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HISTORIA DA POESIA PORTUGUEZA (ESCHOLA ITALIANA —1IL) Seculo XVI HISTORIA - CAMOES POR ’ THEOPHILO BRAGA PARTE | ‘UIDA DE LUIZ DE CAMOES PORTO IMPRENSA PORTUGUEZA— EDITORA 1873 Em uma edigio dos Lustadas, impressa no Porto em 1869, dizia o benemerito editor: « Accrescentamos 4 nossa edigio, intencionalmente feita para o povo, uma biographia de Camées, contendo puramente tudo quanto ha de historico na vida do poeta. O snr. Theophilo Braga extrahiu de um seu livro inedito sobre a Vida de Camies, trabalho pelo systema de Taschereau na Vida de Moliére e de Cesar Balbo na Vida de Dante, um prospecto chronologico, que ajuda 4 intelligencia de todas as conciliagdes de datas que se discutem, » (Op. cit., p. v1.) Sé passado tres annos nos é possivel entregar 4 publicidade esse livro ai promettido, e com © qual fechamos a—Historia litteraria de Portugal no seculo XVI. , E de uma difficuldade incalculavel o escrever a vida de Camies; a necessidade de dar aos factos uma exac- gio historica, de ‘explicar todos os pequenos successos que tém relagdo com esta grande individualidade, fez VI com que os biographos de Camdes se esquecessem do individuo moral e quasi revelassem incapacidade para conhecel-o. Além d’isto, 0 vulto de Camdes anda envolvido em um nimbo de tradigSes sobre as quaes inconscientemente se formou um ideal, que fascina e se impde ao historiador, que em vez de descrever um profundo espirito da Renascenga, recorta com sinceri- dade um typo de convengaio. A quem estudar a vida de CamBes, importa ter sempre em vista, que elle no foi homem de posturas esculpturaes, como nol-o pintam todos os dias os poemas, as gravuras, as estatuas e as divagagées litterarias que lhe consagram. Quem o qui- zer vér com ares de artista em tres quartos, falsifica este vulto, grande sémente pela sua verdade; era sim- ples de trato, brig&o, temerario, desinteressado, como portuguez bilioso-melancholico. Camdes teve até nos- 80s dias a felicidade de haver escapado ds interpreta- Ses theoricas; esmagado sob os Commentarios do se- culo xvii, aformosentado pelas patrioticas phantasias do seculo xrx, é necessario um grande esforgo para tor- narmos a achar a natureza. J Estudamol-o aqui como elle foi, consubstanciando em um livro tudo quanto ha de positive sobre Camies; niio temos- pretengdes a descobertas, mas a tirar dos textos uma nova luz, Os trabalhos fundamentaes em- Vil quanto a documentos pertencem a Manoel de Faria e Sousa, e ao snr, Visconde de Juromenha; sem a dedi- cago d'estes dois solicitos investigadores pouco se po- deria affirmar como indubitavel. Faltava ainda deter- minar a acgiio de Cam6es na, Historia litteraria de Por- tugal; 6 0 que agora se cumpre. Emquanto trabalhavamos n’este corpo da Historia da Litteratura portugueza, o accidente fortuito da nossa nomeagio de Professor do Curso Superior de Letras, fez rebentar secretas invejas, algumas d’ellas abafadas até dquelle dia com simulacros de amiisade. N&o houve phrase injuriosa que me nio atirassem, iniquidade de que se no servissem; armaram o seu reducto nos es- gotos da baixa imprensa, até aonde a authoridade ad- ministrativa de motu proprio teve de descer para por cobro a tamanha impudencia. Tempestuavam esses im- potentes accéssos, e no remanso do estudo vimha sur- prehender-nos a adhesAo ao nosso trabalho da parte de M. Gaston Paris, auctor da Histoire poétique de Char- les Magne, a verdadeira introduc¢io ds litteraturas da edade media; tambem o auctor da Historia de bs Lite- ratura espaiiola, 0 sabio D. José Amador de los Rios vinha pessoalmente visitar-nos, dizendo com a auctori- dade dos seus annos diante dos nossos continuados es- forgos: Macte, generose puer! Da coragem com que VIII nés e mais alguns poucos trabalhadores temos entrado nesta lucta de renovagio litteraria, escrevia Littré: «Continuez, prosperez, travaillez; que le Portugal apporte sa quote part dans Vhistoire et la critique. Ce n'est pas trop des efforts de tout le monde pour faire face aux besoins de la transition intellectuelle et morale.» Imitando aquelle que diante do sophista que negava o movimento, se pdz a andar, respondemos tambem a essa geracio nulla—trabalhando sempre. ‘HISTORIA DE CAMOES PARTE I VIDA DE LUIZ DE CAMOES As expedigdes maritimas do seculo xv, e as gran- des navegagdes do seculo xvi, deram ao povo portu- guez uma miss%o superior no progresso da humanida- de, e ao mesmo tempo imprimiram-lhe um caracter pro- prio, o vigor de uma nacionalidade distincta entre as ragas da Peninsula. Collocado entre o continente e 0 mar, a desmembragio de Hespanha deu a Portugal a autonomia politica; os seus portos, as suas armadas erearam-lhe as condigdes economicas; a sua burguezia foi uma consequencia da riqueza publica, a sua deca- dencia um resultado de nunca ter precisado crear uma industria organica para se manter. na literatura do seculo XVI, que se comega a vér a affirmagio da na- cionalidade portugueza: em Gil Vicente, revelando a Toxo 1. 2 HISTORIA DE CAMOES existencia de um genio popular; em Jo&o de Barros, apresentando a concepgio da historia moderna; em Fer- nio de Oliveira, a disciplina grammatical da lingua; em Antonio Ferreira, a independencia e superioridade do idioma portuguez para as obr s do p nsamento; em > “ +", a architectura manoelina, accommo- dando o gothico florido 4 impressao da natureza orien- tal, symbolisada nos Jeronymos, de Belém ; nos erudi- tos, o presentimento de uma grande epopéa para com- pletar a historia; nos Reinicolas a codificag%o yeral das garantias locaes; em tudo profundos symptomas de vida propria. No bastava porém a affirmagio, faltava ainda a consciencia da nacionalidade: Cam@es, foi aquelle que mais sentiu, que melhor se compenetrou d’essa vigo- rosa consciencia, que tem uma raca no momento em que realisou a sua unidade. Extinga-se para sempre a nossa vida historica, acabem os vestigios que tornaram Portugal solidario na obra da civilisac%o moderna, bas- taraio as obras de Camées para representarem sempre vivo este povo, que succumbe pela fatalidade da sua ethnologia. O estudo de Camies no.pdde ser feito exclusiva- mente pelo lado litterario; visto assim era grande, mas incompleto. Ha n’elle uma feig%o organica, que explica os problemas da litteratura e da raga. O epitheto de barbi-ruivo, que se lhe dé nos assentos da Casa da India, confirma a sua origem, de um trovador fidalgo emigrado da Galiza; a predilecgio pelos romances do PARTE I . 3 povo e pelas tradigdes heroicas, resultam do sangue dos ascendentes do Algarve e da educago domestica.” As nacionatidades nunca se formam com elementos purges de raga; os Celtas, emquanto se conservaram inmixtos, nunca formaram uma nag&o0, mas invadidos pelos ro- manos e frankos, pelos romanos e lombardos, pelos ro- manos e wisigodos, desdobrarani-se no povo francez, italiano e hespanhol. Em Camies se encontram os da- dos d’este problema: o seu nascimento, devido a uma emigragio de fidalgos da Galiza, coincide com o gran- de desastre das expulsagdes das colonias judaicas pelo catholicismo; o seu genio adquiriu uma individua]’- dade completa com o longo desterro da India; a sua morte acontece no momento em que o exercito de Phi- lippe 11 se apodera de Portugal. Nas suas obras trans- piram de um modo absoluto os caracteristicos funda- mentaes de uma nacionalidade: a tradigdo, a lingua- gem e 0 territorio, A tradi ‘Go dé a unidade moral a um povo, é 0 vin- culo que constitue a nacionalidade; 0s poemas homeri- cos encerram 0 conjunto das tradigées hellenivas, e o genio grego sentindo esta revelagio, fortaleceu-se com elles todas as vezes que se quiz affirmar. Na educagio grega, o estudo de Homero formava o nucleo funda- mental; Xenophonte diz que seu pae querendo fazer d’elle um homem de bem, o mandou decorar Homero: «Quando uma crianga comecga a poder aprender al- _guma cousa, o ensino deve-lhe sair de Homero, e os cantos heroicos devem alimentar sua alma apenas saido 4 HISTORIA DE CAMOES do bergo, como 0 leite o mais puro; elle fica o compa- nheiro de nossa vida; com a edade torna-se 0 nosso confidente; e na velhice, se o abandonamos por um in- stante voltamos logo a elle famintos.» i esta unidade da tradigdo, que tornou a Grecia a Jerusalem da intel- ligencia’ e do bello, nexo moral que falta nos grandes emporios mercantis da America e da Australia. Socrates- diz, que os gregos faziam decorar Homero aos seus fi- Ihos, e Alexandre no é mais do que um producto das impressdes d’esses poemas. ‘ Em Camées sente-se que este mesmo espirito 0 ani- mava; na sua epopéa recolhe todas as formosas tradi- gdes da historia portugueza, como o milagre de Ouri- que, a facganha de Giraldo Sem Pavor, de Egas Moniz, de D. Ignez de Castro, da rainha D. Maria filha de Affonso 1v, dos Doze de Inglaterra, do Naufragio de Sepulveda, da Ilha dos Amores ou da Antilia; na sua primeira educagio, extranha 4 litteratura mas dirigida pelo sentimento domestico, apprendeu tambem a apre- ciar os Romances cavalheirescos da tradig&o popular, que elle tantas vezes cita nas suas comedias e redon- dilhas. Ainda que a obra de Cam@es nao fosse um resul- tado do sentimento da nacionalidade, no momento em que se obliterava na consciencia portugueza, bastava esse livro para revelar, que a 7*n° —_portugueza sof- freu uma alterag%o profunda no seculo xvz. Camides foi o que melhor fundou a disciplina grammatical da lingua; enriqueceu-lhe 0 vocabulario segundo os typos PARTE I 5 de formagio das palavras, dando-lhe a precis&o da syn- taxe latina, e seguindo um justo meio entre o archais- mo erudito e a inovagio popular e dialectal. Depois da tradigiio, o que & a lingua, senio um dos cara- cteristicos mais fortes da nacionalidade? Sob este as- pecto ‘Camies leva a primasia a todos os escriptores portuguezes. Pode-se dizer que o seu livro obstou & scisio da lingua portugueza em diversos dialectos: a “lingua do continente conservou a mais inteira uni- ‘dade; mesmo sob 0 dominio hespanhol, emquanto as classes opulentas e cultas falavam a lingua castelhana, o baixo povo usava no trato commum da lingua portu- gueza, que por esse facto se julgava ent&o desprezivel. Depois da lingua, a nacionalidade affirma-se na ‘unidade de territorio; oriundo de wma familia do Al- garve e da Galiza, tendo nascido em Lisboa, e passado a sua juventude em Coimbra, Camies percorreu as conquistas da Africa e da India, quando jd o cara- cter viril o fazia comprehender a grandeza politica de Portugal. Isto lhe dé a ufania para cantar a epopéa das nossas glorias, para affirmar que os portuguezes sao para mandar e nao serem mandados; isto 0 levou a crér que Portugal viria a ser a Monarchia do universo. A edade e a experiencia desfizeram-lhe este sonho: a sua epopéa accusa os filhos dos heroes do Oriente de terem apenas a nobreza dos pergaminhos; mostra tam- bem o abysmo das ambigdes sacerdotaes, e os perigos da realeza em mios infantis. Foram estas tres causas que apressaram a ruina da nacionalidade. Camies ani- 6 HISTORIA DE CAMOES mara a vidacom o ideal d’essa ditosa patria sua ama- da; no momento em que a ndo pode mais tocar como livre, morreu com ella para a esperanca e para tudo. A sua epopéa é o unico signal que ainda nos faz conheci- dos, por que contém o espirito, o sentimento e a vida do facto capital com que entrémos na historia. x CAPITULO I . 4 we, A Renascenga do seculo XVI e a nacionalidade portugueza aw Causas porque a Renascenga no penetrou em Portugal no prin- cipio do seculo xv1.--O animo do lucro distrahia os portu- guezes do estudo.— A Renascenca foi introduzida em Portu- gal sé com os seus caracteres exteriores: No Direito, pela sub- stituigdo dos Codigos Romanistas ao direito consuetudinari medieval expresso nos Foraes. — Na Politica, pela reproduc- go do ideal antigo da Monarchia Universal.—Na Arte, pela substituigaéo das ordens gregas ao gothico popular e es- pontaneo. — Na Erudic&o, pela substituicdo dos modellos clas- sicos da litteratura grega e romana 4s livres creagiées do es- pirito original e individualista da edade media. — Consequen- cias d’estas causas no sentimento da nacionalidade: Com re- lagio 4 Lingua, é approximada artificialmente do latim urba- no e immobDilisa-se. — Com relacdo 4s tradigées, os heroes na- cionaes sio moldados sobre os personagens da historia grega e romana,.-~ Com relagdo 4 geographia, o novo direito de con- guista e a exploragao das colonias, criam 0 cosmopolitismo.— Fernéo Mendes Pinto ¢ as Peregrinagdes. —Como 0 genio da - Renascenga n4o foi em Portugal completado_pela Reforma. — Os dois vultos que melhor representam a Renascenga em Portugal, Gil Vicente e Camées, um morre com a liberdade de consciencia em 1526, 0 outro coma nacionalidade em 1580. Esse grande phenomeno moral, social e scientifico que transformou a Europa, conhecido pelo nome de Renascenga, operou-se emquanto Portugal andava oc~ cupado nas conquistas do Oriente; mas se com relagio & actividade intellectual estava fora d’esse movimento, nao lhe éra elle alheio, porque o facto da Renascenga do seculo xvi foi uma consequencia fatal das navega- 8 HISTORIA DE CAMOES gdes portuguezas, que deram 4 vida civil uma feigio nova e criaram a necessidade das relagdes internacio- naes pelo commercio. DamiSio de Goes, na Chronica do Principe D. Jotio, descreve a sensagio profunda produzida pelas navegagdes portuguezas entre as na- gdes da Europa: «Das quaes navegagies admiragio foi _ent#o tamanha, que por esse respeito vieram a estes reinos muitos homens letrados e curiosos, dos quaes uns vinham com tengio de ir vér estas terras, provincias e novos costumes dos habitadores d’ellas; ou para tam- bem ajudarem a descobrir outras com esperanga do pro- veito que d’isso podia seguir; outros vinham sémente para verem as cousas, que d’estas nossas provincias os nossos traziam 3 ou para escreverem oO que ouviam daquelles que das taes navegagves tornavam;... 0 que estes homens estrangeiros faziam ou de suas proprias vontades, ou mandados de cidades, republicas e prin- cipes desejosos de saberem a certeza de tamanhas no- vidades.» Damiio de Goes viajou durante muitos an- nos pela Europa, e conhecia de um modo directo a im- portancia d’estas descobertas e a influencia capital que exerceram entre os povos modernos. Andavamos occu- pados n’estas expedigdes cavalheirescas e mercantis, ¢ por isso fémos o ultimo povo que abragou a Renascen- ga. Em $4 e Vira ¢.encontra-se a condemnagio d’es- ta avidez do ouro daIndiae Brazil, na Carta a D. Fer- nando de Menezes. A André de Resende, escrevia An- dré Falcdo: : PARTE I.--CAPITULO I 9 N’outro tempo valeu mais que 0 ouro o engenho; Agora engenho tem quem tem mais ouro, E 86 ter ouro é um geral dissenho. Esta falsa eobiga de thesouro Leva cega apés si honra e nobreza \ Do Tejo, Ana, Mondego, Minho e Douro. Nao falo ja no mais da redondeza; Cé& em nosso Portugal principalmente Sangue e saber por vil metal se preza. (1) Quantos vimos, por ser interesseiros Esscurecer o nome e illustre fama De Portuguezes fortes e guerreiros? Que se 0 nobre desejo os leva e chama Além de tantos mares exquisitos, Cubiga d’ouro os escurece e infama. (2) O proprio André de Resende, que viajou pela Eu- ropa e frequen ou a convivencia dos principaes erudi- tos da primeira metade do seculo xvi, na sua Oragao de Sapiencia, recitada na Universidade de Lisboa em 1534, annuncia-nos 0 movimento scientifico da Renas- cenga, e convida a mocidade do seu tempo a seguil-a, apresentando-lhe o exemplo cnio sé da Italia, creadora destes estudos, mas tambem da Franga, da Inglaterra e da Allemanha, n’esta nossa edade disputando a pal- ma das letras 4 Italia, e finalmente da Polonia, a mais (1) Obras, p. 273. (2) Ib., p. 278. 10 HISTORIA DE CAMOES atrazada de todas as terras antigamente.» Todos pre- feriam enriquecer-se, alcangar uma feitoria, uma tenga no livro da Ementa, do que estudar; Falco de Resende descreve este abysmo da educago portugueza: E assim mandar ordena um filho 4 China Instructo e chatim j4 na mereancia, Nos resgates das has, Guiné e Mina ; Inhabil na christd philosophia, : Porque o pae, cego, e tendo por affronta, Diz que qualquer fradinho isto sabia. Mas contador experto em caixa e conta, Sabe comprar bar:to e vender caro, Que para sua cubiga isto é que monta, Ia E jé se embarea, e é 86 seu norte e favo Sempre o negro interesse, e nelle a préa, = Deixa atraz patria, 0 pae e o amigo caro. s J& o mar bravo aos mimos de Lisboa, vida e alma antepondo a fazenda, : Dobrando Cabos, climas, chega a Géa. ) . . “LT ‘Tira seu fato e faz taverna e venda; - ‘Trampeia e engana, troca, jura, mente, Como um bofurinheiro emfimn péde tenda. yy E em que redobre o resto e accrescente Sempre ao cabedal, mais se desvela Por navegar os mares do Oriente. Tenta outra vez Neptuno dando 4 vela, Costeia rios, ilhas, enseadas, Faz viagem 4 China, até dar n’ella. PARTE I.—CAPITULO I it - Compra na veniaga as mais prezadas it Mereadorias; e as que traz, vendendo, Nas embarcagées torna carregadas. Mas co’ dinheiro o amor d’elle crescendo, Faz a cubiga que inda em vao forceja As medidas encher; fundo nio tendo... (1) -4 Este triste cancro da educag&o portugueza torna-se mais palpavel com os factos; D. Jo%o de ‘astro aban- dona os estudos para seguir a carreira das armas; Mem de Sd, irm3o de SA de Miranda, Garcia Froes, irmio do Doutor Antonio Ferreira, Affonso Vaz Caminha, ir- mio de Pedro de Andrade Caminha, Antonio de Re- sende, irmao de André Falciio de Resende, Damia&o de Sousa Falc%o, irm3o de Christovam Falco, Heitor da Silveira, irmZo de Fern3o da Silveira, mostram que nas familias mais nobres se os filhos mais velhos seguiam os estudos litterarios, era forgoso que os outros irmios se embarcassem para o Oriente para a vida das armas e da mercancia. Foi por este preconceito funesto, que no primeiro quartel do seculo xvi, quando a Renas- cenga ostentava o seu explendor, estavamos em Portugal em um tal estado de atraso scientifico, que o erudito Ayres Barbosa ao regressar 4 patria, escrevia contris- tado a André de Resende, analysando o triste quadro das sciencias nas nossas escholas: (2) « Agora vos pego que me digaes se em Lisboa passam as cousas do mesmo (1) Obras, p. 295. (2) Vid. infra, cap. ut, fine. 12 HISTORIA DE CAMOES modo, e a cubiga ou a leviandade produz eguaes fruc- tos. Se tal succede, resta uma esperanca, a da Reforma dos Estudos, em que sua Alteza tanto lida.» Ayres Barbosa escrevia estas pungentes palavras antes de 1537. Em Camées achamos uma queixa ainda mais dura; exaltando o valor dos guerreiros portuguezes, nao péde occultar a repugnancia que as letras Ihes cau- savam, e o estado de obcecacio de seus espiritos indif- ferentes 4 actividade intellectual do seculo: Nao tinha em tanto os feitos gloriosos De Achilles, Alexandro na peleja, Quanto de quem 0 canta, os numerosos Versos ; isso 36 louva, isso deseja;... Vae Cesar sobjugando toda Franga, E as armas nao lhe impedem a sciencia ; Mas n’uma mao a penna, n'outra a langa Igualava de Cicero a eloquencia. Q que de Scipiio se sabe e alcanga nas comedias grande experiencia ; Lia Alexandro a Homero, de maneira Que sempre se lhe sabe 4 cabeceira. Emfim, nao houve forte Capitao Que nao fosse tambem douto e sciente, Da Lacia, Grega ou barbara nagio, Sendo da Portugneza tamsémente! Sem vergonha o néo digo; que a rasio J)’algum nio ser por vérsos exeellente, no se ver prezado o verso e a rima; Porque quem nao sabe a arte ndo a estima. Por isso, e nao por falta de natura, Nao ha tambem Virgilios nem Ilomeros ; Nem haverd, se este costume dura, Pios Eneas, nem Achilles feros. PARTE I.—CAPITULO I 13 Mas o peor que tudo é, que @ ventura Tao asperos os fez e tio austeros, Téo rudos, e de engenho tio remisso, Que a muitos the dd pouco ou nada d’isso. (1) Estas outavas, em que Camoes esculpiu o estado analphabeto dos nossos cavalleiros, nao seriam com- prehendidas se nao fossem evidentes as causas que tor- navam para nds a Renascenga da Europa uma cousa sem interesse. Abragdmol-a, é verdade, nio por um im pulso espontaneo, mas porque a realeza decretava a admissao de certas disciplinas litterarias, convidava al- gum sabio estrangeiro para o magisterio, como Cle- nardo, ou Erasmo, que D. Jodo 1m queria attrahir a Portugal, ou por que um ou outro individuo, isolada- mente, como Sa de Miranda, imitava certas formas cul- tas entéo renovadas pela paixdo da antiguidade. Tive- mos a Renascen¢a, mas pelo seu lado inorganico, exte- rior e formal, sem a comprehendermos; d’onde resultou ser incompleta essa revolugio, que realisou a liberdade politica e civil, mas que matou do modo o mais abso- Into a liberdade de consciencia, principio gerador d’es- sas outras liberdades, nfio deixando penetrar em Por- tugal as ideias da Refdrma. O que foi para Portugal a Renascenga? ‘Na ordem juridica, foi a reproduccio da unidade romana da Co- dificagao pelos jurisconsultos eruditos, abolindo o prin- cipio da individualidade germanica exarado nas ga- (1) Jas., o. v, est. 98, 96, 97, 98. 14 HISTORIA DE CAMOES rantias locaes do direito foraleiro. A pretexto de reno- var a letra quasi apagada, e as palavras quasi obsole- tas dos Foraes, e de egualar as moedas, que eram di- versas no pagamento das prestacdes censiticas, el-rei D. Manoel chamou a si todos esses pequenos Codigos loeaes, extinguiu as immunidades n’elles contidas, e deixou ficar os canones que haviam sido o preco da com- pra d’esses privilegios. Assim realisava-se uma egual- dade civil puramente exterior. Esta obra de cavillacdo, mas necessaria e quasi fatal, quando o Direito Romano era restabelecido e tornado vigente entre todos os po- vos, foi feita por um erudito e poeta, Fernio de Pina. (1) A substituicéo do costume pelo direito escripto le- vou 4 necessidadevde estudar o direito como sciencia. Appareceram os profundos Romanistas do seculo xvi que criaram a archeologia, a critica exegetica, a corre- lacdo das sciencias subsidiarias, ¢ as formulas geraes e abstractas substituindo o velho systema casuistico e ta- xativo das leis. Esta revolugio tambem foi abracada em Portugal pelo seu lado exterior ¢ lucrativo, como se vé pela existencia dos nossos Reintcolas; era um modo de vida mais seguro do que a viagem da India, como escreve o jurista André Faleio de Resende: A morte d’este avisa ao irmio segundo, Que a pé enxuto siga, e nio do oceano, Um caminho mais certo e mais jucundo; (1) Existem vergos seus no Canc. yer., t. m1, p. 252. PARTE 1.— CAPITULO I 15 Um caminho direito, que Ulpiano Scevola e outros fizeram, e, ainda escuro, - Com outros o abriu mais Justiniano. Dio sentenga final, que é mais seguro, (Ou seja emfim direito ou seja torto) Baldo e Jazéo seguir, que Palinuro: E por isso a este filho o pae avaro Quer que em Leis se gradue, até ser n’ellas Das bulras e das trampas casa e amparo. Estuda mais que Cépola Cautellas, 86 De pane lucrando escreve e trata; Refaz demandas mil sem desfazel-as. Intenta sempre ajuntar ou ouro ou prata, Morre emfim mal e pobre este trampista, Que nunca de ser rico a sede o mata. Ao irmao terceiro 0 pae faz Canonista, Dos falsos; e por mais te honrar, Mafoma, Depois de em contas ser fino algorista. A’ pratica mandal-o assenta a Roma, Que as Decisdes da Rota e a Curia veja; FE faga de conluios grande somma. E por manha ou dinheiro, ainda que seja Como Simao, que a graga compra e vende, Trabalhe de acquirir dog bens da Egreja. E eis 0 coitado em Roma, e eis 36 que entende Em Reservas, Regressos, Beneficios E rrelles rico ¢ visto ser pretende. .. (1) (1) Obras de André Falcdo, p. 296. 16 HISTORIA DE CAMOES Fernio 1° Pit, tendo derrocado o velho edificio do Direito consuetudinario, morreu victima da sua de- dicagfio ao cesarismo, como Sansio debaixo das co- lumnas do templo. Esta feigio da Renascenga fica ja extensamente descripta na Historia do Direito por- tuguez. Isto que a Renascenga foi em Portugal achamol-o confirmado na ordem politica: Pela renovagiio dos estudos da antiguidade, reap- pareceu na sciencia do seculo xvi esse sonho irreali- savel da Monarchia universal. Esta ideia comecdéra no seculo x11, e lisongedra principalmente os jurisconsul- tos que estavam trabalhando para a indepeudencia do poder monarchico. A Eschola de Bolonha sustentou pela primeira vez esta utopia do mundo antigo, e sendo abragada pelos juristas Bulgarus, Martinus, Jacobus e Hugo, conhe- ceu-se- os seus effeitos pelo. modo como foi funesta 4 nacionalidade italiana. Se nos lembrarmos que Joio das Regras foi discipulo da Eschola de Bolonha, e que aos seus esforcos deveu D. Jodo 1 a firmeza do seu throno, no podemos deixar de attribuir 4 tradigio da Monar- chia universal, trazida pelo alumno bolonhez, 0 preten- dido direito de conquista com que D. Joao 1 comegou as expedigdes de Africa e o augmento de territorio do seu reino. Dante, no livro De Monarchia, tambem sus- tentou esta illusiio do tim da edade media; Dante 86 comegou a ser conhecido em- Portugal ne fim do se- culo xv, desde quando a maioria dos poetas portugue- . PARTE I.—CAPITULO I 17 zes comegou a sair das escholas juridicas, como S4 de Miranda, Ferreira ou mesmo Camfes, que 4 sua edu- cagho juridica deveu as ideias da Monarchia universal que sustenta nos Lusiadas. Mas vejamos, como esta ideia se liga 4 Renascenga, como ella seduzia os eru- ditos e sob que forma e em que tempo penetrou em Por- tugal. A Renascenga classica trazia comsigo a renovagio do typo politico da antiguidade—a unidade absoluta do estado, sob a nova férma da Monarchia Universal. Canonistas, philosophos e poetas, dissidentes emquanto a theorias moraes ou artisticas, entendiam-se sobre esta face do novo problema social. Eneas Silvius, que teve relagdes com a aristocracia portugueza, nega o direito das nagdes a uma vida independente, e diz que o im- perio é o papado na sua forma temporal; por tanto o im- perador esté acima da lei, e é um crime desobedecer- The, mesmo, quando commette uma injustiga. Bellarmi- nosustenta, que «julgar conveniente mais do que um monarcha é ir bater no polytheismo. » O grande saty- rico do seculo xvi, Rabelais, ridicularisou a Monar- chia universal no seu Pentagruel; descrevendo esse so- nho da realeza, ai diz: «sem resistencia, elles tomario cidades, castellos e fortalezas. Em Bayona aprehende- reis todos os navios, e costeando para a Galiza e Por- tugal, pilhareis todos os logares maritimios até Lisboa, aonde tereis reforgo de toda a equipagem requerida a um conquistador.» (Liv. 1, c. 83.) Se nBo fosse a Re- forma, Ca los v realisava o sonho da Monarchia uni- 18 HISTORIA DE CAMOES versal; a influencia d’este monarcha nos destinos de Portugal, 6 que fez nascer entre nés a ideia do Quinto imperio. As prophecias de Daniel e as phantasticas descripgdes do Apocalypse, produziram em Portugal esse desejo que fez de Bandarra um propheta. Segundo o livro de Sleidan, De Quatuor summis impertis, do seculo xvi, a Allemanha para este escri- ptor formava a quarta potencia universal: Enlevados n’esta chimera, e crendo pelo nosso horror 4 Reforma que 0 quarto imperio tinha de cair por causa da sua impie- dade, Portugal tornou-se para os espiritos religiosos o predestinado a ser 0 Quinto imperio do mundo. Camdes condemnando a Reforma, que veiu destruir este sonho da politica cesarista, abragava tambem a unidade im- perial. Para os escriptores estrangeiros a perda da na- cionalidade portugueza pareceu um facto providencial, para fortalecer a Hespanha e fazel-a resistir 4 tenden- cia da Monarchia universal. T v nes, nas suas Memo- rias, mostra pela geographia que Deos n&o quer essa pretendida Monarchia unitaria: «Vendo emprezas tio bem projectadas acabarem mal, cré-se que 6 obra de Deos, parece que impéz barreiras para que se niio ul- trapassasse loucamente: 4 Hespanha, os montes Pyre- neos e o mar; & Franga, 0 mar, os Pyreneos, o Rheno, as montanhas da Suissa e do Piemonte; a Italia tem o mar e os Alpes.» E continua depois de ter descripto as fronteiras naturaes: «Deos fez ver a sua vontade, que era que estes limites no fossem falseados, e que se nao fizesse um monarcha uno; fez nascer ao mesmo tempo PARTE I. — CAPITULO I 19 Francisco 1, Solimao, Henrique vii, para os oppér a Carlos v... De novo, parece que Deos continta n’esta vontade; que a Franga, a Hespanha e a Inglaterra se- jam to egualmente poderosas, que se nio possam en- grandecer com prejuizo umas das outras; tendo tornado o reino de Franga pela paz unido, poderoso e formida- vel; de outra parte ajuntou Portugal é Hespanha e a Escossia & Inglaterra, para que ellas tenham forga e meios de se guardarem egualmente umas das outras, impedirem a monarchia e- conservarem seu Estado.» (1) Francisco I, escrevendo a Paulo m1, e respondendo ds accusacdes de Carlos v, diz: «O Imperador cré que tal é o seu destino, e quer tirar a liberdade a todos, tanto aos seus amigos como aos inimigos, e retnar sd- sinho no meio da dissolugdo universal.» Em 1539 0 embaixador de Franga, escrevia de Roma, a proposito dos planos de Carlos v: «O papa e toda a corte roma- na suspeitam fortemente que o Imperador aspire 4 Mo- narchia.» O casamento com a Infanta D. Maria de Por- tugal era muito mal visto na Europa (vid. Audin); sé os nossos politicos no perceberam ov abysmo que veiu a abrir-se no tempo de Filippe m1. A imitag%o de Castella, quizemos parodiar a aspi- ragio de Carlos v, julgando-nos a quinta potencia cha- mada a0 governo do universv. Nas estancias omittidas no Canto x dos Lusiadus, achadas no Manuscripto de (1) Op. cit., p. 266, 380, 381. Apud Laurent, Etudes sur VHistotre, t. x, p. 23 a 32. . * : 20 HISTORIA DE CAMOES Manoel Correia, descreve Camdes 0 diretto de Con- quista como quarta excellencia de Portugal: Conquista seré a quarta, que no Imperio Portuguez sé reside com possanga : Pois no sublime e no infimo Hemispherio As quatro partes s6 do Mundo alcanga. FE as quatro Nagdes d’ellas por mysterio Com. que conquista, e tem certa esperanga, Que Christéos, Mouros, Turcos e Gentios Juntario n’uma Lei seus senhorios. Os sonhos da Monarchia universal, propagavam-se no baixo povo por meio de prophecias ¢ allusdes apo- calypticas. Diz o critico Bayle, falando de Carlos v, como um dos que mais se embeveceu com esse ideal cesarista: «Fizeram correr uma prophecia, que pro- mettia a este imperador a derrota dos Francezes, a dos Turcos, a conquista da Palestina, ete.» (1) Antonio Pontes, que em 1535 fora com Carlos v 4 expedig&o de Tunis, diz em uma Relag&o d’esse feito, que para au- gmentar a coragem dos soldados se espalhou entre el- les uma prophecia. N’esta expedigio concorreu a flér da aristocracia portugueza com o Infante D. Luiz que era tambem poeta; foi o grande gale&o portuguez 8. Joao, que quebrou as grossas cadeias que obstavam a entrada da armada na Goleta. Tudo leva a crér que da tomada de Tunis veiu para Portugal na tradig#o dos (1) Dice., t. 1, p. 139. . : PARTE I. — CAPITULO I 21 cavalleiros essa prophecia, que coincide perfeitamente com a ideia de Bandarra, (1) e com o tempo em que vaticinava nas suas Trovas. O Sapateiro de Trancoso cantava de um modo que nao parece ter sido desconhecido a Camies: (1) No livro de Pontanus se 1é: «Carolum Philippi filium ex natione Lilii, ut ejus verba praestringam, post Gallos Hispa- nosque domitos Romam quoque et Florentiam congretato ma- gno exercitu Regem Graecorum vocari, indeque post victos Tur- cos, Chaldaeos, Palaestinosque, sanctam Hierusalem: recupe- raturum, atque inibi a Dei nuncio coronatam in summi Princi- pis sinu vitam expiraturum, faciet prius edictum, ut qui sanctae Crucis signum non adoraverit morte puniatur.» In Hariadeno Barbarossa, p. 2. Apud Bayle. Em 1598, Dayid Pareus, com- mentando o Apocalypse,.introduziu na sua obra esta mesma Prophecia, importante para se comparar com os topicos de Ban- darra: «Surget Rex ex Natione illustrissimi Lilii, habens fron- tem longam, supercilia alta, oculos longos, nasumque aquili- num: Is congregabit Exercitum magnum, et omnes Tyrannos Regni sui destruet, et morte percutiet omnes fugientes montibus, et cavernis sese abscondentes a facie ejus. Nam ut Sponsus Sponsae, ita erit justitia ei associata, cum illis usque ad quadra- gesimum annum deducet bellum subjugando Insulanos, Hispa- nos, et Italos. Romam et Florentiam destruet et comburet, po- teritque sal seminari super terram illam. Clericos qui Sedem Petri invaserunt morte percutiet: eodemque anno duplicem Co- ronam obtinebit. Postremum mare transiens cum exercitu ma- gno, intrabit Graeciam, et Rex Graecorum vocabitur. Turcos et Barbaros subjugabit, faciendo Edictum: Quicumque Cruci- fixum non adoraverit, morte morietur. Et non erit qui resistere poterit ei, quia brachium sanctum 4 Domino semper cum eo erit et dominium Terrae possidebit. His factis Sanctorum requies Christianorum vocabitur, ete.» Apud Bayle. Claude Comiers, ap- plicou mais tarde esta prophecia a Luiz x1v; tambem as Prophe- cias de Bandarra foram applicadas 4 Restaurag&o de D. Jo&o iv, pelos Jesuitas, que ainda no seculo xv aspiravam 4 Monarchia Universal, 29 HISTORIA DE CAMOES Portugal tem a bandeira Com Cinco Quinas no meio, E segundo vejo e creio, Este he a cabeceira, E pora sua cimeira Que em Calvario lhe foi dada, E sera Rei da manada Que vem de longa carreira. E nos Lustadas: E eis aqui, quasi cume da cabega Da Europa toda o Reino lusitano. (1) Bandarra formila de um modo mais claro a ideia da Monarchia Universal: Serdo os Reis concorrentes - Quatro seréo e nao mais; Todos quatro principaes Do Levante ao Poente. Os outros Reis mui contentes De o verem Imperador E havido por Senhor, Nao por dadivas ou presentes. Pelo processo feito no Santo Officio em Lisboa em 18 de Septembro de 1541, contra Bandarra, conhece-se que elle comegira a escrever por 1531, e que as inter- pretagdes dadas pelos Christos novos, de que essas Tro- vas se referiam 4 vinda do Messias, comegaram em 1538, mas que eram extranhas ao pensamento de Ban- darra. (2) Este Quinto Imperie do mundo, para que 1) Lus., wm, est. 20. 2) Torre do Tombo, Processos da Inquisigéo, n.° 7197. PARTE I. — CAPITULO I 23 estava fadado Portugal, succedia aos quatro jé extinc- tos dos Assyrios, Persas, Gregos e Romanos; Camées repete esta ideia: Se do grande valor da forte Gente De Luso, néo perdeis o pensamento, Deveis de ter sabido claramente Como é dos Fados grandes certo intento Que por ella se esquegam os humanos De Assyrios, Persas, Gregos e Romanos. (1) Camies nio podia resistir a esta utopia da Renas- cenga, e volta a ella todas as vezes que quer engrande- cer Portugal: E vos prometto... que vejacs Esquecerem-se Gregos e Romanos, Pelos illustres feitos que esta Gente Hade fazer nas partes do Oriente. (2) E por elles, de tudo emfim senhores, Serdo dadas ao Mundo leis melhores. (3) Vés, oh Portuguezes, poucos quanto fortes, Que o fraco poder vosso n&o pezaes, Vés, que 4 custa de vossas varias mortes A lei da vida eterna dilataes : Assi do Céo deitadas siio as sortes, Que vés, por muito peucos que sejaes Muito fagaes na santa ebristandade, Que tanto oh Christo exaltas a humildade. (4) (1) Las, 1, 24. 2) Tb., c. m1, est. 44. 3) Ib., est. 46. 4) Ib., vis, est. 14, ' 24 HISTORIA DE CAMOES E remata a sua epopéa da nacionalidade embalan- do-se com este mesmo ideal: seeees nunca os admirados Allemées, Gallos, Italos, e Inglezes Possam dizer que séo para mandados Mais que para mandar os Portuguezes. (1) Esta doce mentira propagada pelos eruditos da Re- nascenga, e applicada pela vaidade marcial 4 nagio portugueza, embalou-nos 4 sombra dos louros do Oriente até 4 hora em que a politica hespanhola nos reduziu a sua provincia. Vejamos como foi comprehendida em Portugal a Renascenga com relacio ds formas da Arte. Depois da descoberta da India, mandou el-rei D. Manoel ao papa Le&o x, um Elephante como symbolo da Asia; passeou o animal pelas ruas de Roma, com grande assombro do povo, que nunca tinha visto um animal t&o desmesurado, mais assombrado pela curiosi- dade do que attendendo ao symbolo da Asia que pres- tava homenagem 4 religi&io de Christo. O animalago offerecido em 1514, viveu apenas dois annos; faltou as- sim este divertimento do povo, e o papa mandou a Gio- vane da Udine, discipulo de Raphael, eximio em pin- tar hypogriphos e animaes phantasticos, que o retra- tasse ao natural. (2) A curiosidade que despertavam 1) Lus., x, est. 152. 2) Vasari, edigdo de Florenga de 1852, t. vin, p. 41, not. 2. PARTE I. — CAPITULO I 25 estas figuras extranhas vindas de novas regides, offe- recia um elemento de ornato para a pintura e escul- ptura, Na egreja de Belem os macacos, papagaios e periquitos dependuram-se dos corddes que entrelagam as columnas com a abobada como mastros e enxarcias de um navio; 6 o gale&o vindo do Oriente, enrama- lhetado, e enfeitado com os productos dos novos climas. No livro da Ropica pneuma, tira Jo&o de Barros uma imagem moral da Pintura, em que ao mesmo tempo nos descreve os generos em que a Pintura se dividia no seculo xvi: «Aa hy huis pintores, que se delectam em pintar nuus; outros tem mais gosto em o trapo; outros nao se lembram de sy por payjagés, que sam mais contemplativas. E outros leixam estas tres partes c tomam a do romano. Cada hiiu segue e obra o natural de sua condic¢%o e engenho: hitus imi- tando a natureza e outros a fantesia sem ordem: porque os nius, se sam perfectos, guardam regra de medida, conta € proporgio: a payjagem tem prespectiva natu- ral; ‘trapo, sem alguma d’estas leis, nam faz mais que cobrir, dobrar, e pregar ; Romano segue monstros, que nam sam hfia cousa, nem outra: toda a sua tengam 6 encher a parte onde se pinta. » (1) Por esta mesma pas- sagem se vé que o quadro se chamava entre nés reta- volo. O livro de Joo de Barros foi escripto em 1531; por elle se conhece que a theoria da pintura da eschola italiana dominava ja em Portugal. (1) Op. cit., p. 152, edic. de 1869. 26 HISTORIA DE CAMOES A influencia da eschola italiana na architectura nas- ceu da grande importancia que se deu por toda a parte a Vitruvio. Jo%o de Barros, em 1531, tambem citava a auctoridade de Vitruvio: «Que ha mister o archite- ctor pera nam mudar ora a porta, ora a escada, ora a janella? Segundo Vitruvio, quer que seja debuxador, geometra, perspectivo,arismethico, lido, philosopho, mu- sico, medico, legista e astrologo. » (1) Assim como os modellos litterarios da Grecia e de Roma tinham suspendido os espiritos do impeto espon- taneo de creacio, langando-os em uma admiragio este- rile em uma imitag&o servil que durou seculos, da mesma sorte no dominio da arte definhou a magnifica e apparatosa efflorescencia do gothico popular e ano- nymo, diante do pasmo que deixavam na alma as fér- mas geometricas, severas e inflexiveis dos inonumen- tos antigos. A architec ur da en scenga nasceu em parte da litteratura; 0 apparecimento das obras de Vi- truvio provocou o novo culto. Pelos annos de 1514 Marco Fabio Calvo traduziu Vitruvio em lingua’ vul- gar, a pedido de Raphael; cireumstancia ignorada por quasi todos os criticos, e que se descobriu em um ma- nuseripto guardado na Bibliotheca de Monaco, aonde se encontram notas marginaes do proprio Raphael, e o seguinte colophio: «Fine del libro Vitruio tradocto di latino in lingua et sermone proprio et volgare da M. Fabio Calvo ravenate in Roma in casa di Raphaello (1) Ropica pneuma, p. 157. ‘ : PARYE 1,—CAPITULO I 27 di giova di Sacte da Urbino et a sua instantia.» (1) A contar d’esta época, 0 gothico comega a decair depois de tres seculos de uma efllorescencia vigorosa; a ar- chitectura religiosa cede 0 passo ao paganismo, orna-se com as suas linhas finitas € sensuaes. A descoberta dos manuscriptos de Vitruvio, a magia e os trabalhos dos grandes artistas cultos, como Raphael, d’Alberti e Bru- nelleschi impdem a antiguidade classica; os monarchas faustosos necessitando de uma architectura civil pdem- na ao corrente da moda; em Franga esta revolug%o pro- funda da arte da-se no reinado de Luiz xu e Francisco 1. No tempo de D. Jodo 11, conforme refere Vasari, em a Portugal, por cedencia de Lourengo de Medicis, Ay- dré Contucci em 1485, o qual, durante os nove annos que aqui se demorou, construiu para o monarcha um palacio flanqueado de torres. . Em Portugal os artistas italianos siv chamados para construirem palacios e castellos; ainda no tempo de D. Jo%o 11 o infante D. Luiz recorreu a elles para os trabalhos architectonicos que emprehendia. Podemos affiangar, na auctoridade dos bons criticos, que a Ar- chitectura da Renascenga, levantou mais castellos e pa- lacios do que egrejas. A influencia directa do estylo classico em Portugal nota-se no reinado de D. Manvel; o gothico flammejante nio cede o passo ds formas gre- gas; em certo ponto assimilam-se, confundem-se, esta- bglecem a transigio para a nova eschola. A iv *- (1) Vasari, na edigéo de Florenga de 1852, t. vin, p. 56, not. 1. 28 HISTORIA DE CAMOES thica eo pleno-centro romano enlagam a severidade com a elegancia; os ornatos abundantes do gothico tercia- rio cobrem caprichosamente a simplicidade das ordens gregas. D’esta fuso tém os escriptores da arte que- rido formar um quarto periodo do gothico, chamado quaternarto, ou gothico florido, e que em Portugal tem o nome particular de Architectura Manoelina com que é conhecido na Europa. Em quanto em Franca e na Ita- lia se imitam servilmente os monumentos gregos e ro- manos, nés torndmos esse estylo de transigo fixo até ao tempo dos Philippes; n’este ponto é uma verdadeira originalidade; 0 convento de Belem, a capella imper- feita da Batalha, o convento de Thomar, a egreja de S. Francisco do Porto so modelos de um momento . passageiro da feigio gothica, que em Portugal durou até 4 invas&o da architectura jesuitica. Qual seria a rasio porque nfo seguimos abertamente o impulso da Renas- cenca? A que influencia particular obedecemos, para apresentarmos assim 4 Europa uma feigio tio formosa da arte, de que 14 fora ha t&o rapidos vestigios. A r- ht emquanto foi uma forma espontanea do sen- timento, era toda symbolica; Hegel explica-a por una comprehensio imperfeita das ideias abstractas; nés, povo do Meio Dia, inimigo da abstraccio, adoptdmos a forma que mais se quadrava com 0 nosso genio ex- pansivo e scismador. Descobrindo a India, 0 novo cami- nho do Oriente, no vimos 0 aleance politico ; (1) enten- (1)_Veneza conheceu logo a sua ruina como potencia ma- ritima. Daru, Hist. de Venise, t. nt, p. 295. . . PARTE I.— CAPITULO I 29 demos que era mais uma occasi#o para alargar os do- minios da Christandade. Colombo tambem pensava as- sim quando prophetisava a ruina da Europa e queria descobrir outro hemispherio para levar para 14 0 chris- tianismo. O grande feito da descoberta do Oriente de- via de ser perpetuado em uma Cathedral, como a inde- pendencia do Reino fora tambem eternisada na egreja da Batalha sobre os louros de Aljubarrota. Era o-pa- dr&o que mais se impunha ao respeito dos seculos. Ten- do 0 architecto de syrmbolisar o feito nos differentes or- natos do monumento, os productos do Oriente vinham com a sua novidade extravagante e abundancia exces- siva dependurar-se por toda a parte, dar a conhecer os novos climas, essas regides extranhas; eram como ea vo- tos, que ali vinham depositar os mareantes cansados das tormentas. Revestindo assim o edificio com uma graca nao conhecida, 0 povo sabia ao primeiro relance colher © pensamento da obra; lér na pedra o grande feito com- memorado. Por isso era impossivel banir completamen- te a arte gothica que se prestava-a este capricho e es- pontaneidade, ficando sempre bella; pela sua parte o estylo classico, imitador, seguindo modelos conheci- dos, no offerecia margem para este symbolismo livre e audacioso que reunia em uma mesma forma o senti- mento religioso com o espirito aventureiro da navega- glo que agitava.a alma portugueza. His aqui esté a rasio porque esse rapido momento de transig&o em que 0 gothico flammejante se enlagou com o estylo classico, durou em Portugal o tempo bastante para estabelecer 30 HISTORIA DE CAMOES o periodo quaternario, chamado gothico florido, que é conhecido com o nome ‘nacional de Gothico manoelino. Os ornatos, que tanto o distinguem so a esphera ar- milar, fléres de outras regides, periquitos, grinaldas, flordes, rendilhados exquisitos, cordas em acanaladura enrolando-se pelas columnas de férmas jonicas ou co- rynthias, travando-se no ar em abobada, que deixa pender para baixo grandes lagos de pedra, cachos com ' fructos, e desenhos emblematicos; de longe em longe apparecem medathdes com figuras de meio corpo olhan- do para o horisonte como o marinheiro na amurada do navio espreitando pela immensidade dos mares, vendo atravez das cerrages dos cabos. , A ogiva eo semi-circulo romang, transformain-se a ponto de imitarem o arco selvagem que verga para des- pedir a flexa; as janellas ornam-se com estalactites en- gragadas, e os trabalhos caracterisam-se com a perfei- gio do bem acabado; n&o é o dinheiro que paga, é a crenga que incita 4 perfeig&o, é a revolta contra as re- gras academicas que. deixou ao espirito, ao genio por- tuguez este momento de espontaneidade. Na Musica vimos tambem este mesmo espirito de independencia animar Vicente Luzitano, na polemica que teve contra Vicentino para mostrar que a Musica moderna se nio derivava dos gregos. (1) _ : ¢ -(1) Eis a exposigdo d’esta discussdo artistica que occupou © mundo intellectual do seculo xvi: « Nicolo Vicentino, cujo earacter era muito irascivel, pretendia que os generos diato- nico, chromatico e enharmonico da antiga musica dos Gregos PARTE I.—CAPITULOI ~ 31 Se a architectura nacional portugueza, ao ser inva- dida pelo estylo classico resuscitado em Italia, se prendeu 4 tradig&o gothica, criando essa admiravel férma do es- tylo munoelino;a .° -tura militar, como nio tinha tradigdes, foi completamente absorvida pela influen- cia italiana, As nossas fortalezas principaes da India eram feitas pelos architectos que regressavam dos seus estudos da Italia. Da bella Fortaleza de Mogambique diz Frei Jo%o dos Santos: «Esta fortaleza he uma das mais fortes que ha na India: foi tragada assi ella como a de Dam&o, por um architecto que foi sobrinho do Arcebispo santo de Braga D. Frei Bartholomeu dos Martyres, da ordem dos Pregadores, 0 qual architecto, sendo mancebo, se foy a Flandres, donde tornou grande official de architectura; e depois d’isso foi mandado 4 India >ola Rainha dona Cather'ua, quando governava este reyno, pera fazer estas fortalezas, o que foi no anno do senhor de 1558, quando Dom Constantino foy por vice-Rey da India, e tornando este architecto da In- dia, foy-se para Castella, onde tomou o habito. da or- dem de S. Hieronymo, e foy muy acceito a el-rey Phi- podiam ser submettidos 4 harmonia moderna, tal como existia no seculo xvr. Para dar mais evidencia 4 sua demonstragao, mandou construir um instrumento a que deu o nome de arei- cembalo, que continha muitos teclados, onde se reproduziam as differentes escalas da musica grega com os intervallos que as caracterisavam. Esta questdo, que foi tantas vezes ventilada depois, foi julgada contra Vicentino, por isso condemnado a pagar dois escudos de onro ao seu antagonista Vicente Luzi tano.» Scudo, Le Chevalier Sarti, pag. 84. 32 . HISTORIA DE CAMOES lippe 1, e por sua traga se fizeram muitas obras no Escurial.» (1) O Infante Dom Luiz, com a sua pre- dilecg%o pela mathematica e pelas artes, é que desen- volvera em Portugal a eschola italiana da Renasceu- ga. Collocado em uma posi¢o quasi official, por isso que el-rei D. Jo%o 11 descangava sobre 0 seu conse-~ lho, o Infante introduziu nas fortificagdes a renova- go italiana, porque as construcgdes eram pagas pelos eofres da nagio. Em uma informagiio de Pero de Al- cagova Carneiro, mandada ao Cardeal D. Henrique em 17 de Maio de 1573, do que se deve escrever da vida e feitos do Infante D. Luiz, se 1é: « Tambem deve lembrar, que as mais das fortificagdes que se fizeram nos logares maritimos d’este Reyno, foi elle principal instrumento, e em fazer vir homens entendidos neste mister de Italia: e como assi nestas materias como em todas as mais do seu estado, justiga e fazenda descan- cava El-Rey sobre elle. » (2) Ainda em 1595, era Ve- dor-Mér das Obras do Reino, um italiano poeta, Leo- nardo Turriano, que celebrou Camdes em um Soneto. A arte portugueza apresentava n’este periodo uma certa originalidade, porque emquanto a raz&o adquiria © seu imperio na liberdade de consciencia, em Portu- gal continuamos a ser erédulos por indole e por neces- sidade, A Ourivesaria do seculo xvi inexcedivel nos Javores de Gil Vicente, apesar de ter assimilado a si (1) Ethyopia Oriental, liv. m1, cap. 4. (2) Frei Luiz de Sousa, Annaes de D. Jodo III, p. 462. PARTE I. — CAPITULO I 33 a ornamentagio do estylo mancelino, da architectura, niio escapou 4 condemnacio dos eruditos; o palaciano e culto Garcia de Resende, falando da arte italiana, avanga: « Ourivisis e escultores, sie mais sutis e me- lhores». E’ porque na Ourivesaria portugueza havia ainda um vislumbre de espontancidade medieval, que Benevenuto Cellini banira com os seus ornatos mytho- logicos. Resta-nos finalmente vér 0 que foi a Renascenga para os eruditos. Reduziu-se tambem a um caracter exterior: os modelos classicos substituindo a livre creagio da Edade Media. Esse periodo da historia, 0 mais pro- fundamente poetico, e talvez o ultimo em que a huma- nidade foi creadora, tornou-se para os eruditos uma noite de trevas, prosaica e esteril, e de uma barbari- dade inaudita: o maravilhoso feérico, agiologico, e theurgico, foi substituido pelas transformagdes da my- thologia, pelo deus ex machina das epopéas academi- cas. As formas dramaticas, que andavam mais ligadas & vida popular, foram banidas da egreja e das cértes pela admiragio das imitagdes de Terencio e de Plauto. Os usd ‘1 Vi ente, que pertencem 4 edade me- di p la formalitteraria, pelas superstigdes, pelos interes- ses, pela lubricidade, pelo mixto de fé e de sarcasmo, finalmente pelo seu espirito revolucionario, foram con- demnados pelos eruditos da Renascenga, por Garcia de Resende e Sa de Miranda, a quem elle chama « homens de bom saber». A historia, que em Fern%o Lopes era a vida civil no conflicto de todas as suas paixdes, co- 34 HISTORIA DE CAMOES piada sobre a realidade immediata, tornou-se nas mos dos eruditos da Renascenga uma parodia de Tito-Li- vio, com discursos rhetoricos dos capities substituindo as pragas e os anexins populares applicados no mo- mento sem calcular os effeitos de estylo. Os historiado- res em vez de irem buscar aos cantos nacionaes, como Affonso Sabio, as origens historicas do povo de quem escreviam, caleavam a verdade e forjavam genealo- gias entroncando os seus reis nos foragidos de Troya. Raro sera 0 povo que nao apresente nos seus annaes litterarios origens d’este cyclo que a edade media des- envolvera na espontaneidade da sua ficgio. No seculo’ XVI entraram na Historia de Portugal estas genealogias troyanas. Antes de Frei Bernardo de Brito, ji Camdes escrevia nos Luziadas: Esta foi Lusitania, derivada De Luso ou Lysa, que de Baccho antigo Filhos foram, parece ou companheiros, E n’ella entdo os fneolas primeiros. (1) Este que vés é uso, d’onde a fama O nosso reino Lusitania chama. (2) Foi filho e companheiro do Thebano Que tao diversas partes conquistou; Parece vindo ter ao ninho hispano, Seguindo as armas que continuo usou, Do Douro e Guadiana o campo ufano, Ja dito Elysio, tanto o contentou, Que ali quiz dar aos jd cansados ossos Eterna sepultura e nome aos nossos. (1) Canto m, est. 21. (2) Ib., vin, est. 2. PARTE J. —CAPITULO IT 35 Vés outro que do Tejo a terra pisa, * Despois de ter tao longe mar arado, Onde muros perpetuos edifica E templo a Pallas, que em memoria fica? Ulysses, 6, 0 que faz a santa casa deosa que lhe dé lingua facunda; . Que se 14 na Asia Troya insigne abrasa, Ca na Europa Lisboa ingente funda. (1) a A mesma tendencia se encontra na historia de Fran- ga, e transparece na divisa com que Luiz x11 entrou na batalha de Ravenna, levando a letra: « Ultus avos Tro- jae.» Veneza lisongeava-se de ter sido o asylo dos Troyanos fugitivos, 0s quaes, segundo a tradig%o-na- cional, se acolheram 4 pequena ilha de-S. Pietro di Castello. Esta pbantasmagoria erudita fazia desvairar 0 sentimento da nacionalidade, perder quasi anogo d’elle, substituindo-o por uma vaidade nobliarchica; as suas consequencias reflectiram-se nas tres caracteristicas mags essenciaes de uma nacionalidade: a lingua, a tra- digdo e a geographia. Para os cruditos da Renascenga, a lingua portugueza era derivada directamente do la- tim urbano, tal como o escreveram Virgilio e Cicero; d'aqui a necessidade de regeitar as locugdes privativas do povo, de abragar os hyperbatons da construcgio latina e de augmentar o vocabulario aportuguezando palavras que entrassem principalmente na linguagem poetica. Camdes, como aquelle que mais sentiu a Renascenga (1) Id., est. 36 5. 36 HISTORIA DE CAMOES em Portugal, foi tambem o que usou mais d’esta liber- dade da erudig&o; elle adoptou os vocabulos abysse, opifice, celsa, crebro, divicias, equoreo, incolas insidias, mesta, nequicias, plaga, prisca, procella, sceva, va- tes,e outras muitas, com que deu 4 lingua portugueza um caracter tal, que os seus escriptos so ainda hoje, pela facilidade com que se entendem, um documento da sua immobilidade, Camdes creou a lingua portugueza erudita, e deu-a: > & Gente lusitana Por quantas qualidades via wella Da antigua tao amada sua Romana, Nos fortes coragdes, na grande estrella Que mostraram na terra Tingitana, E na lingua, na qual quando imagina Com pouea corrupgio eré que é a latina. (1) A maior parte. dos escriptores portuguezes do se- culo xvi foram profundos latinistas; na educagio litte- raria do collegio de Santa Cruz de Coimbra era prohi- bido aos estudantes o falarem em qualquer lingua que nilo fosse a latina. Perdido este amor da lingua que se aprende do bergo e com o leite materno, facil é trocal-a, dar a preferencia a qualquer outra adoptada pela ga- lanteria aulica; 0 ctaliano foi adoptado nos centdes poe- ticos do seculo xvr, e na lingua hespanhola escreveram o8 escriptores de quinhentos as suas principaes obras. (1) Cant. 1, est. 33. PARTE I.— CAPITULO I 3T O uso do hespanhol na cérte portugueza nio era s6- mente uma consequencia das rainhas que vieram de Castella com o seu séquito; era tambem uma preferen- cia politica, para lisongear Carlos v: este typo do ce- sarismo do seculo xvi, dizia: «que se quizesse falar ds damas usaria 0 italiano; se quizesse falar aos homens usaria 0 francez; se quizesse falar ao seu cavallo usa- ria allemdo; mas se quizesse falar a Deus, usaria 0 hes- panhol.» (1) As linguas da Europa do seculo xvi, co- megaram a exprimir para os eruditos 0 caracter das nacionalidades: assim a lingua castelhana era tida como propria para mandar, a italiana para persuadir, a fran- ceza para se escusar. Quando Ferreira protestou nos seus versos, para que se falasse, escrevesse e cantasse na lingua portugueza, reagia contra este habito da cérte,- que accusava inconscientemente a falta de individuali- dade politica da nagiio portugueza. Os versos escriptos em hespanhol por Cambes, foram motivados por exi- gencias da corte; a mie de sua amante D. Catherina de Athayde, era hespanhola, e tinha vindo para Por- tugal no séquito da rainha D. Catherina. O grande pa- laciano Jorge Ferreira, queixava-se das trovas hespa- nholas se haverem apossado do ouvido portuguez; 0 uso palaciano do hespanhol acha-se motejado por Gil Vicente, quando disse «o que quizer jingir, na caste- Thana linguagem achard quanto pedir.» Estava n’estas condigdes o caracteristico fundamental de uma naciona- (1) Bayle, Dice. t. 1, p. 134, not. D. 38 HISTORIA DE CAMOES lidade; os escriptores em vez de encontrarem na lingua’ portugueza uma creaciio viva, compraziam-se em filial-a no grego e no latim. Dizia Ferreira: Docemente suspira, doce canta A portugueza musa, filha herdeira Da grega e da latina, que assi espanta. O esforgo disciplinar dos eruditos do seculo xvi, que adoptaram nos seus escriptos as formas cultas do latim, produziu no espirito de Camdes essa miragem, que se esvaeceu quando elle cantou a vida nacional e realisou na epopéa dos Lustadas uma profunda revolu- go linguistica. Depois da lingua as tradigées. Nenhum periodo foi mais fecundo n’esta creaciio sentimental do que a Edade Media; basta vér a infinidade das lendas locaes das vi- das dos Santos, para conhecer que se estava creando a vida independente e individual; conhece-se pela ex- tensio dos cyclos cavalheirescos pouco a pouco substi- - tuidos pelos herces nacionaes, como aconteceu em Hes- panha. Mas dominados pelo genio da Renascenga, re- negamos as ficcSes poeticas da edade media, e procu- ramos uma craveira para aferir os nossos herces na his- toria da Grecia e de Roma. Falando das faganhas por- tuguezas, diz Cam@es: Que excedem as sonhadas, fabulosas ; Que excedem Rhodamonte e o vao Rogeiro, E Orlando, inda que fora verdadeiro. (1) (1) Lus., c. 1, est. 11., PARTE L.—CAPITULO I 39 Mas raro ser& o heroe portuguez celebrado nos Lu- siadas, que niio seja comparado em todas as suas vir | tudes a um heroe grego ou romano; os factos sio elo- quentes: a fidelidade de Egas Moriiz 6 comparada 4 de Zopiro, aio e valido de Dario; (1) uma derrota que sof- freu D. Affonso Henriques, é comparada 4 de Pompéo na Pharsalia; (2) Ignez de Castro assassinada encontra um simile em Polyaena; (3) os amores de D, Fernan- do 1, com os de Hercules e com os de Marco Antonio; (4) o Conde Andeiro é comparado a Astyanaax; (5) 0 Con- estavel, que em vida imitava o typo cavalheiresco de Galaaz, dos poemas da Tavola Redonda, é comparado por Camées a Cornelio e a Scipido; (8) os traidores portuguezes que seguiram a causa de Castella, repro- -duzem Coriolano, Sertorio e Catilina; (7) 0 Infante Santo, que se deixa matar para njio ser entregue Ceuta, imita a abnepagio de Atilio Regulo ; (8) quando el-rei D. Manoel convida Vasco da Gama para a empreza da descoberta do Oriente, o navegador do Algarve offere- ce-se-lhe para exceder os trabalhos de Hercules, e os seus companheiros sio comparados aos Argonautas; (9) esse martyr da causa publica, Duarte Pacheco, eguala (1) Lus., ce. mt, est. 41. (2) Ib., est. 71 a 73. (3) Ib. est. 131, 132. (4) Ib., est. 141 a 143, (5) Ib., ¢. sv, est. 5. (6) Ib., e. 1v, est. 20, 213 vm, 32. ts) Ib., ¢. rv, est. 23. - (8) Ib., ¢. rv, est. 53. (9) Ib., ¢. rv, est. 79, 80, 83. 40 HISTORIA DE CAMOES Belisario. Outras vezes, a antonomasia historica é ti- rada de uma analogia do nome, como Heitor da Silveira comparado a Heitor troyano, (1) ou D. Leoniz Pereira, comparado a Leonidas grego: Oh Nymphas, cantae pois: que claramente Mais do que Leonidas fez em Grecia, O nobre Leoniz fez em Malaca. (2) Para Cambes 0 herve deve ter os caracteres que a antiguidade exigia: a belleza das férmas, a allianga das armas com as letras ou com a poesia; fazendo o re-" trato do vice-rei D. Henrique de Menezes, no Soneto 88, celebra-o pela: Gentileza de membros corporaes, Ornados de pudica continencia, Obra por certo de celeste altura. Estas virtudes raras e outras mais Dignas todas da Homerica eloguencia... A morte do seu joven amigo D, Ant&o de Noronha, morto em Africa, é comparada 4 de Euryalo: Qual o mancebo Euryalo enredado Entre o poder dos Rutulos, fartando As iras da soberba e dura guerra, Do chrystalino rosto a eér mudando, Tal te pinto, oh Tionio, dando o esprito « A quem te tinha dado... 1) Lus.,c. x, est. 60. 2) Soneto 228. PARTE I. — CAPITULO t 41 Emfim niio ha heroe celebrado por Camdes que undo tenha o seu typo primario na historia antiga; perdiam assim a feigio individual e nacional para se moldarem aos padrées da erudicSo classica. A ideia do direito de conquista, resultante da theoria da Monarchia univer- sal, fez quebrar os limites das nagdes, absorvendo para dentro da sua geographia as colonias Jongiquas e as possessdes adquiridas 4 forga. Foi no seculo em que mais desconhecemos os limites geographicos de Portu- gal, que tivemos os maiores cosmopolitas, como esse contemporaneo de Camées, Fernio Mendes Pinto, que escreveu o livro extraordinario das Peregrinugves. A mesma fatalidade da geographia, que tinha feito de Portugal uma nacionalidade independente e forte, acha-se, como vimos na Philosopbia da Historia de He- gel, confirmada na Hollanda; mas pelo fatalismo da vida historica coube 4 Hollanda o tornar-se uma das grandes potencias do seculo xvit 4 custa dos erros po- liticos de Portugal; no. seculo xvi, quando a intoleran- cia religiosa asphyxiava a consciencia e o pensamento ainda nas nagdes mais illustradas, a Hollanda foi o asylo inviolavel de todos os perseguidos, e era d’ali que o bom senso de Erasmo appellava para todos os que guar- davam em si uma centelha da rasio humana. Quando D. Manoel, para comprazer com o fanatismo de uma infanta de Hespanha, expulsava de Portugal a* parte industrial e productora da nagdio—os Judeus —, estes foram enriquecer a Hollanda com os seus capitaes, com 0 seu commercio, e com os seus grandes homens de in- 3—Tomo 1. : 42 HISTORIA DE CAMOES telligencia, como Spinosa, Quando Portugal era annexa- do 4 Hespanha como uma provincia sem vida propria, a Hollanda aceudiu tambem aos despojos das nossas colo- nias da America. porque a Hullanda, tendo de de. fender-se das invasdes do mar, que constantemente avangava para a submergir, ndo se esquecia um in- stante de que nado bastava vencer aquella forga, sen3o tambem tirar d’ella os seus recursos de existencia pro- pria. Uma cousa obstou que estes phenomenos moraes, politicos e scientificos da Renascenga deixassem de ser formaes e exteriores: a Renascenga sé foi completa nos paizes aonde penctrou a Reforma, que a corrigiu pela tolerancia, pelo livre’exame e pelo individualismo. Em Portugal, a imprensa do seculo xvi publicou. quasi que unicamente livros de theologia; accresccu a este exclu- sivismo a creacio da censura do Santo Officio e esses insensatos Indices Expurgatorios, que atacaram de pre- ferencia as obras de litteratura. Paria e Sousa, commen- tando o Soneto 1 de Cam@es, fala da srohibigiin que sof- freram os Cancioneiros manuscriptos do secuio Xv, por conterem Cangdes amorosas em que apparecem os epi- thetos angelico, divinu, deusa, dados 4s namoradas. Este facto explica a perda de muitas collecgdes pocticas, a demora que os Quinhentistas levaram a dar 4 publici- dade os seus cantos, e,9 necntrer m-se hoje em Hes- panha varios Cancioneiros, como odo Conde de Marialva, que para ali cram mandados para serem revistos pelo Santo Officio. Do seculo xvi perderam-se as obras PARTE I.— CAPITULO I 43 meudas de Gil Vicente, as Comedias de sua filha Paula Vicente, as poesias de Fernio da Silveira e de seu ir- mio Heitor da Silveira, de Antonio de Abreu de An- dré de Quadros, de Joo Lopes Leitio, de Estacio de Faria, de Antonio Pereira, senhor de Basto, de André da Fonseca, de Antonio de Castilho, do Infante D. Luiz, de D. Gongalo Coutinho, e de outros muitos, como nol-o revelam as rubricas das poesias publicadas. Assim, podemos concluir que esta ma comprehensio da Renascenga e o horror catholico contra a Reforma, nos levou bem cédo 4 conclusio fatal da negacio da na- cionalidade: dois factos tornam evidente o asserto. Quando a Reforma foi combatida em Portugal pelo nove tribunal da Inquisi¢&o, no mesmo anno em que se ex- tinguia entre nds a liberdade de consciencia, em 1536, expirava Gil Vicente, aquelle que mais luctéra a favor ella; quando a independencia nacional ficou extincta pela invasio de Philippe 1 de Castella, que se senho- reou de Portugal em 1580, n’esse mesino anno morreu em pura pobreza Camies, aquelle que mais profunda- mente sentiu e soube revelar a consciencia da nossa na- cionalidade. S&o estes os principios que nos dirigem na exploragio da vida do maior poeta do mundo moderno, CAPITULO Ir Origem da familia de Camées Vasco Pires de Camées emigra para Portugal com outros fidal- gos da Galiza, por causa de ter seguidu o partido de D. Fer- nando, contra Henrique n de Castella. — Seu caracter littera- tio. — Parallelo com Jodo de Mena. — Fernio Lopes retra- ta-o algun tanto venal. — O Marquez de Santillana cita Vasco Pires de Camics como um dos chefes da Renascenca poetica da Galiza. — Dos seus tres filhos, 0 segundo genito, Jodo Vaz de Camées foi o bisavé do Epico portuguez.—-a) Jofio Vaz de Camies milita em Africa, vac 4 batalha do Toro, ¢ passa os seus ultimos annos em Coimbra. —O seu sepulchro na Sé de Coimbra. —&) Antio Vaz de Camies, casa com uma pa- renta de Vasco da Gama. — Era eapitio de armada em 1505. —e) Simao Vaz de Camies e sua personalidade historica nos documentos legaes. — Sua vida aventurosa.— d) Luiz de Ca- mies, creador da epopéa nacional portugueza, ultimo repre- sentante d’este segundo ramo de Vasco Pires de Camées. — Sua vida antes de comegar os estudos em Coimbra. — Epoca em que frequenta os estudos menores em Santa Cruz. Seria ocioso explorar as otigens da familia de qual- quer outro escriptor, a nfo ser a de Luiz de Camées, cujas particularidades da vida interessam immediata- mente a historia litteraria e nacional. Em Camdes da-se uma coincidencia notavel: aos seus antepassados estio ligadas as tradicdes da poesia provencal portugueza; elles representam essa seiva poetica da Galiza, que fe- enndou a Peninsula toda, e ainda no Cancioneiro da Vaticana existem cinco cangdes do trovad r galego Jo%o Nunes Camanes. Vasco Pires de CamBes foi 0 ter- . PARTE 1,—CAPITULO IT 45 ceiro avé de Luiz de Camées; no seu nome esta repre- sentada tambem a reacgio da eschola galega contra ficgdes bretans e contra as allegorias dantescas da Ita- lia, quando os fidalgos que seguiram o partidod —_. Fer- nandasersefugiaram em Portugal. No livro dos To- vadores galecio-portuguezes, j4 analysimos a sua im- portancia litteraria. (1) Alio de Moraes na Cedatura luzitana manuscripto genealogico da, Bibliotheca do Porto, n.° 445, diz: «Este appellido Se entende ser 0 mesmo que Gandara, nas Armas e Triwmphos de Ga- liza, p. 584, chama Vac Fernaides de Camanho, fi- lho segundo de Fernao Garcia Camanho e de sua mu- Ther D. Constanga Soares de Figueiréa.» No Cancionero de Baena, tambem se lhe chama Vasco Lopes de Ca- mes. Nas Chronicas, que tém exaccio historica, é cha- mado Vasco Pires de Camées, geralmente admittido; este trovador, ao contrariq de seu irmio Garcia Fer- nandes ce Cam nho, seguiu o partido de Pedro, Cruel contra 0 bastardo Henrique u, refugiando-se depois da sua derrota em Portugal em 1370, vindo com outros fi- dalgos, como Fernao Caminha, sexto avd do poeta Pero de Andrade Caminha, e o Conde Andeiro. Vasco. Pir se C. mées foi um dos fidalgos do prin- cipio do ‘seculo xv que mais medrou com os seus sacri- ficios pela causa de el-reLD. He na dq; este lhe deu por mercé de 2 de Septembro de 1373 a Quinta de Ges- (1) Op. cit., p. 812 a 321, "46 HISTORIA DE CAMOES tag6 e mais terras de Monte-Mér o Novo, (1) bem como as villas de Sardoal, Punhete,. Marvao, Villa Nova de Angos, as terras e herdados que a Infanta D Beatriz possuia em Extremoz, Aviz e Evora, a Quinta do Ju- deu em Santarem, as Alcaidarias de Portalegre e Alem- quer, e o senhorio do Castello de Alcanede. D, Leonor es nomeou Vasco Pires de Camées aio do Conde de Barcellos seu sgbrinho; todas estas liberalidades foram causa d’elle seguir depois o partido do Conde Andeiro contra o Mestre de Aviz. Em vista de tanta benigni- dade regia, comprehende-se logo a quem se refere a es- tancia vu da Carta em redondilhas de Vianoel Ma~ chado de Azevedo escripta a 84 de Miranda: ~ Hade enfreiar sua penna Como um potro desatado, Quem quizer ser mais medrado Que Camées ou Jofo de Mena. (2) Juan de Mena era o poeta cesdreo de Henrique 11 de Castella; Vasco Pires de Camées, abandonando o par- tido de Henrique 11, e seguindo a causa ja morta de Pedro Cruel, sustentada por el-rei D. Fernando de Por- tugal, cA veiu encontrar na liberalidade real a com- pensacdo da perda da sua patria e solar. Tantas mer- cés e doagées o tornaram por assim dizer o typo pro- 1) Liv. 1da Chancell., 8.9; b., liv. n, fl, 2. 2} Apud Historia dos Quinhentistas, p. 108. PARTE I. — CAPITULO IT 47 verbial do aulico favorito, como o era na corte de Cas- tella o poeta Juan de Mena. (1) Com Vasco Pires de Camdes tambem veiu para Portugal um seu primo, Ayre Pere de Camdes, como se vé pela Chronica de D. Jodo I, de Fern&o Lopes; (2) «Entonce ficou com elles Ayres Peres de Cambes, sew primo...» O velho trovador galeziano, grato 4 memo- ria de el-rei D. Fernando, seguiu o partido de D. Leo- nor Telles, e resistiu contra o Mestre de Aviz, na sua Alcaideria de Alemquer; Fernio Lopes, que recolheu nas suas Chronicas as tradigdes do tempo, retrata-o com u 2 carac er ven: 1, contractando com o Condestavel a sua cntrega.por dinheiro: «EK contado havemos como, jazendo o Mestre sobre Alemquer, preitejava com Vas- co Pires de Camdes, que Ihe desse o logar com certas condigdes, em que se voncordaram, recebendo entonce do Mestre soldo elle e Gongalo Tenreiro sew sogro... e mandou Vasco Pires ao Mestre Gongalo Tenreiro, scu sogro, com recado sobre certas cousas, e quando tornou -de Torres Vedras, parece que Vasco Pires nom foy con- (1) O snr. Visconde de Juromenha equivocou-se attribuin- do a essa quadra nm sentido allusivo a Luiz de Camées, para provar: «a consideragdo e estima que houve logo na cérte por elle.» (Obras, t. 1, p. 28.) Além do arguimento que acima fiea, ontro se tira da _pro- pria Carta, onde Manoel Machado d Azevedo chama a SA de Miranda: ”, Amigo, senhor e hirmdo.» A palavra hirmdo aqui significa cunhado; sendo o casamento de SA de Miranda em 1536, e referindo-se a carta ao desgosto que o fez sair da cérte em 1534, com certeza nfo pdde alludir a Luiz de Camées, que sé come- gou a figurar na cérte em 1546. (2) Cap. 186, fl. 392. 48 LISTORIA DE CAMOES tente da resposta ou por ventura tinha vontade de fazer aquello que fez, e buscou azo de o fazer mais sem pras- mo.» (1) E acerescenta: « Falando em esto de praga, o que Ibe houverom por mal para fidalgo: — Olhay, que vos valha Deus, que boa preytezia fazia commigo o Mestre: Mandey 14 meu padre Gongalo Tenreiro com alguns desembargos, e nam me tornou nenhuma cousa, inda se me trouvera mil dobras emburilhudus em um trapinho, guardar-lhe-ia preytezia; pois me nio trouve nada, nam curo de lha guardar. » (2) Na Chronica ano- nyma du Condestuvel, tambem se fala em Vasco Pires de Camdes, que abragara o partido de Castella: «Tendo Vasco Pires de Cam@es a Villa e o Castello de Alem- quer por a rainha D. Leonor, e com muita gente de Castellfos e portuguezes, o Mestre se partiu de Lisboa, e Nunalvres com elle, nom mais que com duzentas ou trezentas lancas e poucos homens de pé e besteires, e se foi a Alemquer sobre Vasco Pires. E foram hy fei- tas muitas escaramugas da gente do Mestre com os que estavam na villa. » (3) ‘ D’este facto historic se originou a tradigio de Luiz de Camées ter nascido em Alemquer. Vasco Pires de Camées ficou prisioneiro na batalha de Aljubarrota. No Cancionero de Baena, ha um verso de Fray’ Diego de Valencia, que allude a este captiveiro: Que Dios vos guarde de mala prision. (1) Cap. | fl. 391, (2) Ib., H. 393. Vid. tambem cap. 17, fl. 34; cap. 31, fl. 55. (3) Chr. do Cond. -y cap. 21. PARTE I.—CAPITULO II 49 D, Joao x confiscou-lhe as immensas doacées regias, deixando-the apesar de tudo as herdades de Evora, Es- tremoz e Aviz, de que fez varios morgados conhecidos pelo nome das Camoeiras. Em Evora dava-se 0 nome de Camociras is casas do Recolhimento de Santa Ma- ria Magdalena, assim chamadas por terem pertencido aos descendentes de Vasco Pires. (1) O Morgado das Camoeiras de Evora, pertenceu, segundo Aldo de Mo- raes, a Lopo Vaz de Camées, e no termo de Alemquer existiu outra propriedade com o titulo de Quinta de Camées. (2) Como sabemos ‘pela authoridade historica de Fer- niéo Lopes, no tempo das luctas do Mestre de Aviz, era Vaso Pires de Camées casado com uma filha de Gon- calo Tenreiro, ai apellidado Mestre, e nos Nobiliarios, chamado Capitéo-Mér das Armadas de Portugal; se- gundo Alfio de Moraes, o nome de sua mulher cra Ma- ria Tenreira. (3) Os talentos poeticos de Vasco Pires de Camées eram conhecidos tanto em Portugal, como em Castella; o Marquez de Santillana, escrevendo ao Condestavel de Portugal, antes de 1449, cita-o conio um representante dos ultimos restos da eschola provengal da Peninsula: «Depois d’estes (Joio Soares de Paiva, e Fernant Gonzales de Senabria) vieram Basco Peres de Camées e Ferrant Casquicio, e aquelle grande ena- (1) Fonseca, Evora gloriosa, pag. 233. (2) Juromenha, Obras, t. 1, not. 12. (8) O snr. Visconde de Ji uromenha, traz o nome de Fran- eisca, Obras, t.1, p. 13. 50 HISTORIA DE CAMOES morado Macias.» (1) Apesar de se encontrar no Can- cioneiro da Vaticana 0 nome de um Vaseo Perez, cré- mos comtudo que as poesias de Vasco Pires de Camoées nao foram recolhidas n’esse Codice, nio sé porque, se- gundo Wolf, termina em 1357, mas principalmente por- que o Marquez de Santillana, descrevendo o Cancio- neiro que possuia sua avd D Meci: d _Cisn ros, e fa- lando das Cangées de el-rei D..Diniz e de outros tro- vadores, escreve: «Depois d’estes vieram...» e n’esse Codice nao se acham as cangdes de Macias nem de Fer- rant Casquicio, com que elle representava a nova in- fluencia litteraria. (2) Do seu casamento com a filha de Gongalo Tenreiro, teve Vasco Pires de Camdes tres filhos, sendo o pri- mogenito, Gongalo Vaz de Ca es; do seu filho se~ gundo, Joio Vaz de Camées, 6 que descendo o immor- tal poeta Luiz de Camées; e finalmente de sua filha Constanga “res de Camo des: nden og Sev ri s de Faria, distinguindo-se entre estes Manoel de Faria Se- verim, que fez o primeiro estudo sobre a vida de Ca- mées, com elementos autobiographicos, e Gaspar de Fa- ria Severim, sobrinho do erudito Chantre da Sé d’ Evora, que mandou gravar 0 primeiro retrato de Camées. D’es- ses tres filhos de Vasco Pires de Camées continuou a descendencia, excepto a de Joéo Vaz de Camodes, que 1) Apud Poetas palacianos, p. 166, Carta, § xv. 1) O snr. Viseonde de Juromenha, interpretou esta passa- gem da Carta, menos proximo da verdade. Obras., t. 1, p. 18. PARTE I. — CAPITULO IT 51 terminou em Luiz de Cam@es, por essa fatalidade que faz com que o genio se nfo eternize pelo sangue mas pelas suas obras. A vida dos antepassados do grande epico portuguez explica-nos muitas feigdes do seu caracter; por issu re- colhenios aqui os subsidios historicos que se acham dis- persos. KE importante, 0 que de Jofio Vaz de Camdes, es- creve Manoel de Faria Severim nos Discursos varios politicos: «Joao Vaz de Camies, filho segundo do pri- meiro Vasco Pires de CamBes, fot vassallo de El-Rei D, Affonso v (titulo muito principal d’aquelle tempo) ~ e serviu 0 mesmo rei nas guerras de Africa e de Cas- tella. Viveu na Cidade e oimbra, da qual foi bene- merito cidadao, indo por seu procurador 4s cértes d’a- quelles calamitosos tempos da creagio del-rei D. Af- fonso; teve o cargo de Corregedor d’aquella Comarca, of- ficio ent&o de grande jurisdigAo, porque nAo havia mais de seis no reino, e ordinariamente cram fidalgos wnuito honrados, e nio professavam letras, como inda agora se usa em algumas partes de Hespanha. Tudo isto consta do epitaphio de sua sepultura, que estaé em uma Capella da crasta da Sé de Coimbra, que o mesmo Jo%o Vaz de Camdes mandou fazer, onde, 4 parte do Evangello sé vé um tumulo levantado de marmore, todo lavrado de figuras de meio relevo e nos cantas duas maiores, com escudos das suas armas nas indos, e em cima do tumulo esta a figura do mesmo Jo&o Vaz armado ao modo an- tigo, com uma espada na mo, e aos pés um rafeiro 52 HISTORIA DE CAMOES deitado. Esta Capella tem agora o arco quasi tapado de uma parede de tijolo, porque, como faltaram os des- cendentes do instituidor, ficou devoluta e sem haver quem a ornasse e tivesse cuidado d’ella. » (1) Manoel de Faria Severim escrevia pelo anno de 1624, quando este ramo estava extincto havia j4 quarenta e quatro annos. D’este importante trecho de Severim, se deduz que Joiio Vaz de CamBes seguiu o partido contra o infante D. Pedro, Duque de Coimbra, e por ventura a esta adhesio deveu o cargo de Corregedor da Beira. Andou nas guerras de Africa; sua irm& Constanga Pires de Camies casou com_o seu companheiro de armas Pedro Severim, ca ‘a! eiro rat cez, natural do Bispado de Sen- lis, o qual veiu a Portugal depois de ter estado em Centa com D. Jofo 1, e ent&o conhecido na cérte pela zleunha de Baralha. Joio Vaz de Camées tambem se achou com D. Affonso v na batalha do Toro, 4 qual concorreu a maior parte dos poetas palacianos do Can- ctoneiro de Resende; casou com Ignez. omes daSilva, filha natural de Jorge da Silva, de quem teve um filho, chamado An 30 Vaz d Ca.” 8. Nasceu este em outra época, quando os serdes poe- ticos do pago ainda continuavam como um arremedo do esplendor antigo; mas j4 as navegagdes da India at- (1) Discursos Varios, p. 174. Ed. 1805. PARTE I. — CAPITULO IT 53 trahiam com o seu lucro todos os fidalgos, que d’antes eram desinteressados poetas. (1) Na Chronicu dos Conegos Regrantes de Santa Cruz de Coimbra, por D. Nicolau de Santa Maria, acha-se escripto Antonio Vaz de Camées, em vez de Antédo; isto poderia induzir em um grave erro historico, por que esse teve um filho bastardo, chamado Lutz Gon- galves de Cam@es, que instituiu 0 morgado da Torre em Aviz, o qual veiu a pertencer a Sim&o de Camdes," todos do ramo primogenito. Ant&o Vaz de Camies filho de Joo Vaz de Ca- mies, casou com Dona Guiomar Vaz da Gama, da fa- milia dos Gamas do Algarve, 4 qual pertencia o grande navegador portuguez; este casamento explica a vinda de Ant&o Vaz de Camées para a cérte, e ao mesmo tempo o cargo de Capit&o da Armada, que se conferia & principal nobreza. Em 1502, el-rei D. Manoel fez doagiio a Vasco da Gama, da.dizima nova do pescado da Villa de Sines, e de Villa Nova de Mil Fontes, e das sysas de Santiago de Cacem para supprirem a falta das de Sines, e de mais quarenta mil reis das sisas da Villa de S. Thiago, tudo no Algarve: «E bem assy 0 (1) N’esta época tambem figurava um outro Jodo de Ca- mées, como se vé por uma Carta de Il-Rei D. Joao u, datada de Carnide, para o Bispo de Evora, em 23 de Julho de 1483, a qual comega: «Por Jodo de Camées, vosso Vigario, nos envias- tes e vimos 0 que da vossa parte nos disse em resposta do que Vos escrevemos sobre 0 effeito do entredicto que na cidade de Evora mandastes...» Nob. de D. Luiz Lobo da Silveira, fl. 189. Ms. da Bibl. do Porto. 54 HISTORIA DE CAMOES fazemos a elle Vasquo da Gama e por seu respeito isso mesmo queremos e nos praz, que Ayres da Gama e Thereza da Gama sejam de Dom, e se possam em diante chamar de Dom, e assy seus filhos e netos e todos aquel- les que d’elles descenderem.» (1) Estes factos mostram a importancia que pelo seu casamento com Dona Guio- mar Vaz da Gama, recebera Ant&o Vaz, que em 1505 foi 4 India como capit&o de Armada; (2) nas Lendas da India de Gaspar Corréa, cita-se um «Ant&o Vaz, que commanda uma caravella, era honrado e fidalgo caval- leivo.» (3) Tudo isto leva a crér que seja este mesmo Antio Vaz aquelle que esteve com Affonso de Albu- querque na tomada de Géa. Era muito frequente no se- culo xvz dar a capitania das ndos da India aos fidal- gos cavalleiros, nfo pela sua sciencia nautica mas pela gerarchia do nascimento e dos parentescos ; foi isto a causa das perdas incaleulaveis dos galedes da India e dos profundos desastres relatados nas relagdes de nau- fragio. Gil Vicente, que conhecen todas as miserias da sociedade portugueza, satyrisa este. ruinoso privilegio da nobreza, em uma scena de uma Tragicomedia, na qual se vé uma nado em perigo: Marixuziro: Tomastes vés hoje a altura ~ Por saberdes onde estaes? Pitoro: C’o Rio dos Bég-Sinais Me fago a Deos e 4 ventura, (1) Apud Rotetro de Vasco da Gama, p. 178. (2) Indice de toda a Fazenda, p. iat. (8) Op. cit., t.1, p. 530. PARTE I.—CAPITULO II 55 Ou na Aguada da Boa-Paz, ou seremos tanto dvante Como o Rio do Infante Segundo o tempo aqui faz, Ou ¢’o Cabo das Correntes, Maamuzrzo: Isso 6 ou lobo ou ran, Ou feixe de lenha ou armo de lan; Isto fazem adherentes. - Quem vos houve a pilotagem Para a India, d’esta ndo? Porque um piloto de péo Sabe mais na marinhagem. Esta é uma errada Que mil erros traz comsigo, Officio de tanto p’rigo Dar-se a quem nao sabe nada, Este ladréo do dinheiro Faz estes mdos terremotos; Que eu sei mais que dez pilotos E sempre sou marinheiro. (1) Por este privilegio da nobreza, accusado por Gil Vicente na presenga do rei, é que julgamos ter sido” Antéo Vaz, aparentado com o Almirante do mar das Indias, aquelle que apparece citado como Capitao, ape- zar de se ]he nao dar o appellido de Camées. Tambem assim se explica a lenda, que dizia ter o seu filho Si- mio Vaz de Camées militado na India, e la naufraga- do, como primeiro o quiz explicar Magnin. ode Mariz falando de “imao Vaz escrevia (1) Obras de Gil Vicente, t. 1, p. 469. 56 HISTORIA DE'CAMOES levado por uma vaga tradicio: «foi por Capitaode uma ~ nao 4 India, naufragando nas costas da terra firme de Gda». Nao é admissivel esta assergio, porque no In- dice de toda a Fazenda, de Luiz Figueiredo Falcao, nao se encontra 6 nome de Simao Vaz; pelo contrario af se 16 da expedicao de 1505, que uma das naus

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