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Eles me perguntaram: você vai apoiar o movimento mangue e eu disse não vou apoiar o
movimento mangue, eu disse lá e não saiu. Eu não vou fazer oposição a ninguém. Não
compete a Secretaria de Cultura fazer oposição a ninguém. O que eu vou fazer é uma
questão de prioridade. Então eu quero lhe dizer o seguinte, e isso eu disse lá e também não
saiu, a literatura de cordel está morrendo. Para mim é uma coisa da mais alta importância.
Então, se eu tivesse verba ajudava a Deus e o mundo, agora, como eu sei que as verbas são
poucas, eu não vou escolher o movimento mangue, que obtém apoio da imprensa falada e
escrita, esse tipo de movimento obtém apoio das grandes marcas de cigarro, das grandes
empresas, e a literatura está literalmente morrendo. Outra coisa, o movimento mangue, por
exemplo, se baseia em maracatu pelo que ouvi falar. Eu considero uma das manifestações
mais importantes o maracatu rural. Então, o que eu disse foi isso, tendo verba eu não vou
dar apoio a um movimento que já tem apoio de outras coisas, deixando de lado a cultura
popular, que está aí se acabando, não tem um tostão de ajuda de coisa nenhuma. Não digo
nem de ajuda, mas de apoio. Falta a eles tudo. (Suassuna In: Barbosa, 1995)1
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A comentada entrevista à TV Viva teria, segundo matérias jornalísticas posteriores, desencadeado a polêmica
em questão, agravada após a publicação do Projeto Cultural Pernambuco-Brasil (Suassuna, 1995a),
apresentado pelo Secretário no início de sua gestão.
nacionais, que abriga uma concepção bastante específica de cultura – baseada na distinção
rígida entre popular e massivo –, e um entendimento particular da função do Estado nesta
área. Em suas proposições políticas, o Secretário exibe uma compreensão bem definida da
natureza da relação entre culturas no contexto do capitalismo globalizado, e do papel do
intelectual brasileiro na afirmação nacional perante uma suposta dominação cultural
estrangeira.
Ao ser interrogado, algum tempo depois, sobre as relações estéticas entre o
Manguebit e o Movimento Armorial, fundado por ele na década de 1970, Suassuna narra
um dos debates públicos que travou com Chico Science por intermédio do Diário de
Pernambuco:
Ele foi me procurar dizendo: “Eu sou um armorial”. Ele sabia que eu fazia certas oposições
ao Movimento Mangue. Tinha restrições tremendas. O que eu discordava era exatamente
porque ele tentava fundir duas coisas de uma forma equivocada. Ele dizia que tentava
valorizar o maracatu rural, por exemplo, através da junção com o rock. Eu gosto muito do
maracatu rural - um dos títulos de que mais me orgulho na vida é o de Guerreiro e Rei de
Honra do Maracatu Rural – e perguntei ao Chico Science: “No que uma coisa ruim como o
rock pode valorizar uma coisa boa como o maracatu?”. E completei “Você está servindo de
ponta-de-lança para os piores inimigos do Brasil, aqueles que tentam descaracterizar a
nossa cultura. Mude o nome de Chico Science para Chico Ciência que eu subo no palco do
seu lado”. Naturalmente não se tratava apenas de mudar o nome, mas de mudar tudo o que
estava por trás dele. (Suassuna, 200, pp. 42-43)
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questionados e reapropriados por meio da alternativa estética da colagem, que reformula os
referenciais apresentados pela arte pop, avaliando os limites de sua universalidade e
oferecendo respostas não etnocêntricas às questões colocadas pelo contexto
contemporâneo. Science opera pela incorporação criativa dos elementos étnicos e estéticos
marginalizados, no momento em que a nação deixa de ser o norte das produções culturais
subalternas e a idéia de periferia passa a referenciar as propostas de desvirtuamento das
imposições das culturas hegemônicas. Como explica o músico, a proposta de seu trabalho:
Não é muito pela idéia do nacionalismo. Existe até esse lado, mas não é uma coisa
ostensiva, fechada. É uma preocupação natural que vem de dentro de você. Na verdade, isto
que estamos sentindo já está nas ruas, está dentro de cada pessoa deste país. O que falta é
botar pra fora, é se organizar para falar sobre isto. (Science In: Garrido, 1994)
Chico Science se coloca então como porta-voz dos anseios das culturas periféricas
por auto-representação. Considerando o cenário político-cultural traçado pelas
especificidades do cosmopolitismo contemporâneo, sua criação parte de uma realidade
híbrida, fortemente marcada pelo avanço das redes de comunicação, para atingir a
estetização e a politização do cotidiano por meio da linguagem pop. Toma o popular em sua
definição sincrética, ignorando fronteiras arbitrárias que distinguem rural de urbano,
folclórico de massivo, popular de erudito. No sampler de Science, “o alquimista dos sons”,
as expressões musicais populares ocupam um lugar de destaque, tanto em seu “valor
original”, quanto como importante ingrediente sonoro de misturas criativas:
Nossa idéia não é acabar com o folclore e sim resgatar os ritmos regionais, envenená-los
com a bagagem pop. Isso pode chamar a atenção das pessoas para os ritmos como eles são e
criar interesse pelo folclore. (Science In: Giron, 1994)
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necessariamente uma tribo, mas uma atitude. Adotando parte das estratégias de marketing
utilizadas por McLaren, os mangueboys conseguiram dar visibilidade nacional e
internacional às suas criações. No entanto, a “massificação” proposta pela “cena mangue”
se funda na independência da arte que seus componentes produzem:
O problema é que tudo o que se massifica no Brasil não tem uma base. Geralmente o que há
são pessoas que se entregam a esse consumismo. Agora, o mangue foi criado por nós
mesmos. Nós fizemos o próprio marketing. Então, temos um pensamento independente.
(Science In: Garrido, 1994)
A cultura popular é feita pelo Povo, pelo ‘quarto estado’, aqui identificado com os
analfabetos ou semi-analfabetos. É o conjunto dos espetáculos como o ‘bumba-meu-boi’,
dos versos do Romanceiro, dos contos orais, das xilogravuras, das capas de folhetos, das
esculturas em barro queimado, das talhas, dos ornamentos, das bandeiras e dos estandartes
de Cavalhadas – enfim, tudo aquilo que o povo cria para viver ou para se deleitar e que,
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tendo sido criado a margem da civilização européia e industrial, é, por isso mesmo, mais
peculiar e singular. (Suassuna, 1971, ps 42-43)
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sociabilidades pré-industriais. O que está em jogo é o argumento etnocêntrico que fundou a
crença no absolutismo da razão cartesiana, na inexorabilidade do progresso e na
impessoalidade e funcionalidade pragmática que domina inclusive as expressões artísticas.
Sua crítica à modernidade passa assim pelo reconhecimento dos ciclos da tradição e pelo
questionamento da superioridade da razão sobre a afetividade:
Assim, creio não exagerar quando afirmo que a Cultura brasileira tem que ser encarada
dentro do campo mais geral da Cultura dos povos castanhos da Rainha do Meio-Dia, e que
tal Cultura tem um modo próprio de expressar seu pensamento. Esse modo de pensar é mais
estético e ético do que lógico e metafísico, e isso que pode parecer seu principal defeito aos
olhos dos rotineiros e acadêmicos, é, talvez, sua melhor qualidade, sua originalidade mais
profunda. (Suassuna, 1976, p. 11)
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Foram estes embates entre diferentes concepções de cultura que nos propusemos a
investigar, na tentativa de identificar o espaço e a função das tradições num centro urbano
periférico no contexto da década de 1990. Procuraremos, assim, atentar para a coexistência
entre permanências e rupturas socioculturais, e para o processo de reformulação de
identidades em vigor.
Outra intenção é apontar para a centralidade das chamadas culturas populares nos
discursos e obras de dois atores inseridos neste mesmo contexto, compreendendo a natureza
de suas divergências e reconhecendo distanciamentos e aproximações entre suas definições
conceituais, suas estratégias políticas e estéticas e os diálogos que estabelecem com
elementos oriundos de matrizes culturais diversas. Feito isto, avaliaremos, então, em que
medida tais articulações implicam diferentes projetos de mediação.
Buscaremos, ainda, estabelecer um diálogo entre arte e cultura, considerando
primordialmente a "dimensão extrínseca" das obras dos autores em questão, ou seja,
destacando o aspecto sócio-simbólico que expõe a criação artística como expressão de uma
interação cultural e como espaço de reflexão e questionamento.
Para tanto, adotamos a proposta de abordagem oferecida pelos Estudos Culturais
enquanto esforço intelectual orientado para a fundação de um espaço de articulação de
diversidades, tanto epistemológicas quanto culturais e políticas. Espaço de diálogo que
permite o tratamento de interesses e forças sociais as mais diversas, representando uma
abertura para pluralidade que amplia o alcance analítico das pesquisas fundadas nesta
perspectiva.
Os Estudos Culturais afirmam-se como estratégia de abordagem transdisciplinar, no
entanto, rejeitam a carga de distinções e exclusões que acompanha a história das disciplinas
acadêmicas no ocidente, além dos trajetos e regras de produção e ordenação de
conhecimentos seguidos até o momento de sua fundação.3 Assumem a auto-reflexão como
dinâmica e os questionamentos acerca dos domínios, métodos e do legado intelectual das
ciências como postura. O aproveitamento das alternativas teórico-metodológicas,
disciplinares ou não, deve estar subordinado às exigências apresentadas pela natureza do
3
A emergência dos Estudos Culturais é localizada por Marisa Vorraber Costa (Costa, 2000) na Inglaterra da
década de 1950, e identificada em estudos produzidos por autores de origem popular, que inauguraram o
questionamento acerca do caráter elitista da associação entre cultura e distinção social, e reivindicam a
inclusão de objetos e perspectivas antes negligenciados pela pesquisa acadêmica.
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objeto a ser estudado, pelo caráter das questões colocadas, e pelo contexto que fundamenta
tais interrogações. Um exercício de bricolagem, no qual a escolha dos elementos a serem
amalgamados se dá dentro de uma estratégia pragmática e auto-reflexiva, e sua resposta,
assim como seu trajeto, pode ser encarada como uma possibilidade entre muitas.
De acordo com Herbert Pezzolano (Pezzolano, 2000), as proposições articuladas
pelos Estudos Culturais adquiriram relevância nos estudos de literatura em estreita relação
com a crescente problematização do caráter impreciso dos textos literários. Para este autor,
apesar da importância dos questionamentos acerca da existência de uma “essência do
literário” fundada em parâmetros estéticos eurocêntricos, os Estudos Culturais teriam
desconsiderado a especificidade da literatura não apenas como disciplina, mas como campo
discursivo dotado de uma dramaticidade autodefinidora.4
No entanto, não se trata aqui de reduzir o texto literário (seja ele um romance, uma
canção ou um videoclipe), a uma função documental, já que nos norteia tanto a
preocupação com as condições que produzem sua peculiaridade, quanto os efeitos
provocados por suas narrativas. Distante disto, análises textuais que isolam as obras da
conjuntura de criação e se voltam unicamente para dimensão interna destes trabalhos
devem ser evitadas na medida em que, como afirmam Nelson, Treichler e Grossberg, no
âmbito dos Estudos Culturais:
(...) embora não haja nenhuma proibição contra leituras textuais estritas, elas tampouco são
exigidas. Além disso, a análise textual nos estudos literários carrega uma história de
convicções de que os textos devem ser apropriadamente entendidos como objetos
completamente autodeterminados e independentes, bem como um viés sobre quais tipos de
textos são dignos de análise. Essa carga de associação não pode ser ignorada. (Nelson;
Treichler; Grossberg, 1995, p. 9)
4
Os questionamentos de Pezzolano se articulam em torno da suposta resistência dos Estudos Culturais em
relação à identificação de especificidades formadoras do círculo literário e à aceitação de sua organização
como disciplina. O autor defende que a reformulação epistemológica de um campo de estudos não deve
implicar necessariamente sua extinção enquanto ordem de análise. No entanto, a permanência ou não dos
domínios sobre os estudos literários não será nossa preocupação neste trabalho, já que não reconhecemos nos
Estudos Culturais o completo descarte dos conceitos e categorias das tradições acadêmicas, mas uma
atualização crítica que envolve desdobramentos dos campos de teoria.
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Indagar sobre o lugar específico da arte hoje, ensaiar definições intrínsecas do fenômeno
artístico, significa situar-se até certo ponto contra a tendência dominante na esfera dos
chamados 'estudos culturais', que trabalham preferencialmente com uma definição
extrínseca de arte. Entenda-se por extrínseca uma definição basicamente convencional ou
institucional da arte, o tipo de definição pragmática que seria esperado da Sociologia ou da
Antropologia: arte é aquilo que uma comunidade legitimada para tal define como sendo
arte. Daí vai-se para a descrição das funções sócio-simbólicas que o terreno assim
delimitado exerce. E depois, para a descrição das estruturas específicas, materiais e técnicas
por um lado, intersubjetivas por outro, que constituem o funcionamento da instituição.
Nesse tipo de abordagem, é sempre alguma modalidade de interação social que está sendo
falada através do objeto de arte. (Moriconi, 1998, p. 67)
(...) tendem a consolidar-se como disciplina de descrição e análise das pulsões e dos
imaginários sociais através dessa atividade hermenêutica mediadora, dirigida para toda e
qualquer prática sócio-cultural e para todo e qualquer objeto simbólico, aí incluídos aqueles
usualmente reconhecidos como práticas e objetos de arte. (Idem)
O que se dá, por definição, é um esforço de compreensão das relações do poder com
a cultura e desta com as diversas instâncias das sociedades. E o mesmo movimento de
contextualização é realizado por Júlio Diniz na análise dos desdobramentos dos estudos
institucionais da música no ocidente. O autor põe em questão a possibilidade de
compreensão da música como universo fechado e, por associação, da musicologia como
disciplina independente, que monopoliza a autoridade sobre um objeto e um campo de
estudos isolados, dissociados de outras esferas de criação e pesquisa. Localiza o processo
de definição da música como campo disciplinar no plano das formulações teóricas
estabelecidas no decorrer do século XIX. As investigações acadêmicas nesta área acabaram
se apropriando dos pressupostos do positivismo, que implicaram a operacionalização dos
mecanismos científicos de universalização da linguagem, sistematização dos dados,
classificação e hierarquização dos fenômenos. Neste caso, a categorização dos gêneros
esteve referenciada na suposta superioridade das manifestações da música de formação
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erudita, e realizou-se por meio da análise restrita à dimensão formal das expressões
artísticas. Segundo Diniz:
O exercício que iremos empreender aqui, além de obras artísticas em seu sentido
estrito, também tratará de discursos e declarações que podem, no entanto, nos levar a uma
melhor compreensão das produções apresentadas pelas movimentações culturais abordadas.
Na análise crítica de fontes de naturezas diversas (entrevistas, manifestos, artigos, teses,
matérias jornalísticas, romances, canções, videoclipes etc.), devemos lançar mão de
fragmentos de discursos e enunciados, num esforço de desconstrução das narrativas
formuladas por meio da reordenação de seus elementos.
Norteiam-nos ainda uma preocupação com a indissociação entre os caracteres
formadores das expressões musicais que iremos estudar (letra, melodia e performance).
Neste sentido, procuraremos atentar para a relação forma/sentido na abordagem tanto das
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fontes musicais, quanto das literárias, e adotar perspectivas críticas adequadas aos
diferentes tipos de linguagem, sem estabelecer hierarquia entre eles.
Enfim, ao utilizarmos o termo "culturas populares", o aplicaremos como noção, que
apenas sugere, remete a determinado universo sociocultural, e não como conceito, por sua
perda de validade teórica devida à dificuldade de estabelecimento de critérios de
categorização eficientes.
Neste trabalho, o diálogo com a bibliografia se estabelecerá a partir dos problemas
levantados na análise das fontes primárias. Partiremos dos problemas para as teses para
evitar o enquadramento do objeto em teorias pré-concebidas e impedir que estas ocupem
um lugar privilegiado em relação às outras estratégias interpretativas possíveis e
intercambiáveis. Pretendemos desta forma, pôr em evidência o processo da pesquisa
realizada, sem a pretensão de exibir resultados definitivos.
Todos os recursos utilizados poderão suscitar reflexões importantes, assim como as
diferentes fontes abordadas. No entanto, não podemos deixar de reconhecer o traço
disciplinar e a história acadêmica de muitas das teorias aqui atuantes, apesar de sua
intervenção recorrente no interior dos Estudos Cultuais e da amplitude dos efeitos por elas
propiciados.
A autodefinição dos promotores dos Estudos Culturais como articuladores de uma
corrente teórica que exibe nova sensibilidade crítica os levou a apresentar suas
investigações através de estratégias narrativas inovadoras, o que os aproxima de algumas
proposições do pós-modernismo. Entretanto, na definição de Mike Featherstone (1995), o
que chamamos de pós-modernismo pode ser compreendido tanto como um movimento
interno ao campo intelectual, quanto como constatação baseada em um desconforto
intrínseco à cultura contemporânea. Sendo assim, o termo não pode ser tomado como
definição restrita ao âmbito acadêmico, pelo fato de ter sido inspirado por manifestações e
movimentos artísticos e também por dizer respeito a mudanças culturais concretas,
percebidas por meio da observação das transformações em curso na sociedade ocidental.
Isto pode ser reconhecido não apenas em estudos, construções e criações intencionais,
direcionadas para a promoção das inovações que a idéia apresenta, mas também entre
trabalhos que são permeados pelo universo conceitual do pós-modernismo, sem que
necessariamente seus autores se dêem conta disto.
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Desta forma, o pós-modernismo sugere uma mudança substancial, em termos de
reestruturação, para uma nova experiência cultural, com princípios organizadores distintos.
Featherstone parte desta constatação para apontar para a necessidade de extrapolar a
definição de pós-modernismo enquanto experiência puramente subjetiva e complexificar as
abordagens pela descrição de práticas cotidianas concretas. Ou seja, apela para a percepção
de como os diversos grupos em diferentes contextos incorporam a experiência pós-moderna
em sua convivência.
O surgimento de determinadas inquietações, no início da década de 1990, entre
jovens artistas em um centro urbano periférico, e seu confronto com uma vertente
tradicionalista de produtores culturais, podem ser lidos como vivência concreta de uma
ordem substancialmente diversa da predominante até então. As principais características
definidoras da pós-modernidade enquanto disposição social devem, neste caso, ser
percebidas como agentes integradoras entre conhecimento e cultura, permitindo-nos
observar a existência de uma grade proximidade conceitual entre a configuração do objeto
de estudo que nos ocupa e a forma de abordagem adotada. Como afirma Marisa Vorraber
Costa:
(...) é preciso admitir que está em atividade, neste final de século, um novo campo de
estudos que se apresenta como politicamente muito atraente e promissor, e que se esboça
conectado às várias concepções e práticas que vêm marcando os contextos destes tempos.
As novas formações culturais e políticas supranacionais, a reorganização das fronteiras
nacionais, as novas formas de organização da sociedade civil e suas intersecções com o
Estado, as novas configurações de classes sociais, entre outras composições
contemporâneas, constituem o que podemos chamar de contexto próprio para o surgimento
de uma pós-disciplina que tem contribuído para nos apontar a arbitrariedade de inúmeras
demarcações historicamente consagradas. (...) Poderíamos dizer que o que aproxima as
diversas manifestações dentro dos Estudos Culturais é uma guerra contra o cânone. (Costa,
2000, p. 15)
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subordinadas, mesmo quando considerados os esforços de adequação conceitual realizados
por intelectuais de países periféricos. A autora reivindica a formulação de um suporte
teórico que trabalhe as questões colocadas pela pós-modernidade sob uma perspectiva
terceiro-mundista.
Reconhece, no entanto, a concretude das descentralizações, desierarquizações e
transnacionalizações promovidas pelos Estudos Culturais enquanto espaço de
desenvolvimento da nova cultura acadêmica. Forma privilegiada de abordagem da
experiência multicultural, os Estudos Culturais guardam uma importante dimensão utópica
ao pôr em evidência povos e pensamentos até então excluídos, subvertendo hierarquias
cristalizadas:
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Os Estudos Culturais já constituem um discurso estabelecido na América Latina, onde há
muito a cultura e a expressão política já se entrelaçam com a operação crítica do continente.
Eles se constituem também menos através de uma rubrica e mais como uma prática
dialógica da teoria crítica literária latino-americana com conceitos operacionais das ciências
humanas (como cultura, identidade, hibridismo, mestiçagem, memória cultural, nação),
respondendo talvez a nossa especificidade histórica e a uma vocação política da literatura.
(Vieira, 2000, p. 13)
Sendo assim, acreditamos que todas as questões aqui colocadas dizem respeito a
uma mudança significativa na própria concepção de cultura no ocidente, mudança esta
motivada pela emergência do periférico. Estão inseridas num movimento de
problematização de um conceito de cultura associado aos domínios estéticos ou
humanísticos do “espírito cultivado”, desconstruindo distinções polarizadas entre alta e
baixa cultura, e assumindo os termos de um engajamento político. Desautorizam as centrais
produtoras de sentido pelo reconhecimento dos esquemas de distribuição de significado
como parte da estrutura de dominação.
Desta forma, os Estudos Culturais diferem dos meios tradicionais de estudo da
cultura, também por tratar-se de um referencial que se desenvolveu a partir da análise dos
processos que moldaram a sociedade moderna e que, na esteira dos fenômenos urbanos,
trabalham “no contexto de histórias diversificadas, interconectadas de viagens e
deslocamentos, no final do século XX”, propondo-se, assim, a “questionar o viés orgânico,
naturalizador do termo cultura". (Nelson; Treichler; Grossberg, 1998, p. 11)
No entanto, a dinâmica e a flexibilidade tomadas como princípios pelos Estudos
Culturais não podem ser entendidas como indefinição ou ausência de critérios, mas como
uma abertura para a pluralidade que se contrapõe às acepções essencialistas, apresentando
resultados diversificados (muitas vezes conflituosos e divergentes), contextuais e de
desdobramentos imprevisíveis. Seus estudos não conclusivos não superam, mas somam-se
a outros, estabelecendo diálogos entre pontos de vista múltiplos, contemporâneos ou não, e
exibindo sempre abordagens parciais. Entendemos, então, que os Estudos Culturais
assumem significação genérica, ou seja, indicam um universo amplo onde se encontram os
mais diversificados trabalhos.
O estatuto das culturas populares aparece, no entanto, como uma de suas principais
preocupações, muito devida ao questionamento das condições do estabelecimento de
cânones acadêmicos, à identificação dos grupos envolvidos em seu processo seletivo e à
denúncia das exclusões sociais e culturais aí refletidas. Isso não implica delimitação de
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objetos e territórios sobre os quais devam exercer domínio, mas a consciência de que as
investidas contra os mecanismos de poder devem passar pelas práticas culturais dos grupos
subordinados e suas formas de resistência.
Aplicando tal definição ao objeto de estudo que nos ocupa, nos deparamos com a
rica significação da declaração de Ariano Suassuna a respeito de seu encontro com Chico
Science: “Estou me sentindo como um Velho do Pastoril que acaba de descobrir um
Mateus” (Suassuna In: Barbosa, 1995).5 Personagens que representam, respectivamente, o
controle e a desordem nos folguedos em que atuam, terminam por incorporar a dinâmica
que permite às tradições se manterem atuantes nos contextos mais adversos.
E nossa abordagem das formas de atuação do popular na contemporaneidade se
desenvolverá em três momentos interconectados. Inicialmente apresentaremos a
problematização do conflito entre os projetos Armorial e Manguebit por meio da descrição
do contexto, da exibição das forças em confronto, da explicitação dos espaços sociais que
seus principais representantes ocupavam, das funções políticas que assumiram e dos
fundamentos das narrativas que formularam acerca do embate. Exploraremos
prioritariamente os discursos e os projetos culturais formalizados pelos grupos em questão.
Num segundo momento, apontaremos para a centralidade da questão das culturas
populares neste confronto, buscando compreender suas formas de atuação nos exercícios de
apropriações e recriações expostos nas obras de Suassuna e Science. Procuraremos então,
sublinhar os modos de articulação arte/cultura que puderem ser percebidos a partir desta
análise.
Por fim, implementaremos uma breve apreciação das relações de interação e
rejeição entre as perspectivas abordadas e o processo de massificação da cultura,
diferenciando a natureza de suas críticas à configuração social e ideológica da modernidade
nas sociedades periféricas e apontando a influência exercida por tais concepções sobre as
formas de atuação política que seus atores adotaram.
5
O “Velho do Pastoril” é uma personagem cômica e debochada que anima o Pastoril Profano, atraindo a
atenção do público e coordenando as jornadas de cantos das pastoras. “Mateus” é também uma figura
zombeteira que aparece nos autos de Bumba-Meu-Boi e Cavalo-Marinho, e em alguns cortejos de maracatu
rural, sempre causando confusão e desordem. (Valente, 1979)
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