas; estas infelizmente sao mais emotivas e fanta
siosas do que racionáis.

O indiferentismo reügioso de muitas pessoas de nossos días explicase,


em parte, pelo consumismo, que embota o senso religioso e dé ao homem
a impressáo de poder saciarse com os bens materiais; cedo ou tarde, porém,
os bens materiais falham, abrindo um vazio no coragao do homem, que só
Deus pode adequadamente ocupar. Verifícase também que a agitagáo e as
preocupagdes do ganha-páo, o baruiho da cMlizagáo contemporánea difícul-
tam ao homem o encontró consigo rnesmo no silencio; muitos nao estáo
acostumados ao recolhimento e é refíexáo - o que toma difícil aprofundar o
senso religioso mato em tais cidadáos.

A perda da religiao é grave daño para o homem, pois se observa que a


"morte de Deus" vem a ser a "morte do homem".

Nao é raro encontrarmos pessoas que perguntam: "Por que ou


para que ter religiáo?". Dizem nao precisar de religiao, pois vivem satis-
feitas sem fé. Daf o indiferentismo, que nao combate a religiáo, mas a
menospreza como um derivativo oportuno para quem dele precise.

Tal fenómeno é novo na historia da humanidade. Outrora ter reli


giáo era um fato normal. A partir do século XVIII, o ateísmo passou a
impugnar a religiáo como algo de irracional, alienante e nocivo; a religiáo
merecería ser combatida, na concepcüo desses ateus. Atualmente, porém,

50
PARA QUE TER RELIGlAO?

há pessoas que nem concebem o problema religioso; por isto nem com-
batem a religiSo; esta, segundo elas, nao merece atencfo. Por isto há
quem diga que vivemos numa época "pos-religiosa"; esta expressáb é
exagerada ou mesmo falsa, pois há sinais eloqüentes de retorno á reli-
giáo em nossos dias, como se verá no decorrer deste artigo.

A seguir, examinaremos a questáo: "por que ou para que urna reli-


giáo?". Procuraremos a resposta a dar-lhe e os porqués do indiferentis
mo.

1. O sentido da vida

1.1. A questáo básica

Urna das necessidades fundamentáis do ser humano é, conforme


bons psicólogos, a de saber o sentido da vida: "por que vivo?... para que
vivo?... por que sofro? Por que a morte?... por que o mal na historia dos
homens?... Afinal de contas, quem sou eu?". A necessidade de resposta
para tais perguntas se evidenciou especialmente nos campos de concen-
tracáo: nestes os prisioneros, sentindo-se condenados a trabalhos e con-
dicóes de existencia absurdas, deixaram-se, nao raro, morrer ou perde
rá m todo estímulo para viver; muitos nao tinham sequer a coragem de se
colocar de pé, apesar da pressáo dos golpes e maus tratos, da fome e da
sujeira em que jaziam. O psicólogo austríaco e iudeu Viktor FrankI o narra
muito vivamente em seu livro: "Psicoterapia e sentido da vida" (cf. PR
281/1985, pp. 329-340).

1.2. Tentativa de respostarsem Oeus

O homem moderno se afastou de Deus e da Religiáo, tidos como


elementos pré-c ¡entíficos ou obscurantistas, para se entregar ao cientifi
cismo: a ciencia e a técnica, progredindo continuamente, Ihe trariam todas
as respostas e preencheriam todas as suas aspiracóes. O homem moder
no teria deixado de ser enanca, atingindo finalmente a sua maioridade
(assim pensava Dietrich Bonhoeffer em suas cartas de prisáo). Negar
Deus seria a condigáo para que surgisse o Super-Homem, capaz de ven
cer as "fatalidades" da historia. A fé no homem, traduzida na filosofía do
progresso, do crescimento e do secularismo, substituiría a fé em Deus; foi
ressuscitada a figura mitológica de Prometeu, que subiu aos céus, arran-
cou o fogo, monopolio dos deuses, e o trouxe para a térra, anunciando
que ele doravante seria o doador do fogo para a humanidade.

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4 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

1.3. A insuficiencia do cientificismo

A ciencia nao responde ás questóes fundamentáis do homem; ela


estuda o que cai sob os sentidos ou o que se pode ver, tocar, medir, cal
cular, isto é, o mundo dos fenómenos. Os objetos que estejam para além
do sensfvel e dos fenómenos fogem ao setor próprio da ci&ncia. Ora os
problemas concernentes ao sentido do homem e da vida já nao sao da
área dos fenómenos senstveis; nao sao problemas para os quais a ciencia,
como ciencia (como investigagao empírica), possa dar resposta. - Tenha-
mos em vista, por exemplo, a biología: investiga tudo o que se possa ob
servar empíricamente a respeito da vida (transmissáo, leis da genética, do
crescimento, da restauragáo...). Mas, depois que alguém estudou tudo o
que a biologia Ihe possa ensinar, aínda conserva as perguntas funda
mentáis: vale a pena viver? Por que viver? Qual o sentido da vida?

Ademáis a ciencia é assaz frágil em suas construcóes; está sujeita a


se reformar e retratar constantemente; cada problema que parece resol -
ver-se, abre varios outros problemas que desafiam o cientista. Eis o tes-
temunho significativo de um grande pesquisador, o Professor Dr. New-
ton Freire-Maia, do Departamento de Genética da Universidade Federal
do Paraná:

"Quando me lembro de que, ao longo de minha vida de professor,


já ensinei meras htpóteses de trabalho como se fossem a mais pura
verdade, ou relatei fatos que simplesmente nao existiam - fantasía dos
nossos sentidos -, ponho-me a imaginar que, na mataría dos casos, n&s
passamos a vida a substituir urna fantasía por outra, na esperanza de
atingírmos, um dia, o pleno conhecimento da esséncia do universo...

Um amigo meu, professor de portugués e literatura numa Facul-


dade de Filosofía, com o fim de acentuar as dificuldades que encontrava
no seu campo de trabalho, disse-me certa vez mais ou menos o seguin-
te:

'Voces, dentistas, é que sao felizesl Em ciencia, o que é, é mesmo;


o que nao é, nao é. No setor das Hnguas e das literaturas, as divergen
cias de opinióes sao tantas que a tarefa de um especialista se torna ex
traordinariamente pesada e difícil, urna vez que ali ele nunca encontra a
seguranca e a certeza que as ciencias oferecem.'

... Para esse amigo, a ciencia era urna fonte de verdades e, como
os dentistas nao sao suficientemente loucos ao ponto de negar verda
des, todo o edificio das ciencias seria um conjunto de proposicóes cer
tas sobre as quais ninguem ousaria depositar a mais tenue das dúvidas:
a agua ferve a 100°C; a gravidade tudo atrai para o centro da térra;

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PARA QUE TER RELIGlAO?

a lúa nao cai de sua órbita por causa da interacáo de forjas gravitado-
nais com a inercia; a velocidade da luz é de 300.000km por segundo; a
molécula de agua tem dois átomos de hidrogSnio e um de oxigonio; pa
ra formar um novo ser, é preciso que um espermatozoide fecunde um
óvulo; o coracio é o órgáo central da circulácáo sanguínea; pensa-se
com o cerebro e nao com o ffgado; as plantas absorvem gas carbónico e
liberam oxigénio (e isto se chama fotosslntese ou funcio clorofi(iana); a
tuberculose é produzida pelo bacilo de Koch (a lepra, pelo de Hansen);
os antibióticos e a sulfamida matam microbios; a'asma é urna doenca
alérgica, etc. Todas essas 'verdades' (nem sempre verdadeiras ou ape
nas 'meias verdades') seriam 'cient íf¡cas'e, por isto, nao poderiam ser
. postas em dúvida. Por este motivo é que os anuncios de pasta dental
usam, muitas vezes, como prova da eficacia de urna marca, a fórmula
mágica: 'A ciencia comprovou'. Se a ciencia comprovou. é verdade...

A ciencia está repleta de hipóteses (provisorias) e, comumente, o


próprío dentista háo tem consciéncia da precariedade das suas proposi-
cóes. Quando estudamos historia da ciencia e ali encontramos as hipó
teses que foram alijadas para o porio e substituidas por outras, ficamos
aturdidos com a possibilidade de que muitas das nossas hipóteses de
hoje possam tomar o mesmo destino" (pp. 102-104).

Em nossos dias, assistirnos ao desabamento da ideología do pro-


gresso, que seria urna "religiao leigá" (sem Deus), baseada sobre o
pressuposto da infinita perfectibilidade do homem. A definicSo do homem
em funcáo da eficiencia e da produtividade já nao satisfaz; procuram-se
outros modelos para o ser humano. Aqueles que acreditavam no poder, sem
limites, da ciencia e da técnica, recuam; verificam que o gigante Prometeu
está abalado; o mito do Progresso cede á consciéncia de que a humanidade
está em crise, sob o signo de um futuro cada vez mais ameacador ou marca
do pela perspectiva de um holocausto nuclear. Pode-se, portante, falar
do fim do otimismo histórico que caracterizou a primeira metade do sé-
culo XX. Há quem diga que já entramos — ao menos no Ocidente — na
fase da pós-modernidade e do pos-racionalismo.

1.4. A resposta da Filosofía

A própria filosofía, que por definicáo indaga a respeito das causas


últimas, e procura formular o sentido do homem e do mundo, aprésenla
um leque de respostas que, se nao sao contraditórias entre si, sao incer-
tas e insuficientes (nao indo ao fundo das questóes). Para os pensadores,
mesmo para os mais sagazes, o homem fica sendo um misterio, que a ra
zio só consegue decifrar em parte e com grandes dificuldades. Precisa
mente - e com muita lógica - os maiores pensadores reconhecem a redi-

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6 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

cal incapacidade da razáo para penetrar, na sua profundidade, o misterio


do homem e, por isto, nao raro acenam para outra fonte de conheci-
mento, ou seja, para "urna divina revelacáo". É o caso, por exemplo, de
Platáo, que no diálogo Fedon aborda a questáo da imortalidade da alma:
afirma entáo que sobre tal assunto é ¡mpossível ou muito difícil chegar a
urna conclusáo clara; é preciso, por conseguinte, que nos contentemos
com a teoria menos obscura que a razáo possa construir, para atraves-
sarmos numa jangada o perigoso mar da vida. E acrescenta: "... a menos
que alguém esteja em condicóes de fazer o trajeto mais segura e menos
perigosamente sobre um barco mais sólido, confiando-se a urna divina
revelacáo".

Na realidade, o misterio do homem é táo profundo que só Deus,


que criou o homem e Ihe deu a sua vocacáo, pode dar-lhe a conhecer o
sentido da vida mediante "urna divina revelacáo". Ora na revelacáo crista
Deus nao revela apenas o misterio de sua vida, mas manifesta o homem
ao homem, oferecendo-lhe a resposta para as suas ¡ndagacóes: "Donde
venho? Para onde vou? Qual o sentido da minha vida sobre a térra? Por
que sofro? Por que há tantas desgracas no mundo? Por que hei de mor-
rer?" Mais: Deus nao somente ilumina a noite escura do homem; Ele
também realiza o que revela, tornando o homem participante da vida do
próprio Deus; nao somente projeta luz sobre o misterio do sofrimen to e
da morte, mas livra o homem do mal e da morte. Sim; a religiáo nao é
mera filosofía ou urna mensagem de ordem puramente intelectual, mas é
urna realidade de ordem vital, portadora de nova vida ou de novo modo
de ser. Assim é que a religiáo dá um sentido ¿ vida humana.

1.5. O ressurgimento da religiáo

E precisamente neste contexto que se registra um retorno das


questóes relativas a Deus e aos valores transcendentais. Este retorno se
dá na Rússia Soviética, na China comunista e em outros pafses, onde o
ateísmo tentou extirpar a fé dos cidadáos e camponeses. Dá-se também
no pulular de seitas e torrentes religiosas, que encontram eco fácil na so-
ciedade de hoje, sequiosa de descobrir o sentido da vida e da morte do
homem. Nada de mais significativo do que esse despertar do senso reli
gioso da humanidade (embora se deva lastimar que se faca nao raro á
cusía de charlatanismo e exploracio da credulidade de pessoas infelizes).
Na verdade, dentro da inteligencia e da vontade do homem há urna capa-
cidade de Infinito e somente a Verdade Plena e o Bem Absoluto podem
saciar adequadamente esse potencial; sabiamente dizia o filósofo francés
Blaise Pascal que existe no homem "um abismo infinito que nao pode ser
preenchido senáo por um objeto infinito e imutável, isto é, por Deus
mesmo" (Pensées n? 300). É essa aspiracao ¡nata ao Infinito que suscita
constantemente o problema religioso, mesmo quando o homem o quer

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PARA QUE TERRELIGlAO?

sufocar; é a própria natu reza do homem, e nao algum fator externo, de


cultura contingente, que provoca esse anseio. O homem é um ser es
pontáneamente inquieto e insatisfeito; procura aquilo que nao tem, e,
quando o consegue, experimenta o fastio e o dissabor, porque nada o satis
faz. O motivo profundo desta constante sofreguidSo é que ele nao foi feito
para as coisas transitorias e limitadas, mas para o Infinito ou para Deus:
"Senhor, Tu nos fizeste para Ti e inquieto é o nosso coracáo enquanto
nao repousa em Ti" (S. Agostinho, Conttssóes 1,1,1).

Nisto o homem se diferencia nitidamente do animal irracional. Com


efeito; este, tendo atendido as suas necessidades biológicas, se dá por sa
ciado e nada mais pede. Nao atinge o transcendental, ao passo que o
homem, mesmo satisfeito no plano biológico, nao para: quer conhecer
sempre mais, quer experimentar situacóes novas, que dilatem seus hori
zontes. É por isto, alias, que muito sabiamente se aponta a atitude reli
giosa como característica do humano, isto é, da inteligencia e da dignida-
de do homem. Em conseqüéncia, um dos sinais típicos da passagem do
homem na pré-historia sao os símbolos ou as manifestacóes religiosas:
especialmente o sepultamento dos mortos (expressáo da crenca na vida
do além e na existencia de Deus) é tido como um dos mais rudimentares
sinais que caracterizam o ser humano.

Em conseqüéncia também, verifica-se que a religiáo é um fenóme


no universal, isto é, de todas as tribos'e de todas as épocas; nunca houve
povos arreligiosos ou nao religiosos; mesmo as populacóes mais primiti
vas descobertas recentemente na África ou na Oceania manifestam senso
e culto religioso; verdade é que a religiáo por vezes sofre ai o contagio da
magia, da bruxaria e das supersticóes, mas é sempre perceptivel. Tal fato
é reconhecido por todos os historiadores e etnólogos, por mais diferentes
que sejam as concepcóes filosóficas de cada um.

Em símese, pode-se dizer que é a própria estrutura do homem que


póe o problema de Deus. Desde que refuta um pouco sobre si mesmo e
suas aspiracóes, ele descobre em si a sede de algo que está além de tudo
o que ele experimenta com os seus sentidos. Muitas vezes ele nao sabe
dar o nome a esse algo mais, nem pode explicar essa sede, que se volta
para o Transcendental. Se ele a quer acalmar com o gozo dos prazeres -
materiais, intelectual, culturáis - que esta vida Ihe oferece, senté em bre
ve o vazio, pois tudo Ihe escapa de entre as maos: "É coisa horrível sentir
que nos escapa tudo o que possuímos" (Pascal, Pensées n? 152). Aus
cultando um pouco mais a si mesmo, o homem verifica que a sua sede é de
Absoluto ou de Infinito ou de Deus; com todo o dinamismo do seu ser, o
homem tende para Deus. Por conseguinte, Deus nunca é estranho á
criatura humana, mas Ihe está muito próximo; antes diríamos que Deus
Ihe é mais íntimo do que o que o homem tem de mais íntimo. Bem dizia

. 55
8 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

S. Agostinho: "Deus superior summo meo, intimior intimo meo. - Deus é


mais elevado do que o que tenho de mais elevado e mais íntimo do que o
que tenho de mais íntimo".

2. A consciéncia das limitacóes

Além de experimentar a necessidade de conhecer o sentido da vida


para poder motivar sua existencia, o homem faz a experiencia inevitável
de certas limitacóes que o afetam no mais profundo do seu ser.

2.1. Nascimento e morte

Nem o comeco nem o fim da existencia do homem sobre a térra


estáo em seu poder. Nao é o homem quem dá a si a existencia; esta Ihe é
outorgada; nem o homem é senhor da mesma, pois ela Ihe é retirada.
Isto torna evidente a cada individuo a respectiva contingencia: ao nascer,
o homem, que nao existia, vem a ser; ao morrer, o homem, que existia,
deixa de existir sobre a térra; realmente o ser humano é alguém que nao
tem em si mesmo a razao da sua existencia; esta nao é, por si mesma ou
por sua definicáo, necessária.

Entre o nascer e o morrer, também o agir do homem é limitado:


condicionado pelos tragos da sua personaüdade e influenciado por fato
res internos e externos, o homem experimenta a fragilidade do seu labor.

A mais dolorosa experiencia de Nmitacao é a que a morte impóe;


dir-se-ia que ela nao rouba algum pertence ao homem, mas rouba o
próprio homem a si mesmo. Esta conviccáo é táo brutal que muitos fa-
zem tudo para nao pensar na morte; entregam-se a atividades frenéticas,
que nSo Ihes deixam o tempo de se encontrarem consigo mesmos.

A experiencia da finitude leva o homem a querer superar os seus


próprios limites. Este desejo está impregnado no mais profundo do ser
humano; ele aspira a ser plenamente livre e feliz numa vida sem fim ou
sem ameacas de morte. De todos os anseios do homem, este é certa-
mente o mais intenso e profundo; ele quer beber da fonte da vida ¡mor
tal. Mas onde a encontrará? - A resposta so pode ser urna: junto Áquele
que é, por definicáo, a Vida e, por isto, pode dar ao homem a vida sem
fim. Voltando-se para Deus, e só assim, o homem encontra a resposta
para a sua demanda. Deste modo a experiencia da finitude - especial
mente a da morte — p5e para o homem o problema religioso como pro
blema fundamental. Com efeito, a religiio, como re-ligacio do homem
com Deus,.é o caminho para a Vida..., e para a Vida no sentido pleno da
palavra. Dir-se-ia mesmo que, sem dimensao religiosa, o homem é urna

56
PARA QUE TER RELIGlAO?

demanda clamorosa subsistente que nao encontra eco ou ressonancia no


universo.

2.2. As limitacóes do erro

Além" da experiencia da finitude e da morte, o homem faz a expe


riencia do erro.

Criado para a verdade, o ser humano se vé envolvido na ignorancia


e no erro; no tocante ao mundo material, tem alcancado, sem dúvida, ní-
veis elevados de conhecimento, embora caminhe sempre ás apalpadelas;
no setor moral e no espiritual, porém, é-lhe difícil conhecer o que é ver
dade, o que é reto, o que é justo, o que é o bem; fácilmente propóe o erro
como verdade, o mal como bem, a ponto que muitas pessoas sao céticas
com relacáo aos valores espirituais e moráis; nao haveria ai verdade pro-
priamente dita nem padráo de bem. O ceticismo tem sido urna perma
nente tentacáo para o homem.

Mais trágica ainda é a experiencia do pecado. Este nao somente


atrai o homem, mas escraviza-o, tornando a mente obcecada, a ponto de
nao reconhecer os males que comete ou, se os reconhece, nao conseguir
evitá-los; o ser humano é arrastado a fazer o que nao quisera; já notava o
Apostólo Sao Paulo, fazendo eco aos filósofos romanos: "O querer o bem
está ao meu alcance, nao, porém, o práticá-lo. Com efeito, nao faco o bem
que eu quero, mas cometo o mal que nSo quero" (Rm 7,18s).

Essa sujeicáo ao erro e ao mal suscita no homem a aspiracáo a l¡-


vrar-se do erro e da escravidáo do pecado, aspiracáo que nao é superfi
cial, mas brota do mais profundo do ser humano. Este, porém, verifica
que por si so nao consegue libertar-se, pois, apesar dos melhores propó
sitos, é constantemente solicitado a recair e cede á tentacáo. Quem pode
entáo salvar o homem de tal humilhacao? Nao outra criatura, sujeita
também ela a falencia, mas, sim, o Ser absoluto, que é a própria Verdade
e o próprio Bem: Deus. Assim o homem chega á nocáo e á necessidade
de Oeus. Este nao é um Rei Todo-poderoso que se oporta á grandeza do
homem, mas, ao contrario, é aquele Ser Perfeito que, por ser perfeito,
ajuda o homem a superar suas limitacóes, fazendo-o participar da pleni-
tude da vida divina; é Aquele que liberta o homem do erro e do pecado.

Eis, pois, o sentido da religiáo: é o caminho mediante o qual o ho


mem, movido pelas mais profundas exigencias do seu ser, se póe em
contato com Aquele que é o Absoluto e vem a ser a Resposta aos gran
des anseios da pessoa humana; tira o homem de suas servidóes humi-
Ihantes e da própria morte, fazendo-o viver na verdade, na liberdade e na
alegría.

57
]0 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987 '

Temos assim os elementos para responder á pergunta: por que


"ser religioso"? - Porque, mediante a religiáo - e so desta maneira - o
homem se realiza plenamente ou encontra o cumprimento das suas as-
piracóes mais profundas. Por conseguinte, ao homem a-religioso falta
algo de essencial para o total desdobramento das suas virtualidades e a
consecucáo dos objetivos. A religiáo nao é urna dimensáo secundaria ou
acidental da vida humana, mas está arraigada no (mimo da pessoa; quem
deseje prescindir déla, nao pode deixar de se prejudicar. Por isto o ateís
mo e a ¡rreligiosidade nao sao opcóes equivalentes a outras no horizonte
da filosofía, mas sao atitudes extremamente graves, porque póem em
perigo a realizagáo e a consumacáo do ser humano.

Tenham-se em vista, alias, as consideracóes de psicólogos recen


tes, dos quais Cari Gustav Jung é um representante significativo; ao
contrario de Freud, que desprezava a religiáo, Jung valorizou a dimensao
de fé como integrante do psiquismo humano, sem o qual'a saúde mental
é afetada. A propósito, queira conferir PR 289/1986, pp. 277s.

3. Mas por que tanta ¡ndiferenca?

Apesar do papel capital do encontró com Deus na vida do homem,


registra-se grande faixa de ¡ndiferenca religiosa na sociedade contem
poránea. - Por qué?

As causas sao múltiplas. Poremos em relevo algumas que parecem


mais importantes.

1) Muitas e muitas pessoas sao táo absorvidas pelos problemas


¡mediatos e urgentes da vida que nao tém as disposicoes de ánimo ne-
cessárias para refletir sobre o sentido da própria vida: encontram-se
sempre fora de si mesmas, emaranhadas em dificutdades que nao Ihes
deixam tempo e gosto para a reflexáo.

Ademáis a civilizacáo contemporánea é rumorosa; provoca trepida-


cáo continua e dos mais diversos tipos, que dificulta ao cidadáo o reco-
Ihimento silencioso; o bombardeio de fatos e o suceder-se de imagens
ocupam-lhe a imaginario e o pensamento. Isto tudo faz que o homem de
hoje esteja pouco habituado a entrar em si mesmo, embora muito precise
desse exerclcio. Ora, para aprofundar a questáo religiosa, é indispensável
a capacidade de refletir e fazer silencio interior; sem esta, a pessoa é tra
gada pelo turbilháo dos bens transitorios, podendo mesmo esquecer que
tudo passa, mas as aspiracóes congénitas do ser humano nao passam.

58
PARA QUE TER RELIGlAO? 11

2) Outras pessoas há que sao absorvidas nao por problemas de


subsistencia, mas pelo afa de gozar a vida, ganhar dinheiro, conseguir
éxito na sua carreira, a ponto de nao conceberem nem o gosto nem o ¡n-
teresse pelos problemas do espirito. O materialismo e o consumismo tém
o triste poder de extinguir no homem a aspiragáo para Deus e a tempera
religiosa, que sao constitutivas do psiquismo humano. Quem é tomado
pelo anseio de possuir sempre mais bens materiais, fica embotado para
os valores transcendentais; já nao experimenta necessidade religiosa nem
vé utilidade na fé. Isto explica que a crise religiosa seja hoje mais forte
nao nos países em que a fé é perseguida e sufocada, mas nos países ricos
do Ocidente materialista e consumista.

Oirá alguém: mas há pessoas que afirmam ser felizes sem religiáo.
Perguntamos: será realmente assim? Há momentos em que a vida mos-
tra seu rosto dramático mediante urna doenga grave, urna desgrana, um
revés financeiro, um luto, a dissolucáb do casamento, um serio insucesso
na carreira... Em tais momentos parece que os sonhos se dissipam como
um castelo de cartas, caem as certezas que pareciam inabaláveis, tudo dá
a ¡mpressao de ser vazio e sem sentido. É entáo que surge a questáo: que
significado tem a vida? Na verdade, o homem toma consciéncia de que é
mesquinho e volúvel tudo o que Ihe acarretava seguranca e bem-estar; é
amarga a condicáo do homem. Faz-se entáo sentir a necessidade de algo
que, em meio a volubilidade geral, %e]a estável, ou entre as incertezas
seja verdade firme. Em última análise, esta é a necessidade de Deus, que
por definido é o Bem Absoluto e Imutável.

Por conseguinte, nao é plenamente verdade que alguém possa vi-


ver feliz sem religiáo. Por algum tempo talvez isto possa acontecer, mas
o passar dos anos encarrega-se de fazer sentir a todo homem a necessi
dade de Deus. Verdade é que tal necessidade pode ser interpretada erró
neamente; o homem pode procurar em cisternas furadas aquilo de que
carece (cf. Jr 2,13); pode bater em portas falsas a procura da verdadeira
resposta para seus anseios. Isto nao impede que, cedo ou tarde, o indivi
duo seja, de algum modo, posto diante do problema religioso.

3} O desinteresse de muitos também se pode explicar como efeito


da luta que o racionalismo vem movendo contra os valores da fé desde o
século XVIII. Com efeito, a religiáo tem sido acusada de ser desarrazoada,
infantil ou um conjunto da fábulas e mitos..., de ser alienante e, por isto,
prejudicial á sociedade,... de alimentar o fanatismo e a intolerancia..., de
ser contraria á ciencia ou obscurantista, responsável pelo subdesenvol-
vimento de seus adeptos. A polémica anti-religiosa suscitou em torno da
religiáo um clima de ceticismo, suspeitas e averséo; em conseqüéncia,
para muitos, quem abraca a religiáo dá pravas de pouca cultura, fraqueza
de personalidade, infantilismo, medo, falta de senso crítico... Em tal con-

59
12 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

texto compreende-se que o número de pessoas "sem religiáo" tenda a


aumentar.

Na verdade, algumas deslas acusacóes tém seu fundamento na


conduta deficiente de pessoas ou grupos religiosos; deram a sua fé ex-
pressoes inadequadas ou caricaturáis, que provocaram o desdém dos ra
cionalistas. Além disto, é preciso que nao se apliquem criterios do pre
sente a épocas passadas; o que para os homens de hoje é evidente no plano
da ciencia, da moral, nao o era aos antepassados, de modo que estes, de
boa fé, disseram ou praticaram coisas que hoje nao seriam repetidas (as-
sim a insistencia no geocentrismo contra Galiteo, os feitos da Inquísicáo,
das Cruzadas, etc.). Urna serena consideragáo do que é a religiáo como
tal e do conteúdo da mensagem crista, evidencia que tais acusacóes nao
afetam o valor da religiáo. Só sérvem para empalidecer ou apagar na
consciéncia humana a imagem de Deus, o que redunda em eclipse do
próprio homem. Pois, na verdarie, á "morte de Deus" se segué inevita-
velmente a "morte do homem".

Este artigo multo deve ao editorial de La Civiltá Cattolica n? 3260,


de 15/04/86, pp. 705-114.

(continuapao da p. 96)

CONCLUSÓES:

01 — O Instituto MEAC quer continuar servindo a Igreja; seus mem-


bros está"o decididos a manter-se firmes.
02 — A Editora O RECADO, com sua revista e seus livros, continuará
prestando colaboracao no campo cultural e financeiro aos mis-
sionáriosdo Instituto.
03 - Estaremos de bracos abertos esperando o Neimar de volta ao
seio do Instituto, da Igreja, de sua familia, como "homem novo".
04 - Algumas poucas comunidades cartcelaram palestras de nossos
missionários após as declarares de Neimar á Veja. Lamentamos,
sofremos com ¡sso, pois a nossa vontade é apenas servirá Igreja
no Brasil com nosso carísma missionário leigo.
Assim o entenderam as muitas comunidades que estao pedindo
nossa presenca.

05 - Contamos com as orientaoSes e as oracdes de nossos ¡rmSbs.

Na Paz de Jesús, o Missionário do Pai.

Assinam: Pe. JoSo Drexel (OMI), Antoninho Tatto, José Qeraldo, José
Antonio Fonseca, Arthur Miranda

INSTITUTO MEAC - Rúa Américo Brasiliense, 891 - 04715 - SSo Pau


lo (SP) - Fone: (011) 523-7233

60
Aínda o debate sobre

0 porqué do sofrimento

Em slntese: O sofrimento parece a atguns ser um argumento contra o


poder ou a bondade de Deus. A mensagem crista responde que Deus nao é—
nem pode ser - o autor de algum mal; mas Ele permite que as criaturas, limi
tadas como sao, cometam males físicos e moráis; Ele nao quer "polidar" o
mundo artificialmente, mas se encarrega de tirar dos males produzidos pelas
criaturas bens aínda maiores. teto em varios casos é evidente, pois se verifica
que, para multas pessoas, o sofrimento é urna escola que converte e transfi
gura. Em outros casos, os frutos positivos do sofrimento nao sao táo percep-
tíveis; nao obstante, o cristáo tem certeza de que a Providencia Divina nao
faina e um dia ele compreenderá plenamente o plano de Deus, do qual atual-
mente ele só percebe segmentos e facetas.

Mais: a figura do Filho de Deus, que, leito homem, assumiu a dore a


morte a fím de fazé-las passagem para a ressurreicáo e a gloria, é o testemu-
nho mais eloqüente de que o sofrimento nao é mera sentenga da justiga ou
castigo, mas está intimamente associado ao amor que Deus tem para conos-
co. Aceito em uniáo com Cristo, o sofrimento vem a ser fonte de salvagáo pa
ra o paciente e de expiacáo dos pecados do mundo.

Um dos temas que mais vém á tona nos círculos filosóficos e reli
giosos de nossos días, é o do sofrimento. Quanto mais se alastra e inten
sifica a dor dos homens provocada pela fome, o terrorismo, as guerras...,
tanto mais indagam a respeito do sentido do sofrimento. Freqüente-
mente nasce daf a objecdo; se Deus existe, como pode permitir tanta des-
graca, especialmente quando afeta pessoas inocentes? Se tanto mal
acontece, ou Deus nao pode ou nSo quer evitá-lo. No primeiro caso, Ele
nao é todo-poderoso (entáo nao é Deus); no segundo caso. Ele nao ama
seus filhos, pois nenhum pai assiste indiferente ao sofrimento dos seus
filhos. Em conseqüéncia de tais raciocinios, parece lógico a muitos negar
a existencia do próprio Deus.

61
14 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

Eis por que as páginas subseqüentes seráo dedicadas ao estudo de


tal problema. Pode-se-lhe apresentar solucáo?... ou ao menos alguma luz
que o esclarece? - Alias, também o último Sínodo Mundial dos Bispos,
encerrado em dezembro de 1985, chamou a atencáo para a recrudescencia
do mal em nossos dias (t§o marcados pela fome e pela ameac/a de catás
trofes nucleares) e solicitou especial atencáo para a Teología da Cruz:

"Percebemos que os sinais dos tempos presentes sSo, em parte,


diferentes daqueles dos tempos do Concilio, com problemas e angustias
aínda mais graves. Com efeito; assistimos em toda parte ao aumento
da fome, da opressáo, da injustica; a guerra domina em varios lugares,
com os sofrimentos que ela acarreta, enquanto o terrorismo e a violen
cia, sob mil formas, se manifestam um pouco por toda parte. Isto nos
obliga a nova e mais profunda reflexSo teológica para interpretar esses
sinais a luz do Evangelho...

Parece que ñas atuais dificuldades Deus nos quer ensinar mais
profundamente o valor, a importancia e a centratidade da Cruz de Je
sús Cristo" (D, n? 1 e 2).

Examinemos agora as objecóes que, em vista do sofrimento da


humanidade, sao atualmente levantadas contra a existencia ou os atri
butos de Deus.

1. Se o mal existe, Deus existe?

Eis quatro objecóes que a opiniáo pública nao raro formula:

1.1. Deus sem poder ou sem amor

"Oíante do sofrimento no mundo, Deus nao pode ou nao quer intervir.


No primeiro caso. Ele é fraco ou destituido de poder; no segundo casó. Ele ca
rece de amor para com seus fUhos".

- Esta objecáo já foi longamente desenvolvida por Voltaire após


o terremoto de Lisboa em 1755 e pelo filósofo Arthur Schopenhauer
(t1860). Houve quem Ihe respondesse, admitindo que Deus é muito sabio
e muito poderoso, mas nao todo-poderoso (assim Voltaire, Stuart Mili,
M. Schiller). - Todavia quem assim pensa, está praticamente negando a
existencia de Deus, pois, por definicáo, ou Deus é a Suma Perfeicáo, sem
limites, ou simplesmente nao existe.

62
OPORQUÉDOSOFRIMENTO 15

A resposta católica a tal objecáo já foi formulada por S. Agostinho


(t 430), ao qual S. Tomás de Aquino (11274) faz eco: "A existencia do
mal nao se deve á falta de poder ou de bondade em Deus; ao contrario.
Ele só permite o mal porque é suficientemente poderoso e-bom para tirar
do próprio mal o bem. - Nullo modo sineret aliquid mali esse in operibus
suis, nisi esset adeo omnipotens et bonus ut bene faceret etiam de malo"
(Enchiridion, c. 11; ver Suma Teológica I qu. 22, art. 2, ad 2). Estas pala-
vras, alias, sintetizam toda a doutrina católica relativa á origem do mal:

1) O mal nao é uma entidade positiva; mas uma carencia do ser (ou
do bem) devido. Assim a cegueira é a falta de olhos (é um mal ñas cria
turas ás quais a natureza concede olhos); o pecado é a falta de concor
dancia do ato humano com o Fim Supremo da moralidade, que é Deus.

2) Ora o nao ser ou a carencia como tal nao tem causa. Só pode ser
¡ndiretamente causado por um agente faltvel ou uma criatura que, ao
agir, seja capaz de produzir um efeito incompleto, carente de sua perfei-
Qáo.

3) Por conseguinte, Deus, sendo por definigio o Ser Perfeitíssimo,


nao pode ser causa do mal. Esta há de ser a criatura, que pode fainar ao
agir no plano ffsico (um desastre de automóvel, uma enchente, uma se
ca...} ou no plano moral (o pecado).

4) Deus permite que as criaturas exercam a sua atividade conforme


a natureza de cada uma; permite, pois, as falhas respectivas. Ele nSo fez
um mundo artificialmente policiado ou de marionetes. Todavía em sua
sabedoria e bondade Ele se compromete a aproveitar o próprio mal cometi
do pelas criaturas para daf tirar bens maiores.

5) NSo raro é-nos dado perceber os bens que se seguem aos males
decorrentes da acáo das criaturas. Com efeito, sabemos que muitas e
muitas pessoas se transformaram e nobilitaram em conseqüéncia de uma
molestia grave, de um baque ou insucesso na vida. Em outros casos nao
nos é possível indicar os frutos positivos procedentes de algum mal; mas
o cristáo tem a certeza de que, no final dos tempos, Ihe será concedido
contemplar o plano de Deus e as ligacóes existentes entre os fatos que
ele abrange.

A resposta teológica aqui esbogada será mais amplamente expla


nada sob o titulo 2 deste artigo. Importa aquí mostrar apenas que a exis
tencia do mal no mundo nao significa falta de poder ou de bondade em
Deus. Os caminhos de Deus nao sao os dos homens, diz o Profeta (Is
55,8); a visSo que Deus tem das criaturas e da historia, é muito mais ex
tensa do que a que nos temos. Por causa de nossas perspectivas limita-

63
16 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 297/19B7

das, corremos o risco de apontar sem mais um mal ou um desastre onde


há apenas o preámbulo de um grande beneficio arquitetado sobre a pró-
pria falibilidade das criaturas.

1.2. lnsistindo_

"Nao aceito a expticacño, pois freqüentemente me parece que a des-


graga é táo-somente desgraca, longe de qualquer plano providencial de
Deus".

A propósito formularemos tres observacóes:

1) É preciso que a criatura nao faga de si mesma o padreo ou o


criterio para avaliar felicidade ou desventura. Nao diga: "Se eu nao vejo o
lado positivo de urna desgraca, tal lado positivo nao existe". Somente
Aquele cujo olhar abarca toda a historia da humanidade pode definir o
sentido real que cada acontecimento tem nesse conjunto.

2) Se determinado mal nao tem realmente urna contra-parte posi


tiva ou valiosa, isto se deve muitas vezes ao endurecimento ou á indispo-
sicáo do ser humano. Deus nao constrange ninguém a acolher a sua gra
pa. Com outras palavras: a pessoa que sofre, pode fechar-se numa atitude
de revolta, que a torna ¡mpermeável b acao do Espirito de Deus.

3) Se alguém insiste em negar a existencia de Deus por causa das


desgrapas existentes no mundo, elimina do seu horizonte um fator de es-
peranpa e coragem, e nao resolve o problema do sofrimento. Ao contra
rio, cria para si um novo problema. Com efeito, verifica-se que muitas e
muitas pessoas, quando sofrem, apetam espontáneamente para Deus;
assim nos cárceres, nos hospitais, ñas trincheiras de guerra... é mais fre-
qüente o clamor que pede ajuda, do que a blasfemia. Quem sofre, ex
perimenta muitas vezes a necessidade de um auxilio mais do que huma
no para tirá-lo da sua dor e salvar da desgrapa os seus semelhantes.
Mais: se alguém nega a existencia de Deus, vé-se diante de um
mundo marcado pela injustica e retido pelas leis do mais forte que esmaga
o mais fraco... sem que possa haver esperanza de restaurado da ordem
ou do reconhecimento dos verdadeiros valores. Já Platáo (t 347 a.C),
diante da injusta morte de Sócrates, afirmava a necessidade de haver
urna justica superior ou divina para que a morte de Sócrates nao fosse
um mero absurdo ou o triunfo do mal sobre o bem (ver os diálogos Re
pública e Fedon).

1.3. S6 para os maus...

"Somente os criminosos deveriam sofrer, aopasso que os justos have-


riam de pozar de paz e (elicidade. Ora ás vezes parece que se dá o contra
rio".

64
O PORQUÉ DO SOFRIMENTO V7

A respeito ponderamos:

1} Todos os seres humanos sao portadores de pecado. Nao os di


vidamos em criminosos, de um lado, e inocentes, de outro lado. Os que
nao cometem graves faltas moráis, trazem dentro de si a potencialidade
ou a capacidade de as cometer.

2) O sofrimento nao deve ser considerado apenas como punigáo


ou sangáo devida a um réu. Ao contrario, o sofrimento tem significado
milito mais largo e nobre. Com efeito,

a) o sofrimento físico é decorrente da própria natureza corpórea do


homem. A dor é sinal de alarme que torna o homem consciente de uma
molestia ou um disturbio do seu organismo; se nao fosse a dor, o mal
progrediria sem que o paciente pudesse perceber adequadamente. O
natural desgaste dos órgáos (coragao, pulmóes, ffgado...) provoca dores
que vém a ser salutar advertencia ou ensinamento para o homem.

b) O sofrimento está também muito ligado ao amor e á nobreza de


caráter. Longe de ser castigo, o sofrimento decorre muitas vezes do fato
de que alguém ama outra pessoa e compartilha as dores desta. Pode-se
mesmo dizer: quanto mais alguém é digno e magnánimo, tanto mais so-
fre; quanto mais mesquinho ou desnaturado, tanto menos sofre. Qual a
máe que nao sofre por causa da dor de seu filho?

c) De modo geral, o sofrimento é escola para o ser humano. Con


tribuí para vencer o egoísmo e tornar a pessoa mais voltada para o pró
ximo; torna atuantes muitas energías e potencialidades que nunca desa-
brochariam se nao fosse o sofrimento. Esta verdade é táo obvia que já os
antigos gregos a formularam no trocadilho: pathos mathos (sofrimento é
ensinamento ou aprendizagem). Quem nao passa pelo cadinho do sofri
mento, muitas vezes é egocéntrico, e ¡nsensível para com os outros; des-
figura-se no plano da personalidade.

1.4. Ao menos, nao seja excessivo!

Dirá alguém: "Se o sofrimento tem suas vantagens, é para desejar que
nao se tome excessivo. Deus deveria saber moderá-lo".

- Respondemos que as expressóes "excessivo" e "pouco demais"


sSo relativas. Quem gosta de trabalhar, se dá por feliz quando desempenha
uma tarefa grande e importante, que a pessoa vadia rejeítaría como "ex-
cessiva". Caminhar um quilómetro, para uns, é excessivo, enquanto para
outros é insuficiente. - Por conseguinte, é difícil levar em consideracáo a
reivindicacáo do sofrimento nao excessivo, já que este termo é vago ou

65
18 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/19B7

genérico demais. Como dito, nao devo fazer de minhas categorías de


pensamento e afeto os criterios de afericao do que acontece aos outros,
principalmente se nao conheco esses outros.

Passemos agora a explanacáo da resposta crista, ao problema do


sofrimento.

2. A resposta crista

2.1. Observacáo previa

A fé ajuda o cristáo a esclarecer o problema do sofrimento, mas


nao dissipa todo enigma a tal propósito. Especialmente quando se consi-
deram casos particulares, como a morte desta máe ou deste pai, que dei-
xam criancas pequeñas, nao é possível oferecer explicacao cabal e precisa
para o ocorrido; nem nos é possível dizer por que tal desastre de auto-
móvel se deu precisamente em tal dia de festa. O livro de Jó nos recorda
a insondabilidade do sofrimento, quando, referindo-se ás tentativas de
explicar o sofrimento, póe nos labios de Jó as seguintes palavras:

"Eis que falei levianamente; que poderei responder-te? Porei mi-


nha mao sobre a boca; falei uma vez, nao replicare!... Falei de coisas
que nao entendía, de maravilhas que me uitrapassam. Conhecia-te só
de ouvido, mas agora viram-te os meus olhos; por isto retrato-me e fa-
90 penitencia no pó e na cinza" (Jó 40, 4s; 42, 3-6).

Todavia a fé crista projeta sobre o misterio do sofrimento a pers


pectiva do amor de Deus; como é difícil dar explicacio cabal para o mis
terio do amor, também é arduo explicar o misterio do sofrimento. A fé
católica enquadra o misterio do sofrimento dentro do misterio maior do
amor. Com efeito, o amor de Oeus, que criou o homem num misterioso
ato de benevolencia, jamáis o abandona; certamente exerce seus planos
a través dos percalgos da caminhada que a criatura percorre na térra. To
das as respectivas ocorréncias estáo sob o signo desse amor primeiro,
gratuito e irreversfvel (cf. 1 Jo 4,10.19).

Examinemos agora, de mais perto, a explicacáo teológica.

2.2. A origem do mal no mundo

A S. Escritura refere que o mal no mundo teve origem por violáceo


{por parte dos primeiros pais) da ordem instaurada pelo Criador.

Com efeito. Oeus quis dotar os primeiros homens de grande rique


za interior: 1) a graca santificante, que Ihes comunicava a filiacáo divina e

66
O PORQUÉ DO SOFRIMENTO 19

2) os dons preternaturais (a isencáo da morte, do sofrimento, da desor


dem de tendencias interiores...). Tal era o estado de justi'ca original.

Estes dons estavam condicionados á fidelidade do homem ao plano


de Oeus. Sim; deviam ser livremente aceitos pela criatura. Por isto o
Criador propós a esta um modelo de vida (figurado pela proibicáo da
fruta da árvore da ciencia do bem e do mal, Gn 2,16s). Aceitando-o, o
homem significaría su a entrega ao designio de Deus; recusando-o, ex
primiría o seu Nao e sua auto-suficiéncia. Ora na verdade os primeiros
pais rejeitaram o modelo de vida apresentado pelo Senhor Oeus; peca-
ram por soberba, que os levou á desobediencia. Em conseqüéncia, per-
deram a chamada "justica original" e cairam num estado em que existem
a morte, o sofrimento, as tendencias desregradas... Verdade é que tanto a
morte como o sofrimento e os apetites instintivos sao algo de natural; to
davía após o pecado dos primeiros pais trazem a marca da desordem e
da desobediencia. O mundo que, por dom de Deus, estava harmoniosa-
mente sujeito ao homem, já nao é tal;enquanto o homem se mantinha
submisso e fiel a Deus, o mundo inferior estava subordinado ao homem;
todavía, rompida a sujeípáo do homem ao Criador, rompe-se a serventía
das criaturas irracionais ao homem; estas o maltratam e esmagam, ne-
gam-lhe os frutos da térra e, nao raro, as condigóes de sobrevivencia.

Por conseguinte, conforme o texto sagrado e a doutrina da fé, a


origem do mal no mundo está no peíado ou no plano moral. Este susci-
tou o mal físico (doencas, mortes, catástrofes, calamidades...).

A doutrina do pecado original assim concebida tem sido questiona-


da ou posta em dúvida por parte de alguns teólogos e exegetas. Estes
afirmam que o pecado comecou sua historia no mundo sem o quadro ou
a moldura que o texto sagrado Ihe assinata; nao importaría o modo de
suas origens. Tal teoría destrói a cosmovisáo crista. Por ¡sto o S. Padre
Joáo Paulo II, em suas audiencias de quarta-feira, tem insistido no as-
sunto, incutindo a doutrina de fé da Igreja; tenha-se em vista L'Osserva-
tore Romano, edigóes semanais de setembro-outubro 1986.

Eís, porém, que, na historia das relagóes do homem com Deus, a


última palavra nao foi a do pecado nem a da desordem. O Senhor Deus
nao se quis deixar vencer pelo mal, mas venceu o mal com o bem (cf. Rm
12,21). É o que veremos a seguir.

2.2. O resgate da dor

Diz Sao Paulo: "Deus, que é rico em misericordia, pelo grande


amor com que nos amou, quando estávamos monos em nossos delitos,
nos vivíficou juntamente com Cristo" (Ef 2,4s). Ou aínda: "Onde abundou
o pecado, ai superabundou a grapa" (Rm 5,20). Com outras palavras:

67
20 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

Deus nao ficou indiferente á desgrana na qual o homem se atirou pelo


pecado; nao assistiu "fríamente" a tragedia; mas houve por bem assu-
m¡-la em toda a sua realidade concreta.

O testemunho do amor de Deus foi precisamente a obra de Cristo.


Enviando seu Filho ao mundo, o Pai constituiu um segundo Adáo ou um
novo Cabeca da humanidade. Este assumiu a dor e a morte do homem
até as últimas conseqüéncias, numa atitude de entrega e de amor ao Pai.
Desta maneira mudou o significado do sofrimento humano; este já nao é
mera conseqüéncia do pecado ou sancio da justica divina; ele foi redimi
do vindo a ser a via de volta do homem a Deus. O homem sofre e, so
frendo, se encaminha para o Pai com Cristo.

Os teólogos costumam deter-se na explanacáo do valor do sacrifi


cio de Cristo, valendo-se do texto de Sao Paulo: "Aquele que nao conhe-
cera o pecado, Deus o fez pecado por nos a fim de que nos tornássemos
justica de Deus por Ele" (2Cor 5,21). Estes dizeres significam que Cristo
foi constitufdo sacrificio pelo pecado; Ele fez partir da própria natureza
humana o amor e a dedicacáo ao Pai que o primeiro Adáo recusou.

O cristáo, sofrendo com Cristo, pode até mesmo tornar-se corre


dentor com Jesús, expiando em sua carne os pecados da humanidade,
como lembra o S. Padre Pió XII na encíclica Mystici Corporís Chrísti.
Desta maneira, o sofrimento, além de ser escola benéfica (como foi dito á
p. 65 deste artigo), é também ocasiffo de derramamento de grapas sobre
o mundo. O sofrimento dos inocentes há de ser visto á luz desta verdade:
como Cristo inocente padeceu transfigurando a dor, assim o cristáo san
tamente configurado a Cristo, padece oferecendo ao Pai o repudio ao pe
cado e o amor que os pecadores deveriam tributar a Deus. O Pai celeste
dispós salvar os homens mediante Cristo e aqueles que se unem a Cristo
pela santidade de sua vida. Assim a própria dor das pessoas retas e justas
toma sentido. Sao Paulo dizia: "Completo em minha carne o que falta a
Paixáo de Cristo em favor do seu corpo que é a Igreja" (Cl 1,24). Quando
o cristáo sofre, nao é simplesmente um ser biológico que sofre, mas é o
próprio Redentor que estende a sua Paixáo aos membros do seu Corpo
Místico, associando-os á sua obra redentora: na verdade, o sacrificio de
Cristo na Cruz foi infinitamente meritorio, mas cada cristáo pode dar-lhe
o suporte ou a moldura da sua vida pessoal..., suporte que a Paixáo de
Cristo nao teria se nao fosse a vida de cada discípulo de Cristo.

O valor do sacrificio do cristáo unido ao de Cristo foi realcado pelo


Cardeal Frantisek Tomasek, de Praga, numa entrevista concedida ao pe
riódico italiano II Sabato. O prelado falou entáo dos graves problemas
que o regime comunista suscita para a Igreja na Tchecoslováquia (cer-
ceamento de atividades pasturáis, dificuldades para a nomeacáo de Bis-

68
O PORQUÉ DO SOFRIMENTO

pos, encarceramentQ de sacerdotes e leigos...). O repórter entáo Ihe per-


guntou:

"Eminencia, nao está cansado de combater urna batalha sem éxi


to?"

Respondeu o Cardeal: "A situacáo é difícil; nao se vé como e


quando possa melhorar. Mas tenho sempre esperance. Digo sempre
urna coisa: quem trabalha pelo Reino de Deus, faz milito; quem reza, faz
mais; quem sofre, faz tudo. Este tudo é exatamente o pouco que faze-
mos entre n6s, na Tchecoslováquia".

Quem sofre, faz tudo, desde que unido a Cristo, pois toma parte
íntima na PaixSo Redentora do Senhor, fonte de salvacSo para o mundo
inteiro.

3. Conclusao

Eis a maneira como a mensagem crista" responde ao problema do


sofrimento humano. Aos olhos da fé, é plenamente satisfatória; tem sus
citado grandes heróis e heroínas a través dos séculos. O que esta explica-
gao possui de mais típico, é o fato de conjugar entre si justica e amor.
Sim; o sofrimento, de um lado, é a justa conseqüéncia do Nao dito pelo
homem a Deus no inicio da sua historia; por outro lado, é o testemunho
do amor de Deus que, assumindo o sofrimento e a morte, demonstra ao
homem que Ihe quer bem e nao desiste de o chamar á Vida; Cristo trans-
figurou o sofrimento e o fez caminho de conversáo ou de retorno ao Pai.

A propósito citamos:
John M. McDeimott SJ., II senso della sofferenza, em La Civihtá Cat-
tolica nP 3272, 18/10/1986, pp. 112-126.

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ou Caixa Postal 1362, Rio (RJ). Conta no BRADESCO, Agencia 3019 (Ca
tete, Rio), rr? 70.888-7.

69
Que sabemos?

"Luz sobre a idade media"


por Régine Pernoud

Em s/ntese: A Idade Media é tida Ireqüentemente como "época das tre-


vas". Para dissipar o mal-entendido, a historiadora francesa Régine Pernoud
publicou algumas obras, entre as quais "Luz sobre a Idade Media"; deste vo-
lume váo extraídos alguns tópicos relativos ao ensino e á vida cotidiana da~
quela época.

Quem analisa de perto a documentacáo deixada pelos medievais, toma


consciéncia de que Já viviam "urna civilizacáo refinada. Basta dizer que a hi
giene estava mais desenvolvida do que no secuto XVII. A hierarquia social
assentava essenciatmente nos tacos familiares. As mulheres tinhamdireitos
que perderam a partir do secuto XVI" (¥ capa do livro).

A historiadora francesa Régine Pernoud já foi apresentada em PR


289/1986, pp. 262-273. Especializou-se em estudos medievais e, por seus
escritos, tende a mostrar os aspectos positivos da Idade Media, que ge-
ralmente sao ignorados. 0 livro "Luz sobre a Idade Media"1 estuda di
versas facetas daquela época, como, por exemplo, as letras, as artes, a
mentalidade, a realeza, a vida urbana... Cada capitulo da obra é rico em
dados e ¡nformacdes, geralmente desconheridos mesmo ás pessoas de
media cultura. Eis por que ñas páginas seguintes nos voltaremos para
duas das secdes mais ¡nteressantes e surpreendentes da obra, que sao os
capítulos relativos ao ensino (pp. 99-110) e á vida cotidiana dos homens e
mulheres da Idade Media (pp. 165-195).

1. O ensino

1.1. Regime escolar

As escolas na Idade Media eram fundadas e mantidas geralmente


pela Igreja: havia as escolas das paróquias, as das catedrais e as dos

Publicares Europa-América, Mem Martins, Portugal.

70
"LUZ SOBRE A IDADE MEDIA" 23

Mosteiros. Em 1179 o Concilio do Latrao III impos a todas as ¡grejas a


obrigacáo de ter uma escola agregada. Além disto, os senhores feudais
podiam fundar suas escolas, como também os habitantes de um luga rejo
se podiam associar entre si para sustentar um professor encarregado de
ensinar ás crianzas. Conservou-se até hoje a petigáo de alguns país soli
citando a demissao de um professor, que, nao tendo sabido fazer-se res-
peitar pelos alunos, foi por estes desrespeitado; sim, haviam-no ferido
com os seus estiletes {grafiones) destinados a escrever sobre tabuínhas
revestidas de cera.

As mangas eram admitidas na escola com sete ou oito anos de ida-


de; o ensino, que preparava para os estudos da Universidade, estendia-se
por uma dezena de anos. Os meninos eram separados das meninas, que
tinham seus estabelecimentos próprios, menos numerosos talvez, mas
muito ativos. A Abadia de Argenteuil, por exemplo, onde foi educada
Heloisa, ensinava as alunas a S. Escritura, as letras, a medicina e mesmo
a cirurgia, sem contar o grego e o hebraico, que Abelardo lá ensinou. Em
geral, as pequeñas escolas proporcionavam aos seus alunos as nocóes de
gramática, aritmética, geometría, música e teología que Ihes permitiam
chegar ás Universidades; é possivel que algumas tenham ministrado um
ensino técnico.

As enancas de todas as "classes" da sociedade eram instruidas


juntas, como atesta o cronista, que aprésenla Carlos Magno (Imperador)
severo para com os filhos dos bardes que se mostravam preguiposos, ao
contrario dos filhos dos servos e de pessoas pobres. A única diferenca
consistía no fato de que o ensino era gratuito para os pobres e pago para
os ricos. Esta gratuidade se estendia a outros casos; por exemplo, o Con
cilio do Latráo III em 1179 proibiu aos responsáveis das escolas que "exi-
gissem taxas dos candidatos ao magisterio pela concessáo da Mcenca".

É a identidade de instrucáo ministrada a ricos e pobres que explica


tenha havido na Idade Media tantos grandes personagens saídos de fa
milias humildes: Sugero, que governou a Franca durante a Cruzada de
Luís Vil, foi filho de servos; Mauricio, de Sully, o bispo de Paris que man-
dou construir a catedral de Notre-Dame, nasceu de um mendigo; Sao
Pedro Damiáo, Cardeal, na sua infancia foi guarda de porcos; Gerberto
de Aurillac, brilhante dentista medieval, foi também pastor; o Papa Ur
bano VI foi filho de um pequeño sapateiro de Troyes e Gregorio Vil, o
grande Papa, foi filho de um pobre cabreiro.

Os estudantes mais dotados tomavam o caminho da Universidade,


de acordó com as suas preferencias. Em Montpellier, ensinava-se a me
dicina; em OrleSes, o Oireito Canónico; em Bolonha, o Direito Romano.
Paris, porém, atraia de modo especial, pois lá se aprendiam as artes li-

71
24 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

berais e a teología por parte de estudantes provenientes da Alemanha, da


Italia, da Inglaterra, da Dinamarca, da Noruega.

1.2. Autonomía universitaria

As Universidades, que eram obras da Igreja, dependiam direta-


mente do Papa e nao do Bispo do lugar. Cada Universidade formava um
corpo livre - o que quer dizer que estava isenta da jurisdic.áo civil ou dos
tribunais do rei. Professores, alunos e até os servidores destes depen
diam apenas dos tribunais eclesiásticos - o que era considerado um pri
vilegio; professores e alunos administravam a sua tesouraria sem inge
rencia do Estado. É esta a característica essencial da Universidade medie
val e aquela que mais a distingue da de hoje.

Tal liberdade favorecía a emulagáo entre as diversas Universidades:


os estudantes de Paris iam fraudulentamente a Orleáes a fim de concluir
a sua licenciatura, porque lá os exames eram mais facéis; realizavam seus
movimentos de contestado e greve... a tal ponto que a Universidade
medieval era um mundo turbulento, quase tanto quanto em nossos días.
- Era também um mundo cosmopolita: os estudantes de París estavam
repartidos em quatro nacóes: os Picardos, os Ingleses, os Alemáes e os
Franceses. Os professores também vinham de diversas partes do mundo:
havia Sigério de Brabante (Bélgica), Joao de Salisbury (Inglaterra), Alberto
Magno da Renánia, S. Tomás de Aquino e Sao Boaventura da Italia. A
llngua comum, única talada na Universidade, era o latim; esta permitía
aos sabios comunicar-se de um ponto a outro da Europa Ocidental e
contribuia para salvaguardar a homogeneidade de pensamento. Os pro
blemas que apaixonavam os filósofos, eram os mesmos em París, em
Oxford, em Edimburgo, em Colonia ou em Pavia.

O mundo estudantil era também um mundo itinerante: os jovens


saiam de casa para alcancar a Universidade de sua escolha; voltavam para sua
térra ñas testas. Punham-se a caminho para aproveitar as licoes de um mestre
de nomeada ou estudar urna materia na qual determinada cidade se espe
cializara. Como dito, havia os que "fugiam" para Orleáes para fazer os exa
mes de Direito Canónico em termos facilitados. Assim percorriam as estra
das a cávalo e, mais freqüentemente, a pé, caminhando leguas e leguas e
dormindo em abrigos de viandantes. Com os mercadores e os peregrinos, fo-
ram os estudantes os que mais contribuiram para a grande animacáo das es
tradas medievais.

No conjunto, o universitario do sáculo XIII tinha características seme-


Ihantes Is dos estudantes do sáculo XX. Temos cartas dirigidas por aqueles
aos pais e colegas, que revelavam as mesmas preocupacSes de hoje: os pedí-

72
"LUZ SOBRE A IDADE MEDIA" 25

dos de dinheiro e subsidios diversos, queixasde estudose exames penosos...


Nao poúcos careciam de dinheiro e, por ¡sto, eram dispensados das taxas da
sua Faculdade: encontra-se freqüentemente nos registros urna mencáo in
dicando que tal ou tal estudante nada pagou ou só pagou parte do débito
propter inopiam, por causa da sua pobreza. Alguns conseguiam trabalho re
munerado, que os ajudava a viver; sim, podiam tornar-se copistas ou enea-
dernadores ñas lojas de livros. Além disto, podiam pleitear pensao (cama e
mesa) nos colegios que se foram instituindo a partir de fins do sáculo XI I. O
primeiro destes albergues foi criado no Hotel-Dieu de Paris por um burgués
de Londres que, regressando de urna peregrinacao á Térra Santa, quis fazer
urna fundacao perpetua, encarregada de albergar e alimentar gratuitamente
dezoito estudantes pobres, os quais, em retribuicao, só tinham a obrigagao
de velar os mortos do hospital e levar a cruz e a agua benta por ocasiáo dos
enterras. Ao's poucos formou-se o hábito de organizar nessas pensoes (cha
madas "colegios"} sessoes de trabalho em comum ou grupos de estudos; os
professores iam ali lecionar e chegavam a fixar-se nos colegios, os quais se
tornavam assim mais freqüentados do que as proprias Universidades. Em su
ma, pode-se dizer que havia todo um sistema de bolsas de caráter semioficial
ou particular.

O ensino era ministrado em latim. Compreendia o trivium ou as artes


liberáis (Gramática, Retórica, Lógica), e o quadrivium ou as ciencias (Arit
mética, Geometría, Música e Astronomía). Além disto, havia as Facuidades
de Teología, Direito e Medicina. Assim era abrangido todo o ciclo de conhe-
cimentos da época. Cada ramo de saber era colocado dentro do conjunto
dos conhecimentos relativos ao homem; com outras palavras, os medievais
procuravam ministrar sempre cultura geral representada principalmente pelo
trivium e o quadrivium. É o que explica o caráter enciclopédico de muitos
sabios e letrados da época: Rogério Bacon, Joáo de Salisbury, Alberto'
Magno. . ., que podiam entregar-se sucessivamente a diversos assuntos sem
perder a visao do conjunto. A Universidade aplicava também com freqüéncia
o método da disputa filosófico-teológica (quaestiones disputatae), que se-
guiam regras estritas, aptas a garantir a boa ordem e o progresso do pensa-
mento.

Em Paris o número de estudantes era muito grande; exageradamente


tem-se dito que ultrapassava o da populacao fixa da cidade (pouco mais de
quarenta mil habitantes)! Tanto as autoridades quanto os cidadSos eram
assaz indulgentes para com os universitarios, apesar das pilhérias e dos grace
jos com que freqüentemente incomodavam os moradores da cidade. Algu-
mas cenas de sua vida f icaram gravadas em monumentos e escritos; vemo-los
a ler e a estudar: urna mulher vai perturbá-los e os afasta de seus livros; en-

73
26 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

tao, para puni-la, as autoridades civis a colocam no pelourinho'. Os reís da-


vam o exemplo de tratar os "escolares" como meninos mimados; Felipe Au
gusto, da Franca, depois da batalha de Bouvines, enviou um mensageiro a
anunciar a sua Vitoria, em primeiro lugar, aos estudantes parisienses.

1.3. Iletrados e cultos

Do que foi exposto, segue-se que tudo que dizia respe¡to ao saber, era
estimado na Idade Media. Rezava um proverbio: "Com desonra morra mere
cidamente quem nao gosta de livros". Estes fatos suscitam a pergunta: era o
povo tSo ignorante na Idade Media como geralmente se supSe?

A propósito faz-se mister dissipar um mal-entendido: o número de


iletrados era, sem dúvida, maior na Idade Media do que em nossa época (aín
da que menor do que se tem dito). Acontece, porém, que ser iletrado ná*o
significava ser ignorante ou inculto na Idade Media; sim, os homens medie-
vais aprendiam mais pelo ouvido do que pela leitura (o que se compreende,
pois, antes da ¡nvencao da imprensa, poucos e caros eram os livros); por mui
to estimados que fossem os códigos, eles nao podiam ser tifo utilizados e
aplicados quanto a palavra viva; lembremo-nos, por exemplo, de que as or-
dens dos reis e dos governantes eram muito mais freqüentemente proclama
das e apregoadas de viva voz do que transmitidas por escrito. Estes elemen
tos explicam que nos Estatutos municipais da cidade de Marselha, datados
.do sáculo XIII, sejam enumeradas asqualidades exigidas de um bom advoga-
do — ao que se acrescenta litteratus vel non litteratus (quer seja letrado,
quer nao); isto significa que alguém podia ser um bom advogado e nao saber
ler nem escrever; podia conhecer o Direito Romano, a jurisprudencia e o uso
da linguagem e, apesar de tudo, ignorar o alfabeto. Tal nocSo é de difi'cil
compreensao para um cidadao do século XX, mas torna-se de importancia
capital para se entender a Idade Media.

Elemento essencial da vida medieval foi a pregacao. Esta era exercida


nao só ñas ¡grejas, mas também nos mercados, nos cruzamentos de estradas,
ñas pracas públicas, e de maneira muito viva e calorosa. O pregador dirigía
se ao auditorio, respondía as suas perguntas, admitía até as suas iniciativas.
Os sermoes impressionavam profundamente as multidfies, podendo desen-
cadear urna Cruzada, propagar urna heresia ou preparar revoltas. O papel di-
dático dos clérigos era ampio: ensinavam aos fiéis as suas historiase as suas

1 O pelourinho era urna coluna de peora ou madeira em praca pública, jun


to da qual eram expostos e castigados os criminosos.

74
"LUZ SOBRE A IDADE MEDIA" 27

tradicoes, a sua ciencia e asua fé; comunicavam-lhesos grandes acontecimen-


tos (tomada de Jerusalém, perda de Sao Joao de Acre. . .); aconselhavam e
guiavam os outros, até nos negocios profanos. Como dito, na Idade Media,
as pessoas se instruiam escutando e tinham a memoria auditiva muito mais
exercitada do que a visual.

Em conclusao: a Idade Media, além da sua cultura patente e explícita


mente formulada, teve a sua cultura latente. Todos possuiam um conheci-
mento prático e concreto do latim falado, articulavam o canto-chao, que su-
póe, se nao a ciencia, pelo menos o uso da acentuapao no falar. Todos con he-
ciam um pouco da historia da sua gente e de seu torrao natal com as tradi
coes que a acompanhavam; os monumentos concorriam para transmitir esse
patrimonio histórico e cultural mesmo aos que nao sabiam ler (pensemos na
chamada "Biblia dos iletrados", que eram os vitrais das catedrais e igrejas).

Além dos conhecimentos de I fngua, canto e historia, havia o saber téc


nico, que os pequeños artesáos assimilavam no decorrer da sua aprendiza-
gem; os artífices nao se improvisavam; era preciso que as suas artes se Ihes
tivessem tornado urna segunda natureza. Muitas vezes os conhecimentos téc
nicos eram acompanhados de pequeña súmula do saber (astronomia, medici
na, botánica, metereologia), como atestam os compost des bergiers, manus
critos descobertos há poucos decenios, que revelam o gosto pela difusáo da
cultura entre os trabalhadores manuail da Idade Media. — Alias, é de notar
que esta época nao conhecia fosso entre artes manuais e profissoes liberáis;
sim, os termos sao significativos: mestres era tanto o fabricante de tecidos
que terminara a sua aprendizagem quanto o estudante de Teologia que obti-
vera a licenca para ensinar.

Estes dados históricos realmente abrem novas perspectivas, claras e


importantes, sobre a desconhecida Idade Media.

2. A vida cotidiana

2.1. Casas e rúas

No inicio da Idade Media registra-se a tendencia a agrupar as popula-


c5es em torno de um castelo, cujo senhor pudesse prestar defesa e proteclo
as familias de camponeses vizinhos. Todavía, desde que cessou a época das
invasoes (sáculo XI), as populacóes deixaram de se aglomerar em torno de
um grande senhor para constituir cidades propriamente ditas. Estas eram
sempre cercadas de muralhas (costume dos povos anteriores a Cristo) para se
defenderem de adversarios. A delimitacSo das cidades por muralhas fazia
que as rúas fossem, muitas vezes, tortuosas; sim, acompanhavam o tracado

75
28 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

das muralhas, que por sua vez dependiam da configurapao do terreno. Este
fato nao excluia certo plañejamen to das cidades: em Marselha, por exemplo.
as vias principáis sa*o estritamente paralelas as margens do porto, onde vao
desembocar as rúas transversais.

A estreiteza das rúas era devida a razSes precisas; os cidadaos queriam


defenderse do vento ou do sol, onde isto se fizesse necessário. Alias, o am
biente das rúas era muito importante para o homem medieval, pois vivia
grande parte do dia na rúa. Notemos que na antigüidade as casas apresenta-
vam poucas aberturas (portas ou janelas) para o exterior; eram iluminadas,
artificialmente em seu interior. Ao contrario, na lda.de Media, as casas se
abriram para as rúas - o que foi auténtica revolucSo arquitetdnica. As pes-
soas gostavam de sair. Todos os lojistas tinham um toldo, que montavam to
das as marinas, a fim de ex por os seus artigos ao ar livre; queriam assim apro-
veitar a luz do dia, que permitía aos clientes examinar os artigos melhor do
que a luz artificial. Um mercador de panos que levasse o fregués para dentro
da loja, era mal visto; pensava-se que, se nlo existisse defeito nos seus teci-
dos, nao teria receado expo-los em plena rúa, como faziam os outros. O bar-
beiro, o cordoeiro e mesmo o tecelao trabalhavam na rúa ou virados para
ela; o cambista instalava suas mesas sobre cavaletes diante da sua loja.

Assim as rúas eram muito movimentadas. Cada quarteirSo tinha a sua


fisionomia própria, pois os profissionais se agrupavam em corporacoes. Por
isto é que ainda hoje ñas cidades européias as rúas tém o nome de diversos
tipos de trabalhadores: Rúa dos Cuteleiros, Cais dos Ourives, Rúa dos Ta-
noeiros.. . Além da movimentacSo humana natural, registravam-se ñas cida
des medievais os pregoes ou as mensagens proclamadas em alta voz nos lu
gares públicos, pois na Idade Media tudo era apregoado (já que nao havia
jomáis impressos): as novidades do dia, as dedsoes da Polícia ou da Justica,
os leiloes ao ar livre, as mercadurías para venda, os vinhos dos taberneiros;
em suma, a publicidade era f alada e nao escrita.

Estes traeos ná*o devem dar a impressSo de que "as casas medievais
eram pocilgas fedorentas e as rúas eram cloacas", como já se dísse. - Os do
cumentos nos dSo noticias de cautelas tomadas para garantir a limpeza e o
asseio das cidades: em muitas destas, as rúas eram pavimentadas com pedras.
Havia esgotos, geralmente cobertos: em París foram encontrados os respecti
vos cañáis debaixo do terreno do Louvre e do antigo Palacio da Trémoille,
datando do sáculo XIII. Onde ná*o existiam tubos de esgoto, criavam-se va-
zadouros públicos, cujos detritos eram despejados nos rios ou queimados. A
policía se encarregava de fazer respeitar as leis da higiene pública. Existiam
regulamentos particulares para garantir a limpeza de lugares mais ameaca-

76
"LUZ SOBRE AIDADEMÉDIA" 29

dos pela sujeira: a carnicaria, a peixaria, a pelaría... Donde se vé que a saú-


de pública nao era negligenciada.

Urna dúvida, porém, poderia originar-se do fato de que os animáis


domésticos ñas cidades eram muito mais numerosos do que em nossos dias:
nao era raro ver-se um rebanho de cabras ou de carneiros ou mesmo urna
manada de vacas abrir passagem por entre os tabuleiros dos vendedores, pro
vocando desordens e tumultos. Em Londres os carneiros atravessavam diaria
mente urna das pracas mais movimentadas para ir pastar nos parques. Havia
principalmente porcos — cada familia criava a quantidade necessária ao con
sumo da casa —, que circulavam ñas calcadas apesar das proibicoes (isto nao
era totalmente inconveniente, pois devoravam os detritos comestfveis e as-
sim contribuiam para a limpeza pública). — As autoridades promulgavam lets
restritivas a criacao de animáis ñas cidades, mas nem sempre logravam o in
tento.

Na ruidosa cidade medieval, onde fervilhava urna populacao sempre


atarefada, a voz dos sinos marcava os principáis momentos do dia, fazendo
parte do "fundo sonoro" da cidade: de manhSe de tarde, o sino indicava as
horas de trabalho e de repouso, desempernando o papel das sirenes das fá
bricas modernas. O sino proclamava os dias de festa, chamava por socorro
em caso de alarme,convocava o povo para as reunioese os Conselhos; dobra-
va em tom de Finados ou em carrilháo de festa ou em sinal de incendio.
Quando anunciava a hora de recolher a noite, extinguiam-se as luzes das lo-
jas, fechavam-se os portoes das casas e até as portas da cidade; em caso de
perigo noturno, levantavam-se as pontes levadicas e baixavam-se as grades
para defender a cidade. Em alguns lugares colocavam-se correntes a atraves-
sar as rúas — o que era especialmente oportgno nos bairros de má fama, para
dificultar a fuga dos malandros. Só permaneciam acesas as lamparinas, que
dia e noite pestanejavam diante dos crucifixos ou das estatuetas da Virgem
e dos Santos em seu nicho ñas esquinas das rúas. — Os viajantes retardatarios
só tinham o direito de circular munidos de urna tocha.

As casas costumavam ter paredes grossas, que as defendiam contra o


frío, o calor e os rui'dos importunos.

2.2. O interior da casa

O elemento essencial da casa medieval é a sala. Nesta se reúne toda a


familia ñas horas das refeicoes e também á noite, ao calor da grande chami-
né, para se aquecer, contando historias antes que as pessoas fossem dormir.
Isto se dava tanto ñas casas dos camponeses como nos castelos. As outras

77
30 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/19B71

pecas da residencia tinham caráter relativamente secundario. A cozinha cos-


tumava ter seu recinto próprio; por vezes nos castelos ocupava um edificio
á parte, sem dúvida para limitar os riscos de um incendio.

Em muitas casas havia também as oficinas de trabalho. Osquartos de


dormir tinham adjacentes as privadas, longaignes ou retretes. A delicadeza ia
muito longe neste aspecto, pois a norma mandava que, ao menos ñas casas
de pequeños propietarios, cada pessoa tivesse a sua retirada própria e fosse
a única a usá-la. Os costumes so se tornaram grosseiros neste ponto a partir
do sáculo VXI, que, alias, acarretou o desprezo de quase todas as práticas de
higiene que a Idade Media cultivava. A Abadia de Cluny, no sáculo XI, ná"o
contava menos de quarenta latrinas. Existiam também as latrinas públicas; a
sua ¡nstalacáo e manutencáo era objeto de deliberacSes municipais e entrava
ñas contas da cidade. Ñas casas particulares, as retretes situavam-se no
último andar geralmente; um cano, ao longo da escada, levava aos vazadou-
ros ou ainda a fossas muito semelhantes as usadas atualmente; utilizavam-se
cinzas de madeira, que tém a propriedade de decompor os detritos orgáni
cos; encontramos a mencáo de compra de cinzas destinadas as latrinas do
hospital de Nfmes no sáculo XV.

Os quartos eram mobiliados com mais conforto do que geralmente se


pensa. O mobiliario compreendia camas bem adornadas e cobertas, colchas
e tapetes, com lencóis brancos e peles, os tamboretes, as cadeiras de espal
dar alto e os baús ou cofres esculpidos, onde se guardava a roupa. As madei-
ras da época eram muito belas; preparadas e enceradas devidamente, ná"o ab-
sorviam a poeira nem atraiam insetos. Havia também arcas (ou armarios) pa
ra o pao e guarda-loucas. Quanto as mesas, eram simplesmente tábuas que se
montavam sobre cavaletes no momento de servir e que se guardavam, a se
guir, junto ás paredes para nao estorvarem. Fazia-se muito uso de paño e ta
petarías, que protegiam do frió e cortavam as correntezas. Falando dos cui
dados varios de urna dona de casa, o Ménagier de Paris recomenda a Agnes,
que tem o papel de supervisor a: "Ordene ás servicais que, logo de manhazi-
nha cedo, as entradas da casa, a saber, a sala e os outros locáis por onde as
pessoas entram e se detém em casa para conversar, sejam varridas e conserva
das limpas, e os escabelos (tamboretes), bancos e xaireis', que estío sobre as
arcas, sacudidos e limpos do pó; e subseqüentemente os outros quartos I i ni
pos e ordenados para esse dia, e de dia para día". Talvez cause espanto ler
que nos inventarios da época é mencionado o tapete de banheira, que se co-
locava no fundo das banheiras, para evitar as farpas quando o fundo era de
madeira. Na verdade, a Idade Media, contrariamente ao que se julga, confie-

1 O xairel era urna cobertura de tecido ou de couro.

78
"LUZ SOBRE AIDAOE MEDIA" 31

cía os banhos e fazia largo uso deles. Mais urna vez: foi o século XVI que
rompeu com a tradipSo medieval neste particular. A Idade Media foi urna
época de higiene e limpeza.

As leis da hospitalidade mandavam que se oferecesse um banho aos


convidados que chegavam de longa viagem. Era hábito corrente lavar os pés
e as maos quando se entrava em casa.

Existiam também casas de banhos destinadas ao público, que eram


muito freqüentadas. Esses banhos podiam ser aquecidos por meio de artifi
cios e de condutos subterráneos, como se fazia na antiga Roma. Todas as ma-
nhas os propietarios dos banhos mandavam apregoar pela cidade: "Ouvi o
pregao matinal:/ Senhores, banhai-vos/E lavai-vos sem delongas:/ Os banhos
estao quentes, e é sem mentir" (Guillaume de Villeneuve, Crieries de Paris).
Alguns exageravam de modo que o Livre des Métiers de Etienne Boileau
prescreve: "Que ninguém apregoe ou mande apregoar os seus banhos antes
que o día amanheca".

2.3. O trabalho e os seus instrumentos

Os instrumentos de trabalho eram, na Idade Media, mais ou menos os


mesmosdequeseserviramoshomens até o século XIX, antes da motorizapSo
da agricultura.

Ao contrario do que se pensa, o carro de mao já existia na Idade Me


dia, semelhante áquele de que nos servimos atualmente. Existem manuscri
tos do século XIV cujas iluminuras mostram trabalhadores transportando
pedras ou tijolos em carros de mao.

Devem-se varias invencoes á Idade Media, as quais tiveram ampia re-


percussáo ñas épocas subseqüentes.

Seja mencionada, entre outras, a albarda do cávalo1. Até entáo a atre-


lagem concentrava todo o esforpo sobre o peito do animal, de modo que, se
a carga fosse muito pesada, corría o risco de sufocapao. No século X, porém,
os lavradores comecaram a atrelar as bestas de carga de modo que o corpo
inteiro é que suportava o peso e os esforpos exigidos. Esta inovapSo devia
modificar profundamente a vida social; com efeito, a trapSo humana havia

I Albarda é a sela grosseira, enchumbada de palha para bestas de carga (ver


Dicionário de Aurelio).

79
32 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

sido até entao mais importante do que a trapao animal. Doravante, porém,
foi possível inverter a ordem - o que tornou possível pensar mais seriamen
te na abolicao da escravatura (ligada ás condicSes económicas da antigüida-
de). A Igreja vinha lutando para que o servo fosse reconhecido como pessoa
humana dotada de todos os seus di reí tos; a sua voz pode ressoar com mais
probabilidade de éxito depois que cávalos e burros assumiram o seu lugar no
transporte de cargas.

Algo de semelhante se deu quando na Idade Media se inventou o moí-


nho: mofnho hidráulico e, depois, moínho a vento. . ■ Esta máquina substi-
tuiu a imagem do escravo atrelado a mó.

Os medie vais conseguí ram também fazer que urna viatura pudesse girar
sobre si própria, tendo as duas rodas da frente independentes das rodas de
tras. Este progresso acabou com os problemas que ocorriam quando um
grande vefculo carregado de cereais devia virar na estrada.

Mencionem-se ainda as descobertas da bússola e da barra do leme, nao


menos importantes na historia da humanidade. Os progressos da navegacáo
foram assim decuplicados - o que explica, pelo menos em parte, a intensa
movimentacao marítima do sáculo XIII.

A duracao da jornada de trabalho variava segundo as estacSes. Era o si


no da paróquia ou do mosteiro vizinho que chamava o artesSo á oficina e o
camponés aos campos. As pessoas deitavam-se e levantavam-se, em princi
pio, ao mesmo tempo que o sol: no invernó, o trabalhocomecava por volta
das oito ou nove horas, para terminar ás cinco ou seis; no verao, porém, a
jornada tinha infcio ás cinco ou seis da manfla" para só terminar ás sete ou
oito da noite. Consideradas as duas pausas para refeicSes, a jornada durava
oito ou nove horas no invernó, e doze, treze ou quinze no vera*o. Registra-
vam-se, porém, numerosas interrupcSes no calendario de trabalho, isto é,
cerca de noventa dias anuais de feriado completo e setenta ou mais dias de
feriados parciais. O calendario litúrgico regulava o ano inteiro; era pelas suas
datas, e nao pelos dias do mis, que se designava o tempo: assim falava-se do
"día de Santo André", e nao de 30 de novembro; dizia-se "tres dias após SSo
Marcos", de preferencia a 28 de abril.

A organizacá"o dos lazeres era de base religiosa: todo dia de festa come-
cava pelas cerimónias de culto; estas prolongavam-se em espetáculos, que
apresentavam cenas da vida de Cristo ou dos Santos. Havia também o teatro
inspirado por romances e crónicas. Depois do espetáculo, o divertimento
mais apreciado era a danca: danca dos donzeis nos castelos, ronda em torno
da árvore de maio ou ao redor da fogueira de SSo Joao... Havia os jogos do

80
"LUZ SOBRE A IDADE MEDIA" 33

interior da casa, entre os quais era preferido o de xadrez, a respeito do qual


encontraram-se tratados manuscritos em bibliotecas medievais.

Muitos outros dados poderiam ser colhidos no Mvro de Régine Per-


noud. Sao importantes porque poem em relevo a verdade sobre uma fase da
historia indevidamente tida como obscurantista. Nao nos podendo alongar
sobre o assunto, citaremos apenas ainda as considerares fináis de R. Per-
noud:

"A época das grandes descobertas é a Idade Media; foi entSo que se
aclimataram na nossa térra os frutos bizarros e magníficos: a laranja, o li-
máo, a roma", o péssego e o alperce; foi gracas aos cruzados que a Europa co-
nheceu o arroz, o algodáfo, a cana de acucar, que aprendeu a servir-se da bus-
sola, a fabricar o papel, e também, infelizmente, a pólvora dos canh5es;ao
mesmo tempo implantavam na Siria as nossas industrias: vidraria, tecelagem,
tinturaría; os nossos marcadores exploravam o continente africano, um ar-
quiteto europeu construía a grande mesquita de Tombuctu, e os etíopes fa-
ziam apelo aos nossos artífices de arte, pintores, cinzeladores, carpinteiros.
Viu-se na Idade Media um pacífico burgués de Tolosa, Anselme Ysalguier,
trazer para a sua cidade a princesa negra que havia desposado em Gao, ao
mesmo tempo que um médico vindo das margensdo Niger, ao qual recorría
o delfim, o futuro Carlos Vil. Residencia e peregrinacfo, realismo e fantasía,
tais sao os dois polos da vida medieval, entre os quais o homem evolui sem
o menor incómodo, unindo um e outro e passando de um ao outro com uma
facilidade que ná*o voltou a recuperar desde entáo.

Do conjunto sobressai uma confianca na vida, uma alegría de viver de


que nao encontramos equivalente em mais nenhuma civilizacSo. Essa especie
de fatalidade que pesa sobre o mundo antigo, esse teor do Destino, deus im-
placável ao qual os próprios deuses estao submetidos, o mundo medieval ig-
norou-a totalmente" (pp. 202s).

81
Que fo¡

A inquiskáo espanhola?

Em slntese: A Inquisicáo Espanhola nao foi urna instituigáo meramente


eclesiástica, como se pensa. Embora tenha tido origem em urna Bula do Papa
Sixto IV datada de 1478, to¡ mais e mais utilizada petos reís da Espanha para
servir aos fins políticos de uniticacáo dos seus territorios, nos quais habitavam
cristáos, judeus e muculmanos. Mais de urna vez estiveram em confuto a
Santa Sé e os monarcas espanhóis por causa do abuso de poderes na etimi-
nacáo de adversarios políticos perpetrado em nome da S. Igreja. A justica
manda que se reconheca esta índole muito peculiar da Inquisicao Espanhola
(que, aSás, também na Idade Media nao era instiluicáo meramente eclesiásti
ca), teto nüo nos isenta de reconhecer outrossim falhas cometidas por ecfe-
siásticos a servico da InquisigSo orientada pelos monarcas espanhóis.

O tema "InquisicSo" volta freqüentemente a baila, ocasionando


mal-entendidos e censuras severas á Igreja. Ainda recéntenteme a im
prensa publicava a seguinte noticia:

ESPANHA MOSTRA COMO ERA TORTURA DURANTE INQUISICAO

"TOLEDO, Espanha - As pessoas muito senslveis ou mesmo de


estómago delicado devem evitar a exposicáo sobre a época da Inquisi
cao que funcionará até o final de dezembro ñas antigás masmorras da
Santa Irmandade de Toledo, ñas proximidades de Madrí. Explica-se:
diante dos olhos dos visitantes, desfilam 85 instrumentos de tortura,
dos mais simples aos de requinte mais cruel, utilizados para punir here-
ges, criminosos em geral ou mesmo simples adversarios do poder da
Igreja num dos periodos mais negros de sua extensa historia.

A exposicáo inclui objetos até corriqueiros, como o acoite que


vergastava os Impíos até que os ossos ficassem á mostra, mas há
exemplares elaborados, como os cintos de castidade de variada concep-

82
INQUISIQÁO ESPANHOLA 35

cao e a ¡ncrlvel "mulher de ferro", que aterrorizavam subversivos, teó


logos progresistas, adúlteras, bruxas, ladrSes, homossexuais e todos
aqueles que ousavam discordar dos poderes temporais ou nao da época
que vai da Idade Media até meados do século XVIII.

Os sustos comecam logo na entrada. Á porta do primeiro cala-


bouco está postado um manequim coberto dos pés á cabeca com urna
túnica negra prestes a acionar urna guilhotina de lámina reluzente. Den
tro, a apavorante "mulher de ferro" - urna estatua oca cujas portas tém
ferros pontiagudos de cima a baixo que varavam os olhos, bracos, es
tómago e partes genitais. No seu terrlvel abraco, os supliciados costu-
mavam levar até dois dias para morrer, numa dolorosa agonía. A pri-
melra vitima da "mulher de ferro" foi um falsario no ano de 1515" (O
GLOBO, 15/11/86, p.30).

Quem lé tal noticia, senté a necessidade de saber como pode "a


Igreja" cometer acóes táo drásticas e cruéis. Ñas páginas que se seguem,
serao oferecidos ao leitor alguns dados indispensáveis a boa compreen-
sáo do fenómeno "Inquisicáo", que é muito mais complexo do que á
primeira vista parece.

1. Inquisicáo: generalidades

A palavra "Inquisicáo" significa "procura". Designa o tribunal que


procura va hereges e outras pessoas suspeitas a fim de ¡ulgá-los e senten
cia-los.

No antigo Oireito Romano, o juiz nao empreendia a procura dos


delituosos; só procedia ao julgamento depois que Ihe fosse apresentada a
denuncia. Até a Alta Idade Media o mesmo se deu na Igreja: a autoridade
eclesiástica nao procedia contra os delitos se estes nao Ihe fossem pre
viamente indicados. No decorrer dos tempos, porém, esta praxe cedeu á
da procura dos hereges ou á Inquisicáo. A razáo disto foi o surto, no sé-
culo XI, de nova forma de delito religioso, isto é, urna heresia fanática
e revolucionaria como nao houvera até entáo: o catarísmo (do grego ka-
tharós, puro) ou o movimento dos albigsnses (de Albi, cidade da Franca
meridional, onde os hereges tinham seu foco principal). Considerando a
materia por si má, os cataros rejeitavam nao somente a face visível da
Igreja, mas também instituípóes básicas da vida civil - o matrimonio, a
autoridade governamental, o servico militar - e enalteciam o suicidio.
Destarte constituiam grave ameaca nao somente para a fé crista, mas
também para a vida pública.

83
36 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

Em bandos fanáticos, ás vezes apoiados por nobres senhores, os


cataros provocaram tumultos, ataques ás igrejas, etc., por todo o decor-
rer do século XI até 1150 aproximadamente, na Franca, na Alemanha,
nos Paises-Baixos... O povo, com a sua espontaneidade, e a autoridade
civil se encarregaram de os reprimir com violencia: nao raro o poder re
gio da Franca, por iniciativa própria e a contra-gosto dos bispos, conde-
nou á morte pregadores albigenses, visto que solapavam os fundamen
tos da ordem constituida. Foi o que se deu, por exemplo, em Orleaes
(1017), onde o reí Roberto, informado de um surto de heresia na cidade,
compareceu pessoalmente, procedeu ao exame dos hereges e os man-
dou I anear ao fogo; a causa da civilizacSo e da ordem pública se ¡dentifi-
cava com a da fé! Entrementes a autoridade eclesiástica limitava-se a ¡m-
por penas espirituais (excomunháo, interdito, etc.) aos albigenses, pois
até entáo nenhuma das muitas heresias conhecidas havia sido combatida
por violencia física; S. Agostinho (t430) e amigos bispos, S. Bernardo
(t1153), S. Noberto (t1134) e outros mestres medievais eram contrarios
ao uso da forca ("Sejam os hereges conquistados nao pelas armas, mas
pelos argumentos", admoestava Sao Bernardo, In Cant. serm. 64).

Nao sao casos ¡solados os seguintes: em 1144 na cidade de Liáo o


povo quis punir violentamente um grupo de ¡novadores que ai se intro-
duzira; o clero, porém, os salvou, desejando a sua conversad, e nao a sua
morte. Em 1077 um herege professou seus erros diante do bispo de
Cambraia; a multidáo de populares lancou-se entáo sobre ele, sem es
perar o julgamento; encerraram-no numa cabana, h qual atea ram fogo!

Contudo em meados do século XII a aparente indiferenca do clero


se mostrou ¡nsustentável: os magistrados e o povo exigiam colaboracao
mais direta na repressáo do catarismo. Muito significativo, por exemplo,
é o Episodio seguinte: o Papa Alexandre III, em 1162, escreveu ao arce-
bispo de Reims e ao Conde da Flándría, em cujo territorio os cataros pro-
vocavam desordens:

"Mais vale absolver culpados do que, por excessiva severidade,


atacar a vida de ¡nocentes... A mansidáo mais convém aos homens da
Igreja do que a dureza".

Informado desta admoestacío pontificia, o rei Luís Vil de Franca


irmáo do referido arcebispo, enviou ao Papa um documento em que o
descontenta mentó e o respeito se traduziam simultáneamente:

"Que vossa prudencia dé atencao toda particular a essa parte (a


heresia) e a suprima antes que possa crescer. Suplico-vos para bem da
fé crista: concede! todos os poderes neste campo ao arcebispo (de
Reims); ele destruirá os que assim se insurgem contra Deus; sua justa

84
INQUISigAO ESPANHOLA 37

severidade será louvada por todos aqueles que nesta térra sao anima
dos de verdadeira piedade. Se procederdes de outro modo, as queixas
nao se acalmaráo fácilmente e desencadeareis contra a Igreja Romana
as violentas recriminacdes da opiniáo pública" (Marténe, Amplissima
Colleclio II 683s).

As conseqüéncias deste intercambio epistolar nao se fizeram espe


rar muito: o concilio regional de Tours em 1163, tomando medidas re-
pressivas a heresia, mandava inquirir (procurar) os seus agrupamentos
secretos. Por fim, a assembléia de Verona (Italia), á qual compareceram o
Papa Lucio III, o Imperador Frederico Barbarroxa, numerosos bispos,
prelados e príncipes, baixou em 1184 um decreto de grande importancia:
o poder eclesiástico e o civil, que até entáo haviam agido ¡ndependente-
mente um do outro {aquele impondo penas espirituais, este recorrendo a
forca física), deveriam combinar seus esforcos em vista de mais eficientes
resultados: os hereges seriam doravante nao somente punidos, mas
também procurados (inquiridos); cada bispo inspecionaría, por si ou por
pessoas de confianca, urna ou duas vezes por ano, as paróquias suspei-
tas; os condes, bardes e as demais autoridades civis os deveriam ajudar
sob pena de perder seus cargos ou ver o interdito (aneado sobre as suas
térras; os hereges depreendidos ou abjurariam seus erros ou seriam en
tregues no braco secular, que Ihes impona a sancáo devida.

Assim era instituida a chamada "Inquisicáo episcopal", a qual, co


mo mostram os precedentes, atendia a necessidades re ais e a clamores
exigentes tanto dos monarcas e magistrados civis como do povo cristáo;
independentemente da autoridade da Igreja, já estava sendo praticada
a repressáo física das heresias.

No decorrer do tempo, porém, percebeu-se que a Inquisicáo epis


copal ainda era insuficiente para deter os ¡novadores; alguns Bispos,
principalmente no sut da Franca, eram tolerantes; além disto, tinham seu
raio de acao limitado as respectivas dioceses, o que Ihes vedava urna
campanha eficiente. Á vista disto, os Papas, já em fins do século XII, co-
mecaram a nomear legados especiáis, munidos de plenos poderes para
proceder contra a heresia onde quer que fosse. Oestarte surgiu a "Inqui
sicáo pontificia" ou "legatina", que a principio ainda funcionava ao lado
da episcopal, aos poucos, porém, a tornou desnecessária. A Inquisicáo
papal recebeu seu caráter definitivo e sua organizacáo básica em 1233,
quando o Papa Gregorio IX confiou aos dominicanos a missao de Inqui
sidores; haveria doravante, para cada nacáo ou distrito inquisitorial, um
Inquisidor-Mor, que trabalharia com a assisténcia de numerosos oficiáis
subalternos (consultores, jurados, notarios...), em geral independente
mente do Bispo em cuja diocese estivesse instalado. As normas do pro
cedí mentó inquisitorial foram sendo sucessivamente ditadas por bulas
pontificias e decisóes de concilios.

85
38 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

Entrementes a autoridade civil continuava a agir, com zelo surpre-


endente(l), contra os sectarios. Chama a atengáo, por exemplo, a conduta
do Imperador Frederico II, um dos mais perigosos adversarios que o Pa
pado teve no sáculo XIII. Em 1220 este monarca exigiu de todos os oficiáis
do seu governo, prometessem expulsar de suas térras os hereges reco-
nhecidos pela Igreja; declarou a heresia crime de lesa-majestade, sujeito
á pena de morte e mandou dar busca aos hereges. Em 1224 publicou de
creto mais severo do que qualquer das leis editadas pelos reis ou Papas
anteriores: as autoridades civis da Lombardia deveriam nao somente en
viar ao fogo quem tivesse sido comprovado herege pelo Bispo, mas aín
da cortar a llngua aos sectarios a quem, por razóes particulares, se hou-
vesse conservado a vida. E possfvel que Frederico II visasse a interesseS
próprios na campanha contra a heresia; os bens confiscados redundariam
em proveito da coroa.

Nao menos típica é a atitude de Henrique II, rei da Inglaterra: tendo


entrado em luta contra o arcebispo Tomaz Becket, primaz de Cantuária, e
o Papa Alexandre til, foi excomungado. Nao obstante, mostrou-se um
dos mais ardorosos repressores da heresia no seu reino: em 1185, por
exemplo, alguns hereges da Flandria tendo-se refugiado na Inglaterra, o
monarca mandou prendé-los, marcá-los com ferro vermelho na testa e
expó-los, assim desfigurados, ao povo; aléin disto, proibiu aos seus sú-
ditos Ihes dessem asilo ou Ihes prestassem o mínimo servico.

Estes dois episodios, que nao sao únicos no seu género, bem mos-
tram que o proceder violento contra os hereges, longe de ter sido sem-
pre inspirado pela suprema autoridade da Igreja, foi nao raro desenca-
deado independentemente desta, por poderes que estavam em confuto
com a própria Igreja. A Inquisicao, em toda a sua historia, se ressentiu
dessa usurpacáo de direitos ou da demasiada ingerencia das autoridades
civis em questóes que dependem primariamente do foro eclesiástico.

Em conclusáo, o histórico das origens da Inquisiqáo leva-nos a ver


que esta nao foi concebida como órgáo de intransigencia odiosa, mas,
sim, qual medida defensiva do bem comum, religioso e civil. Consciente
disto, o historiador distingue entre a ¡ntencjio dos homens da Igreja que
instituiram a Inquisigáo, e a conduta daqueles que a executaram, deixan-
do-se nao raro levar pelas paixóes.

A Inquisigáo nao foi criada de urna so vez nem procedeu sempre do


mesmo modo no decorrer dos sáculos. Por isto distinguem-se

1) a Inquisicao Medieval, voltada contra as heresias catara e val-


dense nos séculos XII/XIII e contra um falso misticismo do século XIV;

86
INOAJISICAO ESPANHOLA 39

2) a Inquisicáo Espanhola, instituida em 1478 por iniciativa dos reis


Fernando e Isabel; visando principalmente aos judeus e aos muculmanos,
tornou-se poderoso instrumento do absolutismo dos monarcas espa-
nhóis até o século XIX, a ponto de quase nao poder ser considerada ins-
tituicáo eclesiástica (nao raro a Inquisigáo espanhola procedeu indepen-
dentemente de Roma, resistindo á intervencáo da Santa Sé, porque o reí
da Espanha a esta se opunha);

3) a Inquisicáo Romana (também dita "o Santo Oficio"), instituida


em 1542 pelo Papa Paulo III, em vista do surto do Protestantismo.

Levando em conta a noticia de jornal transcrita a p. 82, deter-nos-


emos especialmente sobre a Inquisicáo Espanhola.

2. Inquisicáo Espanhola

2.1. Uma populacao e tres confissdes religiosas

1. Em meados do século XV a Espanha apresentava uma situacáo


política assaz complexa.

A maior parte do territorio fora libertada da ocupacáo árabe (mu-


culmana) que desde o século VIII ai se exercia. Os califas árabes domina-
vam apenas na regiáo de Granada, aó sul do país. Contudo os soberanos
dos pequeños reinos da península nao se entendiam entre si, de modo
que a obra da Reconquista se achava estagnada desde a tomada de Se-
vilha em 1248 por obra de Fernando III o Santo.

Em 1479, os monarcas Fernando de Aragáo e Isabel de Castela,


tendo-se previamente unido em matrimonio, comecaram a reinar con
juntamente sobre todo o territorio livre da Espanha, pondo termo ás ri
validades sangrentas que solapavam os esforcos de unificacáo nacional.
A Espanha entrou entáo numa fase nova da sua historia, fase selada pela
vitória das tropas de Fernando e Isabel sobre os árabes em Granada no
ano de 1492. Nesta data tendo sido extinto o último reduto árabe, nao
restava mais poder estrangeiro legalmente instalado em territorio espa-
nhol. Contudo a obra de unificacáo estava longe de se achar consumada:
nao somente o fator étnico ou racial dividia entre si a populacao; também
o elemento religioso diversificava os cidadáos; havia, sim, em meio á
grande maioria de cristáos da península, grupos muito influentes de ju
deus e de muculmanos. Este fato mereceu a atencáo dos reis Fernando e
Isabel, os quais resolveram empenhar zelo ferrenho (inspirado, sem dú-
vida, por motivos nacionais, mas corroborado por tempera religiosa) a
fim de absorver ou (caso isto nao fosse possível) eliminar os elementos
heterogéneos da populacáo.

87
40 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

2. Nao se poderia, porém, descrever a acáo dos monarcas contra


judeus e mugulmanos sem se reconstituir brevemente o significado des-
tes dois grupos étnicos dentro da Espanha medieval.

a) Os Judeus. Durante a Idade Media foram sempre assaz numero


sos no territorio espanhol: "urna terca parte dos cidadaos e comerciantes
de Castela", escrevia Vincenzo Quirini, embaixador de Veneza no secuto
XV; somente Toledo, a capital de Castela, contava mais de doze mil israe
litas e possuia varias sinagogas de incontestável gosto artístico.

Nos séculos XII/XIV os judeus gozavam de liberdade e mesmo de


estima nos reinos cristáos da península. É o historiador israelita Theodor
Graetz (1817-1891) quem observa:

"Sob Afonso VIII o Nobre (1166-1214), os judeus ocuparam fun-


cóes públicas... José ben Salomáo ibn Schoschan, que tinha o título de
principe, homem rico, generoso, sabio e piedoso, era muito considerado
na corte e junto aos nobres... O reí, casado com urna princesa inglesa, ti-
vera durante sete anos urna favorita judaica, chamada Rahel e, em vista
de sua beleza, cognominada Formosa. Os judeus de Toledo ajudaram
enérgicamente o monarca na sua luta contra os mouros" (Graetz, His-
toiredesjurfslV1l8).

Em fins do século XIV, porém, e no decurso do século XV, os israe


litas tornaram-se objeto de perseguicóes; irritavam profundamente o po-
vo por suas riquezas, em grande parte arrecadadas á custa de emprésti-
mos a juros elevadíssimos (podiam chegar a 40%), e por seu luxo tido
como arrogante. Registraram-se primeramente tumultos e linchamientos
populares contra os judeus, desordens estas que os reis de Castela, Na
varra e Aragáo procuraram reprimir. A situacáo, porém, se tornou in-
sustentável em meados do século XV, quando nao poucos judeus, dese-
josos de conservar suas posicóes financeiras e políticas, pediam o batís-
mo cristáo, conservando nao obstante a fé judaica e observando, no re
cóndito de seus domicilios, as práticas talmúdicas. Essa onda de conver-
sóes insinceras recrudesceu principalmente em Castela, quando o jovem
rei Joáo II declarou os judeus incapazes de exercer alguma funcáo públi
ca (1468); deram-se entao milhares de conversóes aparentes, ocasionan
do um tipo de cidadaos que o povo chamava "Marranos" (palavra que
jogava ao mesmo tempo com a expressáo semita "Maran atha", O Se-
nhor vem, e com o termo castelhano "marrano", leitáo).

"Embora tivessem que participar dos sacramentos, (os marranos)


esforcavam-se o mais possível por se Ihes subtrair... No tribunal da pe
nitencia nao confessavam coisa alguma ou s<5 acusavam faltas leves;
mandavam batizar seus filhos, mas, ao sair das cerimónias, lavavam cui-

88
INQUISICÁO ESPANHOLA 41

dadosamente as partes do corpo ungidas pelo santo crisma. Alguns rabi


nos iam secretamente dar-lhes instrucáo... Imolavam, seguindo os seus
ritos, animáis e aves que Ihes serviam de alimento... So comiam carne de
porco quando constrangidos a isso" (M. Mariejol, L'Espagne sous Fer-
nand et Isabelle, pág. 45).

Ostentando a aparéncia de bons cristáos, os marranos chegavam a


ocupar elevados cargos na Igreja, infiltrando-se até mesmo no alto clero;
conta-se o caso (até que ponto será verídico?) de um Bispo de Calahorra,
o qual, indo a Roma, comia carne ás sextas-feiras (coisa lá proibida), re-
zava em hebraico segundo rito judeu, recusava pronunciar o nome de
Cristo, e aínda espancava seus sacerdotes caso estes Ihe quisessem cha
mar a atencáo!

A hipocrisia dos marranos era nao raro denunciada pelos seus


correligionarios de rapa judaica que, tendo sinceramente abracado a fé de
Cristo, haviam recebido ordens sacerdotais na Igreja ou queriam dar pro-
vas de sua auténtica conversáo. Em conseqüéncia, os marranos chega-
ram a se reunir em sociedades secretas de tipo macónico, o que os torna-
va ainda mais suspeito e antipáticos ao povo. Este os tinha na conta de
verdadeiro perigo para o bem comum, tanto do ponto de vista religioso
como do ponto de vista civil (a causa religiosa e a causa nacional pare
cia m no caso, solidarias entre si).

b) Os muculmanos. Quando os árabes maometanos ocuparam a


Península Ibérica no século VIII, deram inicio a urna política de tolerancia
para com o povo cristáo, que cultivava o solo e que conseqüentemente
passou a ser chamado "mocárabe" (do árabe must'rib, "arabizado"). Diz-
se mesmo que no século XV rara era a familia crista que nao contasse
entre os seus antepassados um discípulo de Maomé.

.Nos territorios que aos poucos iam sendo reconquistados, os reis


cristáos se mostravam, por sua vez, tolerantes para com os árabes, reco-
nhecendo a estes liberdade religiosa. Assim é que notável populacáo de
muculmanos vivia ñas cidades de Valenga, Toledo, Sevilha, etc., gozando
de grande influencia na vida pública, pois os árabes continuavam a usu-
fruir das vantagens económicas que possuiam antes da Reconquista;
conseguiam mesmo ampliar essas vantagens mediante intenso comercio
com seus correligionarios do sul da Espanha, da África do Norte e da ba
ria do Mediterráneo. Eis, porém, que no século XIV alguns motins de
árabes prepotentes contra os governos cristáos provocaram, da parte
destes, urna serie de medidas que visavam doravante a conter a influen
cia política e social dos muculmanos, influencia que se exercia principal
mente pela industria, o comercio e os empréstimos a juros.

89
42 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

Visando entáo a libertar-se da coibicáo e do controle dos soberanos


espanhóis, nao poucos maometanos abracaran*! a fé católica, dando as-
si m origem a outro tipo de cidadáos ambiguos, popularmente denomi
nados "mouriscos". Convertendo-se ao menos em aparéncia, os árabes
passavam a gozar dos mesmos direitos civis e religiosos que os cristáos,
exceto o direito de acesso ao episcopado (contudo no século XV conta-
vam-se varios bispos espanhóis convertidos do islamismo). Todavia as
conversóes interesseiras nao escapavam a observacáo do público, que se
mostrava ¡nfenso á hipocrisia dos "mouriscos"; as intrigas e maquina-
coes destes, tramadas como que em sociedades secretas, vinham a ser
¡negavelmente mais perigosas para o bem comum do que as atividades
dos muculmanos confessos.

Na situacáo geral que acaba de ser descrita, compreende-se que


aos poucos as autoridades dos reinos cristios da Espanha tenham perce-
bido a necessidade de dar busca ou "Inquisipáo" aos cidadáos ambiguos
- marranos e mouriscos. Era, de um Jado, a seguranca pública que o exi-
gia dos poderes civis; doutro lado, já que a pureza da fé crista estava
em jogo, também as autoridades eclesiásticas deviam mostrar-se interes-
sadas em tal género de indagagáo ou ¡nquisicáo. Em urna palavra: para a
Espanha crista, a luta contra a falsidade religiosa, contra as maquinacóes
secretas de cidadáos ambiciosos dissimulados sob rótulos religiosos, se
apresentava como questio de vida ou morte. Destarte Estado e Igreja,
interesses civis e interesses religiosos se entrelacavam espontáneamente
para dar origem ao famoso fenómeno da "Inquisicáo Espanhola".

É a este que vamos agora voltar diretamente a nossa atencáo.

2.2. Surto e procederes da Inquisicáo Espanhola

Os reis Fernando e Isabel, visando á plena unificacáo de seus do


minios, tinham consciéncia de que existia urna instituido eclesiástica -
a Inquisicáo - oriunda na Idade Media com o fim de reprimir um perigo
religioso e civil dos séculos XI/XII - a heresia catara ou albigense-, peri
go ao qual bem se assemelhavam as atividades dos marranos e mouris
cos na Espanha do século XV.

1. A Inquisicáo Medieval, que nunca fora muito ativa na Península


Ibérica, achava-se al mais ou menos adormecida na segunda metade do
século XV... Aconteceu, porém, que durante a Semana Santa de 1478 foi
descoberta em Sevilha urna conspiracao de marranos, a qual, dadas as
suas ¡ntencóes nítidamente anticristás, muito exasperou o público. Entáo
lembrou-se o rei Fernando de pedir ao Papa, reavivasse na Espanha a
antiga Inquisicáo, e a reavivasse sobre novas bases, mais promissoras,
confiando sua orientacáo ao monarca espanhol.

90
INQUISigAO ESPANHOLA 43

Sixto IV, assim solicitado, resolveu finalmente atender ao pedido de


Fernando (ao qual, depois de hesitar algum tempo, se associara Isabel).
Enviou, pois, aos reis da Espanha a Bula Exigit sincerae devoüonis
affectus de 1? de novembro de 1478, pela qual "conferia plenos poderes a
Fernando e Isabel para nomearem dois ou tres Inquisidores, arcebispos,
bispos ou outros dignitários eclesiásticos, recomendáveis por sua pru
dencia e suas virtudes, sacerdotes seculares ou regulares, de quarenta
anos de idade ao menos, e de costumes irrepreensfveis, mestres ou ba-
charéis em Teologia, doutores ou licenciados em Direito Canónico, os
quais dever ¡a m passar de maneira satisfatória por um exame especial.
Tais Inquisidores ficariam encarregados de proceder contra os ¡udeus
batizados reincidentes no judaismo e contra todos os demais culpados de
apostasia. 0 Papa delegava a esses oficiáis eclesiásticos a jurisdicáo ne-
cessária para instaurar os processos dos acusados conforme o Oireito e o
costume; além disto, autorizava os soberanos espanhóis a destruir tais
Inquisidores e nomear outros em seu lugar, caso isto fosse oportuno" (L.
Pastor, Histoire des Papes IV 370).

Note-se bem que, conforme este edito, a Inquisicáo só estenderia


sua acáo a cristáos batizados, nao a judeus que jamáis houvessem per-
tencido á Igreja; a instituicab era, pois, concebida como órgao promotor
de disciplina entre os filhos da Igreja, nao como instrumento de intole
rancia em relacáo ás crencas náo-cristás.

Ora, apoiados na lícenca pontificia, os reis da Espanha aos 17 de


setembro de 1480 nomearam Inquisidores, com sede em Sevilha, os dois
dominicanos Miguel Morillo e Juan Martins, dando-lhes como assesso-
res dois sacerdotes seculares. Os monarcas promulgaram também um
compendio de "Instrucóes", enviado a todos os tribunais da Espanha,
constituindo como que um código da Inquisicáo, a qual assim se tornava
urna especie de órgáo do Estado civil.

Os Inquisidores entraram logo em acáo, procedendo geralmente


com grande energía. Parecía que a Inquisicáo estava a servico nao da Re-
ligiáo propriamente, mas dos soberanos espanhóis, os quais procuravam
atingir criminosos mesmo de categoría meramente política.

Em breve, porém, fizeram-se ouvir em Roma queixas diversas


contra a severidade dos Inquisidores. Sixto IV entáo escreveu sucessivas
cartas aos monarcas da Espanha, mostrando-lhes profundo desconten-
lamento por quanto acontecía em seu reino e baixando instrucóes de
moderacáo para os jufzes tanto civis como eclesiásticos.

Merece especial destaque neste particular o Breve de 2 de agosto


de 1482, que o Papa, depois de promulgar certas regras coibitivas do po
der dos Inquisidores, concluía com as seguintes palavras:

91
44 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

"Visto que somente a caridade nos torna semelhantes a Deus...,


rogamos e exortamos o Reí e a Rainha, pelo amor de Nosso Senhor
Jesús Cristo, a fim de que imitem Aquele de quem é característico ter
sempre compaixáo e perdáo. Queiram, portanto, mostrar-se indulgentes
para com os seus súditos da cidade e da diocese de Sevilha que confes-
sam o erro e imploran) a misericordia!".

Contudo, apesar das freqüentes admoestagóes pontificias, a Inqui


sicáo Espanhola ia-se tornando mais e mais um órgáo poderoso de in
fluencia e atividade do monarca nacional. Para comprovar isto, basta
lembrar o seguinte: a Inquisicáo no territorio espanhol ficou sendo insti-'
tuto permanente durante tres séculos a fio. Nisto diferia bem da Inquisi
cáo Medieval, a qual foi sempre intermitente, tendo em vista determina
dos erros oriundos em tal e tal localidade. A manutencáo permanente de
um tribunal inquisitorio impunha avultadas despesas, que somente o
Estado podia tomar a seu cargo; foi o que se deu na Espanha: os reis
atribuiam a si todas as rendas materiais da Inquisicáo (impostos, multas,
bens confiscados) e pagavam as respectivas despesas; conseqüentemente
alguns historiadores, referindo-se á Inquisicáo Espanhola, denomina-
ram-na "Inquisicáo Regia"!

A fim de completar o quadro até aqui tragado, passemos a mais um


pormenor característico do mesmo.

Os reis Fernando e Isabel visavam a corroborar a InquisicSo, emanci


pando-a do controle mesmo de Roma... Conceberam entáo a idéia de dar
á instituicao um chefe.único e plenipotenciario - o Inquisidor-Mor -, o
qual julgaria na Espanha mesma os apelos dirigidos a Roma. Para este
cargo, propuseram á Santa Sé um religioso dominicano, Tomaz de Tor-
quemada ("a Turrecremata", em latim), o qual em outubro de 1483 foi
realmente nomeado Inquisidor-Mor para todos os territorios de Fernan
do e Isabel. Procedendo á nomeagáo, escrevia o Papa Sixto IV a Tor-
quemada:

"Os nossos caríssimos filhos em Cristo, o rei e a rainha de Castela


e Leáo, nos suplicaram para que te designáremos como Inquisidor do
mal da heresia nos seus reinos de Aragio e Valenca, assim como no
principado da Catalunha" (Bullan Ord. Praedicatorum III 622).

O gesto de Sixto IV so se pode explicar por boa fé e confianga. O


ato era, na verdade, pouco prudente...

Com efeito; a concessáo benignamente feita aos monarcas seria


pretexto para novos e novos avangos destes: os sucessores de Torque-
mada no cargo de Inquisidor-Mor já nao foram nomeados pelo Papa,

92
INQUISIQAOESPANHOLA 45

mas pelos soberanos espanhóis (de acordó com criterios nem sempre
louváveis). Para Torquemada e sucessores, foi obtido da Santa Sé o di-
reito de nomearem os Inquisidores regionais, subordinados ao Inquisi
dor-Mor.

Mais ainda: Fernando e Isabel criaram o chamado "Conselho Regio


da Inquisicáo", comissáo de consultores nomeados pelo poder civil e
destinados como que a controlar os processos da Inquisigio; gozavam de
voto deliberativo em questóes de Direíto civil, e de voto consultivo em
temas de Direito Canónico.

Urna das expressóes mais típicas da autonomía arrogante do Santo


Oficio espanhol é o famoso processo que os Inquisidores moveram con
tra o arcebispo primaz da Espanha, Bartolomeu Carranza, de Toledo.
Sem descer aos pormenores do acontecimento, notaremos aqui apenas
que durante dezoito anos continuos a Inquisicáo Espanhola perseguiu o
venerável prelado, opondo-se a legados papáis, ao Concilio ecuménico
de Trento e ao próprio Papa, em meados do sáculo XVI.

Frisando ainda um particular, lembraremos que o rei parios III


(1759-1788) constituí outra figura significativa do absolutismo regio no
setor que vimos estudando. Colocou-se peremptoriamente entre a Santa
Sé e a Inquisicáo, proibindo a esta que executasse alguma ordem de Ro
ma sem licenca previa do Conselho de Castela, ainda que se tratasse ape
nas de proscricáo de livros. O Inquisidor-Mor, tendo acolhido um proces
so sem permissáo do rei, foi logo banido para localidade situada a doze
horas de Madrid; só conseguiu voltar a pos apresentar desculpas ao rei,
que as aceitou, declarando:

"O Inquisidor Geral pediu-me perdió, e eu Iho concedo; aceito


agora os agradecimentos do tribunal; protegé-lo-ei sempre, mas nao se
esqúeca ele desta ameaca de minha cólera voltada contra qualquer ten
tativa de desobediencia" (cf. Desdevises du Oezart, L'Espagne de
/'Anden Régime. La Société 101 s).

A historia atesta outrossim como a Santa Sé repetidamente decre-


tou medidas que visavam a defender os acusados frentes a dureza do poder
regio e do povo. A Igreja em tais casos distanciava-se nítidamente da In
quisicáo Regia, embora esta continuasse a ser tida como tribunal ecle
siástico.

Assim aos 2 de dezembro de 1530, Clemente Vil conferiu aos Inqui


sidores a faculdade de absolver sacramentalmente os delitos de heresia e
apostasía; destarte o sacerdote poderia tentar subtrair do processo públi
co e da infamia da Inquisicáo qualquer acusado que estivesse animado de

93
46 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297/1987

sinceras disposicóes para o bem. Aos 15 de junho de 1531, o mesmo Pa


pa Clemente Vil mandava aos Inquisidores tomassem a defesa dos mou-
riscos que, acabrunhados de impostos pelos respectivos senhores e pa-
tróes, poderiam conceber odio contra o Cristianismo. Aos 2 de agosto de
1546, Paulo III declara va os mouriscos de Granada aptos para todos os
cargos civis e todas as dignidades eclesiásticas. Aos 18 de Janeiro de 1556,
Paulo IV autorizava os sacerdotes a absolver em confissáo sacramental
os mouriscos.

Compreende-se que a Inquisicáo Espanhola, mais e mais desvir


tuada pelos interesses as vezes mesquinhos dos soberanos temporais,
nao podía deixar de cair em decllnio. Foi o que se deu realmente nos sé-
culos XVIII e XIX. Em conseqüéncia de urna revolucio, o Imperador Na-
poleáo I, intervindo no governo da nació, aboliu a Inquisicáo Espanhola
por decreto de 4 de dezembro de 1808. O rei Fernando Vil, porém, res-
taurou-a em 1814, a fim de punir alguns de seus súditos que haviam co
laborado com o regime de Napoleáo. Finalmente, quando o povo se
emancipou do absolutismo de Fernando Vil, restabelecendo o regime li
beral no país, um dos primeiros atos das Cortes de Cádiz foi a extincao
definitiva da Inquisicáo em 1820. A medida era, sem dúvida, mais do que
oportuna, pois punha termo a urna situagáo humilhante para a Santa
Igreja.

É a luz destes dados históricos que se devem ler as noticias relati


vas aos instrumentos de tortura aplicados na Espanha sob a Inquisicáo.
Nao há dúvida, sao algo de desumano e condenável; talvez, porém, os
antigos nao se horrorizassem tanto diante deles quanto nos, pois outrora
os homens professavam urna mentalidade fortemente metafísica, isto é,
propensa a colocar os valores transcendentais ácima dos valores psicoló
gicos e humanos, sem consideracáo de pessoas; desde que julgassem ser
seu dever defender alguma nobre causa, tudo davam por ela, sacrifican
do mesmo pessoas humanas, de acordó com as categorías e os procedí-
mentos da sua época. - De resto, o Cesaropapismo ou a indevida inge
rencia dos monarcas em assuntos de ordem interna da Igreja muito pre-
judicou a causa católica no decorrer dos séculos.

EstévSo Bettencourt O.S.B.

94
O caso Neimar de Barros
O Instituto dos Misionarios para Evangelizado e Animado de Comu
nidades, ao qual pertencia Neimar de Barros, publicou a seguinte declarado:

REVERENDOS SENHORES BISPOS, SACERDOTES

E LÍDER ANCAS CRISTAS

01 - A 7 de novembro de 1986, os Bispos do Regional Sul I, reunidos em


Itaici — SP, pediram-nos um histórico sobre o "episodio Neimar de
Barros", a ser enviado a todas as dioceses e paróquias.
02 - O Instituto MEAC (Missionirios para Evangelizado e AnimacSo de
Comunidades), existe desde 25 de Janeiro de 1977 como Instituto
Missionário de Leigos, registrado no 3? Cartório de Registro Civil
das Pessoas Jurídicas sob n? 4.944 e inscrito no C.G.C. sob n°
48.409.569/0001-31.
03 - Neimar Machado de Barros foi um dos fundadores.
04- Desde 1978, o MEAC participa das Assembléias do COMINA (Conse-
Iho Missionário Nacional). Na 10? Assembláia do COMINA, foi feita
solicitacSo ao MEAC para que organizasse um Encontró tentando ar
ticular os missionários leigos do Brasil. Assim nasceu o OMIL (Orga
nismo dos Missionários Leigos). •
05 — O trabalho de apostolado de Neimar 6 anterior á fundacao do Institu
to MEAC. Vem desde 1971, após sua participacSb num Cursi Iho de
Cristandade, e sua posterior ruptura com o apresentador e dono de
TV, Silvio Santos.
06 — Pernos plena conviccífo de que, durante estes 15 anos, Neimar foi um
i'regador apaixonado pelo Evangelho, amou a Igreja, foi sincero, cho-
rou pela missáo, sofreu como evangelizador, correu riscos, foi interna
do — tuberculoso — como indigente no Sanatorio Santa Cruz, em
Campos de JordSo — SP.
Neimar rezava muito, jejuava um dia por semana, nao fumava, nem be
bía.
Era amigo e irmáo com todos, bom coracSo, ajudava em casos de ne-
cessidade, sem alardear.
Jamáis se vendeu. Vivía plenamente engajado na Pastoral da Igreja.
07 — Surpreendeu-nos — f ¡camos sem dormir muitas noites — quando sou-
bemos, em 31 de julho de 1986, que havia deixado sua esposa e f ilhos
e fora viver com urna "namorada" dos tempos pró-cursilho, quando se
declarava ateu.
08 - Este fato, por si so, o colocou fora do Instituto MEAC, o que foi ofi
cializado em reunido do MEAC em 10/09/86.

95
48 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 297M987

09 - As declarares de Neimar á revista Veja (n° 948 de 05/11/86) nío fa-


zem nenhum sentido para nos que convivemos com ele durante este
tempo, nem para seus familiares — mae, esposa e filhos — e nem para
milhares de pessoas em todo o Brasil que o hospederam e ouviram. Ja
máis alguém ouviu falar de "Secretaria" ou qualquer outra organiza-
cao secreta.

10 - É difícil explicar este Neimar de agora, "urna caixinha de surpresas"


como se intitula.
Tentaremos apenas, para atender ao pedido dos Bispos e ¡números in-
teressados em todo o país — recebemos mais de 1.200 telefonemas de
liderancas pedindo explicacSes — algumas hipóteses:
a) Nos últimos meses, o Neimar vinha, visivelmente, descuidando do
"orai e vigiai", muito preocupado com bens materiais.
b) Nao apoiava o incremento do Instituto nem via com bons oíhbs os
novos elementos.
c) Questionava certos pontos da doutrina da Igreja, como matrimonio
indissolúvel, confissSo auricular, celibato eclesiástico. Embora em-
penhado no trabalho evangelizador, nem sempre aceitava a hierar-
quia.
d) Nao aceitou sua exclusao do Instituto MEAC nem o cancelamento
de varias palestras já marcadas. Tentou conciliar a nova situacao fa
miliar com o anterior trabalho missionário. Quando se apercebeu
da barreira intransponível, partiu paraos "ataques" em Veja, abso
lutamente infundados e inconseqüentes.
e) Neimar tem pronto um livro que se supoe verse sobre "os podres da
Igreja" que ele teria "espionado" nestes 15 anos de palestras pelo
Brasil.
As declaracóes á Veja, bem mais ampias do que foi publicado, te-
riam por finalidade preparar o terreno para o lancamento "sensa-
cionalista" desse livro?
Ou anular o trabalho futuro do MEAC, envolvendo o Instituto em
sua "trama" de espiáo?
f) A bem da verdade, ele nao apresentou pravas de especie alguma á
revista Veja.
g) Nao é de descartar a hipótese — já levantada por pessoas de sua fa
milia — de perturbacSo mental, ou "bloqueio", que o impediría de
ver as conseqüéncias de seus atos.
h) Se ele tentou provar que certa "grande imprensa" acredita até em
-9* a vender exemplares, ele conseguiu.
UN -«<" F FS
(continua na p. 60)

96
PRÓXIMO LANCAMENTO DAS EOICÓES "LUMEN CHRISTI":

D. PEDRO MARÍA DE LACERDA


ÚLTIMO BISPO DO RIO DE JANEIRO NO IMPERIO
(1868-1890)

Para elaborar o presente Mvro, o autor, D. Jerónimo de Lemos


O.S.B., além de consultar ampia bibliografía, viu também o arquivo de D.
Lacerda, lendo sua correspondencia, escritos, e preciosa documentacáo
até hoje inédita, bem como jomáis daquele tempo, gracas ao que pode
contribuir para urna perspectiva inteiramente nova sobre a pessoa e
acontecimentos da época em que viveu esse bispo, que, durante mais de
vinte anos dirigiu espiritualmente os destinos da extensa diocese de Sao
Sebastiáo do Rio de Janeiro, a qual, naquela época, nao se restringía ao
assim chamado Municipio Neutro, mas abrangia todo o Estado do Rio e
Espirito Santo, e territorios das provincias de Santa Catarina e Minas
Gerais. - 600 páqinas.

Reveja seus conheámentos litúrgicos, lendo a

CONSTITUIQÁO "SACROSANCTUM CONCILIUM"


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É o 6° volume da Colecáo "A PALAVRA DO PAPA" (a sair em breve):

Vol. 1 - Joáo Paulo Meo espirito beneditino CzS 13,00


Vol. 2 - O Corpo humano e a Vida CzS 9,30
Vol. 3 - Vida e missio dos Religiosos CzS 13,00
Vol. 4 - Joáo Paulo II aos jovens CzS 13,00
Vol. 5 - Instrufáo Geral sobre a Liturgia das Horas CzS 19,50
Vol. 6 - Constituido "Sacrosanctum Concilium CzS 20,00

EMCOMUNHÁO
Revista bimestral, editada pelo Mosteiro de Sño Remo, ri<!stin¡i-se
aos Oblatos e as pessoas interessadas em assuntos de espiritualidad»
monástica. Além da conferencia espiritual mensol de D. Estéváo Botten-
court para os Oblatos, contém traducócs de comentarios sobre a Rnqra
heneditina c outros assuntos monásticos. - Assinatura anual em 1987:
CzS 50,00. ..

Para assinatura dirija-seao Armando Revende Filho'


(Caixa Postal 3608 - 20001 Rio de Janeiro - RJ) ou ás Edicóes "Lumen
Christi" (Caixa Postal 2666 - 20001 Rio de Janeiro - RJ).

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Que livros adotar para os Cursos de Teología e Liturgia?

A "Lumen Christi" oferece as scguintes obras:


1. RIQUEZAS DA MENSAGEM CRISTA <2'-' ed.), por Dom Cirilo
Folch Gomes O.S.B. (falecído a 2/12/83). Teólogo conceituado,
autor de um tratado completo de Teología Dogmática, comen
tando o Credo do Povo de Deus, promulgado pelo Papa Paulo
VI. Um alentado volume de 700 p., best seller de nossas Edi-
coes, cuja traducáo espanhola está sendo preparada pela Un¡-
versídade de Valencia - CzS 73,80.

2. A DOUTRINA DA TRINDADE ETERNA, do mesmo Autor. O


significado da expressao "Tres Pessoas", 1979, 410 p. -
CzS 61,00.

3. O MISTERIO DO DEUS VIVO, P. Patfoort O.P. O Autor foí


examinador de D. Cirilo para a conquista da láurea de Doutor
em Teología no Instituto Pontificio Santo Tomás de Aquíno
em Roma. Para Professores e Alunos de Teología, é um Trata
do de "Deus Uno e Trino", de orientagáo tomista e de índole
didática. 230 p. - CzS 36,90.

4. LITURGIA PARA O POVO DE DEUS (32 ed., 1984), pelo Sale-


siano Don Cario Fiore, tradugáo de D. Hildebrando P. Martins
OSB. Edícáo ampliada e atualizada, apresenta em linguagem
simples toda a doutrina da Constituicáo Litúrgica do Vat. II. É
um breve manual para uso de Seminarios, Noviciados, Cole
gios, Grupos de reflexáo, Retiros etc., 216 p. - CzS 30,00.

2? Edicáo de:
DIÁLOGO ECUMÉNICO, Temas controvertidos.
Em 18 capítulos, ten do sido acrescentados nesta edicáo:
"Capitulo IV: A Santíssima Trindade: Fórmula paga?"
"Capitulo XVIII: Seita e espirito sectario".
(Cap. 1. O catálogo bíblico. 2. Sonriente a Escritura? 3. Somente a fé,
Nao as obras? 4. O Primado do Pedro. 5. Eucaristía: Sacrificio e Sacra
mento. 6. A confissáo dos pecados. 7. O purgatorio. 8. As indulgencias.
9. María, Virgem e Mae. 10. Jesús teve ¡rmáos? 11. O culto dos Santos.
12. As imagens sagradas. 13. Alterado o Decálogo? 14. Sábado ou Do
mingo? 15. 666 (Ap 13,18).
Seu Autor, D. Estéváo Bettencourt, considera os principáis pontos da
clássica controversia entre Católicos e Protestantes, procurando mostrar
que a discussao no plano teológico perdeu muito de sua razáo, de ser,
pois nao raro, versa mais sobre palavras do que sobre conceitos ou
proposicóes. - 380 páginas - CzS 120,00.

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