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Capitulo 4-0 Semeador e o Ladrithador Para muitas nacoes conquistadoras, a construgao de cidades foi o mais decisivo instrumento de dominacao que conheceram. A experiéncia tem demonstrado que este recurso, entre todos, é o mais duradouro e eficiente. A colonizacao espanhola caracterizou-se pelo que faltou a portuguesa: aplicagao insistente em assegurar o predominio militar, econdmico e poll ico da metrépole sobre as terras conquistadas, mediante a criagdo de grandes niicleos de povoagao estaveis e bem ordenados. Um zelo minucioso e previdente dirigiu a fundagao das cidades espanholas na América. 0 proprio tragado dos centros urbanos na América espanhola denuncia o esforgo determinado de vencer e retificar a paisagem agreste: é um ato definido da vontade humana, aspirago de ordenar e dominar 0 mundo conquistado. O trago retilineo manifesta bem esta deliberagdo e nao por acaso que ele impera em todas essas cidades espanholas. Leis que devem reger a fundacao das cidades na América exibem senso burocratico das mincias: cuidados na procura do lugar que se fosse povoar; a construgo da cidade comecaria sempre pela praca maior; a povoagao partia nitidamente de um centro. No plano das cidades hispano-americanas, o que se exprime 6 a idéia de que o homem pode intervir com sucesso no curso das coisas e de que a historia nao somente “acontece’, mas tém pode ser dirigida ¢ até fabricada. Na América portuguesa, a obra dos jesuitas foi uma rara excegao, pois 0 empreendimento de Portugal, parece timido e mal aparelhado. Comparado ao dos catelhanos em suas conquistas, o esforgo dos portugueses distingue-se pela predomindncia de seu carater de exploragao comercial. Os catelhanos, ao contrario, querem fazer do pais ocupado um prolongamento do seu, O fato de se fundarem varias universidades nas possessdes de Castela durante o periodo colonial, mostra 0 seu desejo de fazer das novas terras mais do que simples feitorias comerciais No Brasil, a colnia é simples lugar de passagem, para 0 governo como para os siditos. J4 0s castelhanos, prosseguiram no Novo Mundo a luta contra os infiéis; Teproduziram os mesmos processos ja empregados na colonizagao de suas terras, da metropole depois de expulsos os discipulos de Maomé. Nas regides de nosso continente que couberam aos castelhanos, o clima nao oferecia grandes incdmodos. A colonizagao portuguesa foi litoranea e tropical; a castelhana foge deliberadamente da marinha, preferindo as terras do interior e os planaltos. Sé em caso de haver bons portos é que se poderiam instalar povoagées novas ao longo da orla maritima e somente aquelas indispenséveis para se facilitar a entrada, 0 comércio e a defesa da terra. Ja 0s portugueses criavam todas as dificuldades as entradas adentro, receosos de que com isso se despovoasse a marinha As “cartas de doagao das capitanias” (segundo as quais poderao os donatarios edificar junto do mar e dos rios quantas vilas quiserem) parece ser outra medida destinada a conter (segurar) a povoagao no litoral - caso da D. Ana Pimentel que em 1854 anulou a proibigao feita pelo seu marido (donatario de S. Vicente) aos moradores do litoral de irem tratar nos campos de Piratininga. Esta atitude foi lamentada até mesmo no séc XVIII por frei Gaspar da Madre de Deus e pelo ouvidor Cleto por ter causado prejuizo as terras litoraneas da capitania, Os géneros produzidos junto ao mar podiam conduzir-se facilmente Europa e os do sertdo, ao contrério, demoravam a chegar aos portos e, se chegassem, seria com altas despesas. A expansao dos pioneers (pioneiros, bandeirantes) paulistas nao tinha suas raizes do outro fade do oceano, podia dispensar o estimulo da metrépole fazia-se contra a vontade e contra os interesses desta. Esses audaciosos cacadores de indios, farejadores e exploradores de riqueza, foram, antes do mais, puros avetureiros — s6 quando as circunstancias o forgavam € que se faziam colonos; antes do descobrimento das minas, no realizaram obra colonizadora, salvo esporadicamente. No terceiro séc do dominio portugués é que temos um afluxo maior de emigrantes para além da faixa litoranea, com 0 descobrimento do ouro das Gerais. Governo tenta impedir essa emigracao, mas mesmo assim ela ocorre latgamente. Estrangeiros estavam excluidos delas entre outros (monges, padres sem emprego, negociantes, estalajadeiros e todos que pudessem nao ir ao servico exclusivo da insaciavel avidez da metropole). Pretendeu-se fazer uso de um derradeiro recurso, o da proibigao de passagens para o Brasil ‘SO entdo é que Portugal delibera intervir mais energicamente nos negécios de sua possessao, isso para reprimir e ndo para edificar alguma coisa de permanente, mas sim para absorver tudo quanto Ihe fosse de proveito imediato. Se verifica isso na Demarcagao Diamantina © descobrimento das minas, sobretudo de diamantes foi o que determinou finalmente Portugal a por um pouco mais de ordem em sua colénia com o objetivo de desfrutarem, sem maior trabalho, dos beneficios. Para tal se utilizou a tirania A facilidade das comunicag6es por via maritima ou fluvial, tao menosprezada pelos castelhanos, constituiu o fundamento do esforgo colonizador de Portugal. Os regimentos da Coroa Portuguesa, quando sucedia tratarem de regides fora da beira-mar, insistiam sempre em que se povoassem somente as partes que ficavam margem das grandes correntes navegaveis. A legislagao espanhola, a0 contrario, mal se refere 4 navegacdo fluvial como meio de comunicagao; 0 transporte dos homens e mantimentos podia ser feito por terra. No Brasil, a exploragao litordnea praticada pelos portugueses encontrou mais uma facilidade no fato de se achar a costa habitada de uma Unica familia de indigenas, que de norte a sul falava um mesmo idioma. Onde a expansao dos tupis sofria um hiato, interrompia-se também a colonizacao branca, salvo em casos excepcionais. Mal tinham os portugueses outra noticia do gentio do sertao além do que Ihes referia a gente costeira, Nao importava muito aos colonizadores povoar e conhecer mais do que as terras da marinha (comunicagao mais facil com o Reino) A fisionomia mercantil dessa colonizagao exprime-se no sistema de povoacao litoranea (ao alcance dos portos de embarque) e no desequilibrio entre o esplendor rural e a miséria urbana. Essas duas manifestagdes séo de particular significagao pela luz que projetam sobre as fases ulteriores de nosso desenvolvimento social. A obra realizada no Brasil pelos portugueses teve um carater mais acentuado de feitorizagdo do que de colonizag&o. Nao convinha que aqui se fizessem grande obras, a0 menos quando nao produzissem imediatos beneficios. Nada que acarretasse maiores despesas ou resultasse em prejuizo para a metropole. Era rigorosamente proibida a produgao de artigos que pudessem competir com os do Reino. A administrago portuguesa parece relativamente mais liberal do que a das possessdes espanholas. Foi admitida aqui a livre entrada de estrangeiros que se dispusessem a vir trabalhar. Aos estrangeiros era permitido percorrerem as costas brasileiras na qualidade de mercadores, desde que se obrigassem a pagar imposto de importago, e desde que nao traficassem com os indigenas. Sé mudou em 1600, durante o dominio espanhol, quando Felipe II ordenou fossem excluidos todos os estrangeiros do Brasil. Essa liberalidade dos portugueses pode parecer uma atitude negativa, mal definida, e que proviria de sua moral interessada, moral de negociantes. Pouco importa aos nossos colonizadores que seja frouxa e insegura a disciplina. A fantasia com que em nossas cidades, comparadas as da América espanhola, se dispunham muitas vezes as ruas ou habitagdes é um reflexo de tais circunstancias. As casas se achavam dispostas segundo 0 capricho dos moradores. Tudo ali era irregular. O tragado geométrico jamais péde alcangar, entre nés, a import&ncia que veio a ter em terras da Coroa de Castela: 0 desenvolvimento posterior dos centros urbanos repeliu aqui esse esquema inicial para obedecer antes as sugestées topograficas. Arotina e nao a razo abstrata foi o principio que norteou os portugueses, nesta ‘como em tantas outras expressdes de sua atividade colonizadora. Preferiam agir por experiéncias sucessivas, nem sempre coordenadas umas as outras, a tragar de antemao um plano para segui-lo até o fim. Accidade que os portugueses construiram na América nao é produto mental, nao chega a contradizer 0 quadro da natureza, e sua silhueta se enlaga na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdéncia, sempre esse significative abandono que exprime a palavra “desleixo" ~ palavra que implica menos falta de energia do que uma intima convicgao de que “nao vale a pena A expansao dos portugueses no mundo representou sobretudo obra de prudéncia, de juizo discreto. Uma coragem sem duvida obstinada, mas raramente descomedida, constitui trago comum de todos os grandes marinheiros lusitanos. A grandeza herdica de seus cometimentos e a importancia do alto pensamento que os presidia foram vivamente sentidas desde cedo pelos portugueses. A idéia de que superavam as lendarias faganhas de gregos e romanos impée-se como lugar-comum de sua literatura quinhentista. E significative que essa exaltagao literdria caminhe em escala ascendente na medida em que se vai tornando tangivel o descrédito e 0 declinio do poderio portugués. & uma espécie de engrandecimento retrocessivo € de intengao quase pedagégica De nenhuma das maiores empresas ultramarinas dos portugueses parece licito dizer que foi popular no reino. O proprio descobrimento do caminho da India, & notério que o decidiu el-rei contra a vontade dos seus conselheiros. A relativa infixidez das classes sociais fazia com que essa ascens4o da burguesia mercantil no encontrasse em Portugal forte estorvo. Todos aspiravam a condigao de fidalgos. Os valores sociais e espirituais vinculados a essa condigdo, também se tornariam propriedade caracteristica da burguesia em ascencao. A medida que subiam na escala social, as camadas populares deixavam de ser portadoras de sua primitiva mentalidade de classe para aderirem a dos antigos grupos dominantes. Nenhuma das “virtudes econémicas’ ligadas a burguesia péde, por isso, conquistar bom crédito. Aquelas virtudes — diligéncia pertinaz, parciménia, exatidao, pontualidade, solidariedade social - nunca se acomodariam perfeitamente ao gosto da gente lusitana. A “nobreza nova” do Quinhentos era-lhe adversa: por indignas de seu estado, por evocarem uma condicao social a que ela se achava ligada pela origem, nao pelo corgulho. Dai, seu desejo constante em romper os lagos com o passado, na medida em que o passado Ihe representava aquela origem, e de robustecer em si mesma © que parecesse atributo inseparavel da nobreza genuina. A invengao e a imitagao tomaram o lugar da tradicao quando se tinham alargado as brechas nas barreiras que, em Portugal, separavam as diferentes camadas da sociedade. Aos poucos, vao desapegando dos velhos ¢ austeros costumes e dando moldura vistosa a nova consciéncia de classe. Os que agora surgem s6 querem andar de capa de veludo, chapéus com fitas de ouro, espadas e adagas douradas, etc. Vai se perdendo o antigo brio e valor dos lusitanos. O que prezam acima de tudo os fidalgos quinhentistas sao as aparéncias ou exterioridades por onde se possam distinguir da gente humilde. Sobre essa paisagem de decadéncia, deve situar-se a exasperagao nativista de um Antonio Ferreira e 0 “som alto de sublimado” dos Lusiadas. Para esse modo d entender ou de sentir, ndo so os artificios, nem é a imaginagao pura e sem proveito, ou a ciéncia, que podem tornar sublimes os homens. O crédito hé de vir pela mao da natureza, como um dom de Deus, ou pelo exercicio daquele bom senso amadurecido na experiéncia Quanto a poesia portuguesa, a ordem que aceita nao é a que compéem os homens com trabalho, mas a que fazem com desleixo e certa liberdade; a ordem do semeador, nao a do ladrilhador. A visdo do mundo que assim se manifesta, deixou seu cunho impresso nas mais diversas esferas da atividade dos portugueses, mormente no dominio que nos interessa: o da expanséo colonizadora. Nenhum estimulo vindo de fora os incitaria a tentar dominar seriamente 0 curso dos acontecimentos, a torcer a ordem da natureza. ‘Serd instrutivo 0 confronto que se pode tragar entre eles e os outros povos hispanicos. A firia centralizadora, codificadora, uniformizadora de Castela, que tem sua expresso mais nitida no gosto dos regulamentos meticulosos, vem de um povo inteiramente desunido e sob permanente ameaga de desagregagao. Povo que precisou lutar, dentro de suas proprias fronteiras peninsulares. © amor & uniformidade e a simetria surge como um resultado da caréncia de verdadeira unidade. Portugal, por esse aspecto, é um pais comparativamente sem problemas. Sua unidade politica, realizara-a desde o século XIll, antes de qualquer outro Estado europeu modemo, e em virtude da colonizagdo das terras meridionais, libertas do sarraceno, fora-Ihe possivel alcangar apreciével homogeneidade étnica. A essa precoce satisfagao, explica-se como o natural conservantismo, o deixar estar — 0 “desleixo’ — pudessem sobrepor-se tantas vezes entre eles a ambigao de arquitetar 0 futuro, de sujeitar 0 processo histérico a leis rigidas. Restava, sem duvida, uma forga suficientemente poderosa e arraigada nos coragdes para imprimir coesao e sentido espiritual a simples ambigdo de riquezas. ‘Ao menos nas dependéncias ultramarinas de Portugal, 0 catolicismo acompanhou quase sempre o relaxamento usual. Os monarcas portugueses, com o patronato nas terras descobertas, exerceram entre nés um poder praticamente ilimitado sobre os assuntos eclesiasticos, segundo suas conveniéncias momentaneas. A Igreja transformara-se em simples brago do poder secular. Como corporagaio, a Igreja podia ser aliada a até ctimplice fiel do poder civil; como individuos, porém, os religiosos Ihe foram constantemente contrarios. AS constantes intromissées das autoridades nas coisas da igreja tendiam a provocar no clero uma atitude de latente revolta contra as administragdes. Subordinando clérigos e leigos ao mesmo poder por vezes caprichoso e despatico, essa situacéo estava longe de ser propicia a influéncia da Igreja e, até certo ponto, das virtudes cristas na formagao da sociedade brasileira. Os maus padres nunca representaram exceg5es em nosso meio colonial. E os que pretendessem reagir contra 0 relaxamento geral dificilmente encontrariam meios para tanto. Capitulo 5 - O Homem Cordial O Estado nao é uma ampliagdo do circulo familiar nem uma integracao de certos agrupamentos, de certas vontades particulares, de que a familia é o melhor exemplo. Entre o circulo familiar e o Estado existe uma descontinuidade e até uma oposigao. Pertencem a ordens diferentes em esséncia A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendéncia, Nao entender isso gera crises graves que podem afetar profundamente a sociedade. Nas velhas corporag6es formavam-se como se uma s6 familia, partihavam-se das mesmas privagées e confortos. Foi o moderno sistema industrial que suprimiu a atmosfera de intimidade que reinava entre empregadores e empregados e estimou 08 antagonismos de classe. Para o empregador moderno o empregado transforma-se em simples numero: a relago humana desapareceu. Persistem algumas destas familias “retardatarias” concentradas em si mesmas, mas tendem a desaparecer ante as exigéncias imperativas. Teorias modernas, tendem a separar o individuo da comunidade domestica. Essa separagao representa as condig6es primérias para qualquer adaptagao a “vida pratica” A formagao da sociedade segundo conceitos atuais tende a ser precaria onde quer que prospere a idéia de familia, principalmente a de tipo patriarcal. A formagao de homens publicos capazes no Brasil se deveu ao fato de muitos jovens terem saido do seio de suas familias, rompendo-se assim os lagos familiares. No Brasil, onde imperou 0 tipo primitivo de familia patriarcal, o desenvolvimento da urbanizagao ia acarretar um desequilibrio social, cujos efeitos permanecem. ‘Aqueles que foram formados por tal ambiente familiar patriarcal tinham dificuldade de compreender a diferengas entre o piblico e o privado. Para 0 funcionario “patrimonial’ a gestdo politica se apresenta como assunto de interesse particular, © que no deveria acontecer no verdadeiro Estado burocratico. Neste velho estado de coisas, a escolha das pessoas para exercer fungao publica se da mediante confianga pessoal e no segundo critérios de capacidade. Falta a ordenagao impessoal que caracteriza a vida no Estado burocratico. As relagbes que se criam na vida doméstica sempre forneceram 0 modelo obrigatério de qualquer composicao social entre nés. A contribuigao brasileira para a civilizacdo: 0 "homem cordial’ Caracteristicas do homem cordial: - sente pavor em viver consigo mesmo; - para ele, a parcela social, periférica no brasileiro tende a ser o que mais importa; - brasileiros sentem dificuldade de uma reveréncia prolongada ante um superior; - reveréncia sim, desde que nao suprimam possibilidade de convivio mais familiar; - para outros manifestacao normal de respeito, para nds desejo de intimidade; - esse modo de ser reflete-se em nossa inclinagao para emprego de diminutivos; - tendéncia de omissao do nome de familia prevalecendo nome individual; - uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira que poucos estrangeiros entendem com facilidade; - tratamento dos santos com uma intimidade quase desrespeitosa e o proprio Deus é um amigo familiar, doméstico e proximo; - horror as distancias interpessoais e até no campo espiritual; - 0 rigor do rito se afrouxa e se humaniza.

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