Você está na página 1de 45

Centro Universitário de Brasília – UniCeub

FASA – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas

LOIANNE QUINTELA MINDURI


Ra: 20264585

MOVIMENTO MANGUE BEAT: DA


MUSICALIDADE CAÓTICA AO PÓS-
MODERNISMO

Brasília
2006

1
Loianne Quintela Minduri

MOVIMENTO MANGUE BEAT: DA


MUSICALIDADE CAÓTICA AO PÓS-
MODERNISMO

Trabalho de conclusão de curso apresentado


ao Curso de Comunicação Social da
Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do
Centro Universitário de Brasília, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Bacharel em Jornalismo.
Orientadora: Prof. Dr. Lara Amorim.

Brasília
2006

2
Loianne Quintela Minduri

MOVIMENTO MANGUE BEAT: DA


MUSICALIDADE CAÓTICA AO PÓS-
MODERNISMO

Trabalho de conclusão de curso apresentado


ao Curso de Comunicação Social da
Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do
Centro Universitário de Brasília, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Bacharel em Jornalismo.
Orientadora: Prof. Lara Amorim.

Brasília, DF, 21 de maio de 2006

Banca Examinadora

__________________________________________
Professora Lara Amorim,
Orientadora

__________________________________________
Professor Paulo Roberto de Assis Paniago,
Examinador

__________________________________________
Professor Severino Francisco da Silva Filho,
Examinador

3
AGRADECIMENTO

Agradeço a professora Lara Amorim, pelo


inestimado apoio e orientação que me foi
dada para a execução deste trabalho.

Agradeço, também, aos colegas de turma


por todos esses anos de convivência.

Agradeço, a Deus e a todas as pessoas que


contribuíram direta ou indiretamente. Em
especial agradeço a minha mãe, a memória
do meu pai, meu irmão e minhas amigas
Andressa Marques e Ludimila Menezes.

Agradeço, ainda, aos pernambucanos que


viraram amigos, Dj Bruno Pedrosa e
Jarmeson de Lima.

Agradeço, finalmente, a memória do grande


mestre Chico Science e a todos os
mangueboys e manguegirls.

4
“A engenharia cai sobre as pedras. Um
curupira já tem seu tênis importado. Não
conseguimos acompanhar o motor da
história, mas somos batizados pelo batuque e
apreciamos a agricultura celeste. Mas
enquanto o mundo explode, nós dormimos
no silêncio do bairro. Fechando os olhos e
mordendo os lábios, sinto vontade
de fazer muita coisa”.

Chico Science
5
RESUMO

O Movimento Mangue Beat uniu elementos globais e regionais, juntou tradição com
modernidade. Ritmos como o coco, a ciranda, o maracatu misturados com o rock, a música
eletrônica e ritmos afros formaram a essência musical do movimento. Este foi de extrema
importância, principalmente, para a cultura pernambucana, mas também para a cultura
brasileira e internacional. Como um movimento de revitalização da música, o Mangue Beat
deu uma guinada em Pernambuco, transformando o estado em um pólo cultural. Por isso, e
pela grande simpatia por parte da autora deste trabalho, esse movimento foi escolhido como
o objeto de estudo. Para analisá-lo foram usados os conceitos de mundialização da cultura,
hibridismo cultural, indústria cultural, globalização, pós-modernidade, folkcomunicação.
Além disso, discutiremos as influências de movimentos estéticos e culturais como a
Antropofagia Cultural, o Punk, o Tropicalismo, entre outros, sobre o movimento Mangue
Beat. O presente trabalho visa valorizar o Mangue Beat como um movimento de grande
importância, e valorizar a música híbrida como uma forma admirável de comunicação.

Palavras-chave:
Mangue Beat. Globalização. Pós-modernismo

6
INTRODUÇÃO

Pretendemos nesta monografia apresentar o Movimento Mangue Beat engendrado


na cidade de Recife. A historicidade do movimento, suas influências, bem como sua
atividade nos meandros artístico-políticos do país serão realçados neste estudo.
Analisamos, sobretudo a articulação entre os signos de subversão dos movimentos
dos Beatniks, do movimento Punk, Antropofágico e Tropicalista na construção de uma
possível identidade “mangue”. Propusemo-nos ainda a compreender este movimento como
sendo híbrido, inserido na globalização e na pós-modernidade e nas vicissitudes intrínsecas
a esta.
Para isto, utilizamos pesquisas teóricas, musicais, de campo e entrevistas. Estas
foram realizadas pela autora, com os principais nomes do cenário musical de Recife. As
entrevistas contaram com um questionário prévio. Umas foram concebidas na cidade do
Recife, outras em Brasília. Usamos o método de pesquisa Qualitativo. Para a melhor
execução desta pesquisa, a autora foi a Recife entre os dias 13 e 22 de janeiro de 2006. Será
necessário fazermos uso das entrevistas com esses artistas para que com suas respostas
evidenciemos os conceitos que aqui serão explanados.
Portanto, trataremos o Mangue Beat como um movimento híbrido, pós-moderno,
globalizado, mundializado. Deixamos claro que neste estudo, discordamos da visão dos
principais articuladores do Mangue Beat, quando eles afirmam que o Mangue Beat não foi
influenciado pelos movimentos Tropicalista e Antropofágico, admitindo somente a
influência do movimento Punk e dos Beatniks. Acreditamos, porém, que todos esses
movimentos foram de uma forma ou de outra, consciente ou inconscientemente,
influenciadores do Mangue Beat.

7
SUMÁRIO
Introdução.........................................................................................7
1. Efervescência cultural no Recife dos anos 90..........................................9
1.1. Mangue Beat: O movimento com cérebro..............................................9
1.2. Influências de outros movimentos culturais: “Um misto de dorme nenê
que o bicho vem pegá e de equações”..............................................................11
1.2.1. Antropofagia Cultural e o Tropicalismo ...............................................12
1.2.2. Dos Beatniks aos Punks.........................................................................14
1.3. Mangue Beat X Movimento Armorial......................................................15
2. Globalização, Indústria Cultural, Pós-modernidade, mundialização da
cultura e folkcomunicação............................................................................18
2.1. Globalização.............................................................................................19
2.2. Indústria Cultural......................................................................................21
2.3. Pós-modernidade......................................................................................23
2.4. Identidade da Manguetown: Movimento dos Marginalizados..................25
2.5. Chico Science: o Mangueboy líder de opinião.........................................27

3. Globalização da música, Hibridismo Cultural e os cenários do


Mangue............................................................................................................29
3.1. Globalização da Música............................................................................29
3.2. Hibridismo Cultural..................................................................................31
3.3. Mangue, pós-mangue e off-mangue.........................................................32
CONCLUSÃO................................................................................................37
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA.....................................................................38
ANEXOS........................................................................................................40

8
1. Efervescência cultural no Recife dos anos 90
“Costumes é folclore, é tradição
Capoeira que rasga o chão
Samba que sai da favela acabada
É hip hop na minha embolada”
(Chico Science e Nação Zumbi)

1.1. Mangue Beat: O movimento com cérebro


O Brasil dos anos 90 foi marcado por crises econômicas, baixas taxas de crescimento,
aumento do desemprego, maior concentração de renda. (FILHO, 2004, p.55). Mas em meio
ao caos, eis que surgia o movimento Mangue Beat1 na cidade de Recife/Pernambuco. Uma
das cenas mais criativas da Música Popular Brasileira com frutos não só na música, mas
também no cinema, na moda e nas artes plásticas. O Mangue Beat articulou elementos
tradicionais do Nordeste do país como maracatu, embolada, coco, ciranda etc. e seus
instrumentos com elementos globais ligados à cultura pop, à tecnologia - rock, música
eletrônica, funk, soul, rap, reggae, raggamufin e dub (Vargas, 2004). As bandas Mundo
Livre S/A com o vocalista Fred Zero Quatro; a banda Eddie; o DJ e jornalista Renato L.; DJ
Dolores; Chico Science2 e Nação Zumbi com Lúcio Maia, Jorge Du Peixe e o próprio
Chico foram os principais articuladores desse movimento. Mestre Ambrósio, Otto3,
Devotos do Ódio, Faces do Subúrbio, Sheik Tosado com o vocalista China, entre outras
bandas, também estiveram sobre a égide do movimento.
Uma antena parabólica enfiada na lama, essa foi a imagem-símbolo da cena mangue.
Lama podendo significar a situação caótica da cidade tanto no cenário econômico como no
cenário musical e também como sinônimo de fertilidade dos manguezais existentes por toda
Manguetown4. E a antena simbolizando a conexão com as redes de informação e a conexão
com “à rede mundial de circulação de conceitos pop”5. O conceito “mangue” designava o
novo som e também a diversidade cultural da cidade. (BARRETO, LIMA, 2001). O

1
A nomenclatura Movimento Mangue Bit ou Movimento Mangue Beat ainda é controversa. Mas
inicialmente era Mangue Bit, de memória de computador e da música Mangue Bit da banda Mundo Livre
S/A. Quando o release Caranguejos com Cérebro foi lançado na mídia, ele foi encarado como Manifesto e a
própria mídia passou a usar o termo Beat, de batida.
2
Morto precocemente em um acidente de carro na divisa de Olinda e Recife, em pleno carnaval de 1997.
3
Dissidente dos grupos Mundo Livre e Chico Science e Nação Zumbi, atualmente segue carreira solo.
4
Recife
5
Informação contida no manifesto Caranguejos com Cérebro encontrado no encarte do primeiro cd Da lama
ao caos da banda Chico Science e Nação Zumbi.

9
jornalista e articulador do movimento Renato Lins, conhecido como Renato L.6 explica
como surgiu a idéia da metáfora mangue:
Estávamos no bar Cantinho das Graças, aí Chico chegou dizendo que
tinha feito uma Jam Session com o Lamento Negro, misturando ritmos e
que ia chamar aquilo de mangue. E na época, Fred tinha banda, todos
tinham bandas, era uma turma. E a gente queria fazer muita coisa, desde
os cartazes até a festa. Todo mundo curtia muita música. Aí a gente meio
que pediu o termo emprestado para estender para outras coisas. Nesse
momento o termo sofreu seu primeiro remix. Em vez de ser associado só a
batida, passou a ser associado a algo maior, que aí de acordo com o
tempo, variou desde ser chamada de cena, até movimento, cooperativa etc
(informação verbal).

Nesse período as manifestações culturais como coco, ciranda, maracatu, embolada,


geralmente restritas às comemorações de carnaval e São João, entraram em evidência. Os
jovens, que estavam muito mais expostos aos produtos da indústria cultural, passaram a
prestar mais atenção nos artistas populares de Pernambuco. Não se pode dizer que nunca
antes foram usados ritmos tradicionais na música brasileira, mas pode-se dizer que não
foram usados nos mesmos moldes de Chico Science e Nação Zumbi. (BARRETO, LIMA,
2001).
A época era marcada pelo movimento armorial e Ariano Suassuna7, que pregavam
uma arte brasileira erudita baseada na cultura popular sem interferências do global. Na
definição do próprio Suassuna “a arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço
comum principal a ligação com o espírito mágico dos “folhetos” de cordel [...], com a
música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus “cantares”, e com a xilogravura que
ilustra suas capas, assim como com o espírito das Artes e espetáculos populares [...]”
(SANTOS, 1974 apud SUASSUNA, 1999).
O cenário era de marasmo cultural e a Manguetown tinha sido considerada a quarta
pior cidade do mundo para se viver por um instituto de estudos populacionais de
Washington8. De acordo com o tecladista da banda Mundo Livre S/A, Bac Simpson9,
antigo Bactéria, os músicos da periferia estavam inconformados com esse cenário, com esse
conceito Armorial de música. “O Mangue Beat foi uma revolução musical”, afirma ele.
Renato L. atesta isso:

6
Entrevista concedida à autora em 20/01/2006 na Livraria Cultura em Recife.
7
Ariano Suassuna era o então secretário Estadual da Cultura.
8
Informação contida no manifesto Caranguejos com cérebro.

10
A idéia era tentar revitalizar a vida cultural da cidade, não só a música,
mas principalmente a música. Na visão da gente os anos 80 em Recife
eram culturalmente morto, musicalmente então nem se fala. A quarta pior
cidade do mundo. Não aconteceu nada. Recife passou batida pela
explosão do rock brasileiro dos anos 80, aqui não houve nada parecido
com o que houve em Brasília, Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre. Não
saiu uma banda, não tinha nada, nenhum bar, nenhum clube. Algumas
bandas de fora, vez ou outra vinham fazer shows aqui, Titãs, Legião, mas
muito esporadicamente. E o resto era Alceu Valença totalmente
mergulhado na decadência, na auto-complacência e isso ligado a situação
de miséria e estagnação econômica da cidade.

Anos 80, os “anos perdidos” para Pernambuco? Nem tanto. Afinal, foi nessa época
que os músicos da cena recifense dos anos 90 começaram a trilhar seus caminhos. Mundo
Livre, por exemplo, é de 1984. Mas o que dominava o país era o som do Lobão, Paralamas
do Sucesso, Legião Urbana. Fora do Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre e São Paulo não
havia nada predominante (TELES, 2000). Para Sanches (2000), os anos 90 inauguraram
uma nova etapa pós-moderna com novos frutos musicais, entre eles, o Mangue Beat.

1.2. Influências de outros movimentos culturais: “Um misto de dorme


nenê que o bicho vem pegá e de equações”
Movimentos como o Antropofágico; o movimento Tropicalista; o Punk - e seu lema:
Do it yourself (Faça você mesmo) - e o movimento dos Beatniks foram, de alguma forma,
referências estéticas para o Mangue Beat. O último subverte, através de sua manifestação
artístico-política, os signos de linguagem de uma cultura tradicional recifense e nacional, o
que transfigura os códigos estéticos valendo-se de elementos irreverentes do movimento
antropofágico e tropicalista.
Ressaltamos neste estudo, que é comum na História, os movimentos se voltarem para
o passado a fim de recriá-lo ou repudiá-lo. Os grupos desfavorecidos projetam uma Idade
de Ouro no presente insatisfatório. Podemos dizer que assim foi com o movimento Mangue
Beat, por mais inconsciente que estas influências possam ter sido, elas existiram, de uma
forma ou de outra.

9
Entrevista concedida à autora em 23/05/2005 no show dos Los Sebozos Postizos no evento Vivo Open Air.

11
1.2.1. Antropofagia Cultural e o Tropicalismo
O movimento Antropofágico deu-se no Brasil dos anos 20. Um Brasil um tanto
desorganizado nas áreas econômica, social, política e cultural, assim como o Brasil do
Mangue Beat nos anos 90. Oswald de Andrade junto com Mário de Andrade, Graça
Aranha, entre outros nomes consagrados no Modernismo Brasileiro, participaram da
Semana de Arte Moderna de 1922. Essa semana marcou novos conceitos e idéias sobre as
artes em geral (pintura, poesia, música, artes plásticas). Oswald de Andrade, o principal
articulador do movimento Antropofágico, era contra as formas convencionais e cultas de
arte. Ele quis recuperar elementos locais e reunir com a progressão da técnica. Como o
próprio Oswald escreveu no manifesto Antropófagico (1928): “um misto de dorme nenê
que o bicho vem pegá e de equações”. O movimento tinha a intenção de devorar a cultura
européia e outras culturas e dar-lhes uma roupagem brasileira. Foi isso que o movimento
Mangue Beat fez com a música da sua época, juntou elementos tradicionais como o coco, a
ciranda, o maracatu, a embolada etc. com a tecnologia e a música pop internacional,
samplers, hip hop, funk, música eletrônica, entre outros.
Já no fim dos anos 60 surgia um movimento que estremeceu as estruturas do cenário
musical da época: o Tropicalismo. Com Caetano Veloso e Gilberto Gil à frente, esse
movimento foi uma quebra de paradigmas. A guitarra elétrica, por exemplo, foi inserida nas
músicas/arranjos, e isso foi uma afronta para a época e os músicos convencionais. Os
tropicalistas buscaram universalizar a música e a cultura brasileira com elementos da arte e
da cultura pop. A Jovem Guarda, a Bossa Nova e até a música brega (kistch) foram
incorporados ao Tropicalismo. Gal Costa, Tom Zé, Mutantes, Rogério Duprat, entre outros
nomes, participaram dessa movimentação. Sanches acredita que o Mangue Beat foi o que
mais se aproximou de um movimento depois da Tropicália:
[...]Primeira turbulência com contornos de movimento desde o
tropicalismo, o mangue bit distribuiu, a partir dos “rios, pontes e
overdrives” de Recife, ideário (nunca consumido pelas massas, como,
aliás, ocorrera, a princípio, com a Tropicália) universalizante, de que os
caranguejos atolados nos manguezais de Recife e Olinda possuíssem
antenas com poderes parabólicos capazes de perceber as transformações
ao redor e as novas necessidades humanas – sim, elas ainda existiam. Tão
universalizante, o movimento mangue até pôde promover o encontro
insólito entre tropicalismo e canção de protesto, ao perpetrar versos como
“A cidade não pára, a cidade só cresce/o de cima sobe e o de baixo desce”
[...] de franco protesto social [...] (SANCHES, 2000).

12
É comum no meio acadêmico se dizer que a Tropicália foi o último movimento na
música brasileira e que o Mangue Beat foi influenciado por ela. Para Sanches (2000), por
exemplo, a Tropicália impossibilitou que movimentos posteriores surgissem: “[...] Outros
não aconteceram depois – ou, se aconteceram, replicavam, de um jeito ou de outro, o
Tropicalismo [...]”, afirma ele. Mas para um dos principais articuladores do Mangue Beat,
Fred Zero Quatro, o Tropicalismo tinha uma visão e postura diante da realidade, bem
diferente do Mangue Beat: “A Tropicália era o deslumbre total com o urbano, com a
metrópole, ‘ah, que divino, que maravilhoso’ e o mangue nega completamente essa visão
deslumbrada. É uma visão de reflexão - assim como o Punk, o Hip Hop – de refletir as
mazelas, as contradições, não tem nada de divino e maravilhoso”.10 Zero Quatro sabe que
mesmo um movimento inovador como o Mangue Beat esteve passível de influências:
Como afirma um sociólogo amigo meu: ‘quem tem raiz é planta’. De certa
forma não existe nascedouro absoluto de nada. Tudo é meio conseqüência
de alguma coisa, nada nasceu de uma raiz virtual lá embaixo, tudo nasceu
de uma seqüência de coisas. Existe uma vinculação óbvia de muitas coisas
que já rolaram, dadaísmo, anti-arte com o pop etc. Mas certos tipos de
vinculação são só conseqüências previsíveis e outras são como se fossem
superações, respostas de reação (informação verbal).

O argumento do músico Fred pode ser confirmado se analisarmos a letra das músicas:
Tropicália11 de Caetano Veloso e a música Da lama ao Caos12 de Chico Science. Da
primeira, foi escolhido o trecho: “No pátio interno há uma piscina, com água azul de
Amaralina./ Coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis/ Na mão direita tem uma roseira/
autenticando eterna primavera/ E no jardim os urubus passeiam a tarde inteira entre os
girassóis”. Da segunda: “O sol queimou, queimou a lama do rio/ eu vi um chié andando
devagar/ vi um aratu pra lá e pra cá/ vi um caranguejo andando pro sul/ saiu do mangue,
virou gabiru/ Oh, Josué, eu nunca vi tamanha desgraça, quanto mais miséria tem, mais
urubu ameaça” (grifos nossos). Na composição Tropicália, os urubus passeiam entre os
girassóis, onde tudo é lindo numa eterna primavera, já os urubus de Chico Science não
passeiam, ameaçam mais ainda a lama, contribuem para a miséria. Os urubus de Chico

10
Entrevista concedida à autora em 01/04/2006 no show da banda Mundo Livre no Centro Comunitário da
Universidade de Brasília.
11
Do cd Tropicália ou Panis et Circense. Existem aqueles que acreditam que a Tropicália foi extremamente
política, com letras contundentes, como o autor do livro, Tropicália: Alegoria, Alegria, Celso Favaretto.
12
Do primeiro cd da banda Chico Science e Nação Zumbi: Da lama ao caos.

13
podem ser interpretados como políticos e/ou pessoas que não se importam com a população
que passa fome e com as condições dos miseráveis, ou pode simplesmente ser uma alusão à
morte. Além disso, existe muita coisa implícita na música de Chico como a Teoria do Caos
e a citação de Josué de Castro. Nota-se que o Josué referido, é o escritor, médico e
estudioso da fome: Josué de Castro, que foi de grande influência juntamente com sua obra
Homens e Caranguejos. Josué de Castro constrói o ciclo do caranguejo, onde estes e as
pessoas habitam os mangues; os caranguejos comendo lama, os homens comendo
caranguejos e “o ciclo da fome devorando os homens e os caranguejos, todos atolados na
lama” (CASTRO, 2001, p. 27). O homem é encarado como caranguejo. Nas letras de
Chico Science e Nação Zumbi e no manifesto Caranguejos com cérebro encontram-se
metáforas como homem-caranguejo.
Na década de 1930, os homens, expulsos pela seca ou pelo latifúndio,
passaram a viver na lama dos mangues e se transformaram em homens-
caranguejo (metáfora ou sinédoque). Mais tarde, na década de 1990,
ocorreram dois movimentos: os homens-caranguejo saem do mangue,
ganham o asfalto e viram homens-gabiru (hipérbole) e os caranguejos-
com-cérebro (personificação), com suas antenas, deixam a lama e saem
em busca de vibrações (FILHO, 2003).
Acreditamos, porém, que os caranguejos com cérebro (mangueboys) foram
influenciados pelo movimento Antropofágico e Tropicalista. Isso não quer dizer que os
mangueboys ouviam as músicas de Caetano ou de Gilberto Gil e tentavam replicá-las. Mas
quer dizer que tanto os mangueboys quanto os tropicalistas tinham o mesmo princípio de
universalizar a cultura brasileira. O movimento Punk e dos Beatniks também foram
influenciadores do Mangue.
1.2.2. Dos Beatniks aos Punks
Inspirados no Existencialismo e no Romantismo o movimento dos Beatniks, surgido
nos anos 50, era basicamente um movimento literário que buscava a liberdade. Os beats
eram “jovens letrados da classe média baixa e alta querendo tudo que fugisse aos rigores
escola-família-futuro-vida doméstica. Era o novo sonho da liberdade” (BIVAIR, 1983,
p.14). Entres esses “jovens letrados” estavam Jack Kerouac (que escreveu o clássico On the
road), Allen Ginsberg e William Burroughs. Os beatniks tinham o Jazz como preferência
musical, gostavam de pintura abstrata, difundiram a meditação transcendental, o zen-

14
budismo, experiências vividas ao ar livre e a idéia de harmonia com o universo (BIVAIR,
1983).
Duas décadas depois, nos anos 70, surgia o movimento Punk com os Ramones e
posteriormente com o empresário Malcom Maclaren e a banda Sex Pistols. Do it yourself
(Faça você mesmo) era o lema do Punk. Esse movimento veio para quebrar as regras
existentes, principalmente na música e na estética. Para Bivair o Punk não é só estética:
Punk não é só visual, só música crassa. É também uma crítica e um ataque
frontal a uma sociedade exploradora, estagnada e estagnante nos seus
próprios vícios. [...] Em 1976, o Punk é mais revolução de estilo que
política [...]. Mas o Punk é político na medida em que tudo, na sua época,
obedece a uma certa política. O Punk não escapa à política de seu tempo.
E qual é então a política do Punk? Ora, o Anarquismo (1983, p. 49).

Assim como o Punk, os integrantes do Mangue Beat falaram sobre as mazelas


vivenciadas e abriram o próprio espaço para suas músicas e obras, inspirados também no
lema Do it yourself. Para Antônio Gutierrez, conhecido como Gutie13, o que foi importante
quando se fala em Mangue foi o fato de ter sido aberto um caminho: “Para as gerações que
vieram depois - segunda onda, terceira onda, até DJ Dolores ,- foi aberto um caminho no
meio da mata onde outros grupos começaram a circular aproveitando aquele caminho, é
como se fossem os bandeirantes, ou seja, a entrada na mídia, o circuito de shows”.
Os artistas do Mangue Beat não adaptavam e nem adaptam seu estilo de música
para o mundo comercial. “Não adaptamos nosso som. A gente cria um mercado, cria a
mídia e não muda a estética para freqüentar esse comercial. Você tem que criar o seu
mercado”, afirma o vocalista e guitarrista da banda Eddie, Fábio Trummer14.
O movimento Tropicalista, o Antropofágico, o Punk e o movimento dos Beatniks de
certa forma têm algo em comum com o Mangue Beat ao contrário do movimento Armorial,
do qual falaremos a seguir:

1.3. Mangue Beat X Movimento Armorial


“Armorial... palavra sonora, que evoca brasões e emblemas [...]” (SANTOS, 1999).
Armorial foi o nome escolhido, por Ariano Suassuna, para o movimento cultural do Recife
dos anos 70. Suassuna foi o criador desse movimento que tinha a intenção de valorizar a

13
Entrevista concedida à autora em 21/01/2006 no bairro de Santo Amaro/ Recife.
14
Entrevista concedida à autora no mês de dezembro de 2005 no Lago Norte, Brasília - DF.

15
cultura popular do Brasil, especialmente do Nordeste, a fim de promover uma arte erudita
advinda das raízes populares da cultura. O Armorial quis recriar as tradições, recriar a
cultura tradicional do país. “Um concerto e uma exposição de artes plásticas marcam a
aparição do movimento que reúne, em torno do escritor e homem de teatro, um grande
número de artistas, músicos, escritores e poetas, conhecidos ou não”. (SANTOS, 1999).
Nomes como Francisco Brennand, Raimundo Carrero, Gilvan Samico e grupos como o
Quinteto Armorial e o Balé Armorial do Nordeste se juntaram ao movimento, que dava
importância à pintura, literatura, dança, escultura, teatro, cinema. A literatura de cordel,
espetáculos populares como o cavalo-marinho e o bumba-meu-boi, o teatro de bonecos e a
xilogravura são de extrema importância para o Armorial.
A conservação da tradição não foi almejada somente pelo movimento Armorial.
Antes dele, o Brasil, do início do século XX, viveu o Regionalismo na literatura que
também visava essa conservação. Para Fonseca (2005) “as idéias regionalistas tomaram
forma em uma produção literária comprometida com a problemática nordestina, e tiveram
como fruto diversas obras até hoje consideradas importantes, como os livros de Gilberto
Freyre, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego”.
O Recife dos anos 90 ainda estava marcado pela visão Armorial e Regionalista de
música que impedia enxergar que a mistura das tradições com a modernidade, com a
globalização não era de todo ruim. (VARGAS, 2004). Como afirma o líder Fred Zero
Quatro15:
Por exemplo, lá em Recife o Mangue surgiu quase como um
instinto de sobrevivência para romper com o ambiente que era
muito conservador, com a hegemonia do Armorial, de uma noção
meio arbitrária do que seria tradição e que tinha que ser intocavél,
sacralizado e isso provocava um ambiente de completo
conservadorismo na cidade. E a gente surgiu como uma ruptura de
oposição a isso (informação verbal).

Os músicos da cena pernambucana entrevistados para este trabalho, em sua maioria,


afirmam que o Armorial é de extrema importância para a cultura brasileira, mas que a arte
não deve ser limitada. “A resistência dele informa a tradição, a boa música. De certa forma
é bom. Mas essa coisa de limitar a arte, a música não é boa”, afirma o vocalista da banda

15
Entrevista concedida à autora em 01/04/2006 no Centro Comunitário da UNB - Brasília.

16
Eddie, Fábio Trummer. A pureza da música não existe. Para Gutie, não existe nada puro,
que não tenha sofrido influência alguma:
O Armorial é tão importante culturalmente quanto qualquer outro
movimento. Foi feito por uma geração cuja influência era o erudito e o
popular. Não se pode exigir que todas gerações tenham as mesmas
referências e façam as mesmas coisas, aí sim seria um tédio. A gente tem
o maior respeito pelo Armorial, por Ariano. Só que a geração que veio
depois tinha outras referências. Purismo é um equívoco. Nada é puro.
Tem que ser de raiz, puro, mas o Maracatu já vem impregnado de
influência, o maracatu que veio com os escravos já mudou em relação ao
lugar que ele veio da África. Não dá pra se exigir purismo, é tudo
dinâmico. É um equívoco intelectual você achar que uma manifestação
cultural é melhor que a outra, tem muita subjetividade nisso. Toda geração
tem seus gênios, toda geração tem aquelas pessoas que têm aquele insight,
que vão deixar uma marca, caracterizar aquela geração e isso que faz a
vida ser legal (informação verbal).

O movimento Armorial foi uma tentativa de manter as tradições. O Mangue Beat


deu espaço e mostrou essa tradição contemporaneizada para o mundo. Nas palavras do
músico Trummer, os artistas do Mangue trabalharam e trabalham os “discos tradicionais de
maneira contemporânea”. Artistas como Selma do Coco, Lia de Itamaracá se tornaram mais
notórios no mundo musical depois do Mangue Beat. Renato L. concorda com essa visão:
Um cara feito Ariano Suassuna ou Antônio Nóbrega era no fundo, no
fundo, um mero atravessador. Afirmava que Lia de Itamaracá tinha que
ficar lá em Itamaracá. A Itamaracá dos anos 40 e 50, uma pequena vila,
onde a música tinha uma função ritualística, de diversão. Só que Ariano
Suassuna queria preservar o que não havia mais pra ser preservado. Era
uma operação que acabava deixando Lia de Itamaracá sem dinheiro como
merendeira de escola, enquanto que eles, brancos de classe média, classe
média alta, apresentavam aquela cultura de Lia para paulistas de classe
média alta. Antônio Nóbrega vivendo daquilo e Lia de merendeira. Eles já
partiam de um pressuposto totalmente equivocado. Não existe música
pura, cultura popular não tem nenhuma essência. A cultura das pessoas
está viva. Na cena, paradoxalmente, eles começaram a gravar, fazer show.
Conseguiram se integrar à cena em pleno pé de igualdade.

Compartilha-se da visão de Vargas (2004) quando ele afirma que o tradicionalismo


contrário aos meios de comunicação de massa e à globalização da cultura impedia enxergar
o que os músicos recifenses estavam fazendo, quais projetos e como atuavam nos canais
restantes dentro da mídia. Os artistas tradicionais mantinham distância da mídia e da
tecnologia contemporânea como os samplers, o computador, a Internet etc. diferentemente
dos mangueboys.

17
2. Globalização, Indústria Cultural, Pós-modernidade,
mundialização da cultura e folkcomunicação
“Computadores fazem arte
Artistas fazem dinheiro
Cientistas criam o novo
Artistas pegam carona
Pesquisadores avançam
Artistas levam a fama”
(Mundo Livre S/A)

As sociedades modernas passam por momentos de mudanças estruturais e


tecnológicas que afetam todos os âmbitos da vida humana, como a economia, a política, e a
cultura. E com isso cria-se uma comunidade global, deixando milhões de pessoas à margem
e fortalecendo o valor dado às culturas regionais, que por sua vez, fortalece o nacionalismo
e o fundamentalismo16 (Bolaño,1999). Mas de acordo com o filósofo Pierre Lévy, não se
deve maximizar os impactos das novas tecnologias sobre a sociedade ou a cultura, pois as
tecnologias são frutos das mesmas. Para Lévy (1999, p.23), “as verdadeiras relações,
portanto, não são criadas entre ‘a’ tecnologia (que seria da ordem da causa) e ‘a’ cultura
(que sofreria os efeitos), mas sim entre um grande número de atores humanos que
inventam, produzem, utilizam e interpretam de diferentes formas as técnicas” (em itálico no
original). Lévy acredita que as metáforas bélicas usadas para definir os impactos das
tecnologias são inadequadas. Já Ortiz (1994) acredita que como os conceitos ainda são
falhos se faz necessário o uso das metáforas.
Mas não se pode negar que a sociedade está passando por uma revolução
tecnológica diferenciada, nunca vivida anteriormente, uma revolução nas Tecnologias da
Informação (Internet, telecomunicação, radiodifusão, engenharia genética,
microeletrônica). Nas palavras de Moacir dos Anjos: “uma revolução da tecnologia de
transmissão de dados por meios eletrônicos, da qual se destaca a constituição e polarização
da Internet na década de 1990” que afeta a vida humana. As questões de classes sociais,
gênero, sexualidade, raça, etnia, nacionalidade – que no passado davam uma idéia sólida,
firme de indivíduos sociais – estão se fragmentando. E o que surge então, é a crise

16
Não vem ao caso nos alongarmos na discussão sobre fundamentalismo e nacionalismo. Para saber mais
consulte o texto de Manuel Castells (1999): Os paraísos do Senhor: fundamentalismo religioso e identidade
cultural.

18
identitária. E o que ocorre é um “deslocamento-descentração do sujeito. Esse duplo
deslocamento tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui
uma crise de identidade para o indivíduo” (HALL, 2001, p. 9).
As identidades locais foram reforçadas pela resistência à globalização. Com a
globalização surge um interesse pelo local. O global não substitui o local (Hall, 2001).

2.1. Globalização
O conceito de globalização é paradoxal. Uns são proféticos e apologéticos, outros
céticos, críticos17. Os primeiros a vêem como um fenômeno natural e indestrutível. Os
últimos como nada de novo, vêem-na como o velho capitalismo:
[...] Para uns, este movimento teria tendência mundial e estaria
provocando um deslocamento da importância dos Estados e das
economias nacionais em direção a uma ordem econômica global e a uma
sociedade de padrão cultural também global que representaria algo
essencialmente novo e uma ruptura com a ordem social anterior. Para
outros, a globalização expressaria tão-somente a tendência crescente de
interdependência das economias e, neste aspecto, não representaria
novidade alguma, senão o velho capitalismo e suas seculares contradições
(FILHO, 2004, p. 19).

Concordamos com a visão de Giddens (2000) sobre a globalização, na qual ele afirma
que a globalização é política, cultural, econômica e tecnológica e que tem sido influenciada
pelo progresso na comunicação, nos sistemas da comunicação a partir do fim da década de
1960.
Canclini (2003) afirma que “a globalização nos leva a reimaginar a nossa localização
geográfica e geocultural”. Além disso, Canclini acredita que “embora a globalização seja
imaginada como co-presença e interação entre todos os países, de todas as empresas, e
todos os consumidores, é um processo segmentado e desigual”.
Quando se fala em globalização vêm à tona discussões acerca da desigualdade
social e homogeneização da cultura. Nessa homogeneização as tradições mundiais seriam
suprimidas pela hegemonia midiática das culturas européia e norte-americana. Mas há que
se considerar que as culturas não-hegemônicas reagem, a essas anulações da diferença
causadas pelo processo da globalização, “promovendo formas novas e específicas de

17
Filho define duas categorias de posições mais típicas sobre o conceito de globalização como entusiastas e
críticos. No presente trabalho utilizamos nomenclaturas diferentes, porém com o mesmo sentido.

19
pertencimento ao local e criando, simultaneamente, articulações inéditas com o fluxo
global de informações” (ANJOS, 2005).
É justamente por provocar respostas e posicionamentos locais às suas
tendências homogeneizantes – induzindo, assim, ao reconhecimento
ampliado da natureza contingente e provisória das construções identitárias
– que a globalização assume, paradoxalmente, um caráter desmitificador e
crítico. Por meio da intensificação do fluxo mundial de bens simbólicos
por ela gerada, os tempos e os espaços em que se desenrolam ação e
pensamento são comprimidos e as fronteiras que separam lugares distintos
são flexibilizadas, promovendo a proposição e a permuta incessantes de
posições diferentes no mundo. Ainda que os espaços de vida permaneçam
fixos, os locais vividos, nos quais se articulam e se criam os produtos que
registram a individualidade de grupos, sofrem um processo de permanente
desterritorialização e estranhamento, de desmanche da geografia e da
distensão temporal específicas em que se fundam e se afirmam sistemas
de representação (ANJOS, 2005).

Com a globalização, com esse “desmanche da geografia” temos o mundo às mãos,


como prega o senso comum. E devemos concordar. Com ela somos cidadãos do mundo18,
como afirma Ortiz, não cidadãos cosmopolitas, viajantes, mas sim cidadãos mundiais, o
mundo chega até nós, no nosso cotidiano, o mundo faz parte do nosso cotidiano, da textura
geral da experiência19.
Ortiz (1994) usa o termo global voltado para os aspectos econômicos e tecnológicos e
o termo mundial (mundialização) para o âmbito da cultura. A mundialização é um
“processo que se reproduz e se desfaz incessantemente (como toda sociedade) no contexto
das disputas e das aspirações divididas pelos atores sociais [...]. O processo de
mundialização é um fenômeno social total que permeia o conjunto das manifestações
culturais” (ORTIZ, 1994, p. 30). Para ele, a mundialização se localiza no cotidiano de uma
sociedade globalizada. Apenas no século XX que esse processo de mundialização se
realiza. Warnier (2000, p.13) afirma que a “globalização da cultura é uma das
conseqüências do desenvolvimento industrial”.
Segundo Canclini (2000) e Ortiz (1994) as tradições não se extinguem com a
modernidade, com o global. Pelo contrário. A cultura é mundializada. E o Mangue Beat é
resultado dessa mundialização da cultura.

18
Termo usado por Renato Ortiz e nome de música, do cd Afrociberdelia, escrita por Chico Science.
19
Termo usado por Roger Silverstone (2002) no livro Por que estudar a mídia.

20
2.2. Indústria Cultural
Com a industrialização surge a Indústria Cultural, a cultura e os meios de
comunicação de massa. A Revolução Industrial (século XVIII); a economia de mercado; a
sociedade de consumo e o capitalismo liberal (mais tardiamente seria um capitalismo de
organização ou monopolista) foram os requisitos para a existência da Indústria Cultural
(COELHO, 1980). De acordo com Coelho, esse é o momento do aparecimento da cultura
de massa ou então o momento pré-histórico dessa cultura, “uma cultura feita em série,
industrialmente, para o grande número que passa a ser vista não como um instrumento de
crítica e conhecimento, mas como produto trocável por dinheiro e que deve ser consumido
como se consome outra coisa qualquer” (COELHO, 1980, p.11). Os produtos são
padronizados para atender ao consumo de um gosto médio de um público passivo. A
Indústria Cultural fabrica produtos vendáveis, provoca alienação e reforça o status quo
promovendo o conformismo social (COELHO, 1980).
Não se sabe ao certo, mas talvez a primeira vez que usaram o termo “indústria
cultural” foi em 1947. O termo foi usado pelos sociólogos, da Escola de Frankfurt, Max
Horkheimer e Theodor W. Adorno. Eles afirmavam que a reprodução em série dos bens
culturais, permitida pela tecnologia, colocava em risco a arte, a criação artística. A Escola
de Frankfurt via a industrialização como um mal, com a cultura reduzida a superficialidade,
ao pastiche (WARNIER, 2000, p. 26).
Quando se fala em Indústria Cultural, fala-se também em cultura média (midcult),
cultura de massa (masscult) e cultura superior. A midcult torna-se um subproduto da
masscult, usando elementos da cultura superior quando estes elementos se tornam notórios,
então são vendidos como cultura superior, fazendo os consumidores acreditarem que estão
diante da verdadeira cultura20. Essa Indústria Cultural não combate à cultura superior nem a
popular, mas cria uma nova forma de cultura que complementa as tradicionais
(COELHO,1980).
Ainda de acordo com Coelho (1980, p.30) “é comum estabelecer-se uma oposição entre a
cultura popular, entendida como a soma dos valores ancestrais de um povo, e a cultura dita
pop, outra designação da cultura de massa”. A cultura popular “é uma das fontes de uma

20
Não vem ao caso nos estendermos nesta discussão. Para saber mais ler o livro de Teixeira Coelho (1980): O
que é Indústria Cultural.

21
cultura nacional, mas não a fonte, não havendo razão para usá-la como escudo num
combate contra a cultura de massa [...]”. Essa cultura popular tem a seu favor o fato de ser
feita pelas próprias pessoas que a consomem, ao contrário da pop. Como está escrito na
música Etnia21 de Chico Science: “[...] É o povo na arte, é a arte no povo e não o povo na
arte de quem faz arte com o povo [...]”.
Mas na cultura popular também existe a falta de questionamento de si mesma, dos
seus processos, apesar dela, positivamente, reforçar, fixar o reconhecimento da pessoa
dentro do grupo. A cultura popular necessita da complementação de fontes como a cultura
pop para manter-se dinâmica (COELHO, 1980). Pode-se inferir que o Mangue Beat
dinamizou a cultura popular com elementos da cultura de massa ou pop. Segundo Coelho
(1980, p.23), “[...] é perfeitamente possível pensar numa aliança entre a própria cultura
popular e os veículos da cultura pop, que são os da Indústria cultural”.
O pop é por sua essência efêmero. Não se pode dizer que o Mangue Beat é um
movimento da cultura pop. Gutie22 acredita que:
Não havia uma coisa pop, para ser pop também tem que ser efêmero.
Quando se torna pop tem aquele boom e depois tem uma retração. O fato
de não ter se tornado pop, talvez seja até pela sofisticação e sua
diversidade. Isso que dá impressão que não aconteceu, mas o movimento
acontece de uma forma muito mais consistente. É um trabalho que precisa
ser feito mesmo sem se pensar que tem de ser de massa, a coisa tem de ser
feita como tem de ser feita. E só o fato dessas bandas ícones do que se
convencionou chamar movimento Mangue Beat estarem aí trabalhando,
mostra que a coisa tem consistência. Não sei até que ponto é legal ser
cultura de massa ou não, se é legal ficar pensando, procurando ser cultura
de massa. Tem que se explicar o que é cultura de massa (informação
verbal).

Mas vale ressaltar que a Indústria Cultural é diferenciada no Brasil. Existem


particularidades, como a não homogeneidade da cultura de massa; a má distribuição de
renda que impossibilita a existência de uma sociedade de consumo; a grande influência das
culturas estrangeiras (que não é de todo ruim, pois se pode ganhar com esse contato tanto
cultural como ideologicamente falando); a permanência do grotesco; a inexistência de um
conflito entre cultura superior e cultura de massa (Coelho, 1980).

21
Música escrita por Chico Science lançada no segundo cd da banda Chico Science e Nação Zumbi:
Afrociberdelia (1996).
22
Entrevista concedida à autora em 21/01/2006 no bairro de Santo Amaro/ Recife.

22
O Mangue Beat articulou tradição e modernidade; centro e periferia; cultura popular
e cultura pop. O consumo da cultura pop pelos mangueboys era para o movimento Armorial
uma colonização cultural. Mas para os mangueboys a idéia era dialogar com o mundo
contemporâneo, com diferentes culturas e incorporar elementos da cultura de massa e da
ligação com o marginalizado, periférico. A originalidade não era mais a palavra de ordem.
Isso não quer dizer copiar, mas sim transformar, transformar o que já existe (FONSECA,
2005). Como diria Chico Science e Nação Zumbi na pós-moderna música Monólogo ao pé
do ouvido23: “Modernizar o passado é uma evolução musical”.

2.3. Pós-modernidade
Na década de 1950 surge o que alguns sociólogos têm denominado de pós-
modernismo. Nome dado às mudanças ocorridas nas artes, no pensamento, na
individualidade, nas ciências, na genética. A partir dos anos 50, a sociedade moderna foi se
transformando em pós-industrial, consumista e informacional. Como afirma Santos:
O pós-modernismo é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências,
nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por convenção,
se encerra o modernismo (1900 – 1950). Ele nasce com a arquitetura e a
computação nos anos 50. Toma corpo com a arte Pop nos anos 60. Cresce
ao entrar pela filosofia, durante os anos 70, como crítica da cultura
ocidental. E amadurece hoje, alastrando-se na moda, no cinema, na
música e no cotidiano programado pela tecnociência (ciência + tecnologia
invadindo o cotidiano desde alimentos processados até
microcomputadores), sem que ninguém saiba se é decadência ou
renascimento cultural” (2000, p. 7-8, grifo do autor).

É difícil definir o pós-modernismo, pois ele mescla vários estilos e tendências, é


aberto e existem mudanças nos diversos âmbitos da sociedade, que é pós-industrial. Elas
são "programadas e performatizadas pela tecnociência para produzir mais e mais rápido, em
todos os setores, e com isso, presumivelmente, facilitar a vida das pessoas" (SANTOS,
2000, p.26).
A arte moderna sempre foi tida como coisa muito séria, já a pós-moderna não. O
niilismo, o vazio, o nada, a ausência de valores estão presentes no indivíduo pós-moderno,
assim ele se entrega ao presente, ao consumo, aos prazeres e ao individualismo. A diferença
entre o real e o imaginário é quase nula. O que existe é o simulacro passando pelo real,

23
Música lançada no primeiro cd da banda Chico Science e Nação Zumbi: Da lama ao caos (1994).

23
tornando-se hiper real. (SANTOS, 2000). Ele afirma que "o ambiente pós-moderno
significa basicamente isso: entre nós e o mundo estão os meios tecnológicos de
comunicação, ou seja, de simulação. Eles não nos informam sobre o mundo; eles o refazem
a sua maneira, hiper-realizam o mundo, transformando-o num espetáculo" (SANTOS,
2000, p. 13).
A pós-modernidade bombardeia os indivíduos com informações fragmentadas,
superficiais e busca o consumo personalizado, escolhendo vedetes como: "o design, a
moda, a publicidade e os meios de comunicação". As identidades também são
fragmentadas, o indivíduo pode ter várias identidades ao mesmo tempo (HALL, 2001).
Ocorre então, o que Santos (2000, p.30) chama de “neo-individualismo pós-moderno”, no
qual o sujeito não tem ideais, projetos, cultua a própria imagem e busca a satisfação
instantânea e o sujeito “está no centro da crise dos valores pós-moderna.
A moderna arte se vira contra o passado, contra as formas convencionais de arte,
buscando a experimentação, uma arte abstrata, difícil, que deve ser entendida pelos críticos.
Nos anos 50 o modernismo perde o seu furor, sua criatividade. Surge então, a arte Pop que
se converte em antiarte. A arte sai das galerias, dos teatros, dos museus e ganha as ruas. O
cotidiano é banalizado. A vida pode ser representada pela arte. Tudo pode ser arte, desde
um anúncio de jornal, revistas, até embalagens de produtos, estrelas de cinema, heróis de
revista em quadrinho e produtos recicláveis (SANTOS, 2000). “[...] O artista Pop pode
diluir a arte na vida porque a vida já está saturada de signos estéticos massificados. A
antiarte [...] acaba sendo uma ponte entre a arte culta e a arte de massa; pela singularização
do banal [...] ou pela banalização do singular [...]. Elite e massa se confundem na antiarte”
(SANTOS, 2000, p.37-38).
Na ficção como nas demais artes, a antiarte prolonga traços modernistas,
mas às vezes acentuando-os até a extravagância. Antiilusionismo,
experimentalismo permanecem. São de lei. A fragmentação do texto pode
descambar para o acaso total, a leitura ficando sem rumo e sem fio
condutor. A paródia e o pastiche, antes ocasionais, hoje em dia são quase
regra. No entanto, embora sejam mais nítidas nas artes plásticas do que no
romance ou no cinema, por exemplo, as diferenças é que servem de
melhor guia (SANTOS, 2000, p. 41).

Para Santos (2000), a arte moderna nasceu com estéticas definidas, manifestos
ruidosos, já a antiarte pós-moderna não é nada definida, convive com vários estilos,

24
tendências. Os grupos e movimentos são ecléticos, plurais, com estilos misturados. Não há
mais unificação. Ele acredita também que não existe mais a vanguarda, pois o público já
não mais se escandaliza. E o que existe então, é a transvanguarda: “quer dizer, além da
vanguarda – vale tanto um estilo retrô, para trás, quanto a vídeo-arte, para frente”. A pós-
modernidade anda para trás, como um caranguejo. Falando em caranguejo, lembra-se do
Mangue Beat. E o pós-modernismo está implícito no mesmo – não no sentido de vazio,
niilismo, mas na estética plural, indefinida e retrô - como na letra da música Etnia de Chico
Science e Nação Zumbi: “Modernizar o passado é uma evolução musical/ Cadê as notas
que estavam aqui?/ Não preciso delas!/ Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos [...].”
No Brasil, o modernismo foi de grande influência, principalmente na literatura, e o é
até hoje. Mas não podemos dizer que o Brasil é um país pós-moderno, ele tem traços da
pós-modernidade, se é que é possível discernir esses traços, já que ainda se vive na pós-
modernidade e não se sabe ao certo quando ela surgiu e quais suas características. O Brasil
é um país que se industrializou, mas já se pode enxergar as mercadorias, vedetes pós-
industriais: “[...] os signos de pós-modernismo estão nas ruas, nos mass media. Óculos
coloridos, cabelinhos new-wave, cintos metaleiros, rock punk, por aí vai" (SANTOS, 2000,
p.31). Mesmo assim, consideramos o Mangue Beat como a expressão da pós-modernidade
brasileira.
Os músicos da cena mangue vinham propor transformação no samba, no
maracatu, na música pop, no hip hop, no punk, e, sendo mais geral, no
rock propriamente dito. A banda Nação Zumbi, por exemplo, retrabalhava
o rock dos anos 60, mas incorporando elementos de soul, funk e hip hop.
A partir da incorporação da música eletrônica e sampling, todo estilo pode
ser fragmentado, reutilizado, reciclado. É uma fonte que nunca se esgota –
a música pós-moderna pode viver às custas de si mesma, de suas próprias
formas, de sua própria história. (FONSECA, 2005).

2.4. Identidade da Manguetown: Movimento dos Marginalizados


O Mangue Beat tem um laço, uma ligação com a cidade na qual foi originado,
Recife. Para Vianna (1998), essa relação modifica a visão que os grupos sociais têm de suas
próprias identidades locais, modificando ainda o modo como esses grupos imaginam o
lugar que sua cultura urbana ocupa (tanto regional, nacional quanto globalmente falando).
Evocando o nome da cidade de forma crítica. Como se pode observar na letra da música
Antene-se: “Recife, a quarta pior cidade do mundo, onde a lama é a insurreição...” Ou ainda
25
na música Manguetown “andando por entre os becos, andando em coletivos, ninguém foge
ao cheiro sujo da lama do Manguetown”. O Recife de Alceu Valença já era diferente, era
de sol, mar, coqueiros, morenas tropicanas. Assim como Salvador é descrita pela Axé
Music (Vianna, 1998).
Para Vianna (1998), "a lírica das músicas também é como uma grande salada de
imagens globais e locais, mas tudo tendo como base referências constantes à especificidade
recifense”. Como exemplo disso podemos citar músicas como Banditismo por uma questão
de classe com trechos como “Galeguinho do Coque não tinha, não tinha medo da Perna
Cabeluda, Biu do Olho Verde fazia sexo, fazia sexo com seu alicate”, ou ainda, Rios,
pontes e overdrives com “é Macaxeira, Imbiribeira, Bom pastor, é o Ibura, Ipseb, Torreão,
Casa Amarela, Boa Viagem, Genipapo, Bonifácio, Santo Amaro, Madalena, BoaVista,
Dois Irmãos [...]”. Na primeira música temos bandidos conhecidos apenas no Recife. Com
uma exceção: a Perna Cabeluda que não era exatamente um bandido, mas uma lenda
urbana. A Perna Cabeluda foi uma personagem do imaginário popular no Recife dos anos
70, que saía pela cidade a atacar as pessoas, estuprar mulheres etc. Na segunda música, são
listados vários bairros de Recife, muito particular para quem mora lá ou conhece a cidade.
Alguns articuladores do Mangue Beat vieram de comunidades carentes do Recife,
como Peixinhos. Outros eram de classe média como Renato L. e Fred Zero Quatro, ambos
formados em Jornalismo. Mas todos sem espaço na mídia, marginalizados. Sendo assim,
eles buscaram outros canais que não os convencionais. Na música, nos shows, no
microfone, na cultura regional, no folclore encontraram esses canais. Os marginalizados são
aqueles grupos que demonstram “o seu inconformismo e revolta através de canais próprios,
restritos que funcionam como meio de preservar a autonomia dentro da desagregação vinda
do capitalismo” (Beltrão apud Melo, 1980). Segundo Beltrão (1980) “não é somente pelos
meios de comunicação ortodoxos, a imprensa, o rádio, a TV, o cinema, a arte erudita e as
ciências acadêmicas que [...] a massa se comunica e a opinião pública se manifesta. Um dos
grandes canais de comunicação coletiva é sem dúvida, o folclore”. Para Roberto Benjamin
(1970) a “Folkcomunicação é o processo de intercâmbio de informações e de manifestação
de opiniões, idéias e atitudes de massa, mediante agentes e meios ligados direta ou
indiretamente ao folclore”. Kunsch (2000) faz a diferenciação entre folclore e
folkcomunicação:

26
O folclore diz respeito às manifestações da cultura popular, abordadas
pela Ciência do Folclore; já a Folkcomunicação lida com os aspectos
comunicacionais dessas manifestações, constituindo hoje um campo de
estudos que vem se consolidando, dentro da área de Ciências da
Comunicação [...] aplicando uma metodologia científica de análise das
características comunicacionais das manifestações da cultura popular [...]
(KUNSCH, 2000).

Luyten (1988), usando as palavras de Beltrão, afirma que a Folkcomunicação é a


“comunicação através de sistemas folclóricos”, explica também que ela é “o conjunto de
sistemas de comunicação popular em que os veículos são as próprias manifestações
folclóricas”.

2.5.1. Chico Science: o Mangueboy líder de opinião

Francisco de Assis França, conhecido como Chico Science, era vocalista da banda
Chico Science e Nação Zumbi. Ele foi o articulador do movimento Mangue Beat. Mas teve
sua trajetória interrompida em um acidente de carro em 1997, quando estava no auge de sua
carreira. Chico Science foi o porta-voz principal, com suas letras contundentes sobre os
problemas sociais da sua comunidade e do Recife. Como se pode observar na letra da
música A cidade24: “A cidade se encontra prostituída por aqueles que a usaram em busca de
saída. Ilusoras de pessoas de outros lugares, a cidade e sua fama vão além dos mares. No
meio da esperteza internacional, a cidade até que não está tão mal. E a situação sempre
mais ou menos, sempre uns com mais e outros com menos”.
O povo se comunica por meio de manifestações. Luyten (1988) constatou que essa
comunicação se faz dentro da fórmula básica de Laswell - quem diz - o quê - por que canal
- a quem - com que efeito?. Mas para Santaella (2003) isso não era o bastante porque não
considerava as influências pessoais, sociais e culturais que afetam a comunicação (Luyten,
1988 apud Santaella, 2003).
“O líder de opinião trata-se do folkcomunicador, alguém que, graças ao
conhecimento de determinados temas e à percepção de seus reflexos na vida do povo, além
de arraigadas convicções filosóficas, baseados em crenças e costumes da comunidade a que
pertence, é capaz de encontrar palavras e argumentos para sensibilizar as formas pré-
lógicas que caracterizam o pensamento e ditam a conduta de seu grupo [...]” (Kunsch, 1999

24
Música do primeiro cd da banda Chico Science e Nação Zumbi: Da lama ao caos.

27
apud Santaella, 2003). Sendo assim, ele pode ser considerado um folkcomunicador, um
líder de opinião.
Mas Chico Science e os mangueboys não usaram apenas da cultura popular para se
comunicar, usaram também elementos, tecnologias e ritmos globais. Falaremos no próximo
capítulo sobre a globalização da música; sobre o Mangue Beat como uma forma híbrida de
cultura e os cenários do Mangue: Mangue, Pós-mangue e Off-mangue.

28
3. Globalização da música, Hibridismo Cultural e os cenários
do Mangue
“Não espere nada do centro
Se a periferia está morta
Pois o que era velho no norte
Se torna novo no sul
Eu tenho feito samba pesado
Misturado sons, inventado estilos
Eu venho repensando o sucesso
E destruindo a camada de ozônio”
(Mundo Livre S/A)

3.1. Globalização da Música


Atualmente, a música popular é mundial, diversificada, mutável. Mas a música só se
tornou universal depois que a gravação sonora e a transmissão radiofônica foram possíveis.
Essa música está permanentemente em fase de mudança, agregando tradições locais e
novas vertentes culturais e sociais. Isso se dá devido à globalização e as novas técnicas de
distribuição, gravação, audição e propagação da música como o Mp3, Mp4, entre outros.
Mas esse fenômeno da música de massa surgiu com o rock e o pop dos anos 60 e 70
(Lévy,1999).
Para Lévy (1999), a globalização da música traria uma homogeneização definitiva,
onde os estilos, as diferenças, as tradições se transformariam numa massa uniforme. Mas
não foi isso que ocorreu:
[...] Ora, se a “sopa” está de fato presente, felizmente a música popular do
mundo não se reduz a ela. Algumas zonas da paisagem musical, pensando
sobretudo naquelas irrigadas pela circulação de cassetes no Terceiro
Mundo, continuam protegidas ou desconectadas do mercado
internacional. A música mundial continua alimentando-se dessas ilhas
imperceptíveis, mas muito vivas, de antigas tradições locais, assim como
de uma criatividade poética e musical inesgotável e amplamente
distribuída. Novos gêneros, novos estilos, novos sons surgem
constantemente, recriando as diferenças de potencial que agitam o espaço
musical planetário (LÉVY, 1999, p. 139).

Lévy (1999) afirma que com as novas tecnologias25, o crescimento da Internet, do


ciberespaço (como uma nova forma de comunicação diferente das mídias clássicas) a

25
Lévy (1999) descreve algumas dessas tecnologias como o estúdio digital com suas funções: “[...]
sequenciador para o auxílio à composição, o sampler para a digitalização do som, os programas de mixagem e
arranjo do som digitalizado e o sintetizador, que produz sons a partir de instruções ou de códigos digitais. [...]

29
música pode ser feita, propagada, ouvida por qualquer pessoa, por qualquer músico. Estes
“podem controlar o conjunto da cadeia de produção da música e eventualmente colocar na
rede os produtos de sua criatividade sem passar pelos intermediários que haviam sido
introduzidos pelos sistemas de notação e de gravação (editores, intérpretes, grandes
estúdios, lojas)” (LÉVY, 1999, p.141, grifo do autor). Um exemplo disso é a banda
Mombojó, existente desde 2001. Eles disponibilizaram suas músicas em um site da Internet
e a partir daí chamaram atenção para seu trabalho, formando um público. No mês de abril
de 2006 lançaram o segundo disco Homem-Espuma, não mais de forma independente, mas
pela gravadora Trama26. As músicas não estão disponíveis para baixar, somente para ouvir.
O tecladista da banda Mombojó, Chiquinho27 afirma que a música alternativa é difícil de
concorrer com a mídia massiva. Levemos em conta também, que nem todos têm acesso à
Internet. Sobre ela, o produtor do festival de música Rec Beat e da banda Cordel do Fogo
encantado, Gutie28 afirma: “agora que a Internet está chegando às pessoas. A Internet é o
grande veículo que vai ser o propagador de qualquer outro movimento ou manifestação
artística, como foi o rádio nos anos 50 e a TV nos anos 60”.
Renato L.29 afirma que as novas tecnologias, principalmente o sampler tornou muita
coisa possível na década de 1990:
Era uma época onde o sampler se popularizou, então muita música foi
feita a partir de sampler, e aí começou a rolar muita música com
cruzamento étnico, numa escala que não tinha até então. Nego samplear
uma batida de música árabe com hip hop, hoje em dia é normal, mas na
época era uma ‘puta’ novidade. E eram músicas que a gente curtia pra
caramba. Isso ajudou a chamar nossa atenção, não fazer isso aqui, seria
uma estupidez ignorar tamanha riqueza. Por que não abrir todas as fontes
de comunicação dos artistas? E permitir também que eles se integrem
nessa grande circulação de idéias (informação verbal).

Com as novas tecnologias é fácil de se obter informações sobre artistas e bandas de


qualquer lugar do mundo, tornando o hibridismo das culturas, a mistura de tradições locais
com componentes globais uma fonte criativa para a cultura, principalmente, para a música.

O padrão MIDI (Musical Instrument Digital Interface) permite que uma seqüência de instruções musicais
produzida em qualquer estúdio digital seja ‘tocada’ em qualquer sintetizador do planeta” (p.141).
26
A Trama é uma gravadora de artistas alternativos. Para mais informações acesse o site: www.trama.com.br
27
Entrevista concedida à autora em 16/01/2006 na Livraria Cultura em Recife.
28
Entrevista concedida à autora em 21/01/2006 no bairro de Santo Amaro/ Recife.
29
Entrevista concedida à autora em 20/01/2006 na Livraria Cultura em Recife.

30
3.2. Hibridismo Cultural
O conceito de hibridismo cultural é complexo. Existem aqueles que o interpretam
como uma fonte criativa e aqueles que o vêem como um perigo, um risco (HALL, 2001, p.
91). Este trabalho vê o hibridismo cultural como uma fonte criativa. Falemos um pouco
acerca desse hibridismo.
Canclini (2000, p.18) afirma que “os meios de comunicação eletrônica, que pareciam
destinados a substituir a arte culta e o folclore, agora os difundem maciçamente. O rock e a
música ‘erudita’ se renovam, mesmo nas metrópoles, com melodias populares asiáticas e
afro-americanas”. Para ele, antes se imaginava que a modernização substituiria a tradição, o
conhecimento científico substituiria os mitos, a indústria substituiria o artesanato e por fim,
os meios de comunicação substituiriam os livros. Mas não foi bem assim.
As tradições não são extintas pela “industrialização dos bens simbólicos”. Canclini
atesta que “ao analisar a arte popular, que sua anunciada morte não acontece quando
admitimos que ela se desenvolveu transformando-se. Uma parte dessa mudança consiste em
que o artesanato, as músicas folclóricas e as tradições já não configuram blocos compactos,
com contornos definidos” (2000, p. 366). Segundo Canclini, nesse cenário de hibridismo
cultural somos levados a participar de grupos cultos e populares, modernos e tradicionais.
Essa interação entre o popular, o culto e o de massa “abranda as fronteiras entre seus
praticantes e seus estilos” (2000, p. 348 – p. 346).
As hibridações da cultura descritas por Canclini, nos levam a conclusão de que todas
as culturas são fronteiriças. Hall afirma que “as nações modernas são, todas, híbridos
culturais” (2000, p. 62). Canclini, por sua vez, acredita que “todas as artes se desenvolvem
em relação com outras artes: o artesanato migra do campo para a cidade; os filmes, os
vídeos, e canções que narram acontecimentos de um povo são intercambiados com outros.
Assim as culturas perdem a relação exclusiva com seu território, mas ganham em
comunicação e conhecimento” (2000, p. 348).
Burke (2003) afirma que na música a hibridização se torna mais óbvia que em outros
aspectos da cultura e da sociedade. Segundo ele as novas tecnologias, como a “mesa de
mixagem”, facilitaram bastante essa hibridização. O movimento Mangue Beat usava muito
desses recursos tecnológicos no seu trabalho e é resultado de um hibridismo cultural. Para
Gutie o hibridismo é que faz a cultura:

31
Por mais que se queira buscar a coisa mais pura da música, quando você
achar que encontrou, encontrou foi uma coisa nova, diferente, híbrida. É
legal o cara que fez o Armorial persistir naquele conceito, evoluir dentro
dele, Quinteto Violado, Antônio Nóbrega, por exemplo. É impossível
qualquer pessoa não se influenciar de alguma forma, não levar alguma
coisa pra dentro de si. Não existe preservação nem mesmo dentro de uma
banda. Nação zumbi, por exemplo, tem a mesma formação instrumental,
mas a concepção musical mudou, andou, caminhou, evoluiu. O hibridismo
que faz a cultura. A grande salvação do Brasil é o hibridismo, o
hibridismo que faz o Brasil ser esse celeiro musical. Viva a liberdade
(informação verbal).

O manguezal, como sendo um rico ecossistema, deu nome ao movimento recifense


dos anos 90, o Mangue Beat. Esse movimento pode ser considerado como uma forma
híbrida de cultura. Mas para melhor explicitar isso, nos voltamos à metáfora do mangue,
com alguns acréscimos. O ecossistema mangue se localiza às margens de baías, costas, etc.
onde exista o encontro de água salgada e de água doce. A partir daí inferimos que a água
salgada, o mar representa o urbano, a cidade e a água doce, o rio representa o rural. A união
da água salgada e da água doce dá origem à lama (esta se torna o símbolo do hibridismo
cultural no movimento Mangue). Logo, temos que a união da água salgada com a água
doce, ou seja, a união da tradição com a modernidade, representa o hibridismo cultural, a
lama da Manguetown. E tudo isso representa o Mangue Beat.

3.3. Mangue, pós-mangue e off-mangue


A pretensão inicial do movimento Mangue Beat, descrita no manifesto Caranguejos
com cérebro, era “injetar energia na lama e estimular [...] fertilidade nas veias do Recife”.
Pretensão essa que se tornou realidade. Tanto que quando se fala em Recife logo se remete
ao Mangue. Movimento que “colocou Recife no mapa”, que fez as pessoas voltarem os
olhos para a cultura popular pernambucana, como acredita o percussionista da banda Eddie,
Alexandre Urêa30. É opinião unânime, entre os artistas dessa cena, que se hoje Recife é um
celeiro musical, isso se deve ao Mangue Beat. Mas Gutie31 tem uma visão diferenciada, ele
acredita que criou-se uma aura de competência, de inovação, e que se hoje Pernambuco nos
remete a coisas legais, ousadas, diversas isso se deve não só ao Mangue Beat, mas a toda
história e trajetória do estado de Pernambuco. “O Mangue Beat ajudou a consolidar essa

30
Entrevista concedida à autora no mês de dezembro de 2005 no Lago Norte, Brasília - DF.
31
Entrevista concedida à autora em 21/01/2006 no bairro de Santo Amaro/ Recife.

32
tradição que Pernambuco é um celeiro musical, que de tempos em tempos coloca coisas
legais no mercado, na história da música”, afirma ele. Para China32, “o movimento ainda
está na aura da cidade. Tudo que a gente conquistou é devido ao movimento Mangue”.
Segundo o tecladista da banda Mombojó, Chiquinho33, criou-se um mercado musical no
Recife. “Mercado de técnico de som, não só de músico”, completa. Já a este respeito
Renato L. afirma que:
Bem ou mal, com todos os problemas, se construiu uma cadeia produtiva
no Recife. Tem programa de TV, coluna de jornal, revista, Internet, não
tem rádio (um programa aqui outro acolá), mas rádio é um problema no
mundo inteiro. Temos dois programas de TV: o Sopa Diário e o Estéreo
Clipe. O tempo inteiro está saindo matéria de banda. Bem ou mal tem
lugar, bar para fazer show com uma certa freqüência, e não é de hoje, isso
vem desde 94, 95, é muito tempo para uma cena. Historicamente, cenas
pops duram quatro, cinco anos, a cena aqui está durando um tempo muito
grande, muito acima da média. Se fosse sempre a mesma coisa tinha
morrido já (informação verbal).

O vocalista da banda Eddie, Fábio Trummer34, acredita que mesmo que algumas
pessoas digam que o movimento não teve nenhuma atenção da mídia, esse movimento é
muito maior que muita cena brasileira, como a cena mineira (Pato Fu, Shank, Jota Quest).
O percussionista da banda Mundo Livre S/A, Tom Rocha35, afirma que mesmo que não
tenha tido atenção da grande mídia, existem várias pessoas interessadas no movimento
Mangue, mas ele sabe que também existem pessoas que não conhecem esse movimento.
Segundo ele, o Mangue Beat não foi só um movimento musical, teve moda, artes plásticas,
cinema com os filmes Baile Perfumado, Amarelo Manga, e por mais que o movimento não
esteja na mídia, existem pessoas que respeitam muito o trabalho dos artistas
pernambucanos. China afirma que até a prefeitura da cidade está percebendo, depois de
muito tempo, que a cena é respeitada no mundo todo e que eles precisam de lugar para
tocar:
E aí quem sabe a gente possa ganhar um espaço, como acontece com o
brega no Pará, que é fenômeno de massa. Quem sabe a música de Recife
não possa se tornar um fenômeno de massa, tem tudo para virar, tem

32
China era da banda Sheik Tosado, da segunda geração do mangue. Atualmente, está em carreira solo.
Entrevista concedida à autora na Livraria Cultura de Recife em 16/01/2006.
33
Chiquinho é da banda Mombojó. A banda é bem mais nova, não é da mesma época que Chico Science e
Nação Zumbi ou Mundo Livre S/A. A entrevista foi concedida juntamente com China.
34
Entrevista concedida à autora no mês de dezembro de 2005 no Lago Norte, Brasília - DF.
35
Entrevista concedida à autora em 01/04/2006 no Centro Comunitário da UNB - Brasília.

33
refrão, boas bases, boas músicas, bons músicos, discos sendo feitos aqui
na cidade (coisa que antes não tinha), então se criou uma estrutura bem
legal de trabalho para todo mundo, devido à cena. A tudo que veio desde
o movimento. Até então Recife era um gueto. Antes do Mangue não
existia uma cena. Eram os metaleiros de um lado, os punks, Alceu
Valença, ninguém tinha espaço. Não ganhávamos dinheiro com música.
Hoje em dia é diferente. Estamos caminhando (informação verbal).

Um ponto em comum nas diferentes entrevistas realizadas para este trabalho foi à
crença na afirmação que o movimento Mangue só foi possível devido à diversidade cultural
existente e proposta, desde o início. O termo “Mangue” já demonstrava isso. Mas apesar
disso, China garante que esse termo já está ultrapassado, que é uma coisa muito maior.
Renato L. prefere o termo cena ou cooperativa. Gutie afirma que não gosta de usar o termo
Mangue Beat. Outro ponto em comum é o fato do Mangue Beat não ter sido encarado como
movimento. Gutie afirma que:
A gente nem encarava muito como movimento. Vejo uma coisa em
transformação. Hoje mesmo, eu nem gosto de usar mangue, Mangue Beat.
As coisas são dinâmicas. Tem um momento que você vive, outros virão.
Hoje as novas bandas mal sabem do Mangue Beat, a maioria dos
moleques não viu Chico Science. A gente querer perpetuar um momento é
uma forma de congelamento. ‘Ah, vamos congelar os anos 90.’ Daqui a
pouco vai ter gente que vai falar que Recife está estagnado e isso é negar
tudo que tivemos como princípio, que é exatamente movimentar as coisas,
acabar com a estagnação. Então quando você começa a datar as coisas,
você acaba estagnando. Dj Dolores falou que acabou. Acabou mesmo
dentro daquela idéia, agora é outra história. As coisas continuam. Em
termos históricos quando alguém vai documentar, um jornalista,
historiador, ele usa aquilo como uma fase: ‘O Mangue beat aconteceu
neste período’. A gente até entende que isso é necessário em termos de
localização no tempo e no espaço. Mas a gente que estava envolvido, eu
mesmo não tenho essa coisa de ficar preso àquele conceito. Foi ótimo, foi
lindo termos trabalhado aquilo. Mas agora os frutos são outros, os
desdobramentos são outros (informação verbal).

Para China, a diversidade pode ser evidenciada se percebemos que as principais


bandas do Mangue, Mundo Livre S/A e a Nação Zumbi faziam e ainda fazem um som
totalmente diferente uma da outra. Renato L. acredita que esse conceito de diversidade dava
uma flexibilidade que permitia acomodar sem eliminar as diferenças. Para ele, a idéia era
conseguir conectar as diversas singularidades da cidade e mostrar que se podia trabalhar em
conjunto e manter essas singularidades. E isso aconteceu. Mas Renato afirma que existe
uma tensão por conta disso, pois a grande mídia, a indústria cultural, trabalha

34
uniformizando e o que amenizou essa tensão foi o fato de não haver um código de regras,
uma roupa específica, uma batida e isso permitiu uma interação entre as várias vertentes. “E
por sua vez, permitindo uma transição para um cenário pós-mangue onde você reconhece
viver num momento diferente na cidade, mas ao mesmo tempo isso não implica uma
ruptura, um corte radical com o que aconteceu nos anos 90”, completa Renato L. Para ele,
Recife vive hoje em um cenário pós-mangue, já para o jornalista Jarmeson de Lima36, o
termo correto seria off-mangue. Jarmeson acredita que este é um termo que tenta definir
“quem faz um tipo de música diferente, uma vez que na mídia externa, o conceito de
mangue é muito forte a ponto de inúmeros jornalistas imaginarem que só exista este tipo de
bandas de rock em Pernambuco”. Para Jarmeson:
Depois da morte de Chico Science aconteceram duas coisas com as
bandas: 1- as que queriam fazer algo diferente para tentar superar e
evoluir a perda do cara, tendo a consciência que o legado dele é mais
amplo para ficar limitado a uma fórmula e 2- as que quiseram pegar
carona no Mangue e tentar ser os novos sucessores de Chico Science,
imitando seus trejeitos e fazendo a mesma coisa que ele fazia no primeiro
disco, sem lembrar que a própria Nação Zumbi já estava fazendo outras
sonoridades, mais dub, mais psicodélica e mais autêntica.
Conseqüentemente, a cidade chegou a um ponto em que as bandas-cópia
chegaram em uma quantidade que saturou os ouvidos do público, que
passou a procurar bandas com estilos diferentes. Isso possibilitou com que
os grupos que tocavam ‘à margem’ dessa realidade musical pudessem ser
descobertos. Então o termo ‘off-mangue’ serve mais para isso, para tentar
dizer quem faz um tipo de música diferente do que é mangue.

Off-mangue não deve ser considerado como um movimento de bandas que querem
se diferenciar do Mangue Beat, mas somente como um termo para agrupar essas bandas.
Segundo o jornalista Jarmeson, o Off-mangue “não é exatamente um movimento, já que os
grupos não se pretendem a criar um, mas é um termo que tenta agrupar pelas diferenças e
peculiaridades, uma vez que cada um tem um estilo próprio e a única semelhança entre eles
é que não fazem o estilo chamado mangue”. Com uma visão diferenciada, o percussionista
da banda Mundo Livre, Tom Rocha37, explica que não deveriam existir rótulos:
Não deveria existir nem On-mangue, nem Off-mangue. Na verdade existe
uma cena em Recife. Mangue não é um ritmo, não é uma batida, é um

36
Jarmeson de Lima é jornalista com pós-graduação em Jornalismo Cultural, é produtor cultural e um dos
integrantes do Coquetel Molotov, projeto Musical de Recife que engloba revista, programa de Rádio, festival
e selo. Entrevista concedida à autora via MSN no dia 21/05/2006.
37
Entrevista concedida à autora em 01/04/2006 no show da banda Mundo Livre no Centro Comunitário da
UNB.

35
conceito, idéias, de várias pessoas que se juntaram e fizeram o seu
pouquinho acreditando numa parada que achavam legal e botaram para
frente. Muita gente pensa que vai tocar Mangue Beat, não vai tocar
Mangue Beat nunca. Assim como o forró, você vai tocar os gêneros, xote,
baião, xaxado. Muita gente pensa que é uma batida. As bandas estão com
tudo, o rótulo Off-mangue não está com nada (informação verbal).

O líder da banda Mundo Livre acredita que essa tentativa de se desvencilhar do


Mangue Beat é um pouco inevitável e natural, pois cada vez que surge um cenário que
ocupa um certo espaço, ele acaba se tornando parte integrante do sistema. O líder Fred Zero
Quatro38 afirma que:
Para a geração mais nova que tem que conviver com toda essa herança do
Mangue Beat (que foi uma coisa que abriu muito espaço e deu muitos
frutos) a gente hoje é meio que um sistema, ou parte de um sistema. E
quem já teve conflito com os pais, escola, com tudo sabe o quanto é
saudável, necessário, você se afirmar contra um determinado sistema
estabelecido. Então, eu acho isso natural. Tem os indies (a galera que
gosta de Indie Rock), o Coquetel Molotov e bandas como Rádio de
Outono, Chambaril. Fatalmente começamos a nos bater nos mesmos
festivais, nos mesmos palcos. E no primeiro contato eu fiquei surpreso,
eles vieram elogiar, beijar meu pé. E essa galera também não está nem aí
para essa discussão de off-mangue. E eu acho legal que eles até se
aproveitam um pouco disso. É isso aí, vamos conviver com isso
(informação verbal).

Os termos mangue, pós-mangue e off-mangue, na verdade, só demonstram tamanha


a importância da efervescência da cena recifense dos anos 90. Cena esta que misturou a
tradição e a modernidade, pós-modernidade; aliou o centro à periferia; cultura popular e
cultura pop. E é inegável que o Mangue Beat foi um movimento de transvanguarda,
revolucionário, contestador, político, pós-moderno e híbrido. E com as palavras da banda
de maior expressão dentro do movimento, ilustramos a nossa proposta inicial: “Eu vim com
a Nação Zumbi ao seu ouvido falar/ Quero ver a poeira subir e muita fumaça no ar/
Cheguei com meu universo e aterrisso no seu pensamento/ Trago as luzes dos postes nos
olhos/ Rios e pontes no coração/ Pernambuco embaixo dos pés e minha mente na
imensidão”.

38
Entrevista concedida à autora em 01/04/2006 no Centro Comunitário da UNB.

36
CONCLUSÃO

Podemos concluir que o movimento Mangue Beat não é apenas uma batida (beat em
Inglês), ou um ritmo. É, porém, um conglomerado de idéias, conceitos, atitudes de pessoas
que fizeram de Pernambuco, um estado muito rico e diverso culturalmente. O Mangue Beat
existe até hoje, não da mesma forma, mas existe quando falamos na diversidade cultural,
nas novas bandas recifenses que surgem (independentemente de estilos) e nas bandas
antigas que continuam na estrada. O Mangue Beat alça novas e renovadas propostas
musicais ante o mercado fonográfico corrente. Ao analisarmos as relações de influências
culturais e políticas sobre o Mangue, delineamos os contornos da atual cena musical de
Recife e seus vislumbres artísticos dentro da identidade mangue, identidade da
Manguetown.
O Mangue Beat é uma forma híbrida de cultura, uma forma de comunicação que
uniu componentes globais e regionais e tomou grandes dimensões, estando presente até
hoje na aura da cidade de Recife. Em entrevistas realizadas para este estudo, podemos dizer
que os artistas da cena recifense dos anos 90 concordam plenamente com essa visão. As
entrevistas nos levaram as análises discursivas e a conseqüente compreensão crítica do
movimento Mangue como inovador, criativo, irreverente, revolucionário, polêmico,
híbrido, globalizado e pós-moderno.
Artistas como Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre S/A, Eddie, Otto, entre
outros, estão vinculados à uma tendência maior que um estilo musical, estão envolvidos em
um projeto que tem origem, mas se distende no presente, assumindo sempre novas feições.

37
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

BARRETO, Sílvia Gonçalves Paes; LIMA, Sérgio Ricardo de Godoy. Patrimônio


Imaterial. Cultura em movimento: usos contemporâneos dos ritmos tradicionais em
Pernambuco. In: Revista Tempo Brasileiro. nº 147. Out-dez, 2001.

BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: A comunicação dos marginalizados. São Paulo:


Editora Cortez, 1980.

BIVAIR, Antônio. O que é Punk. São Paulo: Brasiliense, 1983 (confirmar), 2ª ed. Coleção
Primeiros Passos.

BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. Editora Unisinos. RS, 2003.

CALADO, Carlos. Tropicália: A história de uma revolução musical. São Paulo: Editora 34,
1997. 4ª ed.

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da


modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 3ª ed. 2000.

CASTRO, Josué. Homens e Caranguejos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

COELHO, Teixeira. O que é Indústria Cultural. São Paulo: Brasiliense, 1981, 5. ed.
Coleção Primeiros Passos.

ESSINGER, Silvio. Punk: Anarquia Planetária e a Cena Brasileira. São Paulo: Editora 34,
1999. Série: Ouvido Musical.

FILHO, Domingos Leite Lima. Dimensões e limites da globalização. Petrópolis, RJ, editora
Vozes, 2004.

GIDDENS, Anthony. O mundo na era da globalização. Editorial Presença, 2ª edição,


Lisboa, abril, 2000.

38
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.

ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1998.

SANCHES, Pedro Alexandre. Tropicalismo: Decadência Bonita do Samba. São Paulo:


Boitempo, 2000.

SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos Santos. Em demanda da poética popular: Ariano
Suassuna e o Movimento Armorial. Campinas: Unicamp, 1999. Série: Viagens da Voz.

SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Editora Brasiliense, 19º
Reimpressão, 2000.

SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mídia. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2002.

TELES, José. Do frevo ao Manguebeat. São Paulo: Editora 34, 2000. Coleção Todos os
Cantos.

VARGAS, Herom. Nas ondas da lama: Manguebeat, divulgação e mídia. Revista


Comunicare. Edição de Janeiro a Junho de 2004.

VIANNA, Hermano. Música no plural: novas identidades brasileiras. In: Revista de


Cultura Brasileña. Editada por la Embajada de Brasil em Espana. nº 1, p.299-311,
mar/1998.

WARNIER, Jean-Pierre. A mundialização da cultura. Bauro, SP. Edusc, 2000.

39
ANEXO – FOTOS*

40
41
42
43
44
* Fotos da banda Chico Science e Nação Zumbi tiradas pelo fotógrafo André Correia.

45

Você também pode gostar