Você está na página 1de 1

O professor j beu?

A exposio prolongada realidade cinfanense pode ter efeitos na sua sade. No,
no um aviso da Direo Geral de Sade, nem to pouco uma afirmao
discriminatria. O enclave cinfanense, enclausurado entre o Douro e o Montemuro,
encerra peculiaridades verdadeiramente deliciosas, configurando uma ligao telrica,
um lao mgico ao que de mais autntico e genuno ainda possumos.
A melhor expresso da cultura cinfanense o seu linguajar. O linguajar cinfanense,
no sendo uma lngua autctone, nem mesmo um dialeto, partilha expresses com
outras localidades do norte portugus, possuindo uma riqueza vocabular que pode
tornar impercetveis meras conversas de caf a um estranho. "Cum? Bens ir cum ns
piacima s santieiros?" Eu traduzo: "Ento? Vens connosco l acima apanhar
cogumelos?" Este pequeno exemplo serve para demonstrar as particularidades
fonticas, pragmticas e referenciais do povo cinfanense. Para l de topnimos
indecifrveis como Cosconhe ou Ventuzelas ( no confundir com as horrveis e
barulhentas cornetas), existem termos prprios para quase todas as reas do
conhecimento, da Biologia Botnica, da Geografia Culinria, da Astronomia
Histria.
Vejamos. Para nos referirmos a tempos idos, teremos de dizer aqui atrasado ou em
antes; junto a mim diz-se minha beira. J qualquer viajante ser encorajado a seguir
piacima (por a acima) ou piabaixo (por a abaixo), no se furtando a controlar
(contornar) a rotunda. E no adianta aparentar ares de atrojado (inocente, ingnuo)
nem sentir-se perdido.
E que tal se comssemos magnrios (nsperas), os supracitados santieiros, variante
local de cogumelos ou hortes, como aqui se designam os espigos? Um viseense ser
surpreendido com um olhar de soslaio se pedir uma lancheira num caf local, uma vez
que, por estes lados como por todo o norte, se diz lanche. Um magnfico pata de veado
uma autoestrada e o ch o queler (no erro, a grafia foi vista em placas). Ah, iame esquecendo da especialidade francesa Cardo Blau (no se assustem, no h por
aqui etarras!) ou das variantes locais de pizza, absolutamente deliciosas: proscuito e
calo, ambas corrupo de prosciuto (presunto) e calzone, respetivamente. Para
encerrar a incurso gastronmica, convm relembrar que pedir salada equivale a
comer doses industriais de alface, uma vez que aqui so sinnimos. E no podemos
dispensar a tosta tipo francesinha ou o frango tipo leito, quase transgnicos.
Se quem l estas linhas pensa que padeo de qualquer preconceito ou assumo uma
atitude presunosa, desengane-se. Esta forma de cultura popular soube conquistar a
minha simpatia, pela engenhosa arte de simplificao e aproximao ao registo oral.
Conseguiu, at, modificar a gramtica portuguesa, generalizando a conjugao
perifrstica. Como explicar o verbo ir ir? Eu bou ir, tu bais ir... ou ir vir: eu bou bir, tu
bais bir... Estou canso de tanta riqueza. Resta-me aguardar pelo momento delicioso em
que um qualquer aluno chegue minha beira, no salo de estudo e pergunte: "O
professor j beu?".

Você também pode gostar