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Capitulo 3 “Do ponto de vista dos nativos”: a natureza do entendimento antropolégico I Ha alguns anos, um pequeno escindalo irrompeu na antropologia: uma de suas figuras ancestrais falou a verdade em ptiblico. Como cabe a um ancestral, ele 0 fez postuma- mente, por decisao de sua vitiva ¢ nao dele proprio. Este deslize foi o bastante para que alguns conservadores em nosso meio clevassem a voz € clamassem que a vitiva, tam- bém antropdloga, havia traido o cla, divulgado seus segre- dos, profanado um idolo e decepcionado seus com- panheiros. Um caso tipico de “o que é que as criangas yao pensar?” ¢ isto sem indagar-se o que os leigos iriam pensar... © clamor nao diminuiu com todo este cerimonial de esfrega de maos pois, infelizmente, 0 texto maldito ja tinha sido Publicado. O que realmente aconteceu foi que, mais ou menos como James Watson, que, em The Double Helix, confessou como a biofisica funcionava na pratica, Bronislaw Malinowski, em A Diary in the Strict Sense of the Term, fez com que os relatos oficiais sobre os métodos de trabalho dos antropdlogos parecessem bastante inverossimeis. O mito do pesquisador de campo semicamaleio, que se adapta perfei- tamente ao ambiente exdtico que o rodeia, um milagre ambulante em empatia, tato, paciéncia e cosmopolitismo, | foi, de um golpe, demolido por aquele que tinha sido, talvez, | um dos maiores responsiveis pela sua criacao. O debate que se originou com a publicagao do ditirio concentrou-se, naturalmente, nos detalhes nao essenciais, como era de se esperar, ignorou a questo mais importan- que o livro continha. Grande parte do choque parece ter 85 sido conseqiiéncia da mera descoberta que Malinowski nao era, para expressé-lo de uma forma delicada, um sujcito muito simpatico. Dizia coisas bastante desagradaveis sobre os nativos com quem vivia, e usava palavras igualmente desagradaveis para expressar estes comentirios. Passava grande parte do seu tempo desejando estar em outro lugar. E projetava uma imagem de total intolerancia, talvez uma das maiores intolerancias do mundo. (Projetava também a imagem de um homem que se consagrara a uma vocagao estranha a ponto de se auto-sacrificar por cla, mas isso notava-se menos.) Com tudo isso, baixou-se 0 nivel do debate, concentrando-o no carater — ou na falta de carater — de Malinowski, ¢ ignorando a quest4o profunda e genuina- mente importante que o livro havia levantado, isto é, se nao € gracas a algum tipo de sensibilidade extraordinaria, a uma capacidade quase sobrenatural de pensar, sentir ¢ perceber © mundo como um nativo (uma palavra, que, devo logo dizer, usei aqui “no sentido estrito do termo”) como é possivel que antropélogos cheguem a conhecer a maneira como um nativo pensa, sente € percebe 0 mundo? A questao que o diario introduz, com uma seriedade que talvez s6 um etndégrafo da ativa possa apreciar totalmente, nao é uma questo ética. (A idealizacio moral de pesquisadores de campo €, em si mesma, puro sentimentalismo, quando nao uma forma de autoparabenizar-se ou uma pretensdo exage- rada.) A questao é epistemolégica. Se é que vamos insistir - , na minha opiniao, devemos insistir— que é necessrio que antropélogos vejam o mundo do ponto de vista dos nativos. onde ficaremos quando nao pudermos mais arrogar-nos alguma forma unicamente nossa de proximidade psicolé- gica, ou algum tipo de identificagao transcultural com nos sos sujeitos? © que acontece com o verstehen quando © einfiiblen desaparece? Alias, este problema geral vem sendo tema de intimeros debates na antropologia nos iiltimos dez ou quinze anos: = voz de Malinowski, do timulo, simplesmente dramatizou = questo, tornando-a um dilema humano que passou 2 = 86 mais importante que o profissional. Durante estes anos, as formulagées do problema foram variadas: descrig6es que so vistas “de dentro” versus as que sio vistas “de fora”, ou descricGes “na primeira pessoa” versus aquelas “na terceira pessoa”; teorias “fenomenolégicas” versus “objetivistas”, ou “cognitivas” versus “comportamentais”; ¢, talvez mais comu- mente, andlises “€micas” versus andlises “éticas”, estas tilti- “mas resultando de uma disting4o lingiistica entre as | classificagdes fonémicas ou fonéticas dos sons, de acordo | com suas fungées internas na linguagem, sendo que a foné- | tica os classifica de acordo com suas propriedades actisticas | propriamente ditas. A forma mais simples e direta de colocar (a questao é, talvez, vé-la nos termos de uma distingdo, formulada pelo psicanalista Heinz Kohut para seu proprio uso, entre 0 que ele chamou de conceitos da “experiéncia- proxima” e da “experiéncia-distante”. Um conceito de “experiéncia préxima” é, mais ou me- os, aquele que alguém — um paciente, um sujeito, em nosso um informante ~ usaria naturalmente e sem esforgo 1a definir aquilo que seus semelhantes véem, sentem, nsam, imaginam etc. e que ele préprio entenderia facil- lente, se outros o utilizassem da mesma maneira. Um nceito de “experiéncia-distante” é aquele que especialistas qualquer tipo — um analista, um pesquisador, um etnd- fo, ou até um padre ou um ideologista — utilizam para acabo seus objetivos cientificos, filos6ficos ou praticos. or” é um conceito de experiéncia-préxima; “catexia em objeto” de experiéncia-distante. “Estratificacao social” e, Z para a maioria dos povos do mundo, “religiio” (e amente “sistema religioso”) so de experiéncia-distante; ta” e “nirvana” sao de experiéncia-proxima, pelo menos hindus ¢ budistas. Obviamente, trata-se de uma questio de grau, nao de ico extrema — “edo” € mais experiéncia-préxima que ia” € “fobia” é mais experiéncia-préxima que “ego dist6- ”. E, pelo menos com relagio A antropologia (no caso 87 da poesia ¢ da fisica nao seria o mesmo) a diferenga nao é normativa, ou seja, um dos conceitos nao é necessariamente melhor do que o outro, nem se trata de preferir um em vez do outro. Limitar-se a conceitos de experiéncia-préxima deixaria 0 etndégrafo afogado em miudezas ¢ preso em um emaranhado vernacular. Limitar-se aos de experiéncia-dis- tante, por outro lado, o deixaria perdido em abstracgdes € sufocado com jargées. A verdadeira quest4o - a que Mali- nowski levantou ao demonstrar que, no caso de “nativos”, nao € necessario ser um deles para conhecer um - relacio- na-se com os papéis que os dois tipos de conceitos desem- penham na andlise antropoldgica. Ou, mais exatamente, como devem estes ser empregados, em cada caso, para produzir uma interpretagdo do modus vivendi de um povo que nao fique limitada pelos horizontes mentais daquele povo — uma etnografia sobre bruxaria escrita por uma bruxa = nem que fique sistematicamente surda as tonalidades de sua existéncia — uma etnografia sobre bruxaria escrita por um geémetra. Colocando a questo nestes termos, ou seja, indagando- se qual a melhor maneira de conduzir uma anilise antropo- ldgica e de estruturar seus resultados, em vez de inquirir que tipo de constituicdo psiquica é essencial para antropdlogos, torna-se o significado de “ver as coisas do ponto de vista dos nativos” menos misterioso. Isto nao significa que a questao fique mais facil de responder, nem que a necessidade de perspicdcia por parte do pesquisador de campo diminua Para captar conceitos que, para outras pessoas, sfio de expe- riéncia-préxima, € fazé-lo de uma forma tio eficaz que nos permita estabelecer uma conexao esclarecedora com os conceitos de experiéncia-distante criados por teéricos para captar os elementos mais gerais da vida social, é, sem diivida, uma tarefa tao delicada, embora um pouco menos misterio- sa, que colocar-se “embaixo da pele do outro”. O truque € nao se deixar envolver por nenhum tipo de empatia espiri- mal interna com seus informantes. Como qualquer um de nds, cles também preferem considerar suas almas como 88 suas, e, de qualquer maneira, nao vao estar muito interes- sados neste tipo de exercicio. O que € importante é descobrir que diabos eles acham que esto fazendo, Em um certo sentido, ninguém sabe isto tio bem quanto eles préprios; daf o desejo de nadar na corrente de suas experiéncias, ¢ a ilusdo posterior de que, de alguma forma, © fizemos. Em outro sentido, no entanto, este truismo simples é simplesmente falso. As pessoas usam conceitos de experiéncia-préxima espontaneamente, naturalmente, por assim dizer, coloquialmente; ndo reconhecem, a nao ser de forma passageira € ocasional, que 0 que disseram envolve “conceitos”. Isto é exatamente o que experiéncia-préxima significa — as idéias ¢ as realidades que elas representam esto natural ¢ indissoluvelmente unidas. Que outro nome ‘poderfamos dar a um hipopétamo? E claro que os deuses |sZo poderosos, se nfo fossem, porque os temerfamos? A meu ver, o ctnégrafo nao percebe — principalmente nao é capaz ‘de perceber —aquilo que seus informantes percebem. O que ‘ele percebe, e mesmo assim com bastante inseguranca, € 0 m que”, ou “por meios de que”, ou “através de que” (ou ja 14 qual for a expresso) os outros percebem. Em pais de s, que, por sinal, sao mais observadores que parecem, tem um olho nao € rei, é um espectador. A seguir, para tornar tudo isto um pouco mais concreto, ia de referirme por uns momentos a meu proprio lho, que, sejam quais forem seus defeitos, tem pelo 10s a virtude de ser meu — o que, em discussdes deste . nao deixa de ser uma nitida vantagem. Em todas as wés iedades que estudei intensivamente, a javanesa, a baline- @ marroquina, tive como um dos meus objetivos princi- tentar identificar como as pessoas que vivem nessas des se definem como pessoas, ou seja, de que se © a idéia que elas tém (mas, como disse acima, que sabem totalmente que tém) do que é um “eu” no estilo , balinés ou marroquino. E, em cada um dos casos, chegar a esta nocéo téo profundamente fntima, nao 89 imaginando ser uma outra pessoa — um camponés no arro- zal, ou um sheik tribal ~ para depois descobrir 0 que este pensaria, mas sim procurando, e depois analisando, as for- mas simbélicas — palavras, imagens, instituigdes, comporta- mentos ~ em cujos termos as pessoas realmente se repre- sentam para si mesmas € para os outros, em cada um desses lugares. O conceito de pessoa é, na realidade, um veiculo exce- lente para examinar toda esta questao relacionada com 0 andar por ai, investigando o que passa pela mente alheia. Em primeiro lugar, sentimo-nos razoavelmente seguros para afirmar que algum tipo de conceito desta categoria existe, em forma reconhecivel, entre todos os grupos sociais. Algu- mas vezes, as nocdes qué as pessoas tém sobre o que é ser uma pessoa podem parecer, do nosso ponto de vista, bas- tante estranhas. Uns acreditam que pessoas voam de um lado para outro, durante a noite, na forma de vaga-lumes. Outros acham que elementos essenciais de sua psique, tais como 0 6dio, esto localizados em cérpulos negros e granulares dentro de seus figados, s6 descobertos através de aut6psias. Outros créem compartilhar seu destino com animais doppel- génger, de modo que, quando 0 animal adoece ou morre, eles também adoecem ou morrem. No entanto, é minha experiéncia, que a concepgao do que é um individue huma- no, em contraste com o que é uma pedra, um animal, uma floresta tropical, ou um deus, é um fenémeno universal. Ao mesmo tempo, como estes exemplos selecionados aleatoria- mente sugerem, as concepg6es em questdo variam de um grupo para o outro, e, freqiientemente, existem diferencas profundas entre elas, Por mais que, para nés ocidentais, 2 concepgio da pessoa como um universo cognitivo € motiva- cional delimitado, tinico, e mais ou menos integrado, um centro dinimico de percepcio, emogio, juizos e acdes organizado em uma unidade distinta € localizado em um2 ituagao de contraste com relagdo a outras unidades seme- lhantes, ¢ com seu ambiente social ¢ natural especifico, nos parega correta, no contexto geral das culturas do mundo 90 ela é uma idéia bastante peculiar, Em vez de tentar encaixar a experiéncia das outras culturas dentro da moldura desta | mossa concepcao, que é o que a tao elogiada “empatia” acaba \fazendo, para entender as concepcées alhcias é necessério que deixemos de lado nossa concepeao, e busquemos ver as -experiéncias de outros com relagao 4 sua prdpria concep¢io “eu”. Pelo menos no caso de Java, Bali ¢ Marrocos, esta pedo difere significativamente nao sé da nossa, como mbém ~ de forma nao menos dramatica ¢ com igual valor 0 Em Java, onde trabalhei nos anos 50, estudei uma ilha ena ¢ pobre, que era uma espécie de sede de um adado: duas ruas ensolaradas, prédios de madeira caiados ‘branco, onde funcionavam lojas ¢ esctitérios ¢, atrs , barracos de bambu ainda mais pobres, amontoados denadamente. O conjunto era rodeado por um grande sio-circulo de aldeias densamente povoadas, onde planta- arroz. A terra era pouca, os empregos raros, o sistema 0 instavel, a satide de mA qualidade, os precos subiam, uma, a vida, de um modo geral nao era 14 muito issora. Havia uma espécie de estagnacio agitada na como observei certa vez referindo-me 4 curiosa mistura nentos importados de modernidade e reliquias da ultrapassada que caracterizavam o lugar, o futuro cia quase tio remoto como © passado, No meio deste fio deprimente, no entanto, havia uma vitalidade inte- absolutamente surpreendente, uma verdadeira pai- osdfica, paixio que, além disso, era popular, con- em descobrir, a fundo, os enigmas existenciais. oneses miscraveis discutiam questées relacionadas Base arbitrio, comerciantes analfabetos falavam sobre ades de Deus, lavradores comuns tinham tcorias a relacio entre a razdo ¢ a paixao, a natureza do tempo bilidade dos sentidos. E, talvez ainda mais impor- 91 tante, buscavam, avidamente, respostas para o problema do eu —sua natureza, sua funcio e seu modus operandi — com um tipo de intensidade reflexiva que, entre nds, encontra- mos somente em ambientes altamente sofisticados. As idéias centrais em cujos termos estas reflexdes se desenvolviam e que, portanto, definiam seus limites e 0 significado de “pessoa” para os javaneses, cram dispostas em dois conjuntos contrastantes, que tinham como base a reli- gido: um, entre “dentro” ¢ “fora” ¢ 0 outro entre “refinado” ¢ “vulgar”. Estas palavras s4o, é claro, toscas ¢ imprecisas; a determinagao exata do significado dos termos envolvidos, selecionando suas varias nuangas, era o tema principal das discussdes. No entanto, como um conjunto, elas formavam uma concepgao especifica clo “eu” que, longe de ser simples- mente teérica, era a concepgio através da qual os javaneses realmente se “viam” uns aos outros, ¢ também a si proprios. As palavras javanesas para “dentro”/"fora”, batin e lair (originalmente importadas da tradic&o sufi do misticismo muculmano, mas modificadas localmente) referem-se, por um lado, 3 esfera dos sentimentos na experiéncia humana, €, por outro, a esfera do comportamento humano observa- do. Apresso-me a esclarecer que essas palavras nao tém qualquer conexio com “alma” € “corpo” no sentido que damos a estes termos; para tais conceitos, existem outras palavras em javanés, com implicagées bastante diferentes. Batin, a palavra que significa “dentro”, nao se refere a um local separado de espiritualidade encapsulada, que se des- taca, ou pode ser destacado do corpo, nem mesmo a qual- quer unidade com limites, mas sim a vida emocional dos seres humanos de um modo geral. Consiste no fluxo impre- ciso € mutante dos sentimentos subjetivos, percebido dire- tamente em toda sua proximidade fenomenolégica, mas pelo menos em suas raizes, considerado idéntico para todos 0s individuos, cuja individualidade ele faz desaparecer. Da mesma forma, /air, a palavra javanesa para “fora”, nao tem qualquer relagio com 0 corpo como um objeto, mesmo um 92 objeto de que estamos conscientes. Refere-se mais a partes da vida humana que, em nossa cultura, so estudadas por comportamentalistas radicais — as ages externas, os movi- mentos, a postura, a linguagem falada. Esta também, em sua esséncia, era considerada igual para todos os individuos. Os dois grupos de fenédmenos — sentimentos internos e agdes externas — sio, portanto, considerados nao como fungdes um do outro, mas como esferas independentes do ser, que devem ser postas na ordem apropriada também de forma independente. & em conexao com esta “ordem apropriada” que o contraste entre alus, palavra que significa “puro”, “refina- do”, “polido”, “belo”, “etéreo”, “sutil”, “civilizado” ¢ “suave” € kasar, que significa “indelicado”, “grosseiro”, “nao-civiliza- do”, “4spero”, “insensivel”, “vulgar”, tem sua importincia. A meta do ser humano é ser a/us nas duas esferas do “eu”. Na esfera interior, chega-se ao alus através da disciplina religio- sa, que é bastante, embora nfo totalmente, mistica. Na esfera exterior, chega-se a ser alus por meio da etiqueta, cujas fegras, em Java, 840 extraordinariamente complicadas € tem quase a autoridade de leis. Através da meditagéo, o homem ‘civilizado dilui sua vida emocional até transformé-la em um bido constante; através da etiqueta, ele no s6 protege vida emocional das interrupg6es externas, mas também Jariza seu comportamento externo para que este possa er, aos olhos alheios, previsivel, sereno, elegante, ¢ um junto meio frivolo de movimentos coreografados ¢ ma- iras de falar estabelecidas. Como estes conceitos so também parte de uma ontolo- © estética especificas incluem muitas outras sutilezas rias. Com respeito a nossa problematica — a concep- eu — 0 que temos aqui é uma concepgao bifurcada, uma de suas partes constitufda por sentimentos meio 8, € a Outra por gestos meio sem sentimentos. Um interior de emogo contida e um mundo exterior de ento estruturado se confrontam sob a forma de 93 esferas profundamente distintas entre si, ¢ qualquer indivi duo nada mais é, por assim dizer, que um Jocus tempordrio para este confronto, uma expressdo momentanea da propria existéncia destas duas partes, de sua separacao permanente, ¢ de sua necessidade, também permanente, de serem man- tidas em uma ordem apropriada. Somente quando se pre- sencia, como eu presenciei, um jovem cuja esposa tinha morrido stibita e inexplicavelmente — esta esposa tinha sido criada por ele e fora sempre o centro de sua vida — receber convidados com um sorriso fixo e desculpas formais pela auséncia da esposa, tentando, com técnicas misticas, aplai- nar — como ele mesmo se expressou — as colinas e vales de suas emogées para transformé-las em uma planicie (“é 0 que temos que fazer”, disse ele, “estar plano, por dentro e por fora") pode-se, frente a nossas préprias nogées sobre a intrinseca honestidade de um sentimento profundo, e a importancia moral da sinceridade pessoal, levar a sério esta concepgao do eu, e apreciar este tipo de poder, por mais inacessivel que este Ihe pareca. Hi Bali, onde trabalhei a principio em uma outra cidadezi- nha provinciana, embora um pouco menos mutante e depri- mente, e depois em uma aldeia na regio mais alta da ilha, cujos habitantes eram fabricantes altamente qualificados de strumentos musicais, 6, em muitas coisas, semelhante a Java, cuja cultura compartilhou até o século XV No entanto, em um nivel mais profundo, é também bastante diferente. pois permaneceu hindu, enquanto que Java, pelo menos em nome, se tornou islamica. A vida ritual complexa e obsessiva ~ hindu, budista e polinésia em proporgdes mais ou menos iguais — cujo progresso foi quase interrompido em Java. deixando que seu espirito indico se tornasse reflexivo © fenomenolégico, com tendéncia ao siléncio, como na esto que acabo de descrever, floresceu em Bali atingindo nivess de grandeza e extravagincia tais que assombraram o mundo 94 e tornaram os balineses um povo muito mais teatral, com | uma concepeiio do eu também teatral. O que é filosofia em Java € teatro em Bali. A conseqiiéncia disto € que, em Bali, existe um esforco persistente € sistematico para estilizar todas as formas de expresso pessoal a um ponto tal, que qualquer coisa idios- cratica € caracteristica do individuo por ser cle quem é, sica, psicolégica ou biograficamente, € emudecida, privile- \do-se o papel que ele desempenha no cortejo perma- te, ¢, na visio dos balineses, imutavel, que é a vida linesa. So as dramatis personae, nfio os atores, que sistem; na verdade, sio as dramatis personae, e nao os ores que realmente existem no sentido exato da palavra. jicamente, os homens vao € vém, meros incidentes na storia conjuntural, sem nenhuma importancia real, nem si mesmos. As mascaras que usam, no entanto, o lugar ocupam no palco, os papéis que desempenham, e, ainda is importante, o espeticulo que montam juntos perma- © compreendem nao a fachada, mas sim a substancia coisas, inclusive a do cu. A visio de antigo membro de que Shakespeare tinha sobre a futilidade da acio Ke da mortalidade — o mundo é um palco, e nds somente $ atores, felizes em pavonear-nos, e assim por diante — =o faz sentido em Bali. Nao existe faz-cde-conta; € claro que atores morrem, mas a pega continua, ¢ é o que foi atuado, quem atuou, que realmente importa. Uma vez mais, tudo isto se manifesta através de uma série formas simbédlicas facilmente observaveis, um repertério borado de designacées e titulos, € nao através de um do de espirito geral que 0 antropélogo, em sua suposta satilidade espiritual, consegue de alguma maneira captar. ses tem pelo menos meia dtizia de titulos princi- atribuidos, fixos e absolutos que uma pessoa usaria designar uma outra (ou, € claro, a simesma) como parte eu grupo. Existem marcadores para a ordem do nasci- , termos de parentesco, titulos que determinam a 95 casta, indicadores do sexo, ¢ tecndnimos, ¢ muitos outros mais, ¢ cada um deles constitui, nado um mero conjunto de etiquetas Uteis € ocasionais, mas sim um sistema terminolé- gico distinto, delimitado ¢ internamente muito complexo. Quando se usa uma dessas designagdes ou um desses titulos (ou, como é mais comum, varios deles) referindo-se a al- guém, define-se este alguém como um ponto determinado em uma estrutura fixa, o ocupante tempordrio de um locus cultural, bastante permanente e especifico. Identificar al- guém em Bali, seja o proprio sujeito ou uma outra pessoa, é determinar seu lugar em um elenco conhecido de perso- nagens ~ “rei”, “avd”, “o terceiro filho”, “bramane” — que inevitavelmente compéem o drama social, como se este fosse nada mais que alguma pega - do tipo de Charley's aunt ou Springtime for Henry — exibida pelas estradas por um. grupo de saltimbancos. O drama nio é, obviamente, uma farsa, ¢ principalmente no € uma farsa de travestis, embora nele existam elementos de ambas. E uma representagao da hicrarquia, um teatro do status. Infelizmente, neste ensaio, nao nos é possivel descre- ver as caracteristicas desta representacao, embora entendé- la seja essencial para compreender os balineses. Aqui, nos limitaremos a dizer que, tanto em sua estrutura, como na forma em que operam, os sistemas terminolégicos condu- zem a.uma visio da pessoa humana como um representante adequado de um tipo genérico, ¢ nao como uma criatura Yinica, com um destino especifico. Acompanhar este proces- 50, OU seja, como os sistemas terminolégicos tendem a obscurecer as materialidades — bioldgicas, psicolégicas ¢ hist6ricas — da existéncia individual, privilegiando as quali- dades padronizadas do status, exigiria uma andlise extensa. Talvez um tinico exemplo, simplificando ainda mais a parte mais simples do processo, possa ser suficiente para dar uma idéia de seu funcionamento. Todos os balineses recebem aquilo que poderiamos cha- mar de nomes relativos 4 ordem do nascimento. Estes sao 96 quatro: “o primeiro, o segundo, o terceiro ¢ o quarto natos. Depois disso, inicia-se outra vez a série, € os filhos que Mascerem em quinto e sexto lugar, serao, outra vez, chama- dos, respectivamente, de primeiro e segundo natos. Além | disso, os nomes sio dados irrespectivamente ao destino que tenham as criancas. Assim, criancas que morrem, mesmo as que morrem ao nascer, entram na nomenclatura, e, portan- fo, em um pais onde existem ainda altos indices de natalida- e de mortalidade infantil, os nomes, por si s6s, nao dio ima idéia muito confidvel da ordem de nascimento verda- de individuos concretos. Em um grupo de irmdos, guém que é chamado de primeiro-nato, pode, na realida- ter nascido em primeiro, quinto, ou nono lugar, ou, se orreu alguma crianga, em qualquer lugar intermediario ntre estes trés; ou alguém com o nome de segundo-nato de ser, na verdade, o mais velho. A nomenclatura da :m de nascimento nao identifica individuos como indi- ios, nem é esta sua intengao; o que faz é sugeric que em dos os casais que procriam os nascimentos formam uma sso circular de “primciros”, “segundos”, “terceiros” € os”, uma réplica continua ¢ em quatro estagios de uma imperecivel. Fisicamente, os homens aparecem ¢ de- ecem como coisas cfémeras que so, mas, socialmente, eros que Os representam permanecem eternamente smos, Amedida que novos “primeiro-natos” ou “segun- satos” emergem do mundo atemporal dos deuses para ir aqueles que, ao morrer, dissolvem-se, uma vez naquele mundo. Eu diria que todos os sistemas de s e designacdes funcionam da mesma maneira: eles entam os aspectos da condicéo humana que estéo ligados ao passar do tempo, como meros ingredientes m presente eterno que os ilumina como as luzes em featro. em mesmo a sensacio que os balineses tém de estar em um palco é assim tao vaga ¢ inefavel. Ela é ssa com exatiddo por um de seus conceitos de “expe- proxima” mais comuns: o /ek. Lek foi traduzido de 97 varias maneiras, na maioria das vezes incorretamente (“ver- gonha” é uma das traducdes mais conhecidas), mas seu significado mais aproximado é algo assim como 0 que cha- mamos de “nervosismo de ator”. O nervosismo de ator, como sabemos, consiste naquele medo que atores sentem de que, por falta de técnica ou de autocontrole, ou talvez por um simples acidente, nado sejam capazes de manter a ilus4o estética, deixando, assim, que 0 ator aparega por tras do papel que desempenha. Se falha a distancia estética, 0 ptiblico (€ 0 ator) perdem de vista Hamlet e em seu lugar, para desconforto geral, véem um gaguejante John Smith que alguém erroneamente colocou para fazer o papel de princi- pe da Dinamarca. Em Bali, acontece o mesmo: o que se teme € que 0 desempenho, em ptiblico, do papel para o qual fomos selecionados por nossa posicéo cultural, seja um fracasso, ¢ que a personalidade do individuo — ou o que nés ocidentais chamariamos de personalidade, j que os baline- ses nao o fariam, pois nao acreditam nisso — se rompa, dissolvendo sua identidade publica estabelecida. Quando isso acontece, como as vezes acontece, sente-se a proximi- dade do momento com uma intensidade excruciante, ¢ as pessoas, stibita e relutantemente, tornam-se criaturas reais, mutuamente constrangidas, como se, de repente, tivessem se flagrado nuas. E o medo do faux pas, que se torna muito mais provavel devido 4 ritualizagao extraordinaria da vida cotidiana, que mantém o intercimbio social sobre trilhos deliberadamente estreitos, e protege o sentido teatral do eu da ameaca destruidora implicita naquela proximidade € espontaneidade, que nem mesmo 0 cerimonial mais exacer- bado pode eliminar totalmente dos encontros face a face do cotidiano. IV Marrocos, Oriente Médio € clima seco, em vez de Asia Oriental e clima timido. Extrovertido, fluido, ativo, masculi- no, exageradamente informal. Um tipo do oeste selvagem 98 de filmes americanos sem os bares € os vaqueiros. Um outro tipo de “eus” completamente diferentes. Meu trabalho ali, que comecou em meados dos anos 60, concentrou-se em uma cidade de tamanho médio, aos pés da cordilheira de Atlas, cerca de umas vinte milhas ao sul de Fez. O lugar é antigo, fundado provavelmente no século X, planejado até mesmo antes disso. Ainda conserva os muros, os portées, 0s minaretes estreitos que se elevam até as plataformas de onde os fiéis sto chamados para a oracao, todos elementos carac- teristicos de uma cidade muculmana clissica. Pelo menos a distancia, o lugar é bastante bonito: uma forma oval irregular _ profundamente branca, localizada em um oasis onde cres- cem oliveiras de um verde de fundo de mar. As montanhas, que ali so cor de bronze e de pedra, se elevam por tras deste oasis. Vista de perto, a cidade € menos imponente, mas mais estimulante: um labirinto de passagens ¢ ruclas, trés quartos quais sem saida, rodeado por prédios que tém a aparén- de muros ¢ lojas a beira das calgadas, tudo isso repleto uma variedade simplesmente surpreendente de seres os extremamente simpaticos. Arabes, berberes e ju- alfaiates, boiadeiros e soldados; pessoas que saem dos it6rios, dos mercados, das tribos; ricos, super-ricos, po- © superpobres; nascidos no local, imigrantes, imitagoes \ceses, medievalistas acirrados, e em algum lugar, de com 0 censo oficial do governo para 1960, um piloto , judeu e desempregado. Nas casas, um dos grupos ‘espléndidos de individuos fortes e vigorosos que jamais lado de Sefrou (este € o nome da cidade) Manhattan quase monétona. nenhuma sociedade consiste unicamente de ex- anénimos que se tocam ¢ ricocheteiam como bolas ¢ 0s marroquinos também tém seus meios simbé- separar gentes umas das outras ¢ de identificar 0 significa ser uma pessoa. Um dos meios mais — que nfo € 0 tinico, mas que eu considero o te ¢ sobre o qual gostaria de falar neste ensaio forma lingiiistica peculiar chamada, em drabe, de 99 nisba. A palavra deriva de uma raiz tiliteral, n-s-b, para “atribuigao”, “imputacdo”, “relacdo”, “afinidade”, “correla- Ao”, “conexao”, “parentesco”. Assim, NsT quer dizer “pa- rente por afinidade”; nsab significa “atribuir ou imputar a”; “mundsaba” quer dizer “uma relacdo”, “uma analogia’, “uma correspondéncia”; mansizb quer dizer “pertencer a”, “fazen- do parte de”, e assim por diante, com cerca de uma diizia de derivados, desde nassdb, (“genealogista”) até nisbiya (“re- Jatividade [fisica]”) A palavra nisba, propriamente dita, refere-se portanto a um processo de combinagio morfolégica, gramatical € se- m/ntica que consiste em transformar um substantivo naqui- lo que nds chamarfamos de adjetivo relativo, mas que, para os drabes, € simplesmente um outro tipo de substantivo, acrescentando-se i (ou iya, na forma feminina); Sefru/Sefrou: sefruwi/filho nativo de Sefrou; Sus/tegido do sudoeste mar- roquino ~susi/homem nascido nessa regiao Beni Yazga/uma tribo perto de Sefrou ~ Yazgihum membro dessa tribo; Ya- bud/o povo judeu como um povo, Yabudi/um tinico judeu; Adlun/sobrenome de uma familia importante em Se- frou/Adlunifam membro dessa familia. Este procedimento nfo se limita a esta simples “etnizagao” de substantivos, mas também pode ser utilizado com uma variedade enorme de palavras para atribuir relagdes de propricdade as pessoas. Por exemplo, ocupagio (brar/seda — brari/mercador de seda), seita religiosa (Dargawa/ima irmandade mistica — Darquawijum adepto desta irmandade ou um estado espi- ritual), (Ali/o genro do Profeta - Alawi/um descendente do genro do Profeta, ¢, por conseguinte, também do préprio Profeta). Uma vez formadas, as nisbas s40 normalmente incorp> radas aos nomes pessoais — Umar Al-Buhadiwi/Umar da tribe Buhadu; Muhammed Al-Sussi/Muhammed da regiao Su: este tipo de classificacdo adjetival atributiva é gravada publ camente como parte da identidade de um individuo. NS pude encontrar sequer um caso em que um individuo foss conhecido, ou dele se soubesse alguma coisa, mas nao se soubesse sua nisba. Na verdade, € mais provavel que os habitantes de Sefrou ignorem 0 padrao econdmico de um homem, sua faixa etéria, seu carter pessoal, ou onde ele vive, do que sua nisba, ou seja, se ele é Sussi ou Sefroui Buhadiwi ou Adluni, Harari ou Darqawi. (Com relacio a mulheres que nao sejam parentes, a nisba seria provavel- mente a nica coisa que um homem saberia delas ~ ou, para ser mais exato, a tinica coisa sobre elas que lhe seria permi- tido conhecer.) Os “eus” que se atropelam e se acotovelam nas ruclas de Sefrou adquirem sua definigao através das relacdes associativas com a sociedade que os circunda, rela- Ges essas que thes so atribuidas. S40 pessoas contextuali- zadas. | Asituacdo, no entanto, é ainda mais complicada; nisbas tornam os homens relativos a seus contextos, mas, como os proprios contextos sao relativos, as nisbas também passam ser relativas, ¢ tudo, por assim dizer, é, portanto, elevado uma segunda poténcia - relativismo ao quadrado. Assim, um nivel, todos os nascidos em Sefrou tém a mesma a, OU pclo menos em potencial - isto é, todos sao ui. No entanto, na prépria cidade, esta nisba, justamen- jue nao discrimina, nao sera nunca utilizada como > de uma designacio individual. $6 fora de Sefrou a com este contexto especifico passa a ser capaz de car um individuo em particular. Em Sefrou, portanto, 4 Adluni, Alawi, Meghrawi, Ngadi, ou qualquer outra deste nivel. E dentro de cada uma destas categorias exatamente a mesma coisa. Ha, por exemplo, doze rentes (Shakibis, Zuinis ¢ outras) através das quais Alawis, em suas regides, se distinguem entre si. 0 processo esta longe de ser regular; que nivel ou nisba sera usado, ou parecer relevante ou apropria- Os que as usam, é claro), dependeré totalmente da Um conhecido meu que morava em Sefrou € tr ‘em Fez, mas era origindrio de uma tribo Beni Yazgha 101 das proximidades — além disso era da subsubfragao Wulad Ben Ydir, da subfragio Taghut da linhagem Hima ~ era conhecido como Sefroui por seus companheiros de trabalho em Fez, como Yazghi, por todos os nao Yazghis em Sefrou, como Ydiri por todos os outros Beni Yazghas que por ali viviam, a nao ser por aqueles que vinham, eles préprios, da fragao Wulad Ben Ydir. Estes 0 chamavam de Taghuti, en- quanto que, € claro, os outros poucos Taghutis o chamavam de Himiwi. Em Marrocos, as nisbas paravam ai, mas Marro- cos nao € o limite até onde podem ir. Se, por acaso, nosso amigo viajasse para o Egito, ele se transformaria em um Maghrebi, a nisba formada com a palavra que, em arabe, significa Africa do Norte. A contextualizac4o social das pes- soas € difusa, ¢ na sua maneira curiosamente nao-metddica acaba sendo sistematica. Os homens no flutuam como entidades psiquicas fechadas, que se destacam de seu con- texto e recebem nomes individuais. Por mais individualistas ¢ até obstinados que sejam os marroquinos — e na verdade © sao -, sua identidade é um atributo que tomam empresta- do do cenario que os rodcia. Como o tipo de bifurcacao fenomenol6gica da realidade dos javaneses, com seus dentroffora € suave/tosco, e 0 sistema de titulos dos balineses que absolutiza, 0 modo nisba de olhar as pessoas ~ como se estas fossem contornos a espera de serem preenchidos — nao € um costume isolado € sim parte de um tipo de estrutura que abrange toda a vida social. Esta estrutura, como as de Java e Bali, também é dificil de ser caracterizada de forma sucinta. Mas um de seus elementos principais é, certamente, 0 fato de que existe, em situagdes ptiblicas, uma promiscuidade confusa de ums variedade de seres humanos que, na sua vida privada cuidadosamente segregados: um cosmopolitismo exace= bado nas ruas, ¢ um comunalismo estrito dentro de casa (G2 qual a famosa segregacao das mulheres é apenas 0 exemple mais Obvio). Este é 0 chamado sistema mosaico de organiz= cdo social freqiientemente considerado caracteristico ae Oriente Médio como um todo: fragmentos de formas ¢ com 102 diferentes que sao encaixados irregularmente para gerar um desenho global complexo, no qual a diferenga individual de cada fragmento permancce intacta. Sendo diversa mais do que qualquer outra coisa, a sociedade marroquina nao ad- ministra sua diversidade fixando-a em castas, isolando-a em tribos, dividindo-a em grupos étnicos, ou cobrindo-a com algum conceito denominador-comum como a nacio- nalidade, embora todos estes sistemas tenham sido experi- mentados de forma esporadica. Gerenciam a diversidade distin- guindo, com uma precisao elaborada, os contextos — “omatriménio, a devocao religiosa e, até certo ponto, a dieta, as leis ¢ a educagdo — nos quais os homens sao segregados \por suas diferencas; € outros ~ 0 trabalho, a amizade, a politica ¢ 0 comércio — onde, ainda que com desconfianca e ndicionalmente, sao unidos por elas. Para este tipo de estrutura social, uma concepgao do cu @ marca a identidade publica contextualmente e relati- ticamente, mas o faz em condicées — tribais, territoriais, iifsticas, religiosas ¢ familiares — que se desenvolvem nas ras privadas e estabelecidas da vida, onde tém uma onincia profunda ¢ permanente, parece ser particu- ente apropriada. Na verdade, parece que a propria itura social cria esta concepgao do eu, jé que produz des onde as pessoas interagem em termos de catego- cujo significado é quase totalmente posicional, um lugar mosaico global, que deixa de lado, como algo que deva ‘cuidadosamente escondido em apartamentos, templos € , 0 contetido substantivo das categorias, ou seja, 0 que significam subjetivamente como modos de vida experi- los. As discriminag6es da nisba podem ser mais ou especificas, indicar o local do fragmento no mosaico a aproximada ou exata, ¢ adaptarse a quase todos de mudangas de circunstancias. Nao podem, porém, sito mais que uma idéia geral, um esboco ou contorno ¢ cardter dos homens a quem os nomes so atribui- ‘Chamar um homem de Sefroui € como chama-lo de 103 franciscano: 0 nome o classifica, mas no estabelece como ele é; localiza-o, sem retraté-lo. £ justamente esta capacidade do sistema de nisbas - a de criar um contorno no qual as pessoas podem ser inseridas de acordo com caracteristicas que, supostamente, Ihe so inerentes (fala, sangue, fé, proveniéncia, e outras mais), ¢ a0 mesmo tempo minimizar o impacto que estas caracteristicas tém na determinacio de relacdes praticas entre essas pes- soas em mercados, lojas, escritérios, no campo, em cafés, banhos piiblicos, ¢ estradas — que o torna t4o essencial para a concepgao marroquina do eu. A categorizacio do tipo nisba conduz, paradoxalmente, a um hiperindividualismo nas relacées ptiblicas, pois, ao prover unicamente um con- torno vazio € até mesmo mutante de quem sido os atores — Yazghis, Adlunis, Buhadiwis, ou seja 4 quem for —deixa todo © resto, ou seja, praticamente tudo, para ser preenchido no préprio processo de interagao. O que faz 0 mosaico funcio- nar é a certeza de que podemos ser completamente pragma- ticos, adaptaveis, oportunistas, e, de um modo geral ad hoc em nossas relagdes com outros — uma raposa entre raposas, um crocodilo entre crocodilos — tanto quanto quisermos, sem nenhum risco de perder 0 sentido de quem somos. A nao ser na intimidade da procriagdo e da oracdo, o “eu nunca est em perigo porque somente suas coordenadas foram declaradas. Vv Sem tentar dar nés em umas quantas dtizias de pontas que, durante estes relatos apressados sobre o significado do cu para cerca de noventa ¢ nove milhdes de pessoas, nao s6 deixei penduradas, mas certamente desfiei ainda mais, re- tornemos ao ponto principal, que € saber exatamente o que tudo isso nos diz — ou poderia dizer, se explicado de forma adequada — sobre “o ponto de vista dos nativos” em Java, em Bali ¢ no Marrocos. Ao descrever 0 uso de simbolos, estare- mos também descrevendo percepgées, sentimentos, pon- 104 tos de vista, experiéncias? Se afirmativo, em que sentido? O- que € exatamente que afirmamos quando declaramos com- preender os meios semiéticos através dos quais, nesses casos, as pessoas se definem € sao definidas pelas outras: que entendemos as palavras ou que entendemos as mentes? Para responder a esta pergunta, creio ser necessério, primeiramente, observar que o movimento intelectual carac- teristic, ¢ o ritmo conceptual interno de cada uma dessas andlises, ¢ até de todas as andlises semelhantes — mesmo as de Malinowski ~ é um bordejar dialético continuo, entre o menor detalhe nos locais menores, ¢ a mais global das estruturas globais, de tal forma que ambos possam ser observados simultancamente. Na tentativa de descobrir 0 significado do eu para os javaneses, balineses ¢ marroqui- nos, oscilamos incansavelmente entre um tipo de miudeza | ex6tica que faz com que a leitura da melhor das etnografias | scja uma tortura (antiteses léxicas, esquemas de categoriza- 40, transformag6es morfofonémicas), e caracterizacgées tao abrangentes que —a no ser pelas mais comuns ~ se tornam tanto implausiveis (“quietismo”, “dramatismo”, “contex- ismo”). Saltando continuamente de uma visao da totali- ic através das varias partes que a compoem, para uma das partes através da totalidade que € a causa de sua éncia, ¢ vice-versa, com uma forma de mogio intelectual étua, buscamos fazer com que uma seja explicac4o para a. Tudo isso é, claramente, a trajetéria, ja bastante conhe- do método que Dilthey chamou de circulo hermenéu- Minha intengao aqui foi mostrar que ela € t4o essencial interpretagGes etnograficas como para interpretagdes arias, histéricas, filolégicas, psicanaliticas, ou biblicas, ‘mesmo para anotagées informais sobre aquelas expe- cotidianas que chamamos de bom senso. Paraacom- ‘um jogo de beisebol temos que saber o que é um ‘uma bastonada, um turno, um jogador de esquerda, de pressdo, uma trajetoria curva pendente, ¢ um 105 centro de campo fechado, ¢ também como funciona 0 jogo que contém todos estes elementos. Quando, em uma expli- cation de texte, um critico como Leo Spitzer tenta inter- pretar a “Ode sobre uma urna grega” de Keats, ele se pergunta repetida e alternativamente duas questées: “Sobre o que € este poema?” e “O que é, exatamente, que Keats viu (ou decidiu mostrar-nos) desenhado na urna que ele descre- ye?”, ¢ chega ao final de uma espiral ascendente de observa- des gerais ¢ comentérios especificos com uma leitura do poema que o interpreta como uma afirmacao do triunfo da percepcao estética sobre a hist6rica. Da mesma forma, quan- do um etndgrafo de significados e simbolos como eu tenta descobrir 0 que é uma pessoa na visao de algum grupo de nativos, ele vai ¢ vem entre duas perguntas que faz a si mesmo: “como é a sua maneira de viver, de um modo geral?” e “quais sao precisamente os veiculos através dos quais esta maneira de viver se manifesta?” chegando ao fim de uma espiral semelhante com a nog&o de que eles consideram o eu como uma composicio, uma persona, ou um ponto em uma estrutura. Nao poderemos entender o significado de Jek a nao ser que entendamos 0 que é 0 dramatismo balinés, da mesma maneira que nao saberemos o que é uma huva de apanhador se nao conhecemos 0 jogo de beisebol. Ou nao entenderemos o que significa uma organizacio social mosai- casem saber o que éa nisba, exatamente como nao é possivel compreender 0 platonismo de Keats, sem ser capaz de captar — para usar a propria formulagao de Spitzer — “o fio do pensamento intelectual” contido em fragmentos de frases como “a forma de Attic”, “a forma silenciosa”, “noiva da tranqiiilidade” “pastoral fria”, “sil@ncio e tempo lento”, “ci- dadela em paz”, ou “cantigas sem nenhum tom”. Em suma, é possivel relatar subjetividades alheias sem recorrer a pretensas capacidades extraordindrias para obli- terar o préprio ego € para entender os sentimentos de outros seres humanos. Possuir ¢ desenvolver capacidades normais para estas atividades é, obviamente, essencial, se temos esperanca de conseguir que as pessoas tolerem nossa intru- 106 sao em suas vidas ou de que nos aceitem como seres com quem vale a pena conversar. Nao estou, em hipotese alguma, defendendo a falta de sensibilidade, e espero nao ter dado esta impressao. Mas seja qual for nossa compreensao — correta ou semicorreta — daquilo que nossos informantes, por assim dizer, realmente sao, esta nao depende de que tenhamos, nés mesmos, a experiéncia ou a sensacao de estar sendo aceitos, pois esta sensagao tem que ver com nossa propria biografia, nao com a deles. Porém, a compreensiao depende de uma habilidade para analisar seus modos de xpressao, aquilo que chamo de sistemas simbdlicos, e 0 Sermos aceitos contribui para o desenvolvimento desta ha- Bilidade. Entender a forma e a forca da vida interior de ativos — para usar, uma vez mais, esta palavra perigosa — ‘parece-se mais com compreender o sentido de um provér- ‘Bio, captar uma alusdo, entender uma piada — ou, como Sugeri acima—interpretar um poema, do que com conseguir ‘ma comunhio de espiritos.

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