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ISBN 8575960628
30
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da licença desta obra.
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permissão do autor.
20
governança da internet - contexto, impasses e caminhos
30
Índice
Introdução...................................6
Capítulo 1.....................................8
Governança da Internet: uma análise no
contexto do processo da CMSI
Carlos A. Afonso
Capítulo 2....................................37
Um fórum global para a governança da Internet:
a ótica do Brasil
Carlos A. Afonso
Capítulo 3....................................45
Supervisão política da ICANN:
uma contribuição para a CMSI
Internet Governance Project
Capítulo 4....................................58
A governança da Internet:
o controle do namespace no ciberespaço
Marcelo Sávio, Henrique Luiz Cukierman e
Ivan da Costa Marques
Apêndice 1...................................80
A estrutura brasileira de governança da Internet
Apêndice 2...................................84
Glossário
Apêndice 3..................................96
Referências na Web
6 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
D
epois que alguns dos capítulos de questão.
deste livro já estavam prontos, em Isto consolida uma polarização entre
outubro de 2005, várias iniciativas os EUA e alguns de seus aliados, por um
de parlamentares dos EUA demonstraram lado, e a União Européia e alguns outros
o apoio do Congresso à posição dos EUA países (entre os quais o Brasil), por outro,
sobre o controle do sistema mundial de na discussão da governança global da
nomes de domínio da Internet. No dia Internet que deve culminar na segunda
18 de outubro, uma das propostas de Cúpula Mundial sobre a Sociedade da
resolução conjunta (Senado e Câmara Informação (CMSI), em Túnis, de 16 a 18
dos Representantes) estabelece: de novembro de 2005. De fato, a União
“(1) É da incumbência dos Estados Uni- Européia tem alertado que essa polariza-
dos e outros governos responsáveis o envio de ção pode levar a uma quebra do paradigma
sinais claros ao mercado que a atual estru- atual centralizado de administração da
tura de supervisão e administração do serviço infra-estrutura lógica.
de nomes de domínio e endereçamento da In- Tecnicamente é possível estabelecer
ternet funciona, e continuará a oferecer bene- várias “Internets” operando de modo in-
fícios tangíveis a usuários da Internet em todo dependente, e que se relacionam através
o mundo no futuro; e (2) portanto, o servidor de “pontes lógicas” – é até mesmo pos-
de zona raiz autorizativo deveria permanecer sível fazer isso sem que o usuário final
fisicamente localizado nos Estados Unidos perceba qualquer inconveniente, exceto
e o Secretário de Comércio deveria man- talvez por uma inesperada abundância de
ter supervisão sobre a ICANN de modo que a novos nomes de domínio globais. Afinal,
ICANN possa continuar a administrar bem o mais importante é que todas as redes
a operação cotidiana do sistema de nomes (e lembremos que a Internet sempre foi
de domínio e endereçamento da Internet, uma rede de redes) usem a mesma lógica
permanecer à disposição de todos os interes- de endereçamento por números IP.
sados da Internet mundialmente, e ademais Politicamente, no entanto, isso seria
cumprir sua missão técnica central.”1 um desastre, porque colocaria em risco
Uma resolução, mesmo aprovada a vitoriosa combinação de um sistema de
formalmente, não tem força de lei, mas rede em que, se o endereçamento é co-
caracteriza uma posição comum do Con- ordenado centralmente, há uma propa-
gresso e do governo dos EUA a respeito do gação mundial livre, horizontal e sem
futuro da governança global da infra-es- barreiras causadas por essa coordenação
trutura lógica da Internet (as funções de central. Preservar essas características
wolfgang kleinwächter5
N
o recente processo de discussão
sobre a governança da Internet,
estimulado desde a reunião da
Cúpula Mundial sobre a Sociedade da In-
formação (CMSI)6 realizada em Genebra
a partir da criação do Grupo de Trabalho
sobre Governança da Internet (GTGI)7 ,
as visões de como deve ser a governança
da infra-estrutura lógica da rede das re-
des8 têm oscilado entre duas posições
extremas: por um lado, os icannianos9
insistem em dizer que, se há algo a ser
consertado, assim o será dentro da atual
estrutura, que eles gostam de caracterizar
c a p 1 - g ov e r na n ç a da i n t e r n e t: u m a a n á l i s e n o c o n t e x t o d o p r o c e s s o da c m s i 9
como uma estrutura baseada na iniciativa com remetente falso) phishing (métodos
privada. de obtenção fraudulenta de dados pes-
soais e senhas via e-mail) e outras formas
No outro extremo, há representantes de crimes ou ações causadoras de danos
de alguns países (não necessariamente sociais através da Internet; patentes,
membros do GTGI) que defendem um re- direitos autorais e marcas registradas
passe de todas as funções da Corporação (no jargão da OMPI10, “direitos de pro-
Internet para Nomes e Números (ICANN) priedade intelectual”, ou DPI); proteção
para a União Internacional de Telecomu- da privacidade e de dados pessoais ou
nicações (UIT). Esta última visão se re- institucionais, e muitas outras, con-
força com o fato de que a UIT patrocinou forme descrito mais adiante, na análise
o GTGI e manteve observadores partici- do relatório do GTGI.
pando permanentemente com voz ativa
tanto nos encontros presenciais quanto O GTGI precisou levar em conta que a in-
nas reuniões que o grupo realizou online, fra-estrutura lógica abrangente da Inter-
sem falar das intervenções iniciais, bas- net tem sérias conseqüências muito além
tante explícitas, em defesa dessa ótica nas dela mesma, ao envolver aspectos sociais,
reuniões do GTGI feitas pelo secretário econômicos, políticos e culturais e ao ser
geral da UIT, Yoshio Utsumi. de vários modos indiferente às fronteiras
geopolíticas. As opções de governança,
Entre essas óticas polarizadas estão mui- portanto, precisam ser analisadas e con-
tas propostas, geralmente voltadas para sideradas tendo em vista uma extensa
cobrir uma ampla variedade de temas lista de fatores que afetam e são afetados
relacionados a um sistema de governança pela rede.
global da Internet no futuro, muito além
dos “nomes, números e protocolos” esta- Por exemplo, em resposta à grave situa-
belecidos dentro do sistema ICANN. Tais ção do spam e phishing, para não falar da
óticas buscam tratar de questões como vulnerabilidade da atual tecnologia do
custos de conexões entre países; ciber- Sistema de Nomes de Domínio (DNS), a
segurança e cibercrime, que inclui spam Força-Tarefa de Engenharia da Internet
(mala direta via e-mail não solicitada e (IETF) tem buscado definir os padrões
3 - Este texto é uma versão atualizada de um documento originalmente preparado para o Instituto del Tercer
Mundo (ITeM, http://www.item.org.uy) em julho de 2005.
4 - Diretor de Planejamento e Estratégias da RITS – Rede de Informações para o Terceiro Setor
5 - Wolfgang Kleinwächter, “Internet Co-Governance -- Towards a Multilayer Multiplayer Mechanism of
Consultation, Coordination and Cooperation (M3C3)”, artigo apresentado na Consulta Informal do Grupo de
Trabalho sobre a Governança da Internet (GTGI), v.2.0, Genebra: 20 e 21 de setembro de 2004.
6 - Um glossário de siglas encontra-se em apêndice deste livro.
7 - As informações de referência sobre o GTGI, bem como o relatório final nos seis idiomas da ONU, estão
disponiveis em http://www.wgig.org ou através do sítio da CMSI, http://www.wsis.org. Por questões de espaço,
estes documentos não estão incluidos neste livro.
8 - A governança da infra-estrutura lógica compreende funções relativas à distribuição mundial de endereços IP,
à delegação e à administração de nomes de domínio de primeiro nível, bem como à supervisão do transporte de
dados e protocolos de roteamento.
9 - O termo é usado pelo autor para se referir às pessoas envolvidas profissional ou politicamente com o sistema ICANN.
10 - Organização Mundial da Propriedade Intelectual.
10 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
para estabelecer, digamos, uma “tranca” como sistema ICANN). Faz também uma
– no caso, um sistema seguro de auten- revisão das perspectivas acerca da gover-
ticação de envio de e-mail a ser adotado nança da Internet a partir do ponto de
como padrão por todas as operadoras vista de grupos organizados da sociedade
de servidores de e-mail do mundo. Por civil que estão envolvidos nas discussões
melhor que seja uma tranca, os ladrões correspondentes tanto interna como ex-
sempre podem achar uma maneira de ternamente ao GTGI.
invadir minha casa. É de se esperar por-
tanto que a tranca venha acompanhada de O texto se baseia em inúmeras contri-
uma série de outras medidas de proteção buições feitas nas reuniões da sociedade
à minha comunidade. Assim, a IETF en- civil sobre governança, em informações
tende que a prescrição de medidas legais acumuladas durante o trabalho do GTGI
e outras contra os crimes relacionados e em diversos artigos escritos por espe-
à Internet vai além de sua capacidade cialistas em um ou mais campos relacio-
técnica ou de seu mandato. nados com o tema principal. Trata-se de
uma quantidade de contribuições grande
Por outro lado, é quase impossível uma demais para uma listagem neste espaço,
pessoa dominar conhecimento suficiente nenhuma das quais é responsável pelas
para lidar com todos os temas relacio- opiniões aqui emitidas.
nados à governança da Internet. O GTGI
listou mais de 40 desses temas e, apesar
de algumas impressões em contrário, o II - Equívocos
grupo não é constituido de especialistas
em todos eles. Os membros trouxeram Agora, tentaremos responder a per-
suas experiências específicas em cer- gunta: há necessidade de um ar-
tos campos afins, bem como sua visão e
conhecimento a partir de óticas distintas, ranjo ou órgão adicional? Dizemos
para tentar montar um relatório útil – e
idealmente imparcial – que corresponda que sim, precisamos de arranjos,
ao mandato recebido da ONU conforme mas não precisamos de outro órgão
o Plano de Ação aprovado pela CMSI em
dezembro de 2003. ou de um novo fórum. Por quê?
Este texto procura descrever os atuais Porque acreditamos que as organiza-
processos de transição na governança da ções especializadas [da ONU] – UIT,
Internet, discutindo algumas das abor-
dagens submetidas à discussão pública, UNESCO e OMPI – consigam cobrir
e analisa o relatório final do GTGI. Apre-
senta também um breve histórico e infor- todas as questões que tratamos hoje.
mações de referência sobre o atual siste-
ma de governança global especificamente representante do governo sírio na consulta
criado para a Internet (aqui mencionado aberta do gtgi
cap 1 - governança da internet: uma análise no contexto do processo da cmsi 11
genebra, 14 de junho de 2005, trecho citado a Quando o MoU entre o Departamento de
partir da transcrição. Comércio dos EUA e a ICANN expirar, em
setembro de 2006, não se sabe ao certo o
que o governo daquele país vai fazer, mas
O
acalorado debate sobre a gover- o fato claro é que ele pode fazer qualquer
nança da Internet traz visões ten- coisa quanto à governança da infra-es-
denciosas ou mal embasadas acer- trutura lógica (o conjunto de funções
ca das questões e processos, pois muitos de governança sob a alçada da ICANN).
grupos de interesse se sentem desafiados De fato, um dos principais argumentos
pela idéia de que o sistema existente tem para discutir a governança da Internet
falhas ou é insuficiente11. Há os que ten- em âmbito mundial é estabelecer uma
tam apresentar o GTGI como um grupo organização verdadeiramente global que
totalmente controlado pela UIT. Isso não tenha autonomia com relação a qualquer
é verdade, embora a UIT tenha tentado governo, inclusive o dos EUA – e esse
muito influenciá-lo (como também fez a interesse é amplamente compartilhado
ICANN e outras partes interessadas – um por países que vão muito além das Na-
membro do Conselho da ICANN e alguns ções Unidas.
outros membros do sistema ICANN tam-
bém integram o GTGI). Conforme mencionado, a UIT tem um
interesse muito forte em conseguir ao
Os equívocos de alguns participantes do menos um quinhão da governança. Paro-
debate global vão desde acreditar que o diando Marx e Engels no Manifesto Co-
tráfego de conteúdo passa pelo sistema munista: “Um espectro ronda o mundo
de servidores-raiz até pensar que as fun- das telecomunicações – o espectro da
ções de governança da Internet como um convergência.” Na verdade, convergência
todo deveriam estar sob a alçada da UIT. significa basicamente a migração de toda
A ICANN também costuma ser apresen- a camada de informação (conteúdo) dos
tada como uma organização global, o que é serviços de telecomunicações e teledi-
verdade apenas numa pequena parte e, em fusão para a Internet – o que a UIT gosta
termos legais, não o é de forma alguma. A de vender como NGN (sigla em inglês
ICANN está sujeita às leis federais dos Es- para Rede de Nova Geração).
tados Unidos e às leis do estado da Califór-
nia, e o seu poder de governança da Internet Trata-se de uma das maiores preocupa-
está limitado por vários contratos e por um ções da UIT (por ser uma preocupação das
Memorando de Entendimento (ou MoU, na grandes empresas de telecomunicações
sigla em inglês) envolvendo o governo dos e teledifusão), de modo que ela vai lutar
EUA, a ICANN e a principal operadora do por um lugar ao sol à medida que a con-
sistema global de nomes de domínio, uma vergência inevitavelmente avança.
empresa privada chamada Verisign. A estrutura de poder da UIT hoje inclui
11- Como exemplo de visão surpreendentemente errônea (por ter sido escrita por um conhecido e experiente
empresário de serviços Internet bastante envolvido com a ICANN), ver Elliot Noss, “A battle for the soul of the
Internet“, ZDNet News, 3 de junho de 2005 (http://news.zdnet.com/2100-9588_22-5730589.html). Vários dos
equívocos aqui descritos se encontram nesse texto.
12 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
mais de 180 governos e cerca de 650 em- dade da participação no sistema ICANN. É
presas de telecomunicações e organiza- verdade que o sistema ONU não se carac-
ções associadas – não se pode conceber teriza por transparência e processos plu-
que elas ficarão simplesmente aguardan- ralistas, sendo o GTGI uma exceção que se
do os acontecimentos. Entretanto, como espera que se repita em outros contextos
já foi claramente demonstrado pelos re- dentro da própria ONU.
sultados de seu trabalho, é errado apre-
sentar o GTGI como um fantoche da UIT. Entretanto os processos ditos “de baixo
para cima” na ICANN vêm de uma base
Há quem acredite que a presença de bastante estreita e a indicação de cargos
membros de governos “não democráti- é manipulada nos procedimentos de no-
cos” nos processos do GTGI e da CMSI meação, já que os membros do Comitê
represente uma ameaça, pois eles po- de Nomeações se envolvem na busca e
dem ter a oportunidade de liderar uma até mesmo recomendação de candida-
estrutura global de governança caso ela tos. Mas o GTGI convergiu para a visão de
esteja de alguma forma ligada à ONU. As que se faz necessário um novo tipo de or-
preocupações giram em torno de cen- ganização global (que seria, no mínimo,
sura, impostos e uma maior regulação um fórum global), que estaria acima do
por parte dos governos. A bem da ver- atual sistema ICANN baseado nos EUA
dade, praticamente todos os governos do (abarcando vários outros componentes
mundo desenvolvido têm comparecido de governança, além de coordenar a in-
às discussões, exercendo pelo menos fra-estrutura lógica) e que seria muito
tanta influência quanto os países do Sul mais transparente e representativo do
ou regimes autoritários. que qualquer outra agência do sistema
ONU atual.
Será que a ICANN manteria fora do pro-
cesso de tomada de decisões os países Em geral, a oposição mais forte a uma
considerados pelos EUA como não reformulação da governança que possa
democráticos? Não deveria ser assim. A afetar a operação da infra-estrutura lógi-
Internet deve ser aberta a todos, incluindo ca vem de poderosos interesses envolvi-
os processos de tomada de decisões que a dos no mercado mundial de nomes de
mantêm evoluindo. Cuba é participante domínio e das oportunidades de negócios
do Registro Regional de Números IP para daí derivadas. De fato, a publicação online
América Latina e Caribe (LACNIC), por investors.com é uma das poucas que re-
exemplo, em pé de igualdade com outros agiram com agressividade ao relatório do
países, e os latino-americanos e cari- GTGI e a qualquer possibilidade de en-
benhos se orgulham dessa lição de aber- volvimento da ONU (ou de qualquer outra
tura – numa região onde os EUA excluem organização global) na governança da In-
ou procuram excluir Cuba de quase todas ternet, com base no “sucesso de mercado”
as outras organizações regionais. de que desfrutaria o atual modelo.12
Os argumentos a favor de “não mexer em O fato é que o processo original de gover-
nada” costumam citar o nível e a quali- nança da Internet, que levou à criação da
cap 1 - governança da internet: uma análise no contexto do processo da cmsi 13
ICANN, resultou na transformação em cializam domínios. Este é outro as-
mercadoria de um bem que deveria ser de pecto de suas operações que prejudica
domínio público13, o conjunto de nomes sua autonomia, conforme explicita-
de domínio globais (conhecidos pela si- mente reconhecido pelos seus princi-
gla em inglês gTLDs). Esta abordagem foi pais financiadores (as distribuidoras
infelizmente seguida por vários países franqueadas de nomes de domínio,
com relação aos seus nomes de domínio ou “registrars”, que pagam uma taxa
de primeiro nível de código de país (os à ICANN por domínio comercializado
ccTLDs, que caracterizam ou deveriam através das franquias corresponden-
representar a identidade de um país na tes, as “registries”) – em pronuncia-
Internet). Às vezes, um ccTLD está nas mentos feitos na reunião da ICANN
mãos de uma empresa particular fora do em Luxemburgo, em julho de 200515.
país ao qual ele pertence (como é o caso
do “.tv”, de Tuvalu, do “.st”, de São Tomé
e Príncipe, e vários outros).
A
primeira fase da CMSI, que de Trabalho sobre a Governança da In-
se encerrou com a Cúpula de ternet (GTGI), composto de 40 membros
Genebra, em dezembro de 2003, de diversos países e grupos de interesse
deixou dois temas em aberto para serem (governos, empresas, mundo acadêmico,
mais aprofundados. O primeiro deles sociedade civil organizada). O GTGI di-
trata de formas de financiar a alavan- vulgou seu relatório no dia 15 de julho de
cagem das Tecnologias de Informação 2005. Ambos os relatórios servem de in-
e Comunicação (TICs) para o desen- sumo e como referência para os debates
volvimento, especialmente nos países no processo de preparação para a segunda
menos desenvolvidos. Isso envolve, em reunião da CMSI, em Túnis, em novem-
todos eles, financiamento das estraté- bro de 2005.
gias de inclusão digital e, nos países em
desenvolvimento, alavancagem da in- Algumas iniciativas de análise e formu-
fra-estrutura, desenvolvimento de ca- lação de propostas sobre a governança da
pacidades e sustentabilidade, além da Internet já existiam quando se decidiu
própria inclusão digital. A Força-Tarefa criar o GTGI. Conforme será descrito
sobre Mecanismos de Financiamento mais adiante, o Caucus da Sociedade Civil
(FTMF), especialmente criada pelo de Governança já havia encaminhado uma
Secretariado Geral das Nações Unidas proposta de criação de um grupo de tra-
para rever alternativas de financiamen- balho (ou um conjunto de forças-tarefas
to, divulgou esse relatório17 em janeiro com temas específicos) muito antes, du-
de 2005. rante a PrepCom II da CMSI em fevereiro
16-Relatório NGO and Academic ICANN Study (NAIS) da ICANN, “Legitimacy, and the Public Voice: Making Global
Participation and Representation Work”, Sumário Executivo, agosto de 2001, p.1
(http://www.naisproject.org).
17-Disponível em http://www.itu.int/wsis/documents/doc_multi.asp?lang=en&id=1372|1376|1425|1377.
cap 1 - governança da internet: uma análise no contexto do processo da cmsi 15
discussão geral e nas proposições sobre
governança das TICs no relatório Louder
Voices entregue à DOT Force em junho de
200219. Finalmente, uma contribuição
relevante para o debate também foi feita
pelo Fórum Global da Força-Tarefa de
TICs da ONU sobre Governança da Inter-
net, em março de 200420.
As Resoluções da
CMSI e o GTGI
A
de 2003. Esse Caucus funciona como um quilo que hoje se chama “gover-
grupo de trabalho sobre governança das nança da Internet” remonta a
TICs (incluindo a governança da Inter- tempos anteriores ao mandato
net) desde, pelo menos, março de 2003. da entidade criada em 1998 para coorde-
nar a infra-estrutura lógica global da rede.
O Caucus foi precedido de um outro gru- A ICANN levou algum tempo para re-
po de trabalho sobre governança, orga- conhecer que o escopo da governança da
nizado em 2001, com o apoio da Funda- Internet precisava ser estendido, incorpo-
ção Markle e do registro de ccTLD da rando questões mais amplas de importân-
Alemanha, DENIC – o NGO and Academic cia crucial para o futuro da Internet.
ICANN Study (NAIS) –, que se concen-
trou na formulação de uma proposta para De fato, a ICANN e a Sociedade Internet
fazer da ICANN uma organização mais (Internet Society, ISOC), que se relacio-
global, democrática e pluralista. nam estreitamente, resistiram ao uso do
conceito de governança até bem pouco
Um grupo de pesquisadores universi- tempo atrás, preferindo enfatizar a idéia
tários, liderado pelos professores Milton de “coordenação” entre diferentes en-
Mueller e Hans Klein, montou o Projeto tidades da iniciativa privada. Um folheto
de Governança da Internet, que vem apre- da ISOC distribuído durante a CMSI em
sentando análises críticas da governança Genebra, em dezembro de 2003, trazia
da Internet desde pelo menos 200218. o título: “Desenvolvendo o Potencial da
Além disso, encontram-se componentes Internet através de Coordenação, não de
da governança da Internet contidos na Governança”21.
18- http://www.internetgovernance.org.
19-Don MacLean et al., “Louder Voices: Strengthening Developing Country Participation in International ICT
Decision-Making”, Organização da Comunidade das Nações para as Telecomunicações e Instituto Panos, junho de 2002.
20-Don MacLean (ed.), “Internet Governance: a Grand Collaboration”, Força Tarefa de TICs da ONU, Nova York,
setembro de 2004 (http://www.unicttf.org).
21- O boletim da ISOC está disponível em http://www.isoc.org/news/7.shtml.
16 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
O
quado, até o ano de 2005. Entre outras GTGI foi constituido em outubro
de 2004 pelo Secretário Geral
coisas, o grupo deve: da ONU. Os membros foram es-
1. Desenvolver uma definição fun- colhidos a partir de uma lista de nomes
compilada por governos, entidades civis,
cional de governança da Internet; iniciativa privada e agências internacio-
O
trabalho do GTGI começou em 23 para troca de dados – exatamente o con-
de novembro de 2004. Ao todo, junto de responsabilidades para as quais
compareceram 38 membros, bem a ICANN foi criada.
18 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
A
pós intenso debate, que levou discussões internas, escolheu-se um con-
grande parte do tempo de duas junto de 25 componentes que foram agru-
sessões presenciais, em busca de pados em 12 temas centrais (considerados
uma definição que pudesse servir como como “assuntos claramente relativos à
fundamento conceitual para a formação governança da Internet e que necessita-
de um mecanismo de governança global e vam de ação imediata e urgente”)23 como
fosse “adequada, generalizável, descritiva, base para configurar quatro conjuntos
concisa e orientada a processos,” foi esta- temáticos. Esses temas centrais (com os
belecida a seguinte “definição funcional”: problemas principais identificados entre
parênteses) são:
“A governança da Internet é o desenvolvi-
mento e aplicação, por governos, iniciativa 1. Supervisão unilateral do arquivo
privada e sociedade civil, em seus respec- de zona raiz (controle unilateral exer-
tivos papéis, de princípios, normas, re- cido pelo governo dos EUA, falta de
gras, procedimentos de tomada de decisão transparência) – inclui as questões
e programas compartilhados que dêem diretamente relacionadas com a gover-
forma à evolução e ao uso da Internet.” nança da infra-estrutura lógica.
D
iante de uma lista de temas que
praticamente abrangia todo o de- 5. Desenvolvimento e construção
bate da CMSI, por razões práticas de capacidade (baixa prioridade para
A
lgumas propostas para um me- para a CMSI de Túnis. Fez-se um esforço
canismo global têm sugerido a para incluir nos modelos algumas formas
criação de um fórum global sepa- de relacionamento com o sistema ONU,
rado de uma estrutura de supervisão, en- que são discutidos a seguir, juntamente
quanto outras consideram viável e muito com outras propostas recentes.
mais simples (pelo menos por razões de
estrutura e eficácia) ter os componentes
de supervisão como parte de um fórum IV - Modelos de
global – de forma que supervisão, nor-
matização, assessoria, resolução de dis-
governança da
putas e várias outras funções estariam Internet: uma análise
dentro de um único marco institucional
A
global por consenso mundial através de lém dos modelos para governança
uma convenção internacional. A proposta global apresentados no relatório
brasileira é um exemplo desta visão. do GTGI, há várias outras pro-
postas elaboradas durante o período de
Também houve vigorosa discussão em tor- atuação do mesmo, por membros do gru-
no do relacionamento com organizações po ou outros, que merecem uma revisão
intergovernamentais existentes. Há diver- e comparação com os modelos sugeridos
sos argumentos pertinentes contra con- pelo GTGI.
siderar que uma das agências já existentes
da ONU (como a UIT), ou mesmo uma nova Um importante preâmbulo: até o mo-
similar às outras 16 existentes, assuma a mento, não existe uma proposta detalhada
governança da Internet. Primeiro, não cobrindo todos os componentes de uma
existe uma sequer que esteja qualificada governança global da Internet, ou mesmo
uma formulação detalhada dos aspectos mente curto para um grupo voluntário dar
centrais que sirva de base para a imple- conta de uma tarefa tão complexa, mas
mentação concreta. O relatório do GTGI também, em parte, a certas pressões para
não é exceção. Os quatro “modelos” apre- propiciar um equilíbrio restritivo às de-
sentados no relatório são muito genéri- mandas que a sociedade civil faz para par-
cos, incompletos em muitos aspectos; a ticipar plenamente em todos os aspectos
bem da verdade, não existe nada além de de um sistema de governança global no
uma “itemização” de certos aspectos da futuro.
governança que seriam enfatizados em
cada uma das quatro opções. Em várias A ONU não tem tradição de participação
instâncias, eles poderiam confundir ain- ampla em seus processos decisórios, e
da mais, em lugar de esclarecer questões para se admitir no relatório do GTGI que o
cruciais. Por exemplo, qual é exatamente pluralismo, a democracia e a transparên-
o significado de um “Conselho Global cia são pré-condições essenciais para uma
[de Governança] da Internet ancorado nova organização ou sistema global foi
na ONU”, conforme sugeriu o Modelo 1, preciso enfrentar a resistência de alguns
ou uma “ICANN internacionalizada co- dos países membros. Assim, os modelos
nectada à ONU”, conforme proposto no (excetuando-se o Modelo 2, que assume,
Modelo 3? de uma forma questionável, que o atual
sistema ICANN já apresenta uma partici-
Entretanto, todos os modelos do GTGI pação pluralista) acabam oferecendo esse
têm algo em comum de relevância para equilíbrio aparentemente contraditório
todos que buscam uma forma pluralista entre as expressões genéricas de com-
de governança global: organizações da prometimento com o pluralismo, por um
sociedade civil, a iniciativa privada e lado, e a expectativa de que a supervisão
a comunidade acadêmica ficam todos global acabe de alguma forma nas mãos
relegados, na melhor das hipóteses, a de um organismo relacionado à ONU (ou
um papel de observador. Isso é curioso a esta subordinado) sob o controle dos
pois, em outras passagens, o relatório governos, por outro lado.
defende formas de assessoria global,
O
coordenação e supervisão envolvendo utro aspecto importante dos
várias partes interessadas. modelos propostos é o seu en-
foque sobre mudanças no atual
Na verdade, existe um aspecto do pro- sistema de governança da infra-estrutura
cesso do GTGI que precisa ser levado em lógica. É como se o GTGI decidisse que,
conta para que se entenda esse paradoxo antes de qualquer coisa, é preciso que se
– a decisão de inserir exemplos específi- faça algo com relação ao sistema ICANN
cos de modelos de governança foi tomada (mesmo que quase nada exceto a criação
pouco antes da rodada final das reuniões de um fórum global de aconselhamento,
presenciais, e não houve oportunidade conforme propõe o Modelo 2), e se hou-
para um adequado refino dos conceitos. vesse algo a requerer detalhamento, certa-
Isso se deve, em parte, ao tempo relativa- mente não seria liberdade de informação,
cap 1 - governança da internet: uma análise no contexto do processo da cmsi 23
acertos de custos para enlaces de dados
entre países, cibersegurança, privacidade
e assim por diante. O que realmente pa-
rece importar é a coordenação global do
sistema de nomes e números. Se há algum
detalhamento nos modelos, ele se dedica
primordialmente às disputas em torno
de quem irá coordenar a infra-estrutura
lógica.
Fórum
2 Nenhum Pluralista Privada Não muda Nenhum Assessoria
Conselho
Internacional Nenhum Intergoverna- Subordinado Não especifi- Assessoria
3 da Internet mental cado
(CII)
Conselho Fórum Global
Global de para a Gover-
4 Políticas para nança da Intergoverna- Subordinado “Ligado a” Assessoria
a Internet Internet mental
(CGPI) (FGGI)
Na tabela acima, a coluna dois lista os varia conforme cada modelo. A coluna
novos organismos globais de supervisão seis descreve como o organismo de super-
a serem criados. A coluna três inclui os visão se relaciona com a ONU (o relatório
fóruns globais propostos. A coluna quatro não apresenta definição para os termos
se refere à natureza da estrutura de su- “ancorado a” e “ligado a”). A coluna sete
pervisão. A coluna cinco descreve como mostra o papel previsto nos organismos
a ICANN se relaciona com o organismo de supervisão para a sociedade civil (SC)
de supervisão – o tipo de “subordinação” e a iniciativa privada (IP).
24 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
C
om relação às formulações fei- ração de políticas que possam ser im-
tas durante o processo do GTGI, pactadas pela Internet”.
Vittorio Bertola apresentou a pro-
A
posta mais detalhada para um mecanis- proposta de Bertola, em alguns
mo de fórum global pluralista, aberto e aspectos, tem como referên-
transparente – que ele chama de Grupo cia a estrutura operacional e de
de Direcionamento/Coordenação da In- representação pluralista do GTGI. O GDI
ternet (GDI, ou ISG na sigla em inglês)25 de Bertola teria cerca de 3O membros
– que seria “baseado primordialmente igualmente distribuídos entre governos,
no ‘poder brando’,” ou seja, teria legitimi- sociedade civil e iniciativa privada. Esses
dade reconhecida (“authoritative”) em membros serviriam como indivíduos,
lugar de autoridade (“authority”). O funcionando como pares, e escolheriam
fórum não teria funções formais de su- os integrantes da diretoria executiva, in-
pervisão mas legitimidade suficiente para clusive o presidente, entre suas próprias
ser aceito como referência de fato para as fileiras. O GDI aprovaria suas próprias
políticas globais de governança da Inter- regras internas de funcionamento e os
net. Seu mandato seria referenciado pelos membros iniciais seriam escolhidos de
critérios e princípios da CMSI, bem como forma bastante semelhante ao GTGI,
pelas Metas de Desenvolvimento para o pelo secretário geral da ONU, após roda-
Milênio (MDM) da ONU, e, entre outras, das de consultas públicas abertas a todas
incluiria as seguintes funções: as representações interessadas. Orga-
nizações relacionadas com a governança
— identificar questões relativas à In- da Internet indicariam observadores
ternet que requeiram governança para participar das discussões do grupo,
global, verificando a existência de es- tanto online quanto em reuniões presen-
truturas de governança para lidar com ciais, que também funcionariam como
tais questões ou propondo novas; elementos de conexão entre o GDI e suas
— servir como organismo de resolução instituições.
de controvérsias relativas a instituições,
processos e políticas de governança Assim, Bertola está contribuindo para
da Internet; uma possível implementação do fórum
— estabelecer mecanismos para moni- global no Modelo 2 do GTGI.
torar processos de elaboração de
políticas; Wolfgang Kleinwächter encaminha uma
— promover mecanismos para a par- proposta que separa a governança
ticipação pública organizada em todas global da Internet em duas instâncias:
as discussões e todos os processos de- uma de supervisão, que seria um me-
cisórios; canismo com vários participantes em
— fornecer “conhecimento espe- diversas camadas, chamada Multilayer
cializado em Internet para outras Multiplayer Mechanism (M3), e uma
instituições de governança que pos- que seria uma camada fórum chamada
sam necessitar de apoio para a elabo- de Communication, Coordination and
cap 1 - governança da internet: uma análise no contexto do processo da cmsi 25
Cooperation (C3)26 , onde cada compo- — Cooperation” (ou “cooperação”)
nente teria o seguinte significado: significa que, se a coordenação indicar
que está havendo uma sobreposição
— “Multilayer” (ou “múltiplas cama- de atividades dos diferentes membros
das”) significa fazer uma diferen- do mecanismo ou que algumas delas
ciação entre as camadas e encontrar estão em conflito, deverão ser assi-
modelos de governança adequados nados memorandos de entendimento
para cada uma delas; formais (MoUs) entre os membros do
— “Multiplayer” (ou “diversos partici- mecanismo que estejam sendo afeta-
pantes”) significa identificar para cada dos e/ou se mostrem preocupados.
camada os principais participantes
A
(governamentais e não governamen- mbas as instâncias atuariam nos
tais) que precisam estar envolvidos dois níveis de coordenação/su-
para haver soluções eficazes e funcio- pervisão que Kleinwächter cha-
nais; ma de Nível Básico de Governança da
— “Mechanism” (ou“mecanismo”) sig- Internet (a infra-estrutura lógica hoje
nifica a não existência de uma organiza- no âmbito da ICANN) e Nível Aprimo-
ção central hierárquica mas sim uma rado de Governança da Internet (todas as
rede de diferentes instituições gover- questões relativas às camadas superiores
namentais e não governamentais. ou de conteúdo da Internet, tais como,
— “Communication” (ou “comunica- conforme diz Kleinwächter, “e-comér-
ção”) significa que cada membro do cio, e-conteúdo, e-governo, cibercrime,
mecanismo deve estabelecer canais spam, direitos de propriedade intelectual,
permanentes de comunicação com privacidade” e assim por diante).
os demais, de forma que todos sejam
informados do que está acontecendo A proposta de Kleinwächter aborda o
dentro de cada uma das outras orga- Modelo 4, exceto pelo aspecto do en-
nizações; volvimento das várias partes não gover-
— “Coordination” (ou“coordenação”) namentais interessadas, que em todos os
significa que, se uma comunicação modelos do GTGI ficam relegadas a uma
indicar que dois membros do me- condição de assessoramento.
canismo, ou mais, estão fazendo coi-
sas semelhantes (com prioridades Uma proposta apresentada pelo Projeto
diferentes), eles devem se consultar de Governança da Internet (PGI) enfoca
e, quando necessário, coordenar suas mudanças de governança na infra-estru-
atividades. Isso poderia ser feito, onde tura lógica27. São propostas as seguintes
for necessário, através de “adidos”; iniciativas:
25- Vittorio Bertola, “Internet Steering-Coordination Group”, GTGI, abril de 2005. Disponível no repositório
de propostas do Projeto de Governança da Internet (http://www.internetgovernance.org).
26- Wolfgang Kleinwächter, “Internet Co-Governance - Towards a Multilayer Multiplayer Mechanism of
Consultation, Coordination and Cooperation (M3C3)”, GTGI, documento interno, setembro de 2004.
27- Hans Klein e Milton Mueller, “What to do About ICANN: A Proposal for Structural Reform”, Projeto de
Governança da Internet, abril de 2005. Disponível no repositório de propostas do Projeto de Governança da
Internet (http://www.internetgovernance.org).
26 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
A
s características diferenciadoras Como a proposta do PGI, ela requer uma
desta proposta são: (1) a gover- internacionalização verdadeira do sistema
nança global deve ser estabeleci- ICANN, mas propõe também uma reestru-
da a partir de uma convenção interna- turação do atual guarda-chuva da ICANN,
cional; (2) a UIT compartilharia com os desmembrando-o em três instâncias,
registros regionais de Internet (RIRs) e a que passariam a ser organizações globais
28- Raul Echeberría, “Possible Changes to the Internet Governance Systems: Root Servers, IP Addresses and
Domain Names” (Working Document), GTGI, maio de 2005. Disponível no repositório de propostas do Projeto de
Governança da Internet (http://www.internetgovernance.org).
29- Carlos A. Afonso, “Scenario for a New Internet Governance”, versão 6, GTGI, maio de 2005. Disponível no
repositório de propostas do Projeto de Governança da Internet (http://www.internetgovernance.org).
cap 1 - governança da internet: uma análise no contexto do processo da cmsi 27
pluralistas, com autonomia garantida por proposta conjunta da sociedade civil.
acordos de sede com os países em que es- Todas podem servir como estímulo ou
tariam localizadas: referência para os debates preparatórios
e a própria cúpula de Túnis.
— uma ICANN global, com todas as
suas atribuições atuais, exceto a ad-
ministração dos ccTLDs e a distri-
buição de números IP; V - Sociedade civil
— uma organização global de apoio aos e governança
nomes de domínio primário de códi- da Internet
gos de países (ccNSO), encarregada
da coordenação global da distribuição Nossa participação nesse processo
dos ccTLDs;
— uma nova Organização de Recursos
da CMSI tem sido intensa, em ter-
de Números IP (NRO), coordenando- mos tanto humanos quanto finan-
se globalmente com os Registros Re-
gionais de distribuição de números IP ceiros, e muita gente, claro, não tem
(os RIRs).
conseguido participar, especialmente
O
utras organizações (existentes ou dos países mais pobres. Apesar dessas
a serem criadas ou adaptadas)
cuidariam dos componentes adi- restrições, a sociedade civil tem pro-
cionais de supervisão ou coordenação da
governança da Internet, mas todas elas,
duzido muitas contribuições para este
inclusive as três mencionadas acima, encontro. Nós oferecemos recomenda-
fariam parte de um fórum global, pluralis-
ta, transparente e democrático de super- ções variadas e práticas. Já falamos
visão, coordenação e assessoria chamado
Conselho Internacional para Avaliação e
de nossas sugestões com vocês, mas
Coordenação da Internet (IICEC). Seria ficamos com a impressão de não ter-
estabelecida uma convenção internacio-
nal em paralelo com a construção desse mos sido ouvidos, ou mesmo escuta-
organismo, que iria assumindo grada-
tivamente mais atribuições conforme o
dos. Nossa legitimidade não é como
avanço dos acordos internacionais cor- a sua [governos] e não pretendemos
respondentes, começando por um fórum
global de coordenação bastante alinhado ser representativos [de toda a socie-
com o que propõe Vittorio Bertola.
dade civil]. Nossa legitimidade está
Esta é uma listagem parcial das propos- arraigada em nosso conhecimento de
tas – várias outras foram encaminhadas
e estão sendo preparadas, inclusive uma causa, nossa experiência de campo e
28 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
na defesa de uma visão que tem o in- mos de Internet. Ele foi concebido em
1983, quando não havia recursos téc-
teresse público no seu cerne. Não nos nicos suficientes, tais como memória,
parece que isso tenha sido reconhe- capacidade de processamento, software
de roteamento avançado e largura de
cido ou levado em conta até agora. banda, e quando as questões de segu-
rança não haviam sido levadas em conta
reunião sobre direitos humanos na sociedade de maneira adequada. Altamente vul-
nerável a ataques, o atual sistema DNS
da Informação, Paris, julho de 2003.30 precisa ser substituído por outro mais
avançado e seguro (DNSSec) que, ainda
que preso ao paradigma piramidal, deve
A
o contrário de muitas outras pro- ter sérias implicações sobre o direito de
postas (que tentam se concentrar privacidade dos detentores de nomes
em disputas quanto ao mercado de domínio, conforme observou Paul
dos nomes de domínio e supervisão ou Vixie.31
administração da zona raiz), as formula-
ções de organizações da sociedade civil Essa estrutura piramidal para a tradução
buscam lidar com as questões de gover- de nomes em números, que contradiz os
nança da Internet como um todo, que é a fundamentos conceituais da Internet –
recomendação do Plano de Ação de Gene- uma rede das redes, afinal de contas –, é
bra da CMSI. a base para a perpetuação de um negócio
quase-monopolista que cria e distribui
Algumas premissas importantes do atual nomes de domínio de primeiro nível, na
sistema de governança devem estar em qual a ICANN é vítima, por um lado (ela
ordem, sendo em geral relegadas pelas não só depende muito da renda oriun-
organizações da sociedade civil no calor da dos registros de nomes de domínio
das discussões. Como exemplo relativo para sobreviver como também consome
à governança da infra-estrutura lógica, grande parte de sua energia na correta-
o DNS hierárquico de hoje está velho – a gem desse negócio), e, por outro, um
bem da verdade, bastante velho em ter- parceiro de negócios.
30- Caucus para os Direitos Humanos na Sociedade da Informação (HRIS), Declaração em nome da Plenária da
Sociedade Civil, Discurso para a reunião intersessional da CMSI de 15 a 18 de julho de 2003, Paris, França, 18 de
julho de 2003 (http://www.iris.sgdg.org/actions/smsi/hr-wsis/hris-cs-180703.html).
31- Paul Vixie, “Some Comments on Working Group on Internet Governance (WGIG)” 19 de julho de 2005
(http://fm.vix.com/internet/governance/wgig-report-july05.html). Vixie diz: “O relatório do GTGI destaca
uma gafe da IETF, que foi a padronização de uma solução de DNS seguro completamente inviável para qualquer
número dos ccTLDs por causa das leis nacionais de privacidade e outras considerações mais ou menos relacio-
nadas com a soberania. Aparentemente, a IETF deveria designar protocolos de Internet para um público mais
amplo do que “qualquer um que aparecesse na reunião”. Isso parece um absurdo, mas é verdade. Portanto,
qualquer zona que implantar o DNSSEC conforme especificado abre mão de qualquer privacidade de nome de
subdomínio que achasse ter porque o DNSSEC expõe toda a informação necessária para provar a não existência
de nomes não existentes e essa informação destaca indiretamente todos os nomes existentes. Embora essa falta
de privacidade para nomeação seja comercialmente desconfortável para alguns gTLDs, quando combinada com
dados WHOIS, trata-se de uma violação de fato da lei para alguns ccTLDs. Será interessante ver como a CMSI
propõe que a designação de protocolo da Internet saia da torre de marfim”.
cap 1 - governança da internet: uma análise no contexto do processo da cmsi 29
É bem provável que esses procedimentos plo em cima da governança das TICs. Na
venham a se basear num modelo de rede verdade, o conjunto de questões sugeridas
no futuro, um sistema descentralizado no pela sociedade civil ao GTGI está prati-
qual muitos sistemas que traduzem uma camente igual à lista geral de questões de
combinação de letras (em qualquer idio- governança das TICs, indo desde a infra-
ma e códigos de caracteres) em números estrutura da rede até liberdade de conhe-
IP poderiam ser criados e mantidos au- cimento e software de fonte livre e aberta.
tonomamente, sob a coordenação de al-
gum fórum global onde seriam formados Não é surpresa alguma coexistirem visões
padrões para a fusão apropriada dessas divergentes nas discussões de muitas
redes. dessas questões. Por exemplo, o papel
das organizações intergovernamentais,
Essa hipótese deveria significar muito como deve se dar efetivamente o plu-
mais liberdade para rotular domínios, ralismo nos processos de tomada de de-
enquanto o tráfego vai continuar tran- cisões, formas de organizações globais,
qüilo com a preservação do sistema de alcance dos mandatos dessas organiza-
numeração IP. Mas negócios do tipo Veri- ções, até que ponto políticas específicas
sign provavelmente iriam sucumbir e a de software livre devem ser impostas ou
ICANN teria de se aprumar e se transfor- aparecer como parte de políticas gover-
mar numa organização global de verdade. namentais, e assim por diante.
A
s organizações da sociedade civil
Contexto interessadas na governança da
Internet deram início a um pro-
A
incidência de organizações da cesso de discussões por ocasião da se-
sociedade civil em torno das gunda reunião preparatória para a Fase 1
questões de governança da In- da CMSI, em fevereiro de 2003. Elas bus-
ternet faz parte de seu trabalho mais am- caram centralizar seu debate através de
30 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
U
ma dificuldade temporária den- Internet (GTGI). Acaloradas discussões
tro do caucus que ficou mais do caucus buscaram definir uma lista de
aparente durante a reunião de candidatos da sociedade civil a serem es-
cúpula de Genebra (dezembro de 2003) colhidos pelo Secretariado Geral da ONU
foi o relacionamento entre as estrutu- para formar o grupo de trabalho.
ras da sociedade civil existentes den-
tro do sistema ICANN (a Assembléia de Em setembro de 2004, a ALAC entregou
Usuários Não-Comerciais, NCUC, e a uma proposta detalhada para a maneira
Assembléia At-Large, ALAC) e o caucus como o GTGI deveria ser formado e como
da sociedade civil como um todo. Alguns ele deveria funcionar e encaminhou
membros do caucus achavam que a NCUC sugestões avançadas sobre a governança
e a ALAC sofriam influência demais do que acabaram sendo levadas em conta nas
debate interno da ICANN, ao ponto de hipóteses ou nos “modelos” propostos no
poder introduzir um viés no debate mais relatório final do GTGI. Só para exempli-
amplo sobre a governança. ficar, o pronunciamento de abertura da
ALAC diz: “...o resultado a longo prazo mais
É relevante observar que os membros importante deste processo deveria ser a
da NCUC recentemente propuseram um criação de um mesa permanente de várias
debate dentro da ICANN para buscar ma- partes interessadas onde cada qual possa
neiras de formar um caucus da sociedade levantar questões relativas à Internet con-
civil dentro da estrutura da ICANN, que forme necessário e discutir se precisam de
absorveria tanto a NCUC quanto a ALAC. governança e em que nível, ou se a estru-
A idéia é estabelecer maneiras mais efi- tura atual de governança para tais questões
cazes de monitorar os desdobramentos é satisfatório. E mais: essa mesa deveria
e processos da ICANN como um todo de definir modelos-padrão para inclusão e
forma crítica. Hoje, a NCUC está formal- consulta de todas as partes interessadas
mente restrita a um papel de assessoria que possam ser usados como molde para a
dentro da organização de apoio ao gTLD, governança de qualquer nova questão que
a GNSO, enquanto a ALAC não está con- venha a surgir no futuro.”34 Várias outras
seguindo passar suas bases de usuários sugestões encaminhadas pela ALAC coin-
individuais para uma estrutura de as- cidiam com o formato final decidido pela
sociações de usuários montada dentro ONU para o GTGI.
de uma configuração regional, o que a
D
torna ineficaz para um acompanhamento urante a apresentação do relatório
adequado dos processos da ICANN. oficial do GTGI, o caucus da socie-
dade civil para governança elo-
Durante 2004, a maioria das discussões se giou a qualidade do relatório como sendo
concentrava na formação e nos métodos “o resultado tanto da colaboração das
do Grupo de Trabalho sobre Governaça da múltiplas partes interessadas quanto da
34- Divulgado por Vittorio Bertola em nome da ALAC na lista de governance em 14 de setembro de 2004.
cap 1 - governança da internet: uma análise no contexto do processo da cmsi 33
consulta aberta e inclusiva da comunidade
mais ampla da CMSI,” e apresentou uma Governança global e
lista dos aspectos positivos do relatório: a comunidade
A
— a ampla definição funcional de s organizações da sociedade civil
governança da Internet; que participam do caucus para a
— a natureza abrangente das questões governança têm dado duro para
destacadas para providências prioritárias monitorar os eventos e participar das
no relatório final; discussões do GTGI e da CMSI. Muito
— a ênfase sobre valores fundamen- trabalho tem sido dedicado às questões
tais para a sociedade civil, inclusive a diretamente ligadas aos direitos huma-
liberdade de expressão, proteção de nos, tais como liberdade de expressão,
dados e dos direitos de privacidade, di- privacidade, acesso universal, direito à
reitos do consumidor, multilingualismo, comunicação, construção de capacidade e
construção de capacidade e uma par- assim por diante. Essas e outras questões
ticipação significativa nos processos de têm sido tratadas, normalmente, num
governança da Internet; contexto genérico, acertadamente bus-
— a meta abrangente de aprimorar a cando formular propostas de uma na-
legitimidade dos acertos para a governan- tureza global.
ça da Internet que se encontram subja-
centes a muitas das recomendações para Mas assim o enfoque tem sido desviado dos
políticas públicas; desafios bastante concretos no nível local
— o reconhecimento de que a cons- – nos vilarejos rurais, cidades pequenas,
trução de uma capacidade nas áreas em bairros pobres das grandes cidades. Na
desenvolvimento e a participação efetiva América Latina e no Caribe, por exem-
e significativa de todas as partes interes- plo, são pouquíssimos (em média, menos
sadas no mundo inteiro são os passos de 6% da população) os que têm acesso
mais essenciais para atingir essa meta. regular (ou qualquer forma de acesso)
à Internet. São, em geral, aqueles que
O caucus também chamou a atenção para moram nos principais centros urbanos e
as barreiras que continuam a existir con- pertencem, em sua maioria, aos extratos
tra uma plena participação pluralista nos sociais que podem arcar com os custos de
mecanismos de governança e recomen- uma linha telefônica e serviços de acesso,
dou que as organizações globais e inter- além de serem proprietários ou terem
governamentais “tomassem providências acesso livre a um computador em seus
para permitir uma participação efetiva lares ou escritórios. Trata-se das pessoas
dos países em desenvolvimento e da so- que se encontram no lado privilegiado do
ciedade civil.” 35 abismo digital.
35- Caucus da CMSI sobre Governança da Internet, declaração verbal feita por Jeanette Hoffmann na apresenta-
ção pública do relatório do GTGI, Genebra, 18 de julho de 2005.
34 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
P
or que essas questões são impor- operadoras desses serviços pressionam
tantes na discussão da governança os governos local, regional e nacional a
global? Não apenas porque quan- elaborar políticas que não deixem essas
do se atingem melhores acertos de custos comunidades tomarem nas próprias mãos
em conectividade, por exemplo, os preços o seu futuro com a Internet. Nos países
caem na chamada “last mile” (a extremi- onde as redes comunitárias ainda não se
dade menos seleta na “cadeia alimentar” difundiram ou não ameaçam de forma
da Internet comercial) – pois eles propi- significativa o potencial de lucros das
ciam a motivação relevante para muitas concessionárias desses serviços, como
das questões centrais – como também o Brasil, floresceram diversos projetos
porque certas decisões na formulação de desses sem que se observasse oposição
políticas podem causar impactos diretos alguma.
sobre a liberdade que as comunidades
M
poderiam ter para implementar suas as, nos EUA, muitas cidades, de
próprias soluções criativas de forma a su- pequeno porte ou não, partiram
plantar o abismo digital. em busca de alternativas ao que
as grandes operadoras ou suas teles locais
Por exemplo, se um modelo de governança têm a oferecer. Muitas redes comuni-
global resolver desprezar como princípio tárias foram construídas, tanto cobrindo
o fato de que toda a infra-estrutura física as necessidades do governo local quanto
e os serviços de rede são serviços de tele- cumprindo as metas de inclusão digital,
comunicações (que poderia ser uma for- conectando escolas e bibliotecas públi-
ma de estabelecer acertos de custo justos cas, telecentros e por aí vai. No estado da
no uso de largura de banda para a Inter- Pensilvânia, por exemplo, o governador
net entre países), isso poderia estimular sucumbiu à pressão das teles e proibiu as
os governos dos países a determinar que prefeituras de montarem suas próprias re-
somente as empresas de telecomunica- des. Mas ele precisou abrir uma exceção, e
ções têm o direito de oferecer os serviços das grandes: a cidade da Filadélfia já opera
no nível das comunidades – condenando uma rede comunitária bastante espalhada
assim a maioria das comunidades ao es- e seria politicamente inconveniente para
quecimento por não serem comercial- o governador mandar desmontá-la.
mente atraentes para as operadoras de
telecomunicações. As diversas experiências na montagem
e manutenção de redes comunitárias
De fato, esta luta já vem sendo travada levaram a uma visão geral do que elas
em várias cidades do mundo inteiro. Por podem significar para as comunidades,
um lado, as comunidades, pressionadas quais são suas metas e as soluções cria-
pela necessidade urgente de encontrar tivas que foram encontradas para fazer
uma solução eficaz para o seu quase isola- com que valessem a pena. Entre as car-
mento da Internet ou pelos elevados cus- acterísticas de uma rede comunitária
tos dos fornecedores comerciais, criam encontram-se muitos dos aspectos re-
suas próprias redes. Por outro, as grandes sumidos abaixo:
cap 1 - governança da internet: uma análise no contexto do processo da cmsi 35
• Trata-se de um patrimônio dos ci- tre outras ações), outros usuários pagam
dadãos comuns que cobre um bairro, uma um preço competitivo para usar uma rede
aldeia, uma cidade ou até mesmo um país. de alta eficiência e velocidade; a própria
• É gerenciada pela comunidade de prefeitura economiza bastante unificando
forma transparente, democrática, plu- todos os seus serviços de Internet e tele-
ralista e sem fins lucrativos, envolvendo fonia e ainda pode devolver parte dessa
todas as bases locais interessadas (gover- economia para manter a rede e ainda con-
no local, iniciativa privada, organizações tinuar a desenvolvê-la.
da sociedade civil, comunidades de edu- • Ela usa uma combinação de tecnologias
cação e pesquisa). comprovadas para montar sua própria
• É totalmente apoiada por políticas infra-estrutura maximizando a relação
públicas locais, regionais, estaduais e/ou custo-benefício (fibra, rádio digital etc.)
federais. O governo municipal, acima de • O governo municipal pode exercer nor-
tudo, desempenha o papel crucial de to- malmente o seu direito legal de deitar ca-
mar a iniciativa de convocar a comuni- bos pelos bairros.
dade para participar do projeto coopera- • Ela usa uma única conexão para back-
tivo e criar facilidades e incentivos para bone da Internet de alta capacidade, re-
o desenvolvimento da rede, mas esse duzindo assim de maneira radical o custo
papel também pode ser desempenhado por Mbps para cada ponto de acesso.
pela comunidade acadêmica, pelas orga- • Ela garante a liberdade de colocação e
nizações da sociedade civil ou por em- distribuição de pontos de acesso, com
preendedores locais. seus próprios critérios de apreçamento.
• Ela otimiza seus recursos para a ad- • A manutenção técnica e administrativa
ministração local e para a inclusão digital de um sistema bem projetado é relativa-
(escolas e bibliotecas públicas, telecen- mente simples e tem boa relação custo-
tros comunitários) – atualmente, usan- benefício – já existe todo um acervo de
do um único link de alta velocidade com boas práticas no mundo inteiro.
o backbone e oferecendo serviços como • Ela pode ser implantada de forma modu-
telefonia de voz sobre IP, essas redes po- lar – começando por um bairro, por
dem propiciar um retorno pleno do in- exemplo, ou cobrindo apenas as áreas
vestimento inicial em poucos meses de com necessidade mais urgente numa
operação. primeira fase.
• Ela pode se auto-sustentar: enquanto as • Ela pode oferecer serviços adicionais
comunidades pobres pagam apenas um sem fins lucrativos, lançando mão mui-
preço simbólico, quando pagam, para tas vezes de trabalho voluntário para
usar os seus serviços (esses projetos de recondicionamento de computadores,
rede costumam buscar a democratização programas de treinamento em escolas e
do acesso através de telecentros comuni- assim por diante.
tários de uso gratuito e também oferecem • Ela pode oferecer treinamento técnico
serviços de recondicionamento de com- para operadores bem como usuários e fu-
putadores a serem distribuídos a custos turos instrutores, alavancando assim as
baixíssimos nas áreas mais pobres, den- iniciativas locais relativas a TICs.
36 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
T
al qual uma rede comunitária
dessas acima, outros componen-
tes da Internet devem ser tidos
como patrimônio do cidadão comum.
Um exemplo seria o próprio sistema de
nomes de domínio. A decisão original do
governo dos EUA em converter nomes de
domínio em commodities logo após a cria-
ção da ICANN criou um mercado mundial
dominado por uma empresa apenas (a
Verisign) e levou muitas operadoras de
ccTLD a fazerem o mesmo.
O
processo que leva à segunda fase
da Cúpula Mundial sobre a Socie-
dade da Informação (CMSI) de-
terminou como uma das suas prioridades
a formulação de um mecanismo global de
governança da Internet. Entre os países
em desenvolvimento, o Brasil tem sido
Um fórum um dos que mais se pronunciam a res-
peito da necessidade de um debate mun-
global para a dial sobre o futuro dessa governança, e foi
um dos países que lideraram a proposta
governança da que resultou na formação do Grupo de
Trabalho sobre a Governança da Internet
Internet: (GTGI).
N
o processo da CMSI, o Brasil foi ou seleção estabelecido para a escolha dos
um dos primeiros países a in- representantes.
sistir na importância de con-
siderar uma quantidade de temas que O Caucus da Sociedade Civil sobre Gover-
vão muito além do mandato da ICANN nança da Internet (CSCGI) não conseguiu,
em um futuro arranjo para a governan- até o momento, estabelecer uma visão
ça global da Internet. A visão brasileira consensual para a a estrutura de represen-
envolve a necessidade de se criar uma tação. Embora a maioria concorde, como
estrutura internacional e multi-institu- o Brasil, que as associações acadêmicas
cional abrangendo assessoria, resolução sejam parte da sociedade civil, ainda há
de conflitos e supervisão para uma ampla divergências quanto à forma de sua repre-
gama de temas da governança, com repre- sentação específica no fórum global.
sentação “adequada” de todos os grupos
interesse a nível nacional e que se forme um co- O fórum aqui é visto como um formula-
mitê gestor nacional pluralista ou organismo dor de políticas, desempenhando papéis
semelhante para a governança da Internet.” de consultoria, resolução, coordenação,
O GTGI não chega a recomendar explici- supervisão e arbitragem. Ele deve apoiar-
tamente a adoção do mecanismo de gover- se em agências e organizações técnicas,
nança adotado no Brasil, o que entraria em reguladoras e consultivas que já exis-
conflito com as políticas nacionais adota- tam, sendo visto por tais entidades como
das em diversos países,40 mas sugere que instância de resolução para as questões
sejam dados passos nessa direção. relativas à Internet pertinentes ao campo
de atividade de cada uma delas.
C
onforme já foi mencionado, o Bra- funções para organizações já existentes
sil é contrário aos modelos apre- ou ainda por criar) em diferentes níveis
sentados no Relatório do GTGI e e instâncias quanto a supervisão, regula-
sugere que se crie um único organismo ção, arbitragem e assim por diante.
com múltiplas funções, organismo este
que deverá ser, no todo, pluralista (en-
volvendo múltiplos atores), democrático,
transparente e multilateral – o signifi- 2. O FCGGI deve coordenar um amplo
cado dessas características coincide ba- espectro de temas da governança.
sicamente com a visão do GTGI. Embora
ainda estejam em discussão os detalhes da
posição brasileira, já se está chegando a Destaca-se este item para enfatizar a im-
um consenso quanto a uma proposta para portância de um mecanismo geral para
o FCGGI constando de 14 itens, a saber: suprir a falta de uma instância de gover-
nança que consolide todas as questões
1. O FCGGI deverá ser um espaço relativas à Internet.
global para a coordenação e dis-
cussão de todas as questões de gover-
nança, bem como deverá apoiar a 3. O FCGGI deve ser pluralista (múlti-
formulação de políticas globais para plos grupos de interesse de todos os
a Internet. setores).
40- Alguns dos quais simplesmente contrataram uma empresa titular comercial para vender seus domínios de
primeiro nível de código de país (ccTLDs) no mercado mundial.
cap 2 - um fórum global para a governança da internet: a visão do brasil 41
A visão brasileira aqui é semelhante à Tem relevância prática o fato que o Brasil
adotada para o seu organismo nacional de não vê a instância intergovernamental
governança (ver Apêndice 1) e a maneira do fórum discutindo e deliberando sobre
como ela prevê a participação de governos todas as questões como um organismo
nacionais está descrita no próximo item. separado. O que o país prevê é um con-
junto de representantes da instância
intergovernamental participando dos
processos gerais do fórum, que irá reme-
4. O FCGGI deve incluir um mecanis- ter àquela instância apenas as questões
mo intergovernamental através do relativas às políticas nacionais.
41- http://www.itu.int/wsis/documents/doc_multi.asp?lang=en&id=1161|1160.
cap 2 - um fórum global para a governança da internet: a visão do brasil 43
Esta proposição é significativa, onde a Isto enfatiza novas questões que passam
abordagem deve ser a de aproveitar o pelo emprego de tecnologias avança-
know-how e as organizações existentes, das, pelas conseqüências da rápida con-
e consolidar a governança global de vergência de diferentes mídias e sistemas
forma coordenada com estas organiza- de comunicação, e assim por diante. Es-
ções para as funções que elas possam ses desdobramentos, por sua vez, podem
desempenhar ou continuar desempen- exigir uma evolução correspondente de
hando, bem como ajudar a construir os certas funções, regras, padrões e reco-
novos mecanismos que se façam ne- mendações do fórum, e este tem que estar
cessários para componentes ainda não preparado para atuar com eficácia acom-
cobertos adequadamente. Isto significa panhando o avanço técnico da rede.
levar em conta não apenas a ICANN mas
também várias agências da ONU e de
outros organismos técnicos já existentes.
12. O FCGGI deve ser capaz de agir
como uma câmara de compensação
10. O FCGGI deve operar com eficácia eficiente para acolher as necessidades
e praticidade para assegurar proces- de diferentes grupos de interesse e en-
sos decisórios rápidos, em conformi- caminhá-las (ou encaminhar suas
dade com a dinâmica de expansão e resoluções sobre essas necessidades)
evolução da Internet. às organizações pertinentes.
O Brasil sugere mecanismos de repre- O Brasil destaca que, neste particular, o
sentação nos quais o fórum global seja fórum deve fazer uso intenso das mais
constituído por um número reduzido de recentes tecnologias online de gestão do
representantes que expressem legitima- conhecimento, acelerando a transparên-
mente os interesses de todos os setores. cia, os procedimentos democráticos e as
Isso requer procedimentos e mecanismo próprias funções de resolução de con-
globais adequados para assegurar proces- flitos, além de empregar uma combina-
sos de eleição e escolha democráticos e ção eficaz de reuniões abertas, online e
transparentes em cada país e região. presenciais.
A
supervisão política refere-se ao público global. No plano internacional,
poder de governos nacionais para todos os mecanismos institucionais que
determinar algum tipo de controle permitem aos políticos servir a um in-
sobre a Internet global. Para a maioria dos teresse público mais amplo, tais como o
governos, isso significa colocar a Internet voto, sistemas legais de freios e contrape-
em conformidade com as políticas públi- sos, ações de lobby e reportagens críticas,
cas por eles estabelecidas. As discussões da são fracos ou não existentes. Na política
CMSI têm insistido que governos deveriam internacional os estados estão mais in-
estar encarregados da formação de políti- teressados em proteger e estender seus
cas públicas para a Internet.43 próprios poderes como estados que em
promover um interesse público global.
Há muito de verdade nessa afirmação. Na
elaboração de políticas públicas nacionais, O terceiro problema é que, a menos que a
os governos estabeleceram instituições sociedade civil transnacional e as comu-
que determinam o interesse público para nidades técnicas e de negócios estejam
o conjunto da comunidade nacional. Isso na mesa de negociações, decisões gover-
faz dos governos os agentes mais impor- namentais serão na melhor das hipóteses
tantes na realização da regulação social. mal informadas e, na pior das hipíoteses,
Por que deveria a Internet ser diferente? seguramente danosas. Um conclave de
funcionários de relações exteriores não é
Mas há três problemas fatais em ter os capaz de entender, e menos ainda deci-
governos nacionais como veículos únicos dir, todos os assuntos de política pública
de formação de política pública para a relacionados à Internet. Eles precisam dos
Internet. O primeiro é que a Internet é insumos e participação de outros setores.
43- O relatório do GTGI, por exemplo, refletiu essa hipótese em sua discussão dos “papéis e responsabilidades”
dos diferentes agentes. O parágrafo 30 (página 8) do relatório lista “formação de políticas públicas e coordenação e
implementação, conforme apropriado, a nível nacional, e desenvolvimento e coordenação de políticas nos níveis
regional e internacional” como o primeiro “papel e responsabilidade” dos governos.
cap 3 - supervisão política da icann: uma contribuição para a cmsi 47
Por todas essas razões, estados nacionais e negociações de longo prazo. A super-
não deveriam reivindicar um papel ex- visão política sobre a ICANN, por outro
clusivo na definição de políticas públicas lado, é um tema menos complexo e pre-
para um meio global como a Internet. Os cisa ser tratado a curto prazo. Combinar
governos não podem ser ignorados ou ex- a discussão da supervisão sobre a ICANN
cluidos, mas por outro lado não deveriam com os debates sobre governança de
ser proeminentes. Tal como o surgimento todos os temas internacionais relacio-
das ferrovias elevou a capacidade regu- nados à Internet torna intratáveis ambos
latória dos governos do âmbito municipal problemas. Cada um precisa ser trabal-
para o provincial e o nacional, o surgi- hado em seu próprio âmbito, e cada um
mento da Internet requer uma aborda- pode ser objeto de políticas específicas.
gem global. E, dado que os governos por Separar os debates sobre os temas es-
natureza não são globais, novos arranjos pecíficos da ICANN dos assuntos mais
precisam ser estabelecidos. amplos de política pública internacional
para a Internet é um passo prático para
quebrar o impasse da Prepcom 3.
Supervisão
O resto deste texto concentra-se nos as-
estrita e ampla suntos da supervisão estrita sobre a ICANN.
Um texto subsequente discutirá os passos
O
s debates da CMSI juntam nas para tratar dos temas mais amplos.
discussões dois tipos de super-
visão política: estrita e ampla. A
supervisão estrita refere-se à supervisão Os atuais mecanismos
sobre a ICANN e sua administração dos
identificadores Internet. A supervisão
de supervisão para
ampla refere-se à autoridade para definir a ICANN
políticas públicas globais para a Internet
U
em uma extensa gama de temas, da pro- m dos mitos mais destrutivos que
priedade intelectual ao spam, interconexão envolvem o atual diálogo é que
e privacidade, que incluem mas vão além hoje não há supervisão política
de nomes e números Internet. sobre a Internet. Em muitos países, mas
especialmente nos EUA, o debate sobre
Ambos tipos de supervisão política são supervisão está enquadrado como um
importantes. Manter uma distinção clara confronto entre uma Internet livre de
entre os dois, no entanto, pode ajudar no governos e uma Internet que é “gerencia-
avanço das negociações na CMSI. Hoje da pela ONU”. Esta é uma dicotomia falsa
não há mecanismos formais para super- por duas razões. Em primeiro lugar, ela
visão ampla da governança da Internet. confunde a governança estrita da Internet
Criar e implementar novas instituições (supervisionar a ICANN) com a super-
para esse fim, supondo que isso seja de- visão ampla (“gerenciar a Internet”). Em
sejável, exigiria mudanças significativas segundo lugar, existe supervisão política
48 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
oculto que publica o arquivo de zona raiz siva por um único governo, portanto, não
oficial para os servidores raiz da Internet. tem legitimidade e cria um contínuo con-
A Verisign também opera o servidor raiz flito político, bem como riscos de frag-
primário “A” sob este mesmo acordo.48 mentação.
O acordo é importante por duas razões:
1) foi o instrumento pelo qual o governo Os EUA são inconsistentes quando aler-
dos EUA obteve e continua a exercer sua tam sobre “intervenção governamental”
autoridade no controle da raiz;49 e 2) na Internet enquanto reservam para seu
compeliu a Verisign a ater-se aos regula- governo poderes especiais e exclusivos.
mentos do regime da ICANN sobre regis- O papel dos EUA é uma provocação para
tradoras (“registries”) e revendedoras de outros governos, encorajando-os a bus-
domínios (“registrars”). car direitos soberanos iguais na super-
visão sobre a ICANN. Esta tensão entre
governos causa instabilidade. Já pro-
Uma breve crítica duziu ao longo de todos esses anos uma
politização crescente da ICANN e de suas
do unilateralismo funções. Sistemas raiz alternativos tais
dos EUA como o ORSN na Europa já são formados
para contrapor-se à autoridade dos EUA
A
s descrições acima revelam uma sobre a zona raiz.
extensa gama de funções de
supervisão sobre os nomes e É um mito que a supervisão dos EUA é
números da Internet nas mãos exclusi- completamente neutra e intrinsecametne
vamente do governo dos EUA. Não é sur- inofensiva. A supervisão dos EUA nada
presa que essa situação tenha criado con- acrescenta à segurança técnica do sistema
trovérsia. e ainda apresenta oportunidades signifi-
cativas para uso indevido. O poder dessa
Os argumentos contra a perpetuação do supervisão não é transparente. Negocia-
atual sistema de controle unilateral são ções com a ICANN e a Verisign relaciona-
abundantes. A Internet é global, não na- das a seus acordos respectivos são feitas
cional. Seu valor é criado pela partici- em privado. As decisões do DoC sobre al-
pação e cooperação das pessoas em todo terar qualquer coisa no MoU não seguem
o mundo. O controle da raiz pelos EUA um processo predefinido e não têm ne-
existe há apenas sete anos, metade do nhum limite exceto os objetivos políticos
período em que se deu o crescimento pú- do poder executivo dos EUA no momento.
blico e a comercialização da Internet. En-
quanto os cientistas de computação dos Não nos enganemos: o conteúdo do MoU
EUA inventaram os protocolos TCP/IP há reflete os objetivos de política dos EUA
muito tempo, o uso e administração dos sobre assuntos críticos como privacidade,
mesmos tornou-se global, e os usuários competição e propriedade intelectual. Os
dos EUA são agora uma minoria. A posse EUA até se envolveram em regulamenta-
de uma autoridade de supervisão exclu- ção de conteúdo. Pressionado pelo lobby
cap 3 - supervisão política da icann: uma contribuição para a cmsi 51
de grupos domésticos religiosos próximos concordem em acrescentar itens no MoU
à administração Bush, o DoC interveio na que reflitam um consenso de política
ICANN para postergar a autorização para internacional. Ou ele poderia dar pas-
criar o domínio de primeiro nível .xxx, sos para regularizar e internacionalizar
relacionado a conteúdo para adultos. So- o processo do MoU, por exemplo solici-
bre questões como segurança e vigilância, tando um Pedido de Comentário (RFC)
qualquer alegação de neutralidade dos internacional, aceitando respostas de
EUA não tem credibilidade, porque seria governos, setor privado e sociedade civ-
impossível para os EUA não levarem em il, e então modificando o MoU com base
conta seus interesses especiais. em um consenso básico e talvez consid-
erações políticas. Este RFC poderia ser
Finalmente, o regime da ICANN clara- acompanhado por um processo de diálogo
mente favorece os interesses econômi- global para coletar opiniões e idéias sobre
cos baseados nos EUA. A redelegação do o MoU.
domínio .org à Internet Society (ISOC)
e a redelegação do domínio .net à Veri- Outra possibilidade é que o governo dos
sign são os exemplos mais óbvios. A EUA possa simplesmente deixar o MoU
ICANN tende a mover-se muito devagar expirar quando certas condições forem
em quaisquer mudanças que abririam o alcançadas. Isto poderia permitir que a
DNS a novos entrantes não ocidentais, tal ICANN operasse com menor supervisão
como no caso dos domínios de primeiro externa. Os EUA ainda manteriam autori-
nível multilingues. dade sobre as modificações do arquivo de
zona raiz, mas prioridades de políticas e
resultados seriam mais coordenados pelos
É possível a próprios procedimentos de auto-gover-
nança da ICANN. Privatização e interna-
mudança? cionalização da administração do DNS
eram as metas originais da política dos
R
evisemos agora cada um dos me- EUA. O Departamento de Comércio dos
canismos atuais de supervisão e EUA (DoC) declarou que deixaria o MoU
discutamos as possibilidades de expirar quando concluisse que a ICANN
mudança. chegou à maturidade como organização e
com um registro adequado de resultados.
Alteração do MoU A própria ICANN apoiaria essa mudança.
A expiração do MoU poderia reforçar a
da ICANN legitimidade internacional da ICANN e
50- http://www.icann.org/tlds/agreements/verisign/proposed-agreements.htm
cap 3 - supervisão política da icann: uma contribuição para a cmsi 53
gresso teria que ser resultado de um pro- ecução da autoridade de política dos EUA
cesso político intenso sujeito ao lobby de sobre a raiz (governo dos EUA, ICANN e
interesses especiais. A opinião de grupos Verisign) reforçam os controles mútuos.
de interesse internacionais não estaria De fato, sua propensão a trabalhar juntos
representada nesse processo, somente foi provavelmente reforçada pela ameaça
interesses dos EUA. É de se esperar que da CMSI. Se mudanças ocorrerem nesse
a Verisign também se oporia a qualquer arranjo, dificilmente serão motivadas por
mudança neste caso, porque ela é muito pressões externas.
mais influente no contexto da política
dos EUA do que no âmbito global, e sua Em resumo, três dos quatro instrumen-
proeminência na indústria de nomes de tos – a afirmação dos EUA como auto-
domínio ficaria mais vulnerável se a su- ridade de políticas, o contrato da IANA
pervisão fosse internacionalizada. Esta e o acordo de Cooperação com a Verisign
combinação de forças políticas e legais – constituem um conjunto de arranjos
torna muito difícil qualquer mudança contratuais precisos e inderdependentes,
imediata neste campo. difíceis de remover sem mudanças sig-
nificativas nas forças políticas. O MoU,
Alteração do Acordo de por outro lado, é um documento flexível e
facilmente alterável, e poderia ser deixado
Cooperação com a Verisign como está até expirar.
N
A opção 2 minimiza a ameaça de um con- enhuma das duas opções é per-
trole centralizado governamental sobre a feita. Mas não podemos dar-nos
Internet; de todas as opções, é a que mais ao luxo de começar do zero. No
provavelmente evitará que a administra- geral, a opção 2 parece ser o caminho
ção de nomes e números seja afetada por mais desejável e factível politicamente,
uma destrutiva política governamental. A desde que sejam feitas sérias reformas
opção 2 é provavelmente a mais aceitável na ICANN. Isso requer em particular um
politicamente para o governo dos EUA e acordo de país-sede, reforma do processo
os interesses privados por essa razão. Se a de nomeação de membros do Conselho
ICANN fosse adequadamente reformada da ICANN, dos mecanismos de auditoria
antes de ser liberada do MoU – ênfase no e apelação e dos métodos de trabalho. Em
“se”–, esta opção preservaria e enfatizaria qualquer das opções, é fundamental apro-
o pluralismo na governança dos identifi- fundar o uso de tecnologias de informação
cadores da Internet. e comunicação, bem como de ferramentas
de trabalho colaborativo à distância, para
Há, no entanto, aspectos ou riscos negati- facilitar a participação geograficamente
vos nesta proposta. De vez que ela requer distribuida nos processos deliberativos e
melhoras nos próprios processos inter- de tomada de decisões.
nos e procedimentos de representação
como contrapartida, esta opção seria dis- A maioria das objeções às mudanças
cutível. Quem monitoraria e fiscalizaria inspiradas pelo relatório do GTGI têm
essas regras? Quem decidiria quando as sido baseadas no receio do envolvimento
condições foram satisfeitas? Se isso não pesado de governos nas políticas relativas
é bem feito, o processo poderia levar a aos identificadores da Internet, ou em
um resultado ruim. Os atuais vícios e dis- preocupações sobre a natureza lenta e
cap 3 - supervisão política da icann: uma contribuição para a cmsi 57
restritiva dos processos governamentais.
Os próprios governos em geral concor-
dam que não deveriam envolver-se na
operação técnica cotidiana da adminis-
tração da Internet. Já que é difícil extrair
uma política pública a partir dos detalhes
técnicos da administração de nomes de
domínio e números IP, é melhor deixar a
política de identificadores para um pro-
cesso pluralista que capture a expertise e
o envolvimento direto do setor privado,
da comunidade técnica e da sociedade
civil. É importante lembrar que a meta
de supervisão política estrita é a respon-
sabilidade perante a comunidade global
de usuários e provedores Internet, não
a sujeição a governos em si. Melhorar a
ICANN e eliminar a supervisão unilateral
é portanto o caminho mais lógico para a
reforma da supervisão política que o en-
volvimento multilateral de governos.
4 Introdução 52
A
manifestação acima, que faz parte adores ou, mais provavelmente, dos em-
da “Declaração de Independên- pregadores destes (STANTON, 2002).
cia do Ciberespaço53 (BARLOW,
1996), representou (e talvez ainda repre- A Internet sempre teve lei porque sempre
sente) o pensamento predominante, entre teve códigos embutidos em sua arquite-
os usuários da Internet, acerca das limita- tura de hardware e software. Isso talvez
ções do alcance governamental sobre este tenha passado despercebido pela maioria
bravo mundo novo. Há um sentimento en- de nós durante a maior parte do tempo
tre esses usuários de que não seria apro- porque, no fundo, a rede pouco nos afeta-
priada a interferência no funcionamento va como cidadãos. À medida que essa rede
da Internet por parte de nenhum governo, tornou-se importante para a sociedade e
que a própria arquitetura do ciberespaço sua utilização cada vez mais dominada
seria politicamente neutra e dificultaria pelo comércio eletrônico (com o supor-
a sua manipulação por interesses especí- te dos governos), uma nova arquitetura
ficos e que, com a expansão do comércio construiu-se sobre a anterior, não apenas
eletrônico e a transferência para a Internet tornando esse ciberespaço menos livre
de boa parte do nosso discurso público, como também criando condições para
53- Proclamada em Davos, Suíça, e publicada na revista Wired em fevereiro de 1996, esta declaração foi uma res-
posta à promulgação da Lei de Reforma das Telecomunicações nos EUA (Telecom Reform Act). Foi criada por John
Perry Barlow, ativista norte- americano de ciberdireitos, co-fundador da EFF (Electronic Frontier Foundation),
professor da Harvard Law School’s Berkman Center for Internet and Society e ex-letrista da banda de rock Grateful
Dead. Veja uma tradução da declaração completa em http://www.dhnet.org.br/ciber/textos/barlow.htm
54- Barlow respondeu, em entrevista à revista Wired (24/08/1998), dizendo: “No final das contas, Larry [Lessig]
quer criar um ciberespaço seguro para a lei. Eu quero manter a lei fora do ciberespaço” – www.wired.com/news/
politics/0,1283,14589,00.html
60 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
que a vida de seus “cibercidadãos” fosse Não existe uma definição consensual do
passível de regulação e controles jamais que seja “Governança da Internet”56,
vistos anteriormente. ainda que esta possa ser entendida
como uma ação coletiva de governos e
O ciberespaço vem sendo construído de entidades privadas com o objetivo de
forma inseparável de seu contexto. “Sua na- estabelecer acordos sobre regras, pro-
tureza não é dada. Sua natureza é o seu código, cedimentos, padrões, sanções e políticas
e seu código está mudando de uma posição que aplicáveis a todas as atividades globais
desabilitava o controle para uma outra que per- que afetem ou sejam afetadas pela In-
mitirá um tipo extraordinário de controle. É o ternet. A rigor, a governança envolve di-
comércio que está fazendo com que isso ocorra; versos assuntos, como segurança, priva-
e o governo irá ajudar. Antes que isso aconteça, cidade, controle de conteúdo, liberdade
deveríamos decidir se é assim que queremos que de expressão, tributação, direito autoral,
sejam as coisas” (LESSIG, 1999). propriedade intelectual, regulamentação
de telecomunicações, políticas de com-
A arquitetura (em transformação) do ci- petição, inclusão digital, universalização
berespaço delimitará poderes, segundo de acesso e a coordenação e padronização
valores implícitos, sejam eles de controle técnica da Internet.
ou de liberdade. Tudo vai depender das
decisões políticas que estabelecerão sua Certamente nenhum desses assuntos é
arquitetura, assim como acontece com novo, ainda que a questão da governança,
a elaboração de constituição do mundo em si, seja um fenômeno recente e em
real, que “pode ser entendida como uma busca de definição, passando obrigatoria-
arquitetura que estrutura e delimita o poder mente por uma discussão carregada de
social e legal, protegendo os valores funda- aspectos legais e técnicos que, no fundo,
mentais” (LESSIG, 1999). se misturam como um tecido inconsútil.
Tomemos como exemplo apenas um
dos assuntos da governança da Inter-
Uma questão net, aquele relativo à sua coordenação e
padronização técnica e, mais especifi-
de governança camente, àquilo que diz respeito a sua
“A tarefa de governar a Internet pode forma de endereçamento ou, mais pre-
cisamente, ao mapeamento que acontece
ser comparada à de conduzir um re- entre nomes e endereços numéricos de
todas as entidades da rede. Para que a
banho de gatos.” Internet seja uma rede global, seu código
Thom Stark55, jornalista exige a existência de um espaço público
55- www.starkrealities.com/iahc.html
56- Este termo também é freqüentemente usado no mundo dos negócios (“governança corporativa”), abrangen-
do os assuntos relativos ao poder de controle e direção de uma empresa, bem como as diferentes formas e esferas
de seu exercício - www.ibgc.org.br. Como isso se aplica a uma unidade mais simples, uma empresa ou corporação,
e a Internet se refere mais propriamente a milhares de organizações interconectadas, essa definição não deve ser
aqui aplicada.
cap 4 - a governança da internet: o controle do namespace no ciberespaço 61
e exclusivo para os nomes, ou seja, um de comunicação, baseado no protocolo
namespace único. TCP/IP57, é que faz parte do conhecimen-
to geral das pessoas sobre a Internet, e
A construção e o controle do namespace, dele partem os argumentos acerca de sua
descritos a seguir, mostrará que as mu- “ingovernabilidade” (KLEIN, 2002)
danças tecnológicas são escolhas técni-
cas vinculadas às escolhas políticas e aos De forma contrastante, o sistema de
valores socialmente constituídos, em que endereçamento é centralizado. Toda a
a tecnologia suporta (e é suportada por) Internet depende de um único sistema. A
discursos e passa a ser representada como opção dita “técnica” foi por uma arquite-
um produto de interações complexas en- tura tal que o sistema de endereçamento
tre cientistas e engenheiros, agências depende de uma espécie de lista telefôni-
de financiamento, políticas de governo, ca, a qual qualquer computador precisa
ideologias e enquadramentos culturais consultar antes de enviar dados e na qual
(EDWARDS, 1996). qualquer computador precisa constar,
se quiser receber dados de outros. Esse
sistema chama-se Domain Name System
A arquitetura (DNS) e é o responsável pela tradução
do namespace de nomes em endereços numéricos (e
vice-versa). No coração do DNS está o
namespace, em cujos registros existem
“Primeiro nós moldamos nossas es- milhões de entradas. A remoção de uma
entrada nessa lista significa a expulsão de
truturas, depois elas nos moldam.” um computador da Internet.
sir. winston churchill (1874-1965)
O controle sobre o banco de dados do
namespace significa efetivamente o con-
A Internet, de maneira simplificada, con- trole sobre a Internet. Segundo a maneira
siste em dois sistemas: um para comu- como foi projetado, o namespace obedece
nicação e outro para endereçamento. A a alguns princípios, como o da unici-
comunicação é a própria Internet como a dade e da administração centralizada em
conhecemos, ou seja, uma rede altamente uma única entidade. Só pode existir um
descentralizada – tanto que não chega se- banco de dados que constitua a lista de-
quer a ser um “sistema”, mas um conjun- finitiva dos computadores da Internet.
to de protocolos de comunicação através Cópias podem existir, mas namespaces
dos quais inúmeras redes independen- independentes, não. Na teoria, todos os
tes de computadores enviam e recebem pares “número-nome“ poderiam residir
pacotes de dados entre si, por múltiplos em um único banco de dados, mas este
caminhos. Esse modelo descentralizado seria imediatamente (e irremediavel-
57- Na verdade, TCP/IP é um conjunto de protocolos de comunicação da Internet cuja sigla representa os dois
mais importantes: Transmission Control Protocol e Internet Protocol
62 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
D
omínios como, por exemplo, o dr. david mills, pioneiro da internet
ufrj.br têm autoridade sobre todos
os subdomínios inferiores, como,
J
por exemplo, o cos.ufrj.br, as chamadas á foi observado que a evolução do
zonas. A autoridade existe sempre no nível DNS tem sido marcada pela atu-
das zonas. A delegação é o processo no ação de técnicos, empresários e
qual alguém ganha autoridade sobre uma políticos e pelo fato de que cada um desses
determinada zona. A UFRJ, por exemplo, atores comumente desempenhou papéis
delega a autoridade sobre zona .cos (in- dos outros, recíproca e simultaneamente
dicando COppe Sistemas) ao Programa (ABBATE, 2000).
de Engenharia de Sistemas e Computação
(PESC) da COPPE. Quando a ARPANET, precursora da In-
ternet, começou a funcionar, no final de
root zone 1969, o centro de informações da rede
– ARPA Network Information Center (AR-
tdls PANIC) – funcionava no Stanford Re-
search Institute (SRI), sob a coordenação
br fr ... com org edu de Douglas Engelbart58. O DNS ainda não
existia e a rede era pequena o suficiente
para que todos os usuários conhecessem
Figura 1 os endereços numéricos de todas as má-
com ufrj Estrutura dos
nomes de domínio quinas, o que permitia a interação direta,
dos servidores COS. sem a necessidade de uma estrutura de
cos diretório global.
E
graduação da University of California at m 1981, David Mills, então en-
Los Angeles (UCLA), modificou a tabela de genheiro da COMSAT62 publicou,
Karp e propôs uma padronização no pro- na RFC 799, o DNS (Domain Name
cesso de atribuição de hostnames através System), um novo sistema de nomes
do ARPANIC. de domínio para a Internet, que per-
mitia acompanhar, de forma dinâmi-
A idéia básica consistia em manter um ca, o crescimento da rede e facilitar o
arquivo, em forma de texto simples, que endereçamento de milhares de máqui-
mapeasse todos os recursos disponíveis na nas. No ano seguinte, a RFC 819 foi es-
rede através de uma tabela de hostnames e crita por Zaw-Sing Su (Stanford Research
seus respectivos endereços numéricos. Institute) e Jonathan Postel, agora no In-
Esse arquivo, chamado de HOSTS.TXT, formation Sciences Institute (ISI) da Uni-
era carregado pelos operadores em cada versity of Southern California (USC). Essa
uma das máquinas e, conforme novas má- nova RFC, baseada no trabalho original
quinas entrassem na rede ou mudassem de de Mills, definiu a arquitetura geral do
nome ou endereço, o ARPANIC deveria DNS. Em 1983, Paul Mockapetris (ISI/
ser avisado para que uma nova versão do USC), escreveu as RFCs 882 e 883, que
arquivo pudesse ser colocada à disposição definiram o sistema DNS e, mais im-
de todos. Ainda que este modelo, basea- portante, introduziram os conceitos de
58- Engelbart foi um dos principais pioneiros nos estudos de interface homem-computador. Mais informação sobre
seu trabalho pode ser encontrada em http://www.bootstrap.org/chronicle/chronicle.html
59- Request for Comments, ou “chamada para comentários”. São a base da documentação técnica da Internet, desde
os primórdios. Foram criadas por Steve Crocker, do Network Working Group (NWG), primeiro grupo de trabalho que
posteriormente deu origem ao Internet Engineering Task Force (IETF). As RFCs tornaram-se um padrão global no auxílio
ao desenvolvimento de softwares e protocolos da Internet: www.rfc-editor.org
60- MITRE Corporation foi criada em 1958, com o objetivo de criar tecnologia para o Departamento de Defesa dos
EUA, principalmente na área de Informática, como foi o caso do projeto SAGE (Semi-Automated Ground Environment).
Seus membros foram todos oriundos do Lincoln Laboratories do MIT (Massachusetts Institute of Technology).
61- Até hoje, muitos computadores ainda possuem um arquivo HOSTS.TXT como forma alternativa ao uso do DNS.
62- A COMSAT Corporation foi criada pelo Communications Satellite Act, de 1962, por iniciativa do governo norte-
americano, e tornou-se uma companhia comercial pública em 1963. Sua missão era dar impulso ao desenvolvimento da
Intelsat, organização mundial responsável pela rede de satélites que hoje congrega 143 países membros. Em setembro
de 1999, foi adquirida pela Lockheed Martin Corporation e atualmente pertence majoritariamente à CIH (COMSAT
International Holdings LLC), antes chamada de World Data Consortium, com sede em Washington D.C.
cap 4 - a governança da internet: o controle do namespace no ciberespaço 65
autoridade e delegação sobre nomes de escolheu o SRI para gerenciar todos os
domínio. registros de domínios no DNS e escolheu
o ISI/USC para gerenciar e operar a raiz do
Em 1984, Jonathan Postel e Joyce Reynolds, sistema, através da recém criada Internet
ambos do ISI/USC, escreveram a RFC Assigned Numbers Authority (IANA65),
920, onde definiram os TLDs do DNS, coordenada por Jonathan Postel. No que
a saber: “.com”, “.net”, “.org”, “.edu”, tange à operação da Internet, embora
“.gov”, “.mil” e “.arpa”. O documento esta opção “técnica” reconfigurasse as
também planejou a criação dos ccTLDs relações de poder, a tomada de decisão
usando as duas letras definidas pelo então não foi estruturada como uma escolha
recente padrão ISO-3166 da ISO63 (In- “política”. Temos aqui um episódio de
ternational Organization for Standardiza- exemplar clareza mostrando que tanto o
tion). Os TLDs também estavam planeja- que entendemos como “técnico” quanto o
dos para as “multiorganizações” - grupos que chamamos de “político” se misturam
grandes que fossem compostos de outras indissociavelmente e são, portanto, pro-
organizações e que não pudessem ser priamente o que no campo dos Estudos
facilmente identificados como uma das de Ciência e Tecnologia é denominado
opções disponíveis. O conceito de TLD “sociotécnico”. A separação entre o
multiorganizacional hoje está presente no “técnico” e o “político” presta hoje um
TLD “.int” (instituição internacional). desserviço àqueles que procuram en-
tender como uma determinada forma,
As indicações são de que a implantação do uma ordem, adquire densidade e obdura
DNS na ARPANET, a partir de 1984, fez na Internet.
com que a Defense Communications Agency
(DCA64) tivesse a percepção dos efeitos Em 1991, entretanto, um novo contrato
ditos “políticos” da opção dita “técnica” entre uma nova empresa, a Government
de programar (implantar um código para) Systems Inc. (GSI66), e a DISA (a nova
um ponto de controle centralizado para denominação da Defense Communication
gerenciar a raiz do sistema (root), assim Agency) mudou o rumo da história do
como para delegar autoridades aos regis- DNS. Pelo novo contrato, a GSI passou
tradores nessa raiz. Tanto que, em 1987, a ser responsável pela administração e
63- Com exceção das duas letras referentes ao Reino Unido, que no padrão ISO são “.gb” e na RFC ficaram
definidas como “.uk”
64- A DCA foi criada em 1960, com a missão gerenciar o Defense Communications System (DCS), uma consolidação
dos sistemas de comunicação do exército, da marinha e da aeronáutica dos EUA, então independentes. Em 1975 o
controle da ARPANET foi passado para o DCA, que em 1983 a dividiu em duas partes: ARPANET (uma rede de 45
instituições civis) e MILNET (uma rede de 68 instituições militares), que por sua vez integrou-se à Defense Data
Network (DDN). Em 1991, a DCA passou a se chamar Defense Information Systems Agency (DISA) – www.disa.mil
65- www.iana.org
66- A GSI é uma organização que, embora formalmente seja constituída como uma empresa privada, está imbricada
pela prestação de serviços nos círculos íntimos (secretos) do governo dos EUA e entidades internacionais como a
OTAN, ligada à segurança militar dos americanos e seus aliados mais confiáveis. “GSI delivers international telecom-
munications, management information systems, ADP, and network-related services to the U.S. Government and
international organizations. With headquarters in Chantilly, Virginia, GSI has personnel and facilities in satellite
offices in Stuttgart, Germany; Oahu, Hawaii, and 24 other locations around the world. GSI offers NATO Top Secret
level access cleared offices, storage facilities, and personnel ready to perform classified work”. http://boa.nc3a.nato.
int/boa/7915/gsi_exha.pdf
66 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
manutenção dos registros de domínios e Até 1995, a política acadêmica que ainda
pela operação da raiz do sistema, mesmo regia o espaço de definição dos nomes
que a IANA ainda tivesse mantido a au- na Internet permitia que qualquer um
toridade para definir as políticas de uso pudesse solicitar ao InterNIC69 (operado
do sistema. A GSI, por sua vez, terceirizou pela NSI) que registrasse, gratuitamente,
essas operações para uma outra empre- qualquer nome disponível. Com o au-
sa, a Network Solutions Inc. (NSI)67. No mento da percepção geral de que estar no
ano seguinte, a NSI ganhou ainda mais ciberespaço era algo importante para as
importância ao assumir o contrato de empresas e pessoas, o número de pedidos
operação do InterNIC, o centro de opera- de registros de nomes aumentou con-
ções da consolidação das redes, que então sideravelmente, levando a NSI a cobrar
passou a ser chamada de Internet, sob o US$ 50 por esse serviço, o que gerou uma
patrocínio da National Science Founda- enorme reação por parte da comunidade
tion (NSF), que, com o término do apoio de usuários da Internet. Como tentativa
financeiro da DCA, assumiu a ARPANET de minimizar essas reações, parte deste
e integrou-a à sua rede NFSNET, cuja valor foi revertida em forma de taxa
operação do backbone estava a cargo da federal para manutenção da infra-es-
Merit Networks68. trutura da rede, o que, por sua vez, ger-
ou um embate legal, visto que qualquer
Esse pode ser considerado um momento taxa federal teria que ser previamente
marcante na história da Internet. A par- aprovada pelo Congresso. Complicando
tir de então, os primeiros acadêmicos e ainda mais, milhares de dólares advindos
cientistas que criaram o DNS estavam de outros países, ou seja, fora da jurisdição
fora do processo. Além disto, o “sistema norte-americana, entravam na conta da
nervoso central” da Internet estava to- NSI (RONY, 1998).
talmente nas mãos do governo ameri-
cano, mesmo que através de organiza- Esse conturbado período ficou conhe-
ções formais de direito privado. Essa cido como o das “batalhas do DNS”, cu-
nova fase coincidiu com o surgimento e jas frentes diziam respeito ao controle
a disseminação da World Wide Web, que sobre os serviços de registros de nomes
fez a Internet ganhar o mundo e ter uma e endereços, assim como outros elemen-
importância cada vez maior fora do meio tos de governança do ciberespaço. Todos
acadêmico. A Internet passou a ser co- os combatentes, fossem eles hackers da
mercial e seus usuários se transforma- “velha guarda”, empresas (monopolistas
ram em consumidores. ou não), políticos, juristas ou ativistas de
67- Em 1995, a NSI – www.nsi.com - foi vendida para a Science Applications International Corporation (SAIC)
– www.saic.com, tradicional fornecedora do Departamento de Defesa dos EUA, que posteriormente, em 2000,
a revendeu para a Verisign – www.verisign.com.
68- Michigan Educational Research Information Triad (MERIT) – www.merit.edu – organização criada em 1966,
formada pelas seguintes instituições: Michigan State University (MSU), University of Michigan (UM) e Wayne State
Univerisity (WSU). Em 1990, a MERIT se juntou à IBM e à MCI, formando o consórcio Advanced Network and Ser-
vices (ANS), que passou a ser o responsável pelo backbone da Internet. Em 1994, a ANS foi vendida para a América
On-Line (AOL) - www.advanced.org
69- www.internic.net
cap 4 - a governança da internet: o controle do namespace no ciberespaço 67
ciberdireitos, tinham posições e argu- iTLDs adicionais” (ISOC, 1996). Além
mentos variados e consistentes, ainda que da IANA e da ISOC, fizeram parte deste
não fosse possível identificar facilmente a comitê as seguintes instituições: Interna-
que grupo cada um pertencia exatamente, tional Telecommunications Union (ITU73),
pois os papéis eram circunstanciais e World Intellectual Property Organization
normalmente misturavam-se entre si. (WIPO74) e International Trademark
Association (INTA75). Entre os resul-
Uma posição comum para a maioria, tados apresentados, foram criados sete
entretanto, passava pela questão do novos TLDs — “.firm”,“.store”,“.web”,
monopólio da NSI sobre o sistema DNS, “.arts”,“.rec”,“.info” e “.nom” — e foi
sobre o qual estabelecia unilateralmente dada a largada para a criação do Council
regras de propriedade intelectual para of Registrars (CORE76), uma entidade que
a aprovação de domínios e resolução de congregaria todos os futuros registra-
disputas e ainda definia arbitrariamente dores de nomes de domínio.
preços de registro e manutenção de
O
domínios. plano — conhecido como Generic
Top-Level Domain Memorandum
A questão polemizou ainda mais quando of Understanding (gTLD-MoU77)
em 1996, Jonathan Postel (IANA) publi- — foi publicado em 1997 e expandiu os
cou a primeira70 versão do international conceitos originais de Postel. Os serviços
Top-Level Domains (iTLDs), na qual propôs de registro seriam efetuados pelo CORE,
uma competição aberta para o serviço de a disputa por nomes de domínio seria re-
registro de domínios, além de dar à sua solvida pela WIPO e todas as atividades
organização, a IANA, o arcabouço legal seriam suportadas pela ITU.
e financeiro necessários para suportar a
empreitada. Em seguida, a Internet Soci- Muitos perceberam o gTLD-MoU como
ety (ISOC71) aceitou a proposta de Postel uma proposta complexa e inviável. Outros
e, reconhecendo que ainda faltava muito criticaram o passo em direção a um novo
trabalho a ser feito, instituiu um co- modelo de governança com a participa-
mitê chamado Internet Ad Hoc Committee ção de organismos internacionais antigos
(IAHC72), com o objetivo de “investigar, e burocráticos. Uma outra opção surgiu
definir e resolver as questões relativas em 1997, com a criação do enhanced DNS
ao debate internacional sobre a proposta (eDNS), uma proposta alternativa78, sus-
de estabelecer registradores globais e tentada por alguns membros da “velha
70- Postel baseou-se nos trabalhos de outros pioneiros, entre eles Lawrence Landwebber (University of Wiscosin),
Randy Bush (IETF), Karl Denninger (MCSNET) e Brian Carpenter (CERN).
71- www.isoc.org
72-www.iahc.org
73-www.itu.int
74-www.wipo.int
75-www.inta.org
76-www.corenic.org
77-www.gtld-mou.org
78-De fato, várias alternativas ao DNS surgiram naquela época (uDNS, Name.Space, AusSRC etc). Algumas ainda
existem sob a forma de uma organização chamada Open Root Server Confederation (ORSC) – http://www.open-rsc.org
68 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
O
ação e “cuidasse da privatização definitiva, trabalho anterior do IAHC, ou seja,
com aumento de competitividade, e que pro- o modelo gTLD-MoU, havia pro-
movesse a participação internacional no gredido muito pouco até esse mo-
sistema DNS” (RADER, 2001), como parte mento e terminou por enfraquecer-se,
da política de governo para o comércio pois a Câmara dos Deputados do Congres-
eletrônico global81. so dos EUA, que até então não se mani-
J
1998, Ira Magaziner, então conselheiro onathan Postel (IANA) era um dos
do presidente Clinton para assuntos maiores insatisfeitos com o Green
de Internet, liberou um documento do Paper. Em fevereiro de 1998, con-
National Telecommunications and Infor- seguiu reconfigurar diversos servidores-
mation Administration (NTIA85), que fi- raiz secundários de forma que deixassem
cou conhecido como “The Green Paper” de reconhecer o servidor-raiz principal
(MAGAZINER, 1998), que, apesar de re- (Root Server “A”, operado pela NSI), e pas-
duzir o poder da NSI, não fez nenhuma sassem a fazê-lo em relação ao servidor
menção ao trabalho anterior do IAHC. O “B” operado por ele próprio, na IANA,
documento sinalizava as pretensões do nas instalações da ISI/USC.
governo norte-americano de manter in- Para realizar tal façanha, Postel sim-
ternamente o controle sobre a Internet, plesmente enviou um e-mail aos de-
pelo menos em curto prazo, até quando mais operadores de servidores-raiz
pudesse ser feita a transição para uma secundários conclamando-os a alterar
nova entidade, privada e sem fins lucrati- o endereço do servidor principal.
“... Na medida em que a Internet se desen- tribuição dos endereços numéricos pre-
volve, existem transições em seu gerencia- cisava seguir adiante, pois, ao contrário
mento. Chegou a hora de darmos um pequeno dos nomes, os endereços IP são finitos
passo em relação a uma dessas transições. (por limitação de código), eram gratuitos
Em algum momento no futuro será apropri- e poderiam ter um controle à parte, fora
ado, para a administração do raiz, que esse da questão do DNS:
possa ser editado e publicado diretamente
pela IANA...87”
“As discussões acerca da competição
Quando o governo dos EUA ordenou que nos registros de DNS chegaram a tal
tudo voltasse à situação anterior, Postel
alegou que estava apenas “fazendo um pro- ponto de hostilidade que a última coisa
cedimento de teste para ver o quão fácil seria
a transição, quando o governo decidisse de- que qualquer um gostaria de ver seriam
sistir de controlar o DNS, conforme descreve- os registros dos endereços IP metidos
ra em seu Green Paper” (MUELLER, 2004).
Apesar de o governo não ter aprovado a nesse atoleiro político que virou o DNS
idéia do teste sem aviso prévio, o assunto
foi encerrado sem maiores prejuízos para (...). Existe o consenso de que ainda que
Postel, que, além de conseguir mostrar seja possível fazer do registro de DNS
seu descontentamento, mostrou também
como na regulamentação da Internet o uma função financeiramente com-
código se justapõe à lei na delimitação dos
espaços de possibilidades de ações. Pos- petitiva, o mesmo não se pode dizer do
tel provou claramente que ele ainda pos- registro de endereços. Por várias razões
suía um espaço para agir sobre o sistema
que ajudou a construir, não importando técnicas, não é viável para as empre-
quem fosse a atual empresa fornecedora
prestadora do serviço. sas competir em uma base monetária
pela alocação de números IP”. (rader,
A questão dos 2001)88 [ grifo nosso]
números
“Os números governam o mundo”.
P
or conta deste consenso, no final de
platão (427 a.c. - 347 a.c.) 1997, o InterNIC passou a delegação
e o controle do banco de dados de
A
inda que os registros dos nomes endereços IP e dos números de Autonomous
de domínio e a operação do siste- Systems89 (AS) para a American Registry for
ma raiz do DNS ainda estivessem Internet Numbers (ARIN90), uma insti-
envoltos em polêmicas, a questão da dis- tuição sem fins lucrativos estabelecida
cap 4 - a governança da internet: o controle do namespace no ciberespaço 71
com o objetivo de administrar e registrar O usuário comum, em geral o mais
os números dos endereços IP nas Améri- afetado por tudo isso, tem pouca ou
cas (Central, Norte e Sul), no Caribe e
na África Subsaariana. Os endereços da nenhuma oportunidade de participar
Europa já estavam aos cuidados, desde
1992, do Réseaux IP Européens Network no processo.” (rader, 2001)
- Coordination Centre (RIPE-NCC91) e os
da Ásia, desde 1993, aos cuidados da Asia
Pacific Network Information Centre (AP-
E
NIC92). Hoje o ARIN somente cuida da m junho de 1998, Ira Maga-
América do Norte, pois a partir de 2001 ziner liberou uma nova versão do
os endereços de América Latina e Caribe documento oficial do governo,
ficaram a cargo do Latin American and Ca- novamente em nome do NTIA, que fi-
ribbean Internet Addresses Registry (LAC- cou conhecido como “The White Paper”
NIC93) e está em fase final de formação (NTIA, 1998). Esse documento incluiu
o African Network Information Center (Af- diversas sugestões recebidas, principal-
riNIC94). Todas estas entidades de regis- mente em relação às questões sobre a
tros regionais, hoje, fazem parte de uma competitividade do mercado de registro
entidade chamada Number Resource Orga- de domínios, e conclamou a comunidade
nization (NRO95), criada em 2003. da Internet para que se organizasse e dis-
cutisse os tópicos ali apresentados em
busca de consensos para a nova entidade
A instituição que seria criada (nos EUA) para assumir
a governança dos nomes e endereços da
da governança Internet.
“...A história do DNS é 10% técnica
Um dos principais grupos de discussão
e 90% política. E como geralmente sobre o assunto foi o International Forum
for the White Paper (IFWP96), um grupo
acontece, ninguém percebe isso até aberto, autodefinido como “uma coalizão
ad-hoc de profissionais, empresas e insti-
quando fica muito tarde para mudar. tuições de ensino, representantes de uma
S
uas palavras foram coroadas com
um forte aplauso, após o qual, de
fato, levantou-se e saiu em direção
ao aeroporto para voar de volta aos EUA.
As reuniões do IFWP, de uma forma geral,
conseguiram consenso para a maioria dos
tópicos discutidos. Entretanto, no final,
cap 4 - a governança da internet: o controle do namespace no ciberespaço 73
Em seguida, o Departamento de Comércio cial Domain Name Holders Constituency
estendeu o acordo de cooperação com a (NCDNHC102), com representantes
NSI, permitindo-lhe que ainda continu- de entidades detentoras de nomes de
asse operando o servidor-raiz principal domínio não-comerciais – em par-
(root server A), porém teria de dividir sua ticular, do domínio “.org” – que par-
linha de negócios em duas partes: uma de ticipam dos debates no Conselho da
registro de domínios no DNS (chamada ICANN;
registry) – onde manteria a exclusividade • Country-Code Names Supporting Orga-
sobre a lucrativa função de registro dos nization (ccNSO103), Organização de
domínios “.com”, “.net” e “.org”100– e Apoio a Nomes de Domínio de Código
outra de revenda de domínios “regis- de País.
tráveis” no mercado (chamada registrar), •Address Supporting Organization
onde teria de competir com outras em- (ASO104), que controla a distribuição
presas que seriam criadas. de blocos de números IP e funciona
em estreita cooperação com organis-
No final do ano de 2000, a ICANN intro- mos regionais de administração da in-
duziu novos TLDs, como “.aero”, “.biz”, fra-estrutura da NRO.
“.coop”, “.info”, “.museum”, “.name” e
”.pro”, que ficaram sob a guarda de outros O processo de eleição dos representantes
registradores. da ICANN foi motivo de muita discussão e
confusão (AFONSO, 2002) e hoje é coor-
A estrutura da ICANN funciona basica- denado por um comitê interno chamado
mente com o apoio de três organizações At-Large Membership Study Committee
internas, cada uma cuidando de serviços (ALSC105).
específicos:
A ICANN também coordena, através do
• Generic Name Supporting Organi- DNS Root Server System Advisory Committee
zation (GNSO101), Organização de (RSSAC106), as organizações que operam
Apoio a Nomes de Domínio Genéri- os atuais treze107 servidores-raiz do DNS,
cos (gTLDs) e Sponsored (sTLDs). O que estão localizados nos EUA, na Ingla-
GNSO mantém o fórum Non-Commer- terra, na Suécia e no Japão e possuem có-
97- Há indicações de que isso gerou uma “sensação de traição” nos que estavam se dedicando a ajudar a construir
a tal nova organização “com muitas mãos”.
98- www.icann.org
99- Jonathan Postel, criador do IANA, veio a falecer poucos dias antes do anúncio oficial da ICANN -
http://www.postel.org/postel.html
100- No início de 2003, foi retirado da NSI o gTLD “.org”, que ficou a cargo de uma entidade sem fins lucrativos,
subsidiária da ISOC, denominada Public Internet Registry (PIR) – http://www.pir.org
101- www.gnso.icann.org
102- www.ncdnhc.org
103- www.ccnso.icann.org
104- www.aso.icann.org
105- www.atlargestudy.org
106- http://www.icann.org/committees/dns-root
74 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
A
pias espalhadas por alguns outros países internacionalização efetiva da
mundo.108 ICANN vem sendo cobrada em
Ainda que a ICANN tenha reduzido a diversos fóruns. Em abril de
“batalha do DNS”, muito trabalho ainda 2000, por exemplo, a Comissão Européia
precisa ser feito e muito se questiona publicou um relatório113 confirmando
acerca da necessidade de sua internacio- às autoridades norte-americanas que os
nalização, do impacto do sistema privado poderes remanescentes de seu Departa-
na administração dos principais bancos mento de Comércio em relação à ICANN
de dados do namespace109 e na operação deveriam cessar. O Parlamento Europeu,
dos servidores-raiz, entre tantas outras em resolução referente a esse relatório114,
questões relacionadas à governança da In- criticou a falta de uma solução verdadei-
ternet. A ICANN, na verdade, passou a ser ramente internacional para a questão da
o centro das discussões e controvérsias e governança da Internet.
algumas entidades foram criadas para (ou
passaram a) acompanhar os trabalhos da As críticas internacionais (FROOMKIN,
ICANN e divulgá-los de forma mais trans- 1999) revelam que, na verdade, o governo
parente para toda a comunidade Internet. dos EUA fez uma “quase-privatização” da
Entre essas estão o Center for Democracy governança da Internet, de maneira que
and Technology110 , o ICANN-Watch111 e o conseguiu se desvencilhar das respon-
Internet Democracy Project112. sabilidades advindas do dia-a-dia das
atividades (de seus agentes e/ou delega-
dos), ao mesmo tempo em que manteve a
A internacionalização última palavra no que diz respeito à auto-
ridade e controle sobre a raiz do sistema.
e a representativi-
dade da ICANN Defendendo-se de acusações de que sem-
pre procurou ignorar o TCP/IP em favor
“O modelo de governança atual é um do OSI quando a questão é governança da
exemplo de neocolonialismo.” Internet, a International Telecommunica-
tion Union (ITU), agência da Organização
robert mugabe, presidente do zimbábue, du- das Nações Unidas (ONU) para telecomu-
rante o fórum mundial das nações unidas nicações, assumiu recentemente (KLEIN,
para a sociedade da informação (wsis), em 2003) para si a missão de promover a in-
dezembro de 2003. ternacionalização da governança da In-
ternet por conta daquilo que considera
107- Treze é o número máximo de unidades que podem operar simultaneamente como servidores-raiz, de acordo
com a versão atual do protocolo DNS. Esses servidores são máquinas de grande porte, com sistema operacional
UNIX, e utilizam o BIND (Berkeley Internet Name Domain), software (aberto) para gerenciamento de DNS criado por
Paul Vixie e mantido pela Internet Systems Consortium (ISC) – http://www.isc.org
108- A lista completa dos servidores e suas cópias pode ser consultada em http://www.root-servers.org
109- A Verisign (que é a controladora NSI) lançou, em setembro de 2003, um polêmico serviço chamado SiteFinder,
que redirecionava automaticamente para suas páginas Web qualquer requisição de consulta a domínios que não
existissem, em vez de retornar mensagens de erro para os usuários da Internet - http://ssrn.com/abstract=475281
cap 4 - a governança da internet: o controle do namespace no ciberespaço 75
uma decorrência legítima de sua auto- “A”. Acreditamos que suposição de
ridade, a qual já teria sido demonstrada
por sua contribuição ao desenvolvimento controle sobre este ativo por qualquer
da Internet, como no caso dos protoco-
los H.248, H.323, X.509 (em parceria entidade externa seria contrária aos
com o IETF) e, mais recentemente, do interesses econômicos e de seguran-
ENUM115. As críticas116 em relação à ITU,
além da burocracia e da lentidão, ressal- ça nacional dos Estados Unidos da
tam que esta agência sequer reconhecia o
protocolo da Internet (TCP/IP) até o final América.117”
da década de 90, quando então promovia
exclusivamente o modelo OSI (CUKIER, A internacionalização também passa por
1999). uma série de outras questões propria-
mente sociotécnicas (onde a fronteira
A objeção norte-americana à internacio- entre política e técnica é problemática),
nalização passa novamente pelo discurso como o reconhecimento de soberania
do mundo fechado (EDWARDS, 1996), dos países (Palestina, Hong Kong, Taiwan
conforme se pôde perceber no posiciona- etc.), o equilíbrio na distribuição geográ-
mento assumido por alguns membros do fica de endereços IP, a alocação física de
Congresso dos EUA frente ao seu secre- servidores-raiz principais em países fora
tário do Departamento de Comércio: do primeiro mundo, a possibilidade de
uso de caracteres (além daqueles per-
“...Finalmente, queremos fortemente mitidos na língua inglesa) na criação de
reiterar nosso apoio à continuidade nomes de domínio etc.
Outra questão controversa diz respeito ao
do controle do Departamento de Co- atendimento a um pedido de registro de
domínio. Historicamente, isso sempre
mércio sobre o chamado servidor-raiz foi baseado no conceito de “o primeiro a
A
registradas em detrimento dos usuários Internet funciona muito bem,
da Internet, não mais importando se esses obrigado. Em todo o planeta,
tivessem chegado antes ao ciberespaço mais de 750 milhões de usuários
(MUELLER, 2002). realizam, diariamente, cerca de 18 bilhões
de consultas ao sistema DNS, hoje com
“A ICANN foi criada sob o discurso mais de 55 milhões de domínios registra-
da auto-regulação, da representa- dos. São números122 realmente impres-
sionantes de um sistema eficiente que,
tividade legítima e do consenso en- a despeito de toda essa eficiência, não
está imune às críticas nem, muito me-
tre as bases. Em vez disso, se tornou nos, pode ser considerado neutro. Todo
um exemplo de raposa cuidando do código é político. As arquiteturas que es-
tabelecem o ciberespaço têm significação
galinheiro, um verdadeiro conluio normativa e escolhas podem ser feitas
sobre os valores que essa arquitetura em-
entre governo e grandes empresas, bute. Se o código é político e constitui o
para salvaguardar interesses mútuos ciberespaço, deveria ser uma escolha dos
cidadãos, não mais uma tarefa somente
e bloquear os novos e menores partici- de engenheiros e programadores (LES-
SIG, 1997-2).
pantes” (cook, 2003)120.
O debate sobre a questão do namespace é
único sob diversos aspectos, mas serve de
Os códigos precursor sobre os futuros debates acerca
de padrões e tecnologias que, implemen-
governarão o mundo tados em forma de arquitetura, regularão
“A Internet tem a ver com consenso, nossas vidas no ciberespaço (e também
no chamado espaço “real”). Nossa inten-
não com verdade. Nunca confunda ção específica neste artigo é, em primeiro
cap 4 - a governança da internet: o controle do namespace no ciberespaço 77
lugar, contribuir para o entendimento das por um “falso consenso”, de atores que
imbricações entre leis e códigos (pro- poderiam participar do processo desde
gramas em computadores, ou máquinas o seu início. Como diz LESSIG (1997),
de programa armazenado, ou máquinas de “[d]e muitas maneiras, a Internet é fenômeno
von Neuman), mesmo que elas tenham, excepcional, mas é importante ter em mente
talvez, permanecido difíceis de perceber. precisamente que maneiras são essas”.
Um cuidado especial deve ser tomado em
relação à importação, para outras áreas, Neste rojão queremos também, em se-
do modelo dominante para o estabeleci- gundo lugar, instigar nossos leitores, afir-
mento de padrões na Internet à medida mando que queremos contribuir para que
que ela está cada vez mais presente no as imbricações e as fronteiras entre leis
Brasil (propriedade intelectual, direito e códigos sejam exploradas/negociadas/
autoral, crime eletrônico, liberdade de construídas/renegociadas por um núme-
expressão etc.). A adoção impensada de ro cada vez maior de actantes, palavra que
um modelo de padronização sem um en- Latour (1997:138) tomou emprestado da
tendimento detalhado de suas implica- semiótica para nomear “qualquer pessoa
ções pode resultar na exclusão, suportada e qualquer coisa que seja representada”.
118- www.icann.org/udrp/udrp.htm
119- www.wipo.int
120- Pode ser encontrado em http://www.lessig.org/content/archives/march2003cookrep.pdf
121- www.worldofends.com
122- www.apc.org/apps/img_upload/ 6972616672696361646f63756d656e74/ANN_1030.ppt
78 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
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O
Brasil foi pioneiro na formulação
país, promovendo a qualidade técni- e realização de uma abordagem
particular para a governança da
ca, a inovação e a disseminação dos Internet, por conta de um intenso lobby
serviços ofertados. Também é respon- realizado pela comunidade acadêmica e
pelas organizações da sociedade civil em
sável por assegurar a justa e livre com- 1994-1995. Em maio de 1995, os minis-
tros das Comunicações e da Ciência e
petição entre os provedores e garantir Tecnologia formaram o Comitê Gestor
a manutenção de adequados padrões da Internet no Brasil (CGIbr), um grupo
composto por cerca de 12 voluntários
de conduta de usuários e provedores. formado por representantes do governo
federal, operadoras de telecomunica-
Composto por membros do governo, do ções, provedores de acesso, comunidade
setor empresarial, do terceiro setor e acadêmica e representante dos usuários.
A A
s funções do sistema brasileiro té agora, as funções administra-
de governança encabeçado pelo tivas relacionadas à operação do
CGIbr são: sistema DNS brasileiro e à ar-
recadação das anuidades de nomes de
• estabelecer diretivas estratégicas domínio (o CGIbr não cobra pela dis-
relacionadas com o uso e o desen- tribuição de números IP) tem ficado a
volvimento da Internet no Brasil; cargo da Fundação de Amparo à Pesquisa
• estabelecer diretivas para a organiza- do Estado de São Paulo (FAPESP), já que
ção do relacionamento entre o gover- o Comitê Gestor não tinha uma estrutura
no e a sociedade na administração do institucional que permitisse executar es-
registro de nomes de domínio, distri- sas funções.
buição de números IP e administração
do ccTLD .br em prol dos interesses do Assim, até a data de publicação deste livro,
desenvolvimento da Internet no país; as operações do CGIbr seguem sendo um
• propor programas de pesquisa e de- projeto da FAPESP, incluindo adminis-
senvolvimento relativos à Internet em tração financeira das verbas obtidas com
conformidade com elevados padrões e a distribuição dos domínios, hoje acu-
inovações técnicas, bem como estimu- muladas em mais de R$ 100 milhões. Le-
lar a disseminação da Internet por galmente, a FAPESP pode resolver o que
todo o Brasil, buscando oportunidades fazer com o dinheiro e, inclusive, bloquear
para agregar valor aos bens e serviços qualquer proposta de gastos que não siga
relativos à rede; as suas regras internas, que a rigor podem
• promover estudos e recomendar pro- determinar que os recursos sejam gastos
cedimentos, normas e padrões técnicos apenas no Estado de São Paulo.
e operacionais relativos à segurança
apêndice i - a estrutura brasileira de governança da internet 83
E
ssa dependência histórica da governamentais fossem escolhidos por
FAPESP ainda causou outra situa- seus respectivos grupos de interesse.
ção de desconforto, quando, em
2002, o maior Ponto de Troca de Tráfego Entre 2003 e 2004, ocorreu um desdo-
(PTT) da Internet no Brasil (interligando bramento significativo. O governo federal
as principais espinhas dorsais do país), determinou que o número de membros do
que ficava hospedado nas instalações conselho subisse para 21, onze dos quais
na FAPESP, foi vendido para a empresa oriundos de organizações ou associações
norte-americana Terremark, que passou a não governamentais eleitos para manda-
explorá-lo comercialmente, com o nome tos de três anos por suas próprias bases.
de Network Access Point (NAP) Brasil, após Nessa nova estrutura de representação,
mudá-lo fisicamente para as instalações já estabelecida desde a primeira eleição
da Hewlett-Packard, em São Paulo. Assim, online de conselheiros em 2004, a distri-
um serviço público sem fins de lucro pas- buição de conselheiros é a seguinte:
sou a ser um empreendimento comercial,
e o principal ponto de trânsito de dados • o governo federal escolhe oito con-
nacional passou a ser controlado por uma selheiros;
empresa dos EUA. • as secretarias estaduais de Ciência e
Tecnologia escolhem um conselheiro;
Em 2004 O CGIbr respondeu a essa ini- • entidades civis não empresariais es-
ciativa com a implantação do projeto PTT colhem quatro conselheiros;
Metropolitano (PTT-Metro) que visa • associações empresarias (provedores
promover como serviço público a criação de acesso e conteúdo da Internet; pro-
de infra-estrutura necessária para man- vedores de infra-estrutura de tele-
ter diversos pontos de troca de tráfego comunicações; indústria de bens de
nas grandes cidades brasileiras, visando informática, de bens de telecomuni-
a interconexão direta entre as redes que cações e de software; setor empresarial
compõem a Internet no país. usuário) escolhem quatro conselhei-
ros;
A representatividade no CGIbr já foi uma • as associações acadêmicas escolhem
questão bastante debatida – desde a sua três conselheiros;
criação os conselheiros eram indicados • por fim, um conselheiro considerado
exclusivamente pelo governo federal. De- de notório saber no campo das tecno-
pois da mudança de governo no final de logias de informação e comunicação é
2002, instaurou-se uma processo de mu- escolhido por consenso.
dança a partir de sugestões apresentadas
ao novo governo em fevereiro de 2003 pela Em 2004 o CGIbr definiu que fosse for-
comunidade acadêmica e entidades civis. malizada uma organização não governa-
Essencialmente a proposta buscava, por mental (chamada NIC.br), sob a super-
um lado, que a representação tivesse uma visão do CGIbr, especialmente criada para
maioria de membros não governamentais, assumir funções administrativas, inclu-
e por outro, que todos os conselheiros não sive registro, distribuição de números IP,
84 governança da internet - contexto, impasses e caminhos
Apêndice II
Este glossário inclui as siglas e expressões
internacionais utilizadas neste livro e é
Glossário também uma combinação de alguns outros
glossários disponíveis na Internet, inclu-
sive o que é apresentado como apêndice ao
Relatório do GTGI.
ARIN American Registry for Internet Numbers Registro Americano para Números Inter-
net – o Registro Regional de números IP da
Internet para a América do Norte
ccNSO Country Code Domain Name Supporting Organização de Apoio aos Nomes de
Organization Domínio de Código de País – organismo de
apoio para a formulação de políticas sobre
ccTLDs na estrutura da ICANN
EDIFICE European B2B Forum for the Electronic Fórum B2B Europeu para a Indústria
Industry Eletrônica
gTLD Generic (or global) Top-Level Domain Domínio genérico (ou global) de primeiro
nível, como .com, .int, .net, .org, .info etc
IFWP International Forum for the White Paper Fórum Internacional para o Livro Branco
- “uma coalizão ad-hoc de profissionais,
empresas e instituições de ensino, repre-
sentantes de uma diversidade de grupos
influenciadores na Internet,” o IFWP
participou das discussões que acabaram
resultando na criação da ICANN.
NAFTA North American Free Trade Agreement Tratado de Livre Comércio da América do
Norte (TLCAN)
NAIS NGO and Academic ICANN Study Um projeto internacional para avaliar
a natureza da representação pública na
ICANN. Esse grupo de voluntários de
várias especialidades e países começou em
novembro de 2000 com um trabalho de
avaliação das eleições para representantes
de usuários para o Conselho da ICANN,
buscando responder questões sobre a
importância da representação pública nas
atividades da entidade. O trabalho ter-
minou em agosto de 2001 com a entrega
de um relatório extenso e detalhado de
significativa importância para o estudo da
governança da Internet em geral
Phishing The act of using the Internet, usually O ato de usar a Internet, usualmente
through a website and e-mail messages, através de um sítio Web e por mensagens
to fraudulently attempt to obtain sensitive de e-mail, para obter de modo fraudu-
personal information such as passwords, lento informações pessoais como senhas,
personal identification numbers etc números pessoais de identificação etc
Root server Server which contains pointers to the Servidor raiz – computador central
authoritative name servers for all top contendo endereços de encaminhamento
level domains para todos os servidores DNS de nomes de
domínio de primeiro nível. Para a Internet
como um todo, além dos 13 servidores
originais (um mestre e 12 espelhos) sob
a coordenação da ICANN, há dezenas de
outros espelhos em vários países utili-
zando uma tecnologia de sincronização
chamada “anycast”
Root zone file Master file containing pointers to name Arquivo mestre contendo endereços de
servers for all TLDs encaminhamento para os servidores raiz
de todos os domínios de primeiro nível
RSSAC Root Server System Advisory Committee Comitê Assessor do Sistema do Servidor
Raiz – criado pela ICANN para auxiliar na
coordenação operacional do sistema raiz
UNDP United Nations Development Programme Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD)
UNESCO United Nations Educational, Scientific and Organização das Nações Unidas para a
Cultural Organisation Educação, Ciência e Cultura
Unicode Standard intended to provide a unique Padrão que estabelece um número único
number for every character, indepen- para qualquer caractere, independente da
dent of computing platform, program, or plataforma computacional, programa ou
language idioma
WSIS World Summit on the Information Society Cúpula Mundial sobre a Sociedade da
Informação
Apêndice III
Referências na web