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‘Revista da Faculdade de Letras “, resume o texto em que descreve os trabalhos dos inspectores perante o imenso espago de manobra de ocultagao das armas no Iraque, do seguinte modo: «Os peritos que tém a missio de detectar 0 armamento proibido esto bem equipados, mas no terreno pode jogar-se ao gato e ao rato» (Os trunfos das inspecgdes, Publico, 2002-12-08) [it. meu] ‘Mas vamos ao gato ¢ & tradugo. & evidente que «um gato é sempre um gato» em qualquer parte do mundo, mas 0s estereétipos que as comunidades linguisticas retiram desse referente sio diversos. Os valores embleméticos podem variar. Os ‘tragos tipicos culturais, como projec antropomérfica ¢ ineorporagao de crengas, serviram de base aos empregos metaféricos lexicalizados dos lexemas ¢ expresses. ‘Uma leitura sincrénica da lingua tentaré decompor, desmotivar € remotivar essas expresses, bebendo na fonte figurada ou no. O antropomorfismo insinua-se, instaura-se na lingua, através das chamadas expresses idiomaticas, dos derivados e compostos, como, por exemplo, (fazer de alguém) gato-sapato Como ja dei a entender, tomei como ponto de partida GATO e pretendo fazer ‘uma confrontagao (contraste) dos nossos esteredtipos com os de outras linguas, 0 que equivale a dizer que a tradugao é (ou pode ser) a mediadora dos estereétipos. ‘Vou analisara definicao lexicogrifia de gato num diciondrio recente, verificar 08 tragos tipicos (classematicos ou nome de classes, os tragos especificos, prototipicos ou no) e verificar como as fraseologias (em sentido amplo) lexicalizam alguns desses tracos, confrontando entio as lexicalizagdes do portugués com as de outras linguas. 2 Pedindo ao letor que complete a fraseologia: 0 tiltimo a ri € quem ri melhor 433 MARIO VILELA 1. Gato como ponto de partida para categorizagdes / conceptualizagées na lingua portuguesa ODICIONARIO DA ACADEMIA desdobra gato em gato e gato2, centrando na entrada | (gatol) e dé em primeiro lugar o traco de classe «mamifero camivoro, da familia dos felideos, de garras retricteis, representado em quase todo mundo Por numerosas espécies e ragas domesticadas, mas existentes também em estado selvagem», ¢ apresenta depois alguns dos tragos especificos, a que se seguem algumas das fraseologias, depois, na entrada 2 (gato2), enumera alguns dos tragos mais ou menos especificos e acrescentando mais algumas das fraseolgias. Acrescente-se apenas que nao dé nas definigdes nenhuma inc icagao dos tragos que as fraseologias lexicalizam, aparecendo estas, portanto, desligadas de qualquer definigo de que se infira a categorizagao, conceptualizalizagao ¢ lexicalizagao feitas nessas fraseologias. Além disso, as palavras compostas em que intervém “gato” aparecem sem qualquer conexio com a palavra base. Mas observemos um texto do género de: «Pois desta vez havia uma inovagao no “parking” da universidade: um_ gato, Um gato bem tratado, a quem tinham posto uma confortavel almofada para ele se deitar, ¢ varios pratos e latinhas com égua e alimento para uma familia inteira. Ali estava tranquilo - e aquela serenidade, aquele Sono sem nuvens, aquele espreguicar-se voluptuoso, aquele enroscar-se vérias vezes sobree si préprio até encontrar o lugar perfeito pareceu-me ‘uma ligdo nestes tempos conturbados que vive a universidade. E ébvio que este gato no pensa nos efeitos do acordo de Bolonha, nem teme que 86 Ihe paguem metade do ordenado no final do més. ébvio que este gato nem paga propinas nem receia que as propinas sejam aplicadas em despesas correntes.» (Os gatos e as universidades, Publico, 2002-12-06) texto que corresponde a muitos t6picos que todos os falantes atribuem a “gato” € que até poderia servir de ponto de partida para um levantamento dos tragos / Propriedades que este referente, enciclopedicamente, para nés, envolve. Vamos proceder & andlise de gato com o pormenor possivel. O trago genérico «mamifero camivoro da familia dos felideos» onde se inserem as categorizagdes genéricas e respectivas lexicalizagdes, em que ja surgem algumas discrepéncias entre linguas proximas com base classemitica [felino]: gato-bravo, gato-montés, gato bichaneiro (ptg.) chat sauvage (fr) gato cerval, gato montés (esp.) 434 OS ESTERIOTIPOS DA METAFORA ANIMAL: COMER GATO POR LEBRE Nos tragos descritivos, mais ou menos tipicos, em que o modelo icénico (ou fenomenolégico) acentua o tamanho, a cor, as formas, os hibitos ¢ as atitudes: igode: - peixe-gato (ptg.), - poisson-chat (fi.) ingua grande: = lingua de gato [biscoito), = langue de chat (fr.) = Tengua de gato (esp.) olhos brilhantes: = olhos de gato (ptg.), = ocil de chat (fr), - ojos de gato(esp.) determis wil Ito: ~ gatinhar, ~ andar de gatas - marcher 4 quatre pattes (fr.) - auf allen vieren gehen (al.) ~ andar de gatas [estar sem forga...] = (p6r) manteiga em focinho de gato - tirer sa poudre aux moineaux/ jeter des perles aux pourceaux (fr.) ~ atirar-se como gato a bofes ~ se jeter dessus comme un loup sur sa proie (fr) - sich wie ein Lowe etw. stiirzen (al.) medo a égua: = gato escaldado de gua fria tem medo ~ chat échaudé craint eau froide (ft) ~ gato escaldado del agua fria huye (esp.) ~ gato scottato dall’acqua calda ha paura della freda (it.) - gebranntes Kind fiirchtet das Feuer (al.)* - le chat aime le poisson mais n’aime pas se mouiller (ft.) - cattus amat piscem, sed non vult tangere flumen (It.) - la gatta vorrebe mangiare pesci, ma non pescare (it.) - no se apanham trutas a bragas enxutas (ptg.) ~ no se pescan/cogen truchas a bragas enjutas (esp.) + Ovidio expica este provérbio in: Epistulae ex Ponto, 2, 7, ss. 435 ‘MARIO VILELA - the cat would eat the fish and would not wet her feet (ingl.) rapidez: ~ passar por algo como gato por brasas - courir comme un chat sur la braise (fr.) - correr como gato por ascuas (esp.) ame: ~ azedo como rabo de gato ~ amer comme chicotin / fiel (fr.) - estar com um olho no gato outro no prato ~1un oeil a la poéle et l'autre au chat (fr) ~ gatuno, ~ gatunagem = deitar 0 gatazio (a alguém) ~ mettre le grapin sur quelque chose (fi.) la ~ aqui hé gato / aqui & que esté o gato ~ hay gato encerrado (esp.) - ly a.un loup [ft: ‘erro’, ‘esquecimento’] = Ily a anguille sur roche ~ da liegt der Haken / das ist der Pferdefuss (al.) ~ gato escondido com o rabo de fora ~ gatta ci cova [anda moiro na costal] (it.) + Gtre cousu de fil blane (fi) ~ (nfo é por af que) o gato vai as filhés - In’ y a pas de Iézard (fi.) - da liegt der Haken nicht / das Ubel liegt woanders (al.) ~ com a mao do gato ~ ala sauvette (fr) ~ tirar a castanha / a sardinha com a mao do gato ~ gatar [enganar-se] cor: - de noite todos os gatos so pardos ~ la nuit tous les chat sont gris (fr) ~ la noche todos los gatos son pardos (esp.) pouco importante: ~ carapau de gato ~ c'est de la bouille pour les chats ~ c’est du pipi de chat, crotte de bique (ft.) - sich iibers Obr hauen lassen (al.) 436 (OS ESTERIOTIPOS DA METAFORA ANIMAL: COMER GATO POR LEBRE ~ vender / comprar, comer! impingir gato por lebre - vendre la chat en poche / faire prendre les vessies pour des lantemes (ft) ~ dar / vender gato por liebre (esp.) - niio poder com um gato pelo rabo ~ tre & ramasser 4 la petite cuillére (fr.) - hundemiide sein / erschossen sein (al.) - sabido de cies ¢ gatos: - esto lo sabe hasta el gato (esp.) - Gre sur toutes les bouches (fi) - em caminho francés vende-se o gato pela rés ~ on ne s’en va pas de foires comme du marché (fr.) ~ quem nfo tem co caga com gato ~ faute de boeuf, on laboure avec son ne (fi) ‘presuncdo [miar]: ~ avoir un chat dans la voix ~ até a pulga tem catarro - hasta los gatos quieren zapatos (esp.) — - ter folego de gato - avoir l’ame chevillée au corps (fr) = ter sete fOlegos / vidas / foles como o gato seduciio: ~ bem sabe o gato cujas barbas lambe ~ bem sabe a burra diante de quem zurra ~ the cat knows whose lips she licks (ingl.) ~ It: ad cuius veniat scit cattus lingere barbum (It.) - engatatio ¢ engatatio das dizias ~ dénicheur de fauvettes, don Juan de sous-préfecture (fi.) ~ engatar - faire de V’oeil, jouer de la prunelle (fr) ~ engatusar (esp.) anti-social: - Ser como co e 0 gato - étre comme chien et chat (fr.) - wie Hund und Katze sein (al.) ‘garras [escrever como um gato}: ~ gatafunhar, gatafuunho (ptg.), - griffonner, griffonnage, gribouillage (ft.) - engatar, gato [instrumento metélico] 437 ‘MARIO VILELA + racolage, raccrochage (ft) ~ chumbar, reprovar amigo de brincar divertindo-se /mofando: ~ fazer de alguém gato-sapato ~ tenir quelqu’un dans sa manche (fi.) - jdm aud dem Kopf herumtanzen / jdn zur Schnecke machen (al.) ~ gato-pingado, ~ croque-mort (fr) ~ gata borralheira ~ cendrillon (fi.) toilette: - lavar-se como o gato = lavarse como el gato - faire unte toilette de chat (fr) agressividade: - langar 0 gato as peas de alguém = jeter le chat aux jambes de quelqu’un (fr) ~ echarle a uno el gato a las barbas (esp.) prudéncia: = dar ao gato o que o rato hide levar ~ il vaut mieux nourrir le chat que le rat (ft) - a bom gato, bom rato - Abon chat bon rat (fr.) - avilio, vildo e meio ~ a Rolland for an Oliver (a Roldio um Olivérios) (ingl.) - amelhor defesa € 0 ataque straccio: = gato no telhado, rato no sobrado ~ quand le rat est hors la maison souris et rats ont leur saison (fi:) ccacar ratos: = filho de gato mata rato ~ chat et chatton chassent le raton (f.) HA outros mecanismos icénicos nas diversas linguas, ausentes em portugués, como, por exemplo, tanto va la gatta al lardo hinché ci lascia lo zampino (it.) ~ tantas vezes vai o cdintaro a fonte que deixa Ié a asa 438 OS ESTERIGTIPOS DA METAPORA ANIMAL: COMER GATO POR LEBRE - la gatta frettolosa pone gattini ciechi (it.) - depressa ¢ bem hé pouco quem = iln’y a pas de quoi fouetter un chat (ft.) - avoir d'autres chats & fouetter (fr.) € hd expresses com base em gato em portugués que nao existem noutras linguas: lugar: gateira, gatitho (?) 2. A traducdo como mediadora dos estereétipos Jé dissemos que os gatos so sempre gatos em qualquer parte do mundo, mas os tragos especificos, neste referente, valorizados categorial, conceptual, lexical ¢ discursivamente, sio diferentes, de acordo com as culturas ¢ erengas, temores € esperangas. Defende-se actualmente que 0 esteredtipo de uma palavra ou expresso compreende todos os tragos que uma comunidade Ihe atribui em qualquer circunstincia. Mas, no ensino / aprendizagem de uma lingua, ha que comegar por fazer o levantamento dos tragos tipicos (ou prototipicos), os mais acessiveis, os que definem um dado item, tendo em atengao o saber enciclopédico dos falantes. Ora, em que medida que as expressdes congeladas nao lexicalizam esses tragos tipicos? Vamos analisar os tragos comuns ¢ os diferentes: comuns no contetido & express4o, comuns apenas no conteiido e diferentes na expressio e conteiido. Depois, veremos dois exemplos: 0 da gata borratheira e comer gato por lebre. 2. 1. Semethangas ¢ diferengas ‘Tomando como ponto de partida apenas os dominios abrangidos pelo mecanismo de categorizagao ¢ conceptualizagao GATO, vemnos que hé equivaléncias de contetido ¢ expresso, apenas equivaléncias de contetido e auséncia total de equivaléncia, quer no contetdo, quer na expresso. No trago classemético ou caracterizagio genérica, em que a espécie “felideo” serve de suporte, ha mais ou menos equivaléncia: gato bravo (ptg.) ¢ gato montés (esp.) € chat sauvage (f.). Nos semas descritivos hé efectivamente equivaléncias ¢ ndo-equivaléncias, Hé esquemas totalmente equivalentes, em que por vezes 0 ponto de partida jé estava presente no latim: 0 que se verifica no referente a certos hébitos, como, por exemplo, os tragos salientes expressos por: 0 “medo da agua” (a que se contrapSe, na dieta alimentar, a preferéncia pelo peixe) 439 MARIO VILELA a “rapidez”, a que se liga outro trago a “ameaga” 2 “dissimulagdo” (como processo geral, mas em que hé também divergéncias) a utilizagao da “cor” como caracterizagio (de noite todos os gatos so pardos) © “pouco valor” que Ihe € atribuido (em que ha convergéncias e divergéncias) a “sedugo” (com divergéncias e convergéncias) © “6dio” entre cies e gatos a “agressividade” ¢ a “prudéncia”, As divergéncias sio também importantes, em que se procura por vezes apenas 4 palavra mais & mio ou mais adequada para preencher um determinado espago na sequéncia fraseolégica’. O que se pode concluit é que a categoria “gato” serve como modelo de categorizagao de outros animais (peixe-gato), de outros objectos (lingua de gato), ¢ sobretudo de valores sociais os mais variados, sejam eles a “ollete", a importincia da hereditariedade e educagdo (fflho de gato mata ratos), 0 valor do esforgo, a seducao e presungio e o pouco valor atribuido a “gato”. 2. 2. O caso de «a gata borralheiray ow a selecgao do trago saliente nas linguas Tratando-se de um conto existente nas mais variadas linguas, o tema da “gata borralheira”, como modelo de eriagao e configurago de uma dada categoria mental Parece constituir um modelo de comparacao Sptimo para confrontar as categorias resentes em varias linguas. Uma boa definigo para gata borralheira em portugués € aque é dada num dicionério de Fraseologia® (portugués-alemio) «eine Frau / ein Madchen, die / das nicht gem ausgeht; ein Hausmiitterchen»» (© mulher ou moga que no gosta de sair de casa, uma dona de casa a antiga), Se procurarmos verificar a traducao da expresso Cinderela em virias linguas, verificamos como sio diferentes os tragos salientes ¢ salientados. Como sabemos, © tema da Gata Borratheira vem de muito longe, conhecendo-se mais de 300 variantes do velho conto de fadas. De uma forma ou de outta, elas seguem as linhas de dois arquétipos. O primeiro corresponde ao conto de Charles Perrault — Cendrilton 1657 — e resume-se a uma versio feminista com muitos elementos romanticos: uma madrasta cruel, uma fada madrinha, uma carruagem magica, um sapatinho de cristal, etc. O segundo arquétipo dé-nos uma versio machista do conto: 5 Veia-Se caso paradigmatico de: (qualquer coisa é) velhae retha, “ Hans / Luiza Schemann - Diciondrio Idiomético Portugués-Alemio, Braga: Livt. Cruz, sd 440 (OS ESTERIOTIPOS DA METAFORA ANIMAL: COMER GATO POR LEBRE trata-se de um pai com filhas preferidas e problemas emocionais (Rei Lear, por exemplo), ou de um padrasto autoritério com preferéncias ¢ repiidios. Esta versio (ja contemplada na acco secundéria da tragédia shakespeariana), despida embora dos elementos fantisticos do conto de Perrault, servird de base, por exemplo, a0 conhecido libreto de Rossini (Cenerentola), Ora bem, em alemio, em cuja lingua se encontra outro dos arquétipos do conto construida a partir dos contos dos irmaos Grimm, a designagao ¢ Aschenputtel ou ‘menina das cinzas’, justificando-se a designagio, pelo facto de a menina viver no meio das cinzas, simbolo do rebaixamento, da humildade, ¢ cuja fungo era cuidar das cinzas da lareira, sendo desprezada pelas irmis. Por outro lado, @ Aschenputtel deixa ver na lareira o simbolo do centro da casa, lugar onde a mae viveu, a lareira sagrada proprio para as virgens vestais. Em inglés, temos duas palavras para “cinza”: ashes, a cinza limpa, por ter sido 0 resultado de uma combustio completa cinder, a cinza suja, por ser o resultado de uma combustio incompleta’: pois é precisamente, a ‘cinza suja’ que serve de titulo e motivo ao conto: Cinderella. Em francés, a palavra usada é igualmente apenas cendrillon*. Em italiano, é cenerentola: o tema da dpera de Rossini é «La cenerentola, ossia La bontd in trionfo»®. Isto é, todas as linguas tomam como trago_ saliente a ‘cinza’. A lingua portuguesa parece ter sido uma das poucas - senio a Xiica - que inclui “gata” na designago. Porqué? O facto de aparecer “borralheira”, creio bem que se trata de interpretar a “cinder” (ingl.) por “borralho”, afinal, a cinza suja, por ainda nao se ter concluido a combustao. Por outro lado, a presenga de “gata” leva-nos para um estere6tipo muito “sui generis”: a presenga de gatos nas nnossas lareiras. 2. 3. Modo de funcionamento das fraseologias no discurso As fraseologias congeladas funcionam no discurso jogando com a interacgio entre dois sentidos: 0 convencional e o no convencional. No sentido convencional, temos ainda de distinguir 0 sentido convencional composicional: 0 que resulta do significado de cada um dos elementos que compéem a expresso, eo convencional 7 Nos traduzimos as duas palavras por cinza. * off, Bruno Bettelhem — Psicanilise das contos de fadas, 9* ed, trad. de Carlos Humberto da Silva, Lisboa: Bertrand, 2002 {ed. Original: The uses of enchantment, 1975} °° épera bufaa que Rossini chama “éramma giocoso”, com libreto de Jacopo Ferret, foi cstreada em Janeiro de 1817. Cf. Programa de La Cenerentola (de Gioachino Rossini), elaborado por Joaquim Vacondeus, Teatro Nacional de Sdo Carlos, Abril de 1993, 441 MARIO VILELA figurado (a chamada implicatura convencional), ja nio uma interpretacao composicional mas sim uma leitura opaca, intransparente. Por exemplo, vender gato por lebre pode significar o que as palavras querem dizer: ‘vender gato por Iebre’ ou ‘vender algo como se fosse coisa de muito valor e tratando-se apenas de coisa insignificante’. Ora é essa interacgo entre os dois valores, a aproximagiio entre os dois dominios —o dominio fonte e o dominio meta—, dominios distantes © heterogéneos, que cria uma nova categorizagio: a de ‘ludibriar’, ‘enganar’. Isto 6,08 valores “enganar”, “Iudibriar” categorizados como actos concretos de compra € venda, ou comer, passa ontologicamente a poder ser manipulado como tal, Mas vejamos um texto concreto: «Dizem: naquele tempo nao devia ser Bledine, devia ser Cerelac. .... Mas que uma papa, tio intima para mim, que dava pelo nome de Bledine fosse Cerelac nfo aceito, Eu. ndo sou uma trapalhona, nfo sou uma badalhoca. Nao confundo alhos com bugalhos, néo vendo gato por lebre..... Saber distinguir entre tactica e estratégia fazia os encantos marxistas-leninistas dos rapazinhos em flor do meu tempo. Eu dedicava- ‘me a observar que os tios reacciondrios dos rapazinhos revolucionérios podiam dizer “marchismo”, fenémeno que nunca ocorria com os sobrinhos revolucionérios. Estes pronunciavam invariavelmente “markssismo”. Distinguir alhos de bugalhos, gatos de lebres e um ch de um Kss fazia as minhas delicias portuguesas ¢ proustianas» (Adilia Lopes, Souvenirs pieux, Publico (Revista), 2002-10-20) (it. meu) No discurso, surge em primeiro lugar a fraseologia vender gato por lebre - sempre reforgada por uma outra fraseologia ainda mais clara (confundir alhos com bugathos)- e depois ha uma desconstrugdo da fraseologia: surge apenas uma alusdo, alusio ao valor abstracto ¢ genérico linearizado sequencialmente na expresso: distinguir gatos de lebres. 6 aqui que intervém a inferéncia: o leitor é chamado, por meio do saber partilhado, presente na mente do locutor e supostamente presente na mente do leitor, a inferir uma interpretagdo figurada da referida expressio. Esta desconstrugdo ¢ reconstrugao leva-nos para o caminho da implicatura conversacional. Surge neste ponto a importincia da metéfora, Os exemplos poder-se-iam multiplicar e a desconstrugio ¢ reconstrugio siio também claras, como em: “A IGAT, leia-se aqui hé gato, tem por incumbéncia fiscalizar os actos administrativos dos nossos municipios, 4000 freguesias, 18 governos civis, ¢ varios servigos oficiais. © mandato nao é sé imenso. Num pais que comega @ perceber ao que chega a corrupgdo € os entendimentos entre autarcas, 442 OS ESTERIOTIPOS DA METAFORA ANIMAL: COMER GATO POR LEBRE politicos ¢ empresérios, o papel da Inspecgiio-Geral da Administragao do Territério é nevrdlgico. A sua missio é ciclépica, delicadissima e incomoda muitos “gatos-pardos”. Todavia, para o cidadio comum, ela é das raras instituiges que sobram para fazer vingar a lei a tempo a infrac¢do de muitos direitos. O pior é que, pelas suas competéncias especificas, a actuagio desta inspecgdo vai directa ao vulcdo de todas as nossas maleitas de ordenamento. ‘Nao admira que a indispensivel IGAT seja mantida em crénico estado de sufoco e inoperdncia técnica. A desproporgao entre a missio de que legalmente esté incumbida e os meios infimos que sucessivos governos lhe poem ao alcance s6 pode ser interpretada como uma ordem sub-repticia para estar quieta e calada.» (Ambiente, Expresso 2002-11-30) (it. meu) 3. A metifora e a tradugdo das metéforas ‘A metéfora é um sentido indirecto, um efeito de sentido", e necesita de uma interpretagio, de um desdobramento. O pensamento" ja é representago no sentido etimolégico— RE + PRAESENTATIO (ou Vorstellung) — mas quando se dé a metifora hé a aproximagio de duas coisas incomparaveis, heterogéneas € a0 compararem-se duas coisas nao comparaveis mas que se tomam como compariveis, cria-se uma nova categoria: «iln’yamétaphorisation ques’ily a rapprochement entre realités heterogénes. La pereée a oeuvre dans I’énonce métaphorique est une percée de la ressemblance, mais dune ressemblance qui unit non des entités reconnues ‘homogénes, appartenant 4 un méme genre ontologique, mais bien des entités A deux genres hétoregénes: Achile et un lion, une femme et un rossignol, une cité et un navire, Dieu et un berger...» (Charbonnel 1999: 33) ‘Num acto de fala, a metéfora vale como argumento condensado. A metifora iio adquirida pelas regras do cédigo mas pelas regras da inferéncia, ndo representa um dado pré-construido, mas algo calculado, construido (cft. Sperber / Wilson 1986). Parece efectivamente que a metéfora se distingue dos enunciados ordindrios ou literais. Trata-se de um contributo cognitivo novo, inovador, inventivo. As ‘metiforas, sobretudo as no convencionais, vém perturbar os nossos conhecimentos fe Kleiber 1999: 7 4 GLa meuphore n'est pas un phénoméne de langue mais de discours, et danc de penséen (Charbonne! 1999: 33) 443 MARIO VILELA de longo prazo: é este o papel da analogia'”, o de trazer incongruéncias: conceptuais”, Isto €, 0 desvio & constitutivo da metéfora, em que hé negociagao das distincias entre diferentes enciclopédias disponiveis neste contexto!4. Temos de distinguir, znum enunciado, entre o grau entendido (“degré pergu”) e o grau intendido (“degré congu”)». No grau entendido ha um conjunto fluido de interpretagdes intendidas'>, O principio de cooperasao obriga o receptor a procurar o grau intendido. Escolher na enciclopédia entendida (ouvida) a enciclopédia intendida: a confusdo entre “gato” € “lebre”, como se fosse entre “mentira” e “verdade”, entre coisa de pouca importancia € coisa importante. Ou seja, a inutilidade duma utilidade (= as forgas armadas) ¢ a utilidade de outras utilidades. A metéfora representa uma incongruéncia légica, uma Tuptura entre mensagem e cédigo'*: trata-se da violagdo de uma norma (no sentido Coseriano, como filtro feito no sistema por parte da comunidade) ou no sentido do proprio sistema, E a enciclopédia que se modifica: muda-se o saber mesmo, a sua classificagdo e categorizagao. A metifora atribui novas propriedades a uma entidade catalogando-a numa outra espécie. Estabelece novas conexdes nas nossas estruturas enciclopédicas. A metéfora é a principal figura no papel de reorganizador da nossa experiéncia fundando nova estrutura do real. Vai ao magma original e, refazendo-o, cria um novo “Cosmos”"7. Na metfora, 0 travejamento sintéctico liga conceitos incompativeis. Uma das teorias de ponta —a teoria cogntiva—, ao atribuira metéfora estatuto de estruturagio conceptual de pleno direito, como forga conceptualizadora © organizadora da nossa experiéncia, tem o mérito de libertar a metafora do dominio da simbolizagao'*. A metéfora cria analogias ¢ no d4 expresso a uma analogia preexistente!” e é um dos catalizadores da nossa representagio e lexicalizagao”? ' aAnalogies exist to unmask, capture or invent new connections absent form or upstaged by ‘one's eategory structures.» (Turner 1988: 3). "For us to recognize a statement as analogy, we must recognize that itis in some way putting pressure on our category structure» (Tummer 1988: 3) "* Afinal, toda aretorica éum espago de negociagio entre enciclopédias diferentes (cla rhétorique ‘comme espace de négotiation des distances. ... négociation des distances entre les différentes eneyclopédies disponibles» (Klinkenberg 1999: 148), 'S «Leff rhétorique provient en effet de I'intéraction dialectique entre le deyré perguet l'ensemble flou dit degré congun (Klinkenberg 1999: 148). 'S Cf. Klinkemberg 1999: 152 "7 Klinkenberg 1999: 157 "Clr. Lakoff/ Johnson 1981 "* As metiforas nio reproduzem analogias reais como se supunha na tradigo metafgrica: mas

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