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Primeira Parte AS RELAGCES DE PRODUGAO NA AGRICULTURA | — A Cafeicuttura 0 Munic(pio de Sertdozinho surgiu na confluéncia de vérios processos combinados: a expansio acelerada da cafeicultura ao longo do oeste pautista; 0 declinio final do regime de trabalho escravo; a aceitagdo, generalizacéo e valorizacdo positiva do regime de trabalho livre; a imignagdo de trabalhadores europeus, principalmente italianos, para trabalhar nos cafezais. A medida que a formagao social capitalista se constitufa e generalizava, com base na forma de trabalho fornecida pelo trabalhador ivre, extinguia-se a escravatura, intensificava-se a imigracdo de trabalhadores e expandiam-se os cafezais. Sertozinho formou-se com a expansdo do capitalismo no mundo agrério. E exprimiu bastante bem o cardter da economia e sociedade constru(das pela cafeicultura no oeste paulista. Sertéozinho formou-se nos quadros da grande expansio cafeeira de fins do século XIX e primeiros décadas do século XX. Em Sertdozinho, 0 ciclo do café comecou em torno de 1880 ¢ encerrou-se cerca de 1930. Ao longo dessa época, natural mente houve altos e baixos na vida econdmica de Sertdozinho. Houve crises de superprodugao, geadas, secas e empobrecimento das terras, que afetaram mais ou menos seriamente a sua cafeicultura. Em certos momentos, iniciaram-se ou desenvolveram-se culturas tais como a do algodio e a da cana-de-acticar, além de outras. Inclusive iniciaram-se ou desenvolveram-so algumas atividades artesanais e fabris, principalmente relacionadas com a producdo e reparagdo de instrumentos e equipamentos necessérios & producao agricola. Formou-se e desenvolveu-se o setor de servicos, transporte e comercio, para atender aos grupos sociais mais ou menos vinculados ao mundo agrério. £m 1900, a populacdo do Municipio de Sertaozinho alcangava um total de 10. 940 pessoas; em 1920 essa populacdo chegava a 30.517. Em 1940, devido a desmembramentos havidos no Municfpio e também por causa das mudancas em curso na vida econémica local, a populacdo reduziu-se a 21.290'. No conjunto, no entanto, entre 0s anos 1880 e 1930 o Municipio de Sertdozinho esteve bastante influenciado pela cafeicultura. ‘Antes de 1880, houve alguns cafezais na drea; mas houve também gado e plantagdes de género alimenticios. Ao lado de grandes propriedades inexploradas, ou pouco exploradas, havia sitios e propriedades médias. A érea fora ocupada, desde meados do Século XIX, por criadores, agricultores e comerciantes de terras vindos do oeste pauiista, das vizinhangas de Minas Gerais e de outras partes. Nas primeiras épocas da ocupacdo das terras da drea, quando Sertdozinho foi fazenda, arraial, freguesia € distrito de paz de Ribeirdo Preto, houve af uma economia agropecuaria diversificada e pouco vinculada a0 mercado. Na década dos oitenta, 0 café tomou conta da vida econémica da drea que passou a fazer parte do Municfpio de SertZozinho; da mesma forma que jé tomara conta, ou estava tomando conta, 5 das terras devolutas, fazendas e sitios em toda regio que circunda Ribeiro Preto. Esse é 0 contexto ‘em que surge 0 Munic(pio de Sertdozinho. © Municfpio de Sertozinho surge no contexto histérico que poderfamos denominar um “segundo este paulista’, em alusao ao primeiro oeste paulista centrado em Campinas. Sim, em termos hist6ricos houve um oeste paulista que englobava cidades como Campinas, Itu, Limeira e outras. Esse foi o oeste que influenciou decisivamente a poltica de substituico do trabalho escravo pelo livre e a queda da Monarquia. Foi principalmente a burguesia agréria dessa 4rea que realizou a Convencdo Republicana de !tu (1873), participou da abolic¢go da escravatura (1888) e acabou assumindo o poder republicano depois da queda da Monarquia (1889). Campinas era a cidade mais importante desse este paulista, por sua producao cafeeira e populagdo. “E de Campinas... que parte a expansdo cafeeira que se alastraré pelo oeste paulista’?. Nesta cidade, em 1872, chegaram os trilhos da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. O “segundo oeste” paulista (a rigor a0 norte do Estado de So Paulo), ao qual pertence Sertiozinho, pode ser centrado em Ribeirao Preto, onde a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro chegou em 1883. “O café de Ribeirdo Preto (centro da regio) se torna mundialmente famoso’”?. Em 1898 um ramal da Mogiana alcanga Sertéozinho, colocando a sua cafeicultura e a sua vida econdmica, politica e social em contato répido e permanente com os centros dindmicos da economia do café. Esta nova regio cafeeira jé é beneficidria da extingdo da escravatura, da proclamacao da Republica, da expansdo ferro e da imigragao européia estimulada e orientada em grande parte pela burguesia que se havia organizado econémica e politicamente com base no primeiro oeste paulista. A medida que a fronteira econémica caminhava para o ceste e 0 norte, plantando cafezais, plantavam-se fazendas, sedes de fazendas, colénias, vilas e cidades, Sertdozinho tornou-se munic{pio nesse contexto histérico-geogréfico, em 1896, ao desmembrar-se de Ribeiro Preto. Nesse momento, 6 um munic{pio plantado de fazendas de café, nas quais passa a predominar o imigrante italiano. ‘A marcha do café, ao longo do oeste e norte paulistas, formou fazendas e cafezais, coldnias e casas grandes, vilas e cidades. Toda uma sociedade agrdria de base capitalista formou-se na regi Desde fins do Século XIX e ao longo das trés primeiras décadas do século XX, a producdo cafeeira predominou sobre todas as outras (algodio, cana, géneros aliment/cios etc.) e marcou decisivamente a vida econémica, politica e cultural do Municipio de Sertdozinho. De acordo com a crémica do lugar, foi af que surgiram os principais reis do café brasileiro: Henrique Dumont, Francisco Schmidt e Geremia Lunardelli. Conforme escreveu Roberto C. Simonsen: “A penetracdio da Mogiana para além de Casa Branca abriu exploracéo a extraordinéria gleba de terra roxa de Ribeiro Preto, onde se verificou a maior produtividade até entdo registrada, estendeu-se os cafezais, dentro em pouco, por S80 Simao, Cravinhos, SertZozinho e Ribeiro Preto, Formaram-se, nessa zona, as grandes fazendas dos Francisco Schmidt, dos Dumont, dos Prado, em Guataparé e Sdo Martinho, dos Junqueira, dos Cunha Bueno, dos Lacerda Soares, e de tantos outros eminentes lavradores paulistas’.* De acordo com 0 relato de Antonio Furlan Junior; “‘presume-se que a Fazenda mais antiga de café em terras de ‘Sertéozinho tenha sido a Fazenda Santa Maria (atual S40 Martinho). Foi aberta pelo Capitéo Gabriel Junqueira antes de 1870, pois deixou por ocasiéo do seu falecimento em 1873, perto de 70.000 pés de café jd formados, que chegararn a produzir naquela época 400 arrobas por mil és’. A medida que avancava, a monocultura cafeeira provocava a reorganizacdo e a dinamizacdo das forgas produtivas. Ao mesmo tempo que se instaurava o regime do trabalho livre, criava-se 0 mercado local, vinculado ao da regio e aos centros dindmicos do pafs. Nesse processo, a terra devoluta é transformada em propriedade privada. Os artigos publicados por Luis Pereira Barreto e Martinho Prado Junior, sobre as exceléncias da terra roxa de Sertdozinho e outros lugares do segundo oeste paulista faziam parte do processo de transformacao da terra devoluta em elemento da empresa agrfcola. Simultaneamente, & medida que avangava a monocultura cafeeira, ocorria a ocupaggo ou concentracdo da propriedade fundidria. Nas fazendas de café, as quantidades se medem por milhares e milhdes os alqueires de terra, os pés de café, as sacas produzidas, os colonos importados. “Os cafeicultores, no incontido entusiasmo de estender seus cafezais, iam adquirindo 08 s{tios vizinhos e as terras confrontantes. Foi assim que as pequenas propriedades foram diminuindo para se incorporaren: na formagSo de médias e grandes fazendas. No decurso dos anos ia 6 de 1880 2 1890, o maior comprador de terras e de pequenas propriedades foi o Dr. Henrique Dumont, no principio e depois a Cia. Agricola Fazendas Dumont... De 1890 a 1900 0 maior comprador de terras e pequenos s{tios de diversos proprietérios foi o Cel. Francisco Schmidt”, que comprou pelo menos onze fazendas. Em 1917, a maior proprietéria de cafezais era a Cia. Agricola Francisco Schmidt, com 3.575.128 pés de café. “Naquela época, a cultura cafeeira de Sertozinho estava indiscutivelmente ligada aos nomes do Cel. Francisco Schmidt, Cia. Agricola Fazendas Dumont e Cia Agricola Martinho Prado. Estas 3 firmas perfaziam a soma de 8.420.971 cafeeiros, 50% da cultura cafeeira do Municipio”®. Como sugerem esses dados, 4 medida que avangava a monocultura cafeeira, ocorria a ocupagdo e concentracdo da propriedade fundidria e a formacdo de grandes empresas agricolas. A medida que avancava a monocultura cafeeira, ocorriam esses dois processos simultaneos, no tocante a propriedade da terra. Por um lado, as fazendas de café eram formadas pela compra ou anexacdo de sitios e fazendas preexistentes no lugar. Criadores e agricultores, grandes ou pequenos, eram induzidos a vender, entregar ou converter suas terras em cafezais. Nesse sentido, houve alguma concentracdo da propriedade fundidria. Por outro lado, a cafeicultura propiciou a apropriagao privada das terras devolutas dispon na regio. Mas essa apropriacdo, em geral, foi realizada por meio da compra das terras. ‘A propésito das terras devolutas, a legislacao do Império cuidava que as terras ndo estivessem demasiado disponiveis a quaisquer interessados. Houve a preocupagdo de encarecé-las, para evitar que os trabalhadores livres viessem a tornar-se facilmente proprietérios, fugindo assim a condi¢o de vendedores de forca de trabalho. J em 1842, uma recomendacdo governamental sugeriu que era necessério tornar mais custosa a aquisi¢go de terras, a fim de fixar trabalhadores livres nas plantagdes. “Como a profuséo em datas de terras tem, mais que outras causas, contribu/do para a dificuldade que hoje se sente de obter trabalhadores livres é seu parecer que de ora em diante sejam as terras vendidas sem exce¢do alguma. Aumentando-se, assim, o valor das terras e dificultando-se conseqiientemente a sua aquisicao, é de esperar que 0 imigrado pobre alugue © seu trabalho efetivamente por algum tempo, antes de obter meios de se fazer proprietdrio””. O espirito e a letra dessa recomendagao foram adotados pela Lei n9 601, de 18 de setembro de 1850, que esteve na base de todo 0 proceso de imigracdo e colonizacgo havida no pafs durante a segunda metade do século XIX; em especial até a queda do governo monérquico. Conforme estabelecem dois artigos dessa lei: “Ficam proibidas as aquisiges de terras devolutas por outro titulo que nao seja o de compra” (Art. 19. “Fica 0 governo autorizado a vender as terras devolutas em hasta piblica, ou fora dela, como e quando julgar mais conveniente, fazendo mi dividir, demarcar e descrever a porcdo das mesmas terras que houver de ser exposta a venda. ..”” (Art. 14)*. A mesma lei especifica: ““O governo fica autorizado a mandar vir anualmente 4 custa do Tesouro, certo numero de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agricolas, ou nos trabalhos dirigidos pela administragdo publica, ou na formacao de coldnias nos lugares em que estas mais convierem; tomando antecipadamente as medidas necessérias para que tais colonos achem emprego logo que desembarcarem” (Art. 18). “O produto dos direitos de chancelaria e da venda das terras. .. serd exclusivamente aplicado, 19 a ulterior medio das terras devolutas, e 20 a importacdo de colonos livres, conforme artigo precedente’ (Art. 19). Quanto ao prego da terra, essa lei estabelece que os lotes e as sobras de terras “sero vendidos separadamente sobre 0 prego minimo, fixado antecipadamente e pago a vista, de meio real, um real, real e meio, e dois réis, por braga quadrada, segundo for a qualidade e situagdo dos mesmos lotes e sobras” (Art. 14, § 2)!°. “Preco que 6, aliés, segundo Varnhagen, muito elevado comparativamente ao das terras particulares’” . Foram essas, em forma breve, as condigdes sob as quais estabeleceu-se a cafeicultura em Sertdozinho. Pouco a pouco, as terras foram ocupadas ou compradas, criando-se af grandes fazendas de café. A cafeicultura transformou terras devolutas, ou sitios e fazendas de gado e culturas diversas, em cafezais. Na forma intensa e generalizada em que se deu, a expansio da cafeicultura fez aumentar bastante 0 prego das melhores terras agricultéveis. Em especial, cresceu o prego da terra melhor para o plantio do café. Principalmente nas épocas de prosperidade dos negécios do café, 0 prego da terra situava-se além da capacidade aquisitiva do assalariado agrfcola, colono ou no. “A febre das plantagdes de café teve como primeira conseqiiéncia a elevaco do prego das terras. Ora, a 7 pequena propriedade ndo péde constituir-se sendo depois que a terra se tornou barata. A alta do prego das terras ultrapassou todas as medidas... Fora das toalhas de terra violeta, férteis e das mais cobicadas, os precos baixam; conservam-se, entretanto, dez vezes mais caros do que nos outros pontos do Brasil meridional... prego de compra de um dom{nio de 25 hectares, no qual possa viver uma familia, excede 0s recursos da maioria dos colonos; devem renunciar a ser proprietérios”"?. Conforme diz um relatério do Ministério da Agricultura, em 1901: "E preciso prender o imigrante 20 solo. .. mas é preciso fazer isso de modo a deixé-lo a disposi¢go da grande cultura para quando tenha necessidade dos seus bracos". Além do mais, havia pouca informagao sobre as terras & venda. Talvez houvesse certo monopélio das informagdes por parte dos préprios fazendeiros e funciondrios do governo. Conforme escreveu em 1887 Alfredo d’Escragnolle Taunay, entdo. vice-presidente da Sociedade Central de Imigragdo: “Nada existe feito na ReparticSo de Terras para que um estrangeiro consiga ter a mfnima informaggo sobre a possibilidade de adquirir propriedade, de maior ou menor extensio”"*. Esse foi o contexto econémico-socia! no qual o imigrante se transformou em colono, isto é, um tipo especial de trabalhador livre, que vende a sua forga de trabalho. Ao mesmo tempo em que se constitufa, a cafeicultura do oeste paulista estabelecia uma forma singular de organizagao social e técnica das relagdes de produgdo. A politica imigratéria pauslita visava principalmente produzir bragos para a lavoura. Era necessdrio impedir ou dificultar o acesso desse trabalhador a propriedade da terra. Daf a conveniéncia de acabar com as doagdes e as posses esponténeas de terras. Vendé-las, encarecé- -tas, eram formas de manter o trabalhador sob 0 mando do fazendeiro. Para manter o trabalhador na fazenda e alimenta-lo, permitiu'se que ele‘e sua familia cultivassem e criassem numa parcela de terra emprestada pelo fazendeiro. O regime de colonato combina o suprimento de géneros alimenticios e a garantia de certo nivel de oferta de mao-de-obra, ”. . . Em Sao Paulo elas [as colénias| foram estabelecidas dentro das zonas cafeeiras, para se tornarem fontes de produtos alimenticios localmente produzidos e de mio-de-obra extra durante o auge da colheita. Em 1899, por exemplo, uma comissao do Senado de Sdo Paulo recomendava que as colénias de imigrantes fossem estabelecidas de tal forma que se tornassem “‘viveiros” de trabalhadores para as grandes plantacées’". A cafeicultura se instala, desde 0 principio, como uma economia monetéria. Trata-se de uma cultura comercial, ditada principamente pela demanda internacional de café. O crescente comércio do café gerou nos vérios oestes paulistas, e inclusive em Sertdozinho, uma economia relacionada com os centros econémicos dominantes no pafs e no exterior. Essa condigdo bésica dessa cafeicultura faz com que toda a nova plantacio se instale como uma atividade organizada nos moldes capitalistas que estavam regendo a marcha do café nos oestes do Estado de Séo Paulo. A organizacao dos negécios do café, desde a apropriacdo das terras devolutas & venda do produto nos mercados externos, envolvia colonos, fazendeiros, comissérios, exportadores e outras categorias sociais. Desse modo, desde o principio, essa cafeicultura liga de alguma forma a economia local 4 economia do pais e do exterior. Em especial, a economia local constitui-se, desde os seus comecos, bastante determinada pelo capital financeiro que comanda os negécios do café. “O café torna-se a base principal da economia monetéria: ele requer dinheiro, produz dinheiro e depende do dinheiro, A figura do hipoteca sobre a fazendo, o agente vendedor do café e, naturalmente, 0 conselheiro do fazendeiro; se ele 6 rico, mora no estrangeiro ou no Rio, e envolve-se em politica; se ndo pertence 4 alta sociedad, prossegue na vida solitaria que seus pais levaram na fazenda. Se ele é fazendeiro pequeno, no tem, naturalmente, contacto com os bancos e exportadores. Em todos os casos, 0 fazendeiro no pode competir no conhecimento do mecanismo de economia do dinheiro com o comissirio, exportadores locais, possuindo melhores informagées sobre a situago do café e o mercado de dinheiro. Dessa maneira, os comissérios, por serem os agentes dos agricultores, converteram-se nos seus banqueiros. A agricultura tornou-se comercializada”"® E claro que esses encadeamentos da economia local com a nacional ¢ a internacional produziam efeitos econdmicos correlatos; ou criavam condigdes econdmicas para outras e novas atividades. A condigdo subalterna da economia local no impedia o desenvolvimento de efeitos € condigées dindmicos que abriam outras perspectivas a essa mesma economia local. Em particular: “O comércio de café alimentava uma série importante de indistrias correlatas de transportes, fabricagao de sacas, maquinas agrfcolas varias e manipulagdes intermediérias. Todas elas ganhavam dinheiro e permitiam a formaco de grandes fortunas’””. Pouco a pouco, a cafeicultura criava 8 subsistemas econdmicos locais e regionais, nos quais se configuravam interesses préprios, ainda que sujeitos as influéncias dos centros decisérios no pa/s e no exterior. Tanto assim que quando a cafeicultura entrou em crise em Sertdozinho, a economia e a sociedade locais j4 possu/am algum dinamismo préprio para reagir e reconverter as suas atividades. Ao mesmo tempo que sé desenvolvia, a economia cafeeira dinamizava as forgas produtivas, as relagSes de producao e a divisio social do trabalho na regido. Notas (1) Em 30 de novembro de 1938, pelo Decreto n? 9775, Sertiozinho perdeu o distrito de Pradépolis para 0 Municfpio de Guariba. (2) Caio Prado Jtnior, Histéria Econémica do Brasil, 38 edigéo, Editora Brasiliense, Si0 Paulo, p. 169. (3) Caio Prado Janior, op. cit., p. 169. (4) Roberto C, Simonsen, Evolupéo Industrial do Brasil @ Outros Estudos, Companhia Editora Nacional, Séo Paulo, 1973, pag. 196. (5) Antonio Furlan Junior, Documentério Histérico de Sertdozinho: 1896-1956, Ed. Estabelecimento Grafico Politipo. Ltda., Sertéozinho, 1956, p. 74, (6) Antonio Furlan Junior, op. cit., p. 76. (7) Ruy Cirne Lima, Pequena Histéria Territorial do Brasil: Sesmarias e Terras Devolutas, 22 Porto Ategre, 1954, p. 82. (8) Lei n? 601, de 18 de setombro de 1850. (9) Lei no 601, de 18 de setembro de 1850. (10) Lei no 601, de 18 de setombro de 1850. (11) Ruy Cirne Lima, op. cit. p. 82. (12) Pierre Denis, O Brasil no Século XX, José Bastos & Cia, Editores, Lisboa, pp. 210-211. Esta edigo ngo indica o nome do tradutor nem a data da publicagio. O original, em francés, foi publicado em 1908. (13) Pierre Denis, op. cit., p. 215. (14) Alfredo a’ Escragnolle Taunay, em nota (n9 20) a um texto de Luiz Couty, Pequena Propriedade e Imigragio Europes, Imprensa Necional, Rio de Janeiro, 1887, p. 83. Essa obra foi publicada na colecdo intitulada “Livros de Propaganda da Sociedade Central de Imigragio"” (15) Thomas H. Holloway, ““Condi¢des do Mercado de Trabalho ¢ Organizacdo do Trabalho nas Plantagées na Economia Cafeeira de Sio Paulo, 1885-1915: Uma andlise Preliminar”, Estudos Econémicos, vol. 2, n9 2, Sio Paulo, 1972, pp. 145-180; citagdo da p. 146. Agradeco esta informacdo bibliografica a Vinicius Caldeira Brant. (16) J. F, Normano, Evolueie Econémica do Brasil, trad, de Teodoro Quartim Barbosa, Roberto Peake Rodrigues © Laércio Brandio Teixeira, 29 edicdo, Cornpanhia Editora Nacional, Sio Paulo, 1945, p. 86. (17) J. Pandié Calégeras, A Politica Monetéria do Brasil, trad. de Thomaz Newlands Neto, Companhia Editora Nacional, $0 Paulo, 1960, p. 415. i¢fo, Livraria Sulina, I — 0 Escravo e o Imigrante Mas a histéria de Sertéozinho nao é totalmente isenta de escravaria. Antes da aboli¢ao, quando jé se formavam fazendas de gado e, depois, de café, houve escravos no lugar. Hé (nd{cios de que 0s escravos havidos em Sertozinho foram trazidos de outras partes do oeste paulista, das vizinhangas de Minas Gerais e outros lugares, com os primeiros povoadores chegados desde meados do Século XIX. Em Sertdozinho, no comeso da cafeicultura, 0 brago escravo entrou tanto na formago das plantagdes quanto no seu trato. “Ngo hé negar que as mais antigas fazendas de café deste Municfpio, tais como a Fazenda Iguapé, Fazenda Dumont, Fazenda Santa Maria (hoje Séo Martinho) se utilizaram do braco escravo em suas aberturas. Henrique Dumont trouxe 80 escravos do Estado de Minas Gerais e do Estado do Rio de Janeiro e alugou 150 outros que o sr. Braz Arruda Barbosa trouxera de Bananal quando em 1870 veio para Ribeitao Preto, onde abriu a Fazenda So José, vizinha a Escola Pratica de Agricultura, hoje Faculdade de Medicina’. Hé outras referéncias a escravos havidos em Sertéozinho. Depois de lembrar que Luiz Pereira Barreto e Martinho Prado Junior difundiram pela imprensa da entdo provincia de Séo Paulo as virtudes da terra roxa de Ribeiro Preto e Sertéozinho, Antonio Furlan Junior escreve os irmaos Pereira Barreto estiveram ligados a cafeicultura de Sertéozinho. “Da irmandade Pereira Barreto merece especial mencdo o Cel. José Pereira Barreto, que entre outras fazendas abriu uma que foi entre as primeiras no Municipio de SertZozinho, a fazenda Iguapé, que em 1887 jé possufa café formado, terreiro, méquina de beneficiar café e 12 escravos. Esta fazenda foi mais tarde, em 1879, vendida a Henrique Dumont’? . Em 1887, um ano antes da aboli¢go da escravatura, quanto Sertdozinho era distrito do Municfpio de Ribeirdo Preto, havia neste Municipio 1.379 escravos, numa populacdio que totalizava 10.420 habitantes (em 1886). Devido ao predom{nio praticante absoluto das atividades agropecuérias sobre as urbanas, essa_populacdo escrava. distribufa-se da seguinte forma: 18 estavam domiciliados no meio urbano e 1.361 no meio rural. No total da populacdo escrava do Municipio de Ribeiro Preto, da qual Sertéozinho era distrito, havia maioria de escravos do sexo masculino (784), solteiros (1.198) e com idade abaixo de 40 anos (1.017). De qualquer forma, considerando-se que havia ali uma sociedade pioneira, formando-se com 0 novo surto de expansio da economia do café, é inegével que a populagdo escrava era reduzida. Ao todo, a populacdo escrava alcangava cerca de 13 por cento dos habitantes do Municfpio’ . 10 Ocorre que a forga de trabalho escrava estava sendo substitu/da pela forca de trabalho livre. E a forea de trabalho livre estava sendo fornecida principalmente pelo imigrante italiano. Sertéozinho, e 0 conjunto da drea pertencente ao que chamei de segundo oeste paulista, estavam recebendo contingentes cada vez mais numerosos de imigrantes italianos. Os fazendeiros que se instalavam em Sertéozinho, chegavam imbuidos da convicedo de que o regime escravista estava no fim. A solucdo era o aproveitamento do trabalhador imigrante; e a combinagdo das motivagées econdmicas dos imigrantes com as suas propiciariam resultados positivos e répidos. Todo o segundo oeste paulista foi criado, enquanto economia e sociedade, como um segmento da formacéo social capitalista que sucedia e antepunha-se formagdo social escravista em colapso. Nessa regido, © término do regime de trabalho escravo no afetou nem o funcionamento nem as perspectivas de expansio das atividades econémicas. Ao escrever sobre a méo-de-obra agricola em Sao Paulo, isto é, no oeste paulista, onde se expandia a cafeicultura, Pierre Denis fez a seguinte observaca “Em nenhum pais as condigées do trabalho agricola se modificaram tao rapidamente e téo profundamente. A origem destas modificagdes foi, hé vinte anos, a aboligdo da escravatura. Mas, enquanto que para a maior parte dos pafses negreiros a libertagdo dos escravos é uma catdstrofe econémica, enquanto noutras provincias brasileiras ela determina uma prostracdo geral da agricultura, em So Paulo, pelo contrério, 6 0 sinal para um maravilhoso impulso. E em 1888 que efetivamente a abolicéo da escravatura se decreta, e é de 1888 a 1900 que tem lugar a grande expanso das culturas de café’. Conforme escreve Antonio Furlan Junior; “todos os maiores cafeicultores de entdo preferiam o trabalho do imigrante europeu”. Devido as condicies histérias em que estava ocorrendo a formagao econémica e social do segundo oeste paulista, “o trabalho escravo das primitivas fazendas de Sertdozinho foi substitufda pelo trabalho livre e remunerado do imigrante italiano’ . proprio Henrique Dumont, que havia trazido escravos para as suas fazendas de Sertéozinho, “trazia levas e mais levas de imigrantes peninsulares”®. Foi téo ampla a participacdo dessa forca de trabalho na formacao e expansio da economia local, que “Sertéozinho foi construindo e deve quase todo 0 seu progresso ao imigrante italiano”. Entre 1901 e 1940 entraram em Sertdozinho 18,911 imigrantes e trabalhadores nacionais. E interessante observar que esse contingente entrou na populaco do Municfpio segundo as exigéncias da expansio da economia cafeeira. Em 1901-10 entraram ali 2.055 imigrantes e trabalhadores nacionais. Nos anos 1911-20 entraram 6,729 e em 1921-30 chegaram 8.355. Portanto, foi no perfodo 1901-30 que entrou a maioria dos trabalhadores nacionais e estrangeiros no Municipio de Sertdozinho, Essa foi uma época de amplo predominio da cafeicultura’ . E claro que nem todos os colonos que chegavam as fazendas permaneciam ali. Havia razodvel instabilidade e mobilidade dos colonos, por motivos econémicos, sociais e culturais. Havia os que no se adaptavam aos meios e modos de vida com que se defrontavam na fazenda de café. Uns chocavam-se com os valores e padres de estilo escravocrata que freqiientemente irrompiam nas relac&es dos fazendeiros e administradores com 0s colonos e os seus familiares. Outros eram mal pagos pelos fazendeiros. Uns e outros podiam estranhar 0 monopélio do poder tocal por parte do fazendeiro. Também havia o interesse do colono por escolas para os filhos, Houve aqueles que procuraram outras fazendas, ou nticleos urbanos, em busca de melhores condicées de trabalho e vida. E também os que conseguiam juntar alguma economia, principalmente os de fam/lia numerosa e emprégada nas fainas dos cafezais. Estes, tornaram-se pequenos proprietérios, na agricultura, ou nas vilas e cidades. Alguns voltaram & Itélia; outros foram internados em sanatérios e asilos. Todos achavam-se em processo de ressocializagdo e assimilacdo; ou passaram pelo choque cultural; ou perderam-se nele, No conjunto, era bastante instdvel e mével a populacdo dos colonos que trabalhavam os cafezais. Inclusive os trabalhadores nacionais negros e brancos, eram bastante instéveis nas fazendas. ““No caso das nossas fazendas de café, foi espantosa a instabilidade dos seus operdrios agricolas, fossem eles negros libertos, luso-brasileiros ou italianos. Custa-se a crer como a fazenda de café conseguiu lutar e, durante um certo tempo, vencer uma tal situagdo. Essa instabilidade explica a luta dos fazendeiros para que sempre chegassem ao Brasil novos imigrantes. Era necessério que o seu nuimero fosse muito acima das necessidades reais da lavoura, que a oferta de mao-de-obra excedesse de muito a procura, a fim de que 0s “‘colonos” se contentassem com saldrios razodveis ¢ pudessem também ser substituidos com facilidade” °. Mas as condigSes econémicas em que eram postos os colonos sobrepujam as condi¢bes 4 sécio-culturais, ou outras, como causa da sua instabilidade e mobilidade. A maioria tinha a ambicdo de ganhar algumas economias e retornar depois de alguns anos. “Fazer a América”, estava no horizonte de uns e outros, ainda que variasse bastante o que isso pudesse significar para cada um. ‘Mas a verdade é que a grande maioria ganhava salétios baixos e gastava muitas energias, prOprias e dos membros da fam‘lia que participava do trabalho nos cafezais. Em certos casos, a proibicas de plantar culturas tempordrias entre as s de pés de café reduzia os colonos a condi deplordveis. Além de que ndo estavam nunca satisfeitos com os seus saldrios, a superioridade dos saldrios pagos nas fazendas que se abriram nas zonas novas, em desbravamento, fazia com que os colonos ndo renovassem os contratos de trabalho com 0 mesmo fazendeiro, ano apés ano!”. A despeito da razodvel mobilidade social envolvida nas condigdes de producdo predominantes na cafeicultura, a populacdo de origem italiana em Sertdozinho foi crescendo bastante, ao longo dos anos. Segundo Antonio Furlan Junior, em 1915 0 Municipio de Sertdozinho contava com 32.000 habitantes, dos quais 6.500 eram italianos. O recenseamento de 1920 registrou 7.344 estrangeiros numa populagio de 30.497. Em estudo sobre as zonas da Mogiana e Paulista, Sérgio Milliet escreveu que na década dos anos vinte a populagdo estrangeira alcancava cerca de um quarto do total. ““As zonas em questdo foram as que melhor aproveitaram a mao-de-obra imigrante. Ao comegar a imigragao, iniciava-se 0 seu desbravamento. E ao terminar este, embora outras regides jd se abrissem ao forasteiro, as conveniéncias da civiliza¢do instalada atrafram sempre 0 colono. Daf 0 fendmeno curioso observado pelo prof. Lowrie de uma formacio étnica de percentagens primeira vista contradit6rias: 25% de estrangeiros e 20% negros, o que significa grende_nimero de imigrantes e grande afluéncia do proletariado nacional de outros Estados, mais escuro”. Em 1940, os estrangeiros ainda séo pouco mais de 10 por cento dos habitantes, Note-se que esses estrangeiros so estrangeiros italianos. Em 1940, quando a populaco de Sertozinho tinha se reduzido a 21.290 habitantes, devido a modificacdes na economia local e a desmembramentos havidos no Munictpio, os italianos totalizavam 2.319 pessoas! . O cardter eminentemente agrério da econamia e sociedade do Municipio de Sertéozinho perdura ao longo de todo o ciclo cafeeiro e na transi¢ao para a policultura. Tanto assim que em 1940 a populacdo rural de Sertdozinho chega a 73,69 por cento do total do Municipio"? Notas (1) Antonio Furlan Junior, op. cit., p. 71 (2) Antonio Furlan Junior, op. cit, p. 74 (3) Elias Antonio Pacheco e Chaves e outros, A Provincia de Séo Paulo - Brasil, relatério apresentado ao presidente da Provincia de So Paulo pela Comissio Central de Estatistica, Typographia King, Sdo Paulo, 1888, pp. 11 e 55. (4) Pierre Denis, © Brasil no Século XX, op. cit., p. 156. (5) Antonio Furlan Junior, op. cit. p. 71 (6) Antonio Furlan Junior, op. cit., p. 72. (7) Antonio Furlan Junior, op. cit. p. 72. (8) José Francisco de Camargo, Crescimento ca Populagiio do Estado de Sio Paulo e seus Aspectos Econdmicos, 3 vols., Universidade de Séo Paulo, 1952, vol. 11, p. 34. (9) J. Fernando Carneiro, /migra¢do e Coloniza¢ao no Brasil, Universidade do Brasil, Rio de Janeiro, 1950, p. 30. (10) Pierre Monbeig, Pionneurs et Planteurs de Sio Paulo, Librairie Armand Colin, Paris, 1952, pp. 139-140. (12) Sergio Milliet, Roteiro do Café, Bipa Editora, Séo Paulo, 1946, p. 54. Samuel H. Lowrie, /migragéo e Crescimento da Populagio no Estado de $i0 Paulo, Ed. da Escola de Sociologia e Politica, Sio Paulo, 1938. (12) Censos Demograticos, IBGE, 1920 e 1940. (13) Censo Demogréfico, IBGE, 1940. 12 IM — © Regime de Colonato Na cafeicultura do ceste paulista, dos varios “oestes” plantados pela marcha do café, as relagdes de produgdo basearam-se na adogo generalizada do regime de colonato. Em Sertdozinho eno conjunto do segundo oeste paulista, mais do que no primeiro oeste paulista, a cafeicultura baseou-se amplamente nesse regime, que é uma forma de trabalho livre. Af, a cafeicultura baseou-se desde 0 comego, e em forma generalizada, na forga de trabalho livre. E verdade que nas primeiras fazendas de Sertdozinho havia escravos. Mas esses foram escravos trazidos pelos fazendeiros e desbravadores que iniciaram as plantagdes e criagdes. N3o houve novos e sucessivos suprimentos de mio-de-obra escrava. O tréfico de escravos estava proibido, da mesma forma que 0 comércio interprovincial e interzonal de escravos. Ao mesmo tempo, a escravatura entrara em colapso, encontravase em extinco. Em 1888 ocorre a abolig#o do regime de trabalho escravo. Nesse mesmo contexto, estava ocorrendo um verdadeiro rush cafeeiro na regido. Isto é, crescia de forma acelerada a demanda de forca de trabalho. Devido a decadéncia em que se achava o regime e escravista e & intensidade com que se expandiu a cafeicultura, em Sertdozinho o trabalho livre foi instituido de modo bastante répido e generalizado. A demanda de trabalhadores foi to grande que os trabalhadores nacionais que migram para a regio no séo sbficientes para atendé-la. E a imigragéo européia, principalmente italiana, que jé se havia experimentado no primeiro oeste paulista, foi apresentada ideolégica e praticamente como a melhor solugao. Ocorre que as atividades envolvidas na cafeicultura exigiam mao-de-obra numerosa e relativamente diferenciada. As tarefas de desmatamento das terras virgens, preparo das terras, plantio das mudas de café, carpa dos cafezais, colheita do café maduro, secagem e escolha do café, ensacamento e outras, ocupavam numerosos trabalhadores. Na lavoura de café a méo-de-obra néo era somente absorvida na sua manutencdo, mas também. na abertura de novas culturas, que se processavam ininterruptamente, e nos trabalhos acessérios, que ocupavam tantos ou mais trabalhadores do que os efetivamente empregados na lavoura de café propriamente dita” . Para fazer face as tarefas exigidas pela cafeicultura, os fazendeiros mobilizaram centenas e milhares de colonos. Ao referir-se 4 Fazenda Sao Martinho, de propriedade da familia Silva Prado, © historiador de Sertéozinho, Antonio Furlan Junior, escreve que em 1905 a referida fazenda jd contava com 3 mithes e 500 mil pés de café. Dois arraiais floresceram no interior da Fazenda 13 ‘S%0 Martinho: Pradépolis e Barrinha. Em 1905 ela contava com oito colénias, com 450 casas e 2 sedes*. Se pensarmos que a familia do colono italiano, que predominou ali, tinha apenas 7 membros cada uma, podemos calcular que era cerca da 3.150 a populacdo que habitava as colénias da Fazenda S8o Martinho. Esses dados dao uma idéia de massa de operérios rurais que trabalharam nas fazendas de café. Numerosos trabalhadores e trabalhadoras, adultos, adolescentes, criancas e velhos. Em graus variaveis, conforme a dureza e a presteza das tarefas, praticamente todos estavam engajados nas fainas das fazendas de café. As condig&es sob as quais o imigrante era levado & fazenda e contratado 0 colocavam numa situagdo desde logo subalterna e espoliativa.’ Depois de chegar no porto de Santos, os imigrantes eram transportados para a Hospedaria dos Imigrantes, na cidade de So Paulo, onde aguardavam que fossem contratados por este ou aquele fazendeiro. “A hospedaria era 0 mercado da mio-de- -obra: 08 pregos subiam quando a procura era grande e os fazendeiros faziam concorréncia entre si; baixavam no caso contrério. O mercado era piiblico; 0s colonos podiam comparar as ofertas’? . Em seguida, 0 colono e seus iamiliares eram transportados, ainda as custas do governo, por ferrovia, até a estacdo mais préxima da fazenda cujo proprietério o contratou. A partir dat passava a responsabilidade do fazendeiro. “O imigrante chega desprovido quase por completo das coisas mais essenciais e Ihe entregam uma pequena casa de tijolos, limpa e alegre, construfda pelo fazendeiro do este paulista. ‘Este fornece-Ihe 0s objetos de primeira necessidade e Ihe abre um crédito. O colono nao paga em verdade o aluguel da sua residéncia, mas jé de infcio se acha individado. A situagéo para o coitado parece de abundancia, apés a miséria, e ele saca sem contar contra 0 armazém da fazenda. Infelizmente alguns proprietérios incitam os colonos a comprarem, a fim de seguré-los pelas suas dividas que so forgosamente pagas em trabalho". Sob o regime de colonato, é a familia que se engaja no trabalho produtivo. O contrato de trabalho naturalmente envolvia o fazendeiro e ou (ou a) cabeca da familia. “Cada familia recebe o ntimero de pés de café que pode tratar: varia com o niimero de pessoas de que se componha. As familias numerosas tém desde oito a dez mil pés: quando ndo tém mais do que um trabalhador confiam-Ihe pouco mais de dois mi! pés. Como a vinha, o café exige uma mao-de-obra numerosa relativamente a superficie das culturas; sustenta uma populacdo agricola densa’’s. E outro cronista esclarece: “Cada familia tem sua caderneta — com débito e crédito — que constitui uma copia dos registros da fazenda. Ao crédito so levados o trabalho fornecido pelo colono e os seus, 0 produto dos animais de criag&o propria que tenha vendido ao fazendeiro, o produto da venda do milho, dos feijGes e dos legumes que tem licenga para plantar; a0 débito é levado tudo o que the foi entregue para a sua alimentagdo e vestimenta’’*. Naturalmente variavam bastante os termos do contrato que 0 colono e o fazendeiro assumniam. Inclusive havia contratos escritos e contratos verbais. Em certos casos, a caderneta que 0 fazendeiro fornecia a0 colono registrava os termos do contrato, Dentre os, principais artigos que caracterizavam 0 contrato de colonato, destacavam-se alguns. Antes de resumi-los relembro que 0 colono tinha a sua viagem da Itdlia (ou outro pais) ao Brasil e até as proximidades da fazenda paga pelo governo brasileiro. O contrato, portanto, cobria as relagdes do colono e seus familiares com o fazendeiro apenas a partir da estacdo da estrada de ferro mais préxima da fazenda onde ia trabalhar. Estes, pois so alguns artigos de contrato do colonato. O fazendeiro fornece gratuitamente ao colono e sua familia: transporte da estagdo ferrovidria & fazenda, casa de moradia, terreno para nele fazer culturas alimentares e pasto para um ou varios animais. O fazendeiro nao adianta dinheiro, mas fornece, para pagamento posterior, os géneros alimenticios ou a alimentacdo necesséria para o sustento da fam/lia nos primeiros tempos, enquanto as culturas alimentares do colono néo estivessem produzindo. O fazendeiro obriga-se a pagar oitenta mil réis pelo cultivo anual de cada mil pés de café e quinhentos réis por cada cincoenta litros de café colhidos. Os pagamentos de cultivo so feitos cada trés meses e os pagamentos das colheitas so feitos oito dias apés a ultima medida tomada. Nenhum pagamento serd feito sem a apresentagdo da caderneta. O colono, por seu lado, compromete:se a cuidar de dois mil pés de café (ou até mesmo dez mil, conforme o tamanho da sua familia), obrigando para isso a proteger as plantas enquanto tenras (menos de dois anos de idade), a bem conservar os pés de café sob a sua responsabilidade, livres de plantas daninhas, a cortar os ramos secos, a replantar os pés que ndo cresceram ou morreram e a colher o café maduro na época devida, Se 0 colono descurar das suas obrigacdes relacionadas com 0 cultivo, trato e coleta do café, o fazendeiro mandaré que outros realizem aquelas obrigagdes e cobrard os custos do 14 t SEORAT ~ FENUUICOS colono. O colono que, sem causa justificada, abandonar a fazenda antes de completar as tarefas exigidas pelo ano agricola, perderd metade do que tiver ganho até o momento. Se 0 colono quiser retirar-se da fazenda ao completar-se 0 ano agrfcola, deveré dar um aviso prévio de sessenta dias ao fazendeiro. No caso de o fazendeiro pretender licenciar 0 colono, depois que este tenha terminado as tarefas do ano, deveré dar-lhe um aviso prévio de trinta dias’ . E dbvio que essas condigées contratuais variavam de municipio a municipio, e inclusive no interior de um mesmo municipio. Também variavam ao longo do tempo e conforme o tamanho da familia que 0 colono comprometia no trabalho agricola. Cerca de 1920, em Sertdozinho, os salérios pagos ao colono, na cafeicultura, eram os seguintes: de 100 a 200 mil réis, pelo tratamento, por um ano, de 1.000 pés de café; de 20 a 40 mil réis, pela carpa de 1,000 pés de café; e de 600 réis a 1 mil e duzentos réis pela colheita de cada alqueire (15 litros) de café* A despeito da progressiva formalizacgo das relagSes de producdo na cafeicultura do oeste paulista, a massa de colonos, com os seus familiares, estava submetida ao mando e, muitas vezes, a0 arbftrio do fazendeiro. Em suas herdades, o fazendeiro se considerava um soberano absoluto. Os colonos queixavam-se de que os seus filhos ficavam sem escola, apartados da sociedade, analfabetos, quando os pais 4s vezes jé possufam alguns rudimentos de leitura. Também reclamavam contra as multas que os fazendeiros e os seus administradores Ihes impunham, além de protestar contra os precos abusivos cobrados pelos armazéns das fazendas. As tensbes entre colonos e fazendeiros provocaram greves de colonos, incéndios e assassinatos? . Nao € necessério narrar aqui a longa luta social e diplomédtica que antecedeu e acompanhou a criagdo do regime de trabalho livre e do contrato de colonato. Houve fugas de imigrantes das fazendas; houve retorno de imigrantes aos pafses de origem; também protestos pela imprensa e meios diplométicos. Inclusive houve interrupgdes nos fluxos migratorios, devido aos maus tratos a que foram submetidos os imigrantes das primeiras épocas, a escraviddo disfarcada ou aberta que thes impunham. O que é necessério registrar aqui, € que o contrato de colonato € o resultado de um processo de tenses, lutas e negociacdes, no qual envolveram-se fazendeiros, colonos & governos!®. Tantas foram as tensbes, lutas negociagdes, que no Brasil o sindicalismo rural surge nessa 6poca. Evaristo de Moraes Filho sugere que num pafs predominantemente agrério, na época em que se extingue o regime de trabalho escravista, “no podiamos deixar de iniciar a nossa legislagdo sindical sendo por este lado”. O decreto-lei n9 979, de 6 de janeiro de 1903, praticamente inicia a formalizacdo do sindicalismo rural no pats. Parece evidente que ele responde aos problemas das relagdes de produgdo surgidos nas regides cafeeiras. Em seus artigos primeiro e nono, o decreto estabelece: “E facultado aos profissionais da agricultura e inddstrias rurais de qualquer género organizarem entre si sindicatos para o estudo, custeio e defesa de suas terras. E facultado ao sindicato exercer a fungdo de intermedidrio do crédito a favor dos sécios, adqi para estes tudo 0 que for mister aos fins profissionais, bem como vender por conta deles os produtos de sua exploracdo em espécie, beneficiados, ou de qualquer modo transformados’’”? . E evidente a referéncia desses dispositivos as condigdes de trabalho do colono nas fazendas de café. Outro decreto governamental de n? 1637, expedido em 1907, pode ser considerado 0 instrumento legal bésico de todo o sistema sindical que se estabelece no pafs na época'?. Mas néo afeta as relagdes de producdo no campo, que se organizavam em termos do decreto 979 e dos contratos de colonato que fazendeiros e sitiantes acertavam entre si. Mesmo porque, as tensdes, lutas negociagdes entre fazendeiros colonos e governantes seguiam um curso muito especial, ditado pelas exigéncias da reproducao do capital na cafeicultura. Tanto assim que a lei n? 1299-A, de 27 de dezembro de 1911, do governo do Estado de Sao Paulo, cria o Patronato Agricola, com a finalidade de “auxiliar as execugSes ‘das leis federais e estaduais no que concerne 4 defesa dos direitos e interesses dos operdrios agrfcolas”. O Patronato é subordinato ao Secretario da Agricultura e tem sua sede na capital do Estado de Sao Paulo. Ele se faz representar no interior do Estado por 106 promotores piiblicos. Essa lei obriga 0 fazendeiro a organizar a sua escrituracio agricola e a fornecer aos colonos as cadernetas que reproduzem os langamentos feitos pelo fazendeiro em seu livro de contas correntes. Dentre os seus vérios fins expressos, a lei estadual nQ 1299-A, de 1911, destina-se a “fiscalizar as cadernetas dos operdrios agricolas, a fim de verificar se estas se revestem das formalidades prescritas pela lei federal n9 6437, de 27 de marco de 1907". Também destina-se a defender os colonos de aliciadores inescrupulosos, fiscalizar as 15 agéncias de venda de passagens e cimbio, promover a organizacéo e a fiscalizacfio de “‘cooperativas entre operdrios agricolas para a assisténcia médica, farmacéutica e ensino primério"*. Realmente, 0 decreto federal n? 6437, de 1907, define duas entidades basicas das relacdes de producdo que se estavam formalizando nas fazendas de café: 0 operdrio agricola e a caderneta do operério agricola. “Consideram-se ‘operérios agricolas’ os jornaleiros, colonos, empreiteiros, feitores, carreiros, carroceiros, maquinistas, foguistas e outras empregados no prédio rural”’. E a caderneta é 0 instrumento legal, de propriedade do colono, no qual o fazendeiro é obrigado a registrar, em ordem cronolégica, as parcelas de débito e crédito que resultam do seu contrato com o colono. A escrituragdo da caderneta deve ser feita mensalmente, encerrando-se sempre com a declaracdo da qual é o saldo devedor ou credor. Em toda controvérsia que 0 operdrio agricola tenha com o fazendeiro, a caderneta é considerada prova legal suficiente'’ . Eram esses, em forma breve, alguns dos principais caracter(sticos das relacdes de producdo predominantes nas regides da cafeicultura, principalmente no oeste paulista. A medida que se expandia a cafeicultura, pelo varios “oestes” que se sucediam no curso da marcha do café, acelerava-se a adocdo das instituigées, valores e padrdes mais coerentes com as exigéncias da reproducéo do capital, num contexto capitalista. As condic&es de reproducdo do capital na cafeicultura, conforme elas se estabeleceram em fins do século XIX e primeiras décadas do século XX, determinaram uma formalizago mais ou menos répida e ampla das relacdes de producao. Tanto assim que os préprios documentos governamentais estabelecem que 0 colono & um operdrio agricola. Trata-se de um trabalhador produtivo cuja forga de trabalho é vendida, sob condigdes especiais, ao fazendeiro, que é 0 proprietdrio dos meios de produgao. Devido forma pela qual se organizaram as relacdes de produgdo na cafeicultura do oeste paulista, tornou-se possfvel proteger em parte 0 colono, tanto da expoliagio de estilo escravista como dos efeitos negativos das crises que continuamente abalavam os negécios dos cafeicultores. Ao longo das ultimas décades do Século XIX, as tensdes, lutas e negociagdes entre fazendeiros, colonos e governantes produziram a eliminagdo ou, a0 menos, a redugdo do estilo escravocrata de relagdes de produco. Em seguida, principalmente com a prdtica dos dispositivos legais estabelecidos pelas leis federais (n? 979, de 6-1-1903, n? 6437, de 27-3-1907 e nO 1637, de 5-1-1907) e pela lei estadual n? 1299-A, de 27 de dezembro de 1911, formalizaram-se as relagdes de produgdo de modo a proteger os interesses do colono em face das condi¢Ges sociais e politicas em que se realizava a reprodugao do capital na cafeicultura. Mas essas defesas ndo eram sempre efetivas. Elas no tinham efetividade nas ocasiées em que a cafeicultura entrava em crise; quando os negécios deste ou aquele fazendeiro no eram présperos; ou quando o fazendeiro impunha 0 seu mando aos representantes do poder publico. Toda grande fazenda de café tendia a ser um mundo social, isto é, politico-econdmico, a parte do mundo social centrado no nécleo urbano. Em certos casos, 0 fazendeiro de café tem a sua autoridade aumentada pelo exércicio de fungdes publicas. Guilherme Schmidt, por exemplo, membro do grupo econdmico que havia sido criado em torno do nome do Coronel Francisco Schmidt, foi varias vezes prefeito de Sertéozinho. “A sua palavra autorizada era sempre respeitosamente aceitada”’. Esse representante da Cia, Agricola Francisco Schmidt, que em 1917 era a maior empresa de café em Sertdozinho {3.575.128 pés de café) foi “a personalidade que centralizou durante muitos anos 0 poder piblico e econémico do Municfpio’'* . Nessas ocasies, 0 poder politico-econdmico da burguesia cafeeira era exercido de forma quase monolitica. Nessas ocasides, a interpretago dos direitos do proletariado agrfcola — pelo fazendeiro ou representantes do poder pUblico — era realizada segundo os interesses e a posi¢do de forga da burguesia agréria. Notas (1) Roberto C. Simonsem, op. cit., p. 202. (2) Antonio Furlan Junior, op. cit., p. 77. (3) Pierre Denis, op. cit. p. 175. (4) Max Leclerc, Cartas do Brasil, trad. de Sérgio Milliet, Companhia Editora Nacional, 1942, p. 83. Esse livro foi escrito em francés em 1889-90. 16 (5) Pierre Denis, op. cit., pp. 180-181 (6) Max Leclerc, op. cit, p. 84. (7) Vincenzo Grossi, Storia della Colonizzezione Europea al Brasile e della Emigrazione italiana nelo Stato di S. Paulo, Societa Editorice Dante Alighieri, Milano, 1914, pp. 440-445; Pierre Denis, op. cit., pp. 177-9 (8) Fellippo Peviani, Due Million’ di Italiani in Brasile, Societé Editorie Romana, Roma, 1922, pp. 104-105. Consultar também Lucy Maffei Hutter, Migraco /taliana em Sio Paulo: 1880-1889. Instituto de Estudos Brasileiros, Sio Paulo, 1972, p. 98. (9) Pierre Monbeig, Pionniers et Planteurs de Sao Paulo. Librérie Armand Colin, Paris, 1952, pp. 138-139; Eugénio Bonardelli, Lo Stato ai S40 Paulo del Brasile e L’ Emigrazione Italiana, Torino, 1916. Livro citado por Pierre Monbeig, op. cit., pp. 138-138 (10) Pierre Denis, op. cit..; Max Leclerc, op. cit.’ Vincenzo Grossi, ap. cit.; Caio Prado Junior, Histéria Econémica do Brasil, 39 edicéo, Editora Brasiliense, Séo Paulo, 1953, cap. 19; Pierre Monbeig, Pionniers et Planteurs de Séo Paulo, citado, pp. 137-146; Constantino lanni, Homens Sem Paz, Difusio Européia do Livro, Séo Paulo, 1963; Edgar Carone, A Republica Velha, Difusio Européia do Livro, Séo Paulo, 1970, esp. pp. 31-33 e 243-245; Emilia Viotti da Costa, Da Senzala 4 Colénia, Difusio Européia do Livro, Sdo Paulo, 1966; Sergio Buarque de Holanda, Brasi! Mondrquico, vol. 3 (Reagdes e Transagbes), Difusdo Européia do Livro, Sdo Paulo, 1967, caps. Wevi (11), Evaristo de Moraes Filho, O Problema do Sindicato Unico no Brasil, Editora A Noite, Rio de Janeiro, 1962, pp. 184-185, (12), Evaristo de Moraes Filho, op. cit., p. 185, nota 191. (13) Evaristo de Moraes Filho, op. cit., pp. 186-188, Em seu artigo 99 , o decreto n? 1637 reafirma que os agricolas continuardo a ser regidos pelo decreto n? 979. (14) Lei estadual (SP) n? 1299-A, de 27 de dezembro de 1911, Consultar também Filippo Peviani, Due Milioni di Iealiani in Brasile, Societs Editrice Romana, Roma, 1922, cap. 1X. (18) Decreto federal n? 6437, de 27 de marco de 1907. (16) Antonio Furlan Junior, op. cit, p. 84. 7 IV — A Transiggo da Monocultura 4 Policultura Em Sertéozinho, quando o café sofria crises, ou entrava em decl{nio, a economia e a sociedade locais no entravam em colapso, nem permaneciam estagnadas. Af, as forcas produtivas eram reorganizadas e ganhavam novos dinamismos. Diversificam-se as atividades produtivas ‘organizavam-se sob novas formas as forcas produtivas. As préprias classes sociais ganhavam ponderagées e arranjos diversos. ‘Ao mesmo tempo que se estabelecia, a hegemonia da monocultura cafeeira comegava a romper-se. O principal fator na quebra dessa hegemonia era a superproducao. A rentabilidade da cafeicultura gerava 0 boom cafeeiro que gerava a superprodugo que gerava 0 abandono de cafezais ea diversificacdo das atividades. produtivas. Paradoxalmente, a0 mesmo tempo que se estabelecia, a hegemonia da monocultura cafeeira gerava os elementos que depois provocavam a crise da cafeicultura e, por conseqiiéncia, a diversificago das atividades agrérias. Esse processo recebia novos impulsos quando se repetiam as geadas e as secas que de fato atingiram a cafeicultura da regio de Sertéiozinho. Além das crises geradas devido ao cont/nuo aumento da producéo, desde fins do século XIX, houve geadas e secas mais ou merios desastrosas. Tanto assim que a época mais importante do ciclo cafeeiro em Sertéozinho comega a encerrar-se em 1918, quando a grande geada havida nesse ano impressionou decisivamente grandes e pequenos empresérios agrfcolas. Foi a partir de 1918 que se iniciou um proceso mais acentuado e estruturalmente significativo de diversificagdo das atividades produtivas na economia rural de Sertaozinho. Além das crises de superprodugio, que ocorriam periodicamente, as geadas e secas induziram os cafeicultores a abandonar a cafeicultura ou a diversificar as suas culturas. Aliés, os dados relativos ao ano agrfcola de 1919-1920 mostram que nessa época era bastante diversificada a produgdo dos 400 estabelecimentos agricolas entdo existentes no Munic(pio. Note-se que em muitos estabelecimentos cultivavam-se dois ou mais produtos. Eram 149 os estabelecimentos nos quais havia cafezais. Mas em outros, ou nos mesmos, também se produziam algodio, feijao, milho, farinha de mandioca, agticar, aguardente e outros produtos. Uma visio de conjunto do grau de diversificagéo das atividades agrérias em Sertozinho aparece na Tabela I. Note-se, contudo, que a diversificago da produgo agricola nao era apenas resultado das dificuldades da cafeicultura. Esse era um elemento importante na reorientacdo dos negécios e atividades nas fazendas de café. Mas também operava na mesma dirego 0 regime do 18 colonato, que implicava na produggo hortigranjeira. Além disso, havia fazendeiros e sitiantes que preferiam combinar culturas perenes, como o café, com culturas temporérias, como 0 feijéo, milho, algodo e outras. Por varios motivos, pois, a agricultura de Sertdozinho sempre esteve relativamente diversificada. Mas no conjunto da sua economia, e ao longo das décadas compreendidas entre 1880 1930, foi 0 café que predominou nas atividades e nas preocupacdes da burguesia do Municipio de Sertdozinho. Note-se que em 1920 jé era bastante alta a participagZo de imigrantes ou seus descendentes na propriedede dos estabelecimentos rurais, Na relacdo dos proprietérios desses estabelecimentos, os de origem estrangeira alcancam cerca de 50 por cento do total. E dentre esses, a quase totalidade tem sobrenome italiano’. Ocorre que as estruturas econdmico-sociais estavam se transformando, a despeito da preeminéncia dos interesses econdmicos e politicos ligados & cafeicutlura. Isto 6, a prépria cafeicultura estava langando as bases econdmicas e sociais de novas mudangas nas atividades produtivas. Quanto a cana-de-acucar, vale a pena registrar que j4 era cultivada em Sertdozinho em fins do século XIX. Vérios produtos da cana eram consumidos pela populacdo local. “Antes de 1900 havia no Municipio de SertZozinho pequenas e esparsas plantagdes de cana aproveitadas pelas engenhocas que se limitavam a fabricar aguardente, rapadura e melado”?. Uma lei municipal de 27 de novembro de 1900 estabelece isen¢go de impostos a pessoa ou companhia que montasse um engenho central, para fabricar agticar, élcool e aguardente. Na exposi¢éo de motivos, justificava-se a lei com seguintes argumentos: as terras do municfpio de Sertozinho prestam-se “admiravelmente & cultura da cana’; “os lavradores amedrontados pela baixa do café, empregavam suas atividades no cultivo da cana”; “a cana preserva-se da geada mais facilmente do que o café”. Em 1902, a maior plantagdo de cana foi realizada pelo coronel Francisco Schmidt. Dedicou-Ihe 60 alqueires das suas terras. “Havia preparado a terra para plantar café, mas como houve naquele ano geada, preferiu iniciar a lavoura intensiva de cana”*. Depois da grande geada de 1918, as secas de 1924 e 1926 mostraram aos cafeicultores grandes, médios ou pequenos, que era necessério prosseguir na diversificacdo das atividades pro- produtivas. Era necessério diversificar ou mudar as aplicagdes dos seus capitais. € claro que a grande crise econémica mundial iniciada em outubro de 1929 foi um acontecimento crucial, no processo de diversificacdo das atividades produtivas no campo. Mas é importante reconhecer que TABELA I — Produtos e produgdo dos 400 estabelecimentos agricolas de Sertéozinho — 1920 Estabelecimentos nos Produ Produto quais se obtém 0 produto ees) Acdoar 13 588.4 Aguardente 68 14582 (hectol.) Algodio 30% 3.8034 Arroz 183 1.028,7 Café 149 1962,7 Cana-de-agdcar 59 34 694,6 Farinha de mandioca 13 220 1756.3 73 143 888,8 92844 essa crise correspondeu a urn momento — decisive é verdade — de uma cadeia de crises provocadas pela superproducdo, a geada, a seca e o empobrecimento das terras. Nessas condicdes € que surgem e desenvolvem-se as culturas algodoeira, citricas, de cana-de-agicar e outras. Inclusive surgem e desenvolvem-se as unidades artesanais e fabris; e acelera-se a urbanizacdo dos nucleos populacionais. Vejamos o que escrevem Sérgio Milliet Carlos Manuel Peléez sobre o processo de diversificag3o da agricultura nas regides pioneiras do café. “Em ambas as zonas, Mogiana e Paulista, a decadéncia do café teve por conseqiiéncia nfo o abandono das terras, como na zona do Norte, mas 0 ensaio de outras culturas substitutivas. A rede de estradas de ferro e de rodagem, que se abriu atrés da invasdo cafeeira, constitufra ra(zes bastante profundas para uma permanéncia do progresso, as facilidades de comunicag#o compensando os rendimentos mais fracos. A citricultura @ 0 algodio se instalaram. ... A inddstria também vai aos poucos penetrando os centros m: favordveis ao seu desenvolvimento e o fendmeno da redistribuicdo das terras vai operar-se em breve com a venda de lotes dos grandes latifiindios que 0 café néo sustenta mais’. Esse foi o contexto em que comegaram a prosperar as culturas de algodio e cana-de-agiicar em Sertozinho. “Somente nas épocas de aguda crise cafeeira ¢ que as outras culturas prosperavam. .... Talvez uma das culturas mais importantes e que mais rapidamente se desenvolveu, na segunda metade da década de 1920, tenha sido a cana-de-aciicar. ... Depois de 1929, 0 aumento da rentabilidade de uma série de produtos agricolas veio estimular a expansdo da producéo. Um importante fator que contribuiu para a diversificagdo de culturas nos anos de 30 foi a diviséo de grandes propriedades em fazendas menores... O Estado de Sdo Paulo fizera uma ligeira tentativa de mudar a estrutura agricola, mas os elevados lucros da cultura do café impediram qualquer methora expressiva. O Governo de Vargas também promovera e apoiara a policultura como uma das poucas alternativas que o Brasil tinha a seguir durante a década de 1930’. Foi por essa forma que o munic(pio de SertZozinho enfrentou, ao menos em parte, as conseqiiéncias da crise cafeeira dos anos trinta. Mesmo antes, na década dos anos vinte, jé se verificava alguma diversificacdo das atividades produtivas agrérias em Sertozinho. O algodgo e a cana-de-agticar expandiam-se paulatinamente. Na década dos trinta, essas ¢ outras culturas ganharam maior significagao absoluta e relativa, em face do café em decadéncia. “Pode-se mesmo afirmar que 0 algodéo salvou a situagéo do lavrador de Sertdozinho durante a crise de 1929. O perfodo mais produtivo do algodo no Municipio se protongou do ano 1933 a 1937””. Estava em curso um proceso mais ou menos generalizado de diversificacao das atividades agr/colas. As crises da cafeicultura, a urbanizacao, a incipiente industrializacdo, a expanséo das burocracias governamentais e o conseqiiente crescimento do mercado interno abriam novas possibilidades a diversificacdo da producao rural. “A partir dos anos trinta, 0 ritmo de crescimento da produgdo das culturas para 0 mercado interno superou 0 crescimento da produgao das culturas de exportagdo. No final dos anos trinta e princ{pios de quarenta, essa supremacia estendia-se também a participacéio no valor da producdo e érea cultivada. Assim, foi a partir dos anos trinta que a produgio agricola, no Brasil, tornou-se menos dependente dos mercados externos’’®. ‘Quanto ao rearranjo da estrutura fundidria, devido & crise da cafeicultura, vale a pena observar os dados da Tabela Il, organizada por Sérgio Milliet. Os dados referem-se as mudancas havidas entre 1930 e 1936 na regido que engloba munic{pios como os de Sertozinho, Ribeiro Preto, Jardinépolis, S40 Simo e outros vizinhos. Note-se como aumenta, em termos absolutos relativos, 0 ndmero de pequenas propriedades. Apesar de crescerem em termos absolutos, as propriedades médias e grandes decrescem em termos relativos. E 0s latifindios diminuem em termos absolutos e relativos. Estes dados nao dizem respeito apenas a estrutura fundiéria. Quando so examinados no contexto econémico-social da crise da cafeicultura e do rearranjo da propria estrutura social, os dados indicam aparecimento de muitas pequenas propriedades rurais. Na maioria, esses novos pequenos proprietérios seriam ex-colonos e ex-camaradas que compraram suas parcelas de terra com economias amealhadas ou receberam parcelas de terras dos fazendeiros que no puderam saldar dividas ou devolver as poupancas dos seus colonos. “Assim & que, ndo obstante apenas 18% da populagao do Estado ter sido consignada em 1920 como alien(gena, 27% das propriedades agrfcolas registradas pelo recenseamento estavam nas mdos de estrangeiros, sem se levar em conta um numero considerdvel de outros que as possufam em comum com brasileiros. Em 1934, a percentagem 20 TABELA Il — Estrutura fundiéri 193031 1936-36 ‘Nimeros ‘Nimeros apsotutos "aiee % absowstos (Aloe * Pequena 1782100 58,06. 28271596713 Média 750 © 100 24,44 826 © 110—«19,62 Grande 421 100 13,72 461 110 10,95 Latifindio 116 100 3,78 97 86 2,30 FONTE: Sérgio Milliet, op. cit., p. 97. destas propriedades atingia 30%". Estava em processo 0 crescimento e fortalecimento da pequena burguesia agréria. O rearranjo da estrutura fundidria na regio da cafeicultura implicava, a0 mesmo tempo, no rearranjo da estrutura social e das forcas produtivas. Em 1940, os estabelecimentos agricolas de Sertdozinho alcangaram o total de 718, ao passo que em 1920, quando o Municfpio era maior, totalizavam 400. ‘Ao romper-se a hegemonia da monocultura cafeeira em Sertdozinho, desenvolveram-se as culturas algodoeira e da cana-de-acicar, além de outras. Rompiase e rearranjava-se a estrutura fundidria, cuja concentragdo a cafeicultura havia intensificado. Ao mesmo tempo, surgiam ou desenvolviam-se outras atividades produtoras, no campo e na cidade. As crises da cafeicultura provocaram © rearranjo e o desenvolvimento das forcas produtivas. Esse proceso pode ser observado, em termos quantitativos, na Tabela III relativo aos anos 1926-1956. Os dados sobre a evolucdo da producao e drea cultivada do café, algodgo e cana-de-acuicar indicam, de forma bastante clara, as modificagées da estrutura da economia agréria em Sertdozinho. Note-se que a rea cultivada e a produco na cafeicultura reduziram-se progressiva e sistemativamente a0 longo das trés décadas: 1926-1956. Quanto a cultura algodoeira, note-se que a produgao elevou-se um pouco entre 1926 e 1933. Depois entre 1934 e 1944, sofreu varias oscilagées. Em seguida, a partir de 1945, reduziu-se a cerca da metade ou menos da metade do nivel inicial de 1926. Convém notar que as variagdes havidas na drea cultivada com o algodao foram menos acentuadas do que as variagdes da produtividade. Quanto area cultivada e 2 produgdo da cana-de-agiicar, os dois (ndices progridem sistematicamente, ao longo das décadas 1926-56. E notével a simetria — com sentidos inversos — entre os {ndices relativos ao café e & canade-aguicar. E observe-se, conforme indicam os dados da Tabela III, que é em torno de 1944 que a drea cultivada com a cana-de-acticar comega a sobrepor-se a drea cultivada com o café. Na sucesso das crises da cafeicultura, devidas & superproducdo, geada, seca ou esgotamento das terras, alguns colonos puderam defender as suas condigées de vida. Inclusive, em varias ocasiées, quando a crise punha o fazendeiro em situago econdmica particularmente dificil, foi possivel a: alguns colonos comprarem partes da fazenda, ou receberem essas partes em pagamento de dividas dos fazendeiros para com eles. Sérgio Milliet apanhou um aspecto dessa situacdo, ao escrever sobre a formacao de sitios nas dreas em que a cafeicultura entrava em crise. Ele se referia as fazendas cujas terras se empobreciam. “Com efeito, as fazendas de fraca producdo, largadas pelos proprietérios 3 cata de terras mais rendosas, subdividem-se logo em pequenos sitios. A monocultura cede lugar 4 policultura e 0 imigrante, que soube ou péde economizar, se instala’"®. A subdivisio da propriedade fundidria ocorreu de forma especialmente acentuada e generalizada nos varios oestes paulistas, em conseqiiéncia da grande crise econdmica mundial iniciada em outubro de 1929. ‘Ao mesmo tempo que se desenvolvia a crise, que ocorria o rearranjo da estrutura da propriedade fundidria e a formacao de uma nova estrutura econdmico-social, modificaram-se as relacées de produgao. Os dispositivos legais e 0s contratos de consenso perderam efetivamente. a TABELA III — Produgdo ¢ frea cultivada de café beneficiado, cana-de-agiicar © algodio 1926 a 1956 L Café beneficiado Cana-de-apdicar Algodio A = | — | Proaugao | NO de pas Area Produgdo Area Produgéo | Aree L_trond (mit) tha.) (ton) (ha.) (ton) | tha) 1926 | 10170 17.674 22.000 40000 1.000 6000 | 4450 1927 | 14700 wer 22.000 45.000 +100 6500 | 4500 1928 | 6900 15261 18 400 50.000 11300 6800 | 4500 1929 | 14700 16261 18.400 50 000 1300 6800 | 4550 1930 | 8375 18000 18.360 60 000 1700 | 7000 | 4700 1931 | 7200 14500 18.000 65 000 1700 7000 | 5100 1932 | 10083, 14 156 17136 70 000 100 | 8000 | 5600 1933 | 5.470 11.048 13.486 80.000 2000 8000 | 5600 1934 | 5400 11.000 13.485, 95.000 2070 7500 | 5300 1935 | 3601 9424 11509 100 000 2100 7000 | 5000 1936 3101 7001 | 8585 100 000 2100 6000 | 4450 1937 | 2569 6750 8261 110.000 2200 5260 | 4000 19398 | ©2179 5.940 7261 123.000 3700 5250 | 4000 1939 | 1280 3932 4.808 125 285 2800 5715 | 4300 1940 | 1260 3.920 4.800 130 000 3080 5700 | 4300 var | 1200 3.600 4.400 140.000 3.200 6000 | 4450 1942 750 3.200 3916 150.000 3.400 4500 | 3200 1943 | 675 3050 3732 160 000 3700 +6750 | 5000 1944 | 630 3.000 3672 179 386 4.000 7500 | 6000 1945 630 3.000 3672 165 000 3.800 3600 | 6000 1946 873 2800 3424 470.000 4100 3750 | 5000 1947 450 2700 3302 172.000 4200 3000 | 5000 1948 546 | «2600 3 180 198 750 4.350 2616 | 4360 1949 450 2500 3.068 170 000 4.400 1688 | 4500 1950 525 2.500 3.068 176 000 5200 | 1380 | 4600 1961 495 2300 2814 251 000 6100 | 1425 | 6000 1952 465 2.200 2692 263 500 6 100 3780 | 6000 tes | aaa 2100 | 2570 | s80000 «| © 7e00 | ©3360 | S400 1954 420 2.000 2448 402 000 8200 2940 | 4000 1955 333 | 1600 1986 355 000 8.000 2249 | 3.400 1956 336 1.600 1956 10000 | 12000 | 2216 | 3300 Obs.: — Os dados até 1940 so estimativos. FONTE: Antonio Furlan Junior, op. cit., p. 62. 22 A crise da cafeicultura de Sertéozinho, iniciada em 1918, acentuada com as secas de 1924 & 1926, e agravada irremediavelmente com a grande crise econdmica mundial iniciada em 1929, tornou uma grande massa de colonos desempregados em busca de outros lugares. Cresceu repentinamente 0 exército de trabalhadores agr/colas de reserva. Uma parte desses trabalhadores procurou ajustar-se no campo, em outras atividades agrfcolas; outra parte seguiu para as cidades, Pequenas, médias ou grandes, para mudar de vida. Ao apanhar o clima social e humano da crise ‘que atingiu a cafeicultura desde 1929, Mério de Andrade escreveu: ‘Os armazéns se entulhavam de milhdes de sacas de café indestinado. E foi um crime nojento, Mandaram queimar o café nos subirbios escusos da cidade, nos mangues desertos. A exportacdo decresceu tanto que o porto quase parou. Os donos viviam no ter e se aguentavam bem com as sobras do dinheiro ajuntado, mas e 0s trabalhadores, ¢ 0s operdrios, e 03 colonos? A fome batera na terra tao farta e boa. Os jornais aconselhavam paciéncia 20 povo, anunciavam medidas a tomar. Futuramente”!! Sdo essas as condigdes sob as quais em Sertozinho ocorre a diversificacdo das atividades produtivas e das relacdes de produgo. Em especial, a partir da "grande geada de 1918, que danificou definitivamente 70% doa cafezais do Municfpio"!?, acentua-se em Sertdozinho o processo de modificaggo tanto da estrutura fundidria como das atividades produtivas. Esse foi 0 contexto histérico em que as culturas do algodo e da cana-de-agiicar, além de outras, passaram a atrair capitais e forga de trabalho, Na década dos anos trinta continua a crescer paulatinamente tanto a rea cultivada como 0 volume da produgdo de cana-de-agticar. Cerca de 1944, a cana-de-aciicar sobrepuja 0 café em rea cultivada. O algodo, apesar de continuar a ocupar uma rea igual ou maior que a da cana, na década dos anos quarenta, nfo chega a impor 0 seu dom(nio sobre a economia e a sociedade de Sertéozinho. Em 1951 a drea cutivada com cana-de-agticar sobrepuja a rea do algodio. Em 1953 a cana passa a ocupar uma drea maior do que as dreas cultivadas com algodio e café somadas. Esses fatos esto registrados na Tabela Il! Notas (1) Recenseamento do Brasil - 1920, Relag3o dos Proprietérios dos Estabelecimentos Rurais Recenseados no Estado de Sio Paulo, Diretoria Geral de Estatfetice, Rio de Janeiro, 1926. (2) Antonio Furlan Junior, op. ct., p. 103 (3) Antonio Furlan Junior, op. cit, p. 103 (4) Antonio Furlan Junior, op. cit., p. 104 (5) Sergio Milliet, op. cit., p. 54 (6) Carlos Manuel Pelaez, Histéria da /ndustrializagso Brasileira, Apec, Rio de Janeiro, 1972, pp. 111-112. (7) Antonio Furlan Junior, op. cit., p. 103 (nota). {8) Annibal Villanova Villela e Wilson Suzigan, Po//tica do Governo e Crescimento da Economia Brasileira: 1889-1945, IPEA/INPES, Rio de Janeiro, 1973, p. 61. (9) Samuel H. Lowrie, op. vit., p. 33. (10) Sergio Millet, op. cit, p. 31. (11) Mario de Andrade, Poesias Completas, Livraria Martins Editora, intitulado "Cate" (12) Antonio Furlan Junior, op. cit., p. 100. Paulo 1955, p. 437. Citago do texto 23 V — A Formagio da Economia Agucareira Em 1975, 0 que sobressai em Sertdozinho so os canaviais e as usinas, nas quais se produzem © agéicar e 0 alcool extraidos da cana-de-aciicar. Os trabalhos e 0s dias das gentes, no campo e na cidade, estdo influenciados, ou amplamente determinados, pela reproduggo do capital aplicado nos canaviais e nas usinas. Para uns, a cana é doce, para outros, a maioria, ela 6 aspera. Em Sertozinho, 0 ciclo da cana-de-agticar comegou em torno de 1944. Foi nesse ano que a area cultivada com a cana ultrapassou a rea cultivada com o café. A partir daf, cresceram continuamente a drea plantada e 0 volume da producdo da cana-de-agicar. Em 1953, a drea cultivada com cana ultrapassou as dreas cultivadas com café e algodao, em conjunto. Em 1974, a cana-de-agticar abarca 86,38 por cento da rea plantada do Municfpio. 0 seu valor alcanga 92,68 por cento do valor total da producao agricola. Foi substantiva a modificagdo ocorrida em Sertdozinho, a partir de 1944, quando as atividades relacionadas direta e indiretamente com a cana-de-acticar tornaram-se cada vez mais importantes, no conjunto da economia e da sociedade, no campo e na cidade. A medida que se desenvolveu e impés, a agroinddstria acucareira provocou algumas modificagées notaveis no sistema econdmico social e politico de Sertéozinho. Vejamos, preliminarmente em forma breve, alguns aspectos das modificagSes havidas no lugar: a) Modificou-se a estrutura judicidria do Municfpio de Sertdozinho, tendo ocorrido certa concentraggo da propriedade. b) A pequena e média burguesia agrdrias foram associadas, absorvidas ou subjugadas aos interesses do capital agroindustrial comandado pelo usineiro, c) A usina se impés como uma categoria polftico-econdmica nova e poderosa, no campo e na cidade. d) Criou-se em Sertozinho um setor industrial bastante ligado 4 agroinddstria agucareira, para produzir e reparar méquinas e equipamentos. Naturalmente esse setor atende também as demandas do tercidrio e do préprio secundério. Inclusive produz para clientes de outros municfpios ¢ estados. Mas é evidente a sua vinculacdo as exigéncias tecnolégicas da agroinddstria acucareira. e) As mudangas havidas na combinago e dindmica das forcas produtivas, bem como as modificacdes ocorridas nas relagdes de produgdo, provocaram o desenvolvimento do proletariado rural e inclusive a modificacdo da sua composi¢do interna. Cresceu progressivamente 0 contingente de assalariados tempordrios e residentes nas periferias da cidade de Sertdozinho. f) Devido as peculiaridades econdmico-sociais ¢ politicas da agroinddstria acucareira, vista em perspectiva nacional e regional, a 24 ago estatal tornou-se visivel em todos os principais momentos das relages de producdo envolvidas nas fainas dos canaviais e das usinas do lugar. Uma primeira imagem das modificagdes econémico-sociais e politicas que acompanharam a expansio dos canaviais em Sertéozinho aparece nos dados relativos a evolucdo do numero de estabelecimentos agrfcolas. A medida que se desenvolveu a agroindistria agucareira, ocorreu ali um rearranjo da estrutura fundiéria. Antes, em 1920, quando predominava a cafeicultura, havia 400 estabelecimentos agrfcolas no Municipio de Sertdozinho. Em seguida, principalmente devido as crises da economia cafeeira, multiplicaram-se os estabelecimentos agricolas. Subdividiram-se fazendas de café. Em 1938, SertZozinho perdeu o distrito de Pradépolis para 0 Municfpio de Guariba. Ainda assim, em 1940, 0 Munic(pio de Sertdozinho contava com 718 estabelecimentos. Em 1950, eles eram 579, Em seguida, em 1953, Sertdozinho perdeu o distrito de Barrinha, que se transformou em Municfpio. Em 1960, os estabelecimentos agricolas do Municfpio de Sertdozinho baixaram para 425. Mas em 1960, 0 Municipio de Barrinha (que havia sido criado em 1953) contava com 93 estabelecimentos. Mesmo que todos estes estabelecimentos fossem somados com os de Sertéozinho, ainda assim houve concentrago da propriedade fundidria, se comparamos os nimeros de 1960 com os de 1950. Em 1970, os estabelecimentos agricolas elevararn-se para 475, Um motivo para isso talvez tenha sido a atuagdo do Instituto do Agticar e do Alco! (IAA), no sentido de proteger 0s plantadores de cana-de-agticar, isto 6, fazendeiros e sitiantes, em face da tendéncia das usinas de absorver terras e canaviais. Outro motivo poderia ter sido a prosperidade de outras culturas, como a soja, 0 mitho, o amendoim ou outras, que defenderam ou mesmo multiplicaram estabelecimentos agrfcolas a elas dedicados. Em 1972, o levantamento realizado pelo INCRA registrou 515 iméveis rurais em SertZozinho. Em parte a0 menos, é provavel que a discrepan. entre os dados do IBGE, para 1970, e os do INCRA, para 1972, é devida aos diferentes critérios utilizados por essas duas agéncias de coleta de dados'. De qualquer forma, nao deixa de ser significativo o rearranjo da estrutura fundiéria verificado em Sertdozinho, entre 1940 e 1972, quando as unidades rurais passaram de 718 para 515. Ao longo desses anos, foi a usina que se impés, como o principal niicleo da agroindiistria acucareira que predomina em Sertozinho. Foi realmente acelerada a expansdo da agroindustria acucareira de Sertozinho, ao longo dos anos 1944-1974. Em termos de drea plantada, a rea da cana ultrapassa o café, em 1944, e 0 café e 0 algodao, em conjunto, em 1953. Em 1956 a drea cultivada com cana chegava a 12.000 hectares, a0 passo que o café e 0 algodéo cobriam 4,900 hectares. Em 1956, havia em Sertdozinho 7 usinas de agicar e 5 engenhos de aguardente. Além de outras oficinas e fabricas de produgdo e reparacdo de implementos agricolas, havia 3 indistrias para fabricaggo ou reparagdo de aparelhos de usinas de acticar?. Naturalmente 0 Munic{pio de SertZozinho continuou a produzir café, algodéo, milho, amendoim, arroz e outros produtos, para o consumo local e comércio fora do lugar. Mas continuou a crescer @ importéncia relativa e absoluta da cana-de-agiicar. Em 1968, 0 valor da produgio canavieira alcangou cerca de 90 por cento do valor total da producdo agricola do Municipio. Em 1970 mantém 08 90 por cento do valor total da produgo agricola, E em 1974, conforme indicam os dados da Tabela IV, a produ¢ao canavieira alcangou 92,68 do valor total da producao agricola. Nessa ocasido, as usinas de agticar so 5, produzindo para o mercado regional e externo, conforme a politica agucareira coordenada pelo Instituto do Aguicar e do Alcool (IAA). A medida que se expandia, a agroindiistria agucareira provocava mudancas na composi¢go da maode-obra agricola, em geral. Cresceu 0 uso de mdquinas e equipamentos nos processos produtivos. Instalou-se e consolidou-se no campo a fébrica de agticar. A organizacgo das atividades produtivas, em fungo das exigéncias da agroindustria agucareira, induziu uma reformulagdo da ‘composi¢o das forcas produtivas, composicgo essa na qual a forca de trabalho também foi redefinida. Ao crescser a importancia das mdquinas e equipamentos nas atividades produtivas, desenvolveu-se a divisio social do trabalho e modificou-se a importdncia relativa da forca de trabalho. Ao mesmo tempo, também as outras atividades agr{colas sofreram influéncias dos padrdes de organizacdo da producdo predominantes na agroindiistria agucareira. Para ajustarem-se as exigéncias do capital aplicado na usina, os fazendeiros proprietérios de canaviais tiveram de reorganizar as suas empresas. Para obter lucros semelhantes ou maiores que os obtidos por esses fazendeiros, os proprietérios de culturas de soja, mitho, arroz, amendoim e outros tiveram que reorganizar ‘ou dinamizar os seus empreendimentos. Ao longo das décadas que compreendem o ciclo 25 TABELA IV — Area plantada valor da produgio. Sertozinho, 1974 Area plantada Valor da produgio Espécie a ——— Ha, eS os % Cone-de-aptcar 29000 86,38, 99.596 800,00 92,68 Soja 900 2,68 2 160 000,00 2,02 Amendoim 600 1.79, 1470.000,00 437 Milho 1 200 357 1260 000,00 1116 ‘Arroz 800 238 1 100 000,00 102 500 149 720 000,00 097 100 0,30 250 000,00 0,23 40 0.12 130 000,00 on2 Laranja 3 0,10 90 000,00 os Outros produtos 400 119 700 000,00 os TOTAL 33573 10000 10740680000 100,00 IBGE, Agéncia Municipal de Estat/stica, Munic{pio de Sertdozinho, 1975. da cana em Sertdozinho, generalizaram-se novos padres capitalistas de producio, por influéncia do mercado agucareiro; das disponibilidades de terra, capital, tecnologia e forca de trabalho; da interdependéncia e antagonismo entre vendedores e compradores de forca de trabalho; da aco governamental, por suas leis, normas, incentivos, financiamentos etc.. Uma imagem aproximada das modificagées mencionadas aparece nos dados na Tabela V, relativas as despesas diretas da produgo agricola em SertZozinho, Em pesquisa realizada junto a 48 proprietérios agrfcolas, dos quais 42 dedicados aos negécios da cana-de-cagiicar, pesquisa relativa a0 ano agricola 1969/70, foi constatado que os gastos com méquinas so significativos, em confronto com os gastos com mio-de-obra assalariada e com animais®. Essa pode ser mais uma indicaco da crescente mecanizacdo dos processos de trabalho na agroindistria agucareira. Isto é, na economia acucareira cresceram os investimentos em maquinas e equipamentos. A expansdio das atividades produtivas, relacionadas com o preparo da terra, o plantio, o trato, a fabricago do TABELA V — Despesas diratas de producdo. Sertdozinho, 1969/70 tens Valor — Cr$ Mao-decobra assalariada 74.405 Gastos com méquinas 41.370 Gastos com culturas 37960 Gastos com animais 2.630 Gastos com comercializagdo 7.270 Gastos gerais 128 700 TOTAL 292 385 FONTE: Richard L. Meyer e Paulo F. Cidade de Araujo, op. cit., p. 40. 26 agticar, 0 transporte e a comercializagio desse produto propiciou 0 uso mais generalizado de méquinas ¢ equipamentos, de fertilizantes e defensivos, e do crédito, todos ind{cios do desenvolvimento das forgas produtivas e das relacies capitalistas de produg3o no mundo agrério de Sertdozinho. Esse foi 0 contexto em que se modificou a composi¢ao da forea de trabalho empregada na agricultura de Sertozinho. Conforme indicam os dados da Tabela VI, entre 1940 e 1972 crescou relativamente pouco a m&o-de-obra agricola no Municipio. Os dados relativos a parc e arrendamento podem ser de leresse para avancarmos um pouco: mais na caracterizago da economia e sociedade rurais no Municipio de Sertdozinho. Em 1972, segundo os dados do INCRA, apenas 11 iméveis rurais estavam sendo explorados também por parceiros. E eram 21 os parceiros, dos quais apenas 10 sob contrato escrito; os outros trabalha com base em contrato verbal. No mesmo ano, eram 45 os iméveis nos quais haviam arrendatérios. Os arrendatérios eram 49, mas eram 45 os que estavam sob contrato escrito, Apenas 4 haviam estabelecido contrato verbal. Cabe observar ainda que o arrendamento de terras é uma forma normal de exploracao capitalista da terra. Nesse caso, com freqiiéncia o arrendatério é ele proprio um médio ou pequeno empresério que compra forca de trabalho e investe capital em seu empreendimento agricola. No caso do parceiro, o regime de parceria pode significar uma forma disfarcada de assalariado rural. Com freqiiéncia a parceria é uma forma de organizagao social das relagdes de producdo na qual o proprietério da terra transfere encargos ao parceiro, que luta para no proletarizar-se completamente; ou luta para escapar a cor proletaria. Contemporaneamente & expansio da agroinddstria acucareira, cresceu e diferenciou-se a produgo industrial. Obviamente essa produgao destinava-se a atender a uma parte das exigéncias das atividades urbanas e rurais da populago do Municipio de Sertéozinho. Desenvolveram-se as inddstrias de produtos alimentares, bebidas, mobilidrio, material de transporte e varios outros. Em especial, desenvolveram-se as industrias mecdnicas e metalurgicas, além das alimentares. Os dados de Tabela VII d3o uma idéia da -progressiva expanséo das atividadades industriais em Sertéozinho. Note-se que aumentou de 33 estabelecimentos industriais, em 1940, para 172, em 1973. Em 1973,’as empresas de metalurgia e mecdnica, bastante ligadas & reparago e produgSo de méquinas e equipamentos para a agroindistria acucareira, empregavam mais de 50 por cento do total de pessoal ocupado no setor industrial. Além dessas, obviamente também outras atividades industriais, ‘como as de material de transporte, de produtos alimentares e algumas outras ligavam-se as demandas das populagdes e dos empreendimentos agricolas. Uma visio de conjunto da organizago econdmica do Munictpio de Sertéozinho pode ser ‘obtida pelo exame da distrihuigdo da populacdo de 10 anos de idade e mais, segundo os setores de atividades. Os dados de Tabela VIII mostram que 0 setor agropecudrio emprega mais de 40 por cento das pessoas em idade produtiva. Ao passo que os outros 60 por cento dedicam-se as TABELA VI — Mio-de-obra Agricola. Ser ho, 1940-1972 Méo-de-obra Mio-de-obra ane) permanente (*) temporéria iota 1940 5 590 123 5713 1950 4733 850 5 592 1960 3852 3835 7.687 1972 2105 (* 4177 6 282 FONTES: IBGE, Censos Agrcolas. Os dados de 1972 sfo do INCRA. (7) Inctui parceiros e arrendatérios (**) Nao inclui parceiros ¢ arrendatérios. 27 TABELA VII — Ati jades industriais, Sertozinho, 1940-1973 Pessoal ocupado Valor de produgio Ano Estabelecimentos ear Gporis aa 1940 33 350 = 10 353 000,00 1950 67 497 381 67 627 000,00 1960 84 1033 715 102 381 000,00 1970 m1 1980 1788 123 978 000,00 1973 172 3.930 412 635 000,00 FONTE: IBGE, Censos Industrials. Os dados de 1973 foram fornecidos pela Agéneia Municipal de Estat{stica, do IBGE, no Municfpio de Sertdozinho. TABELA VIII ~ Atividades das pessoas de 10 anos @ mais Sertdozinho, 1970 Setor de atividades Numero Agricultura, pecuéria, extragio vegetal, caca e pesca 4693 Atividades industrial 2770 Comércio de mercadorias 696 Prestagio de servigos 1301 Transportes, comunicagdes e armazenagem 398 Atividades sociais 511 Administragéo publica 282 Outras atividades 380 TOTAL, 10031 FONTE: IBGE, Censo Demogrético, 1970. atividades do secundario e tercidrio, em certos casos bastante vinculados as atividades do setor primério. ‘Ao modificar as relagdes da produgao no campo, a agroindistria acucareira conferia, indiretamente, novo impulso a cidade de Sertozinho. Além das demandas econdmico-financeiras, que 0 campo ‘normalmente pode fazer a cidade, em Sertdozinho os setores secundério e tercidrio desenvolveram-se também um pouco sob os est/mulos e as flutuagdes dos movimentos sazonais da economia acucareira, O tempo da agroindistria acucareira, comandado pelo movimento das épocas de safra e entressafra, confere um pouco do seu andamento 2 vida da cidade de Sertozinho. A época da safra 6 a época do pleno emprego. As estradas e os caminhos tornam-se mais movimentados. Chegam operérios de fora, de outros municipios e Estados, para trabalhar no corte da cana ou na usina. A rigor, desde que desenvolveu a agroinddstria acucareira, ela deslocou para a cidade uma parcela significativa da populaco agréria. A medida que se aprofundou e generalizou, 0 proceso de proletarizaco inerente a expansio da economia acucareira provocou um rearranjo das forcas produtivas e transferiu para a cidade de Sertdozinho uma parte significativa da mao-de-obra rural. Note-se que nao apenas expulsou do campo, pela introduggo ou expansio de processos mecanizados 2B de trabalho, Além de expulsar uma parte da mdo-de-obra, a agroindtstria agucareira transferiu para fora das terras da usina e dos canaviais uma parte significativa da sua m&o-de-obra permanente e temporéria. Daf porque cresceu paulatinamente a populagdo urbana, além das taxas normais de crescimento das atividades nos setores secundério e terciério localizados na cidade. Conforme indicam os dados da Tabela 1X, foi em 1960 que a populacdo urbana de Sertdozinho. ultrapassou a rural. Em seguida continuou a decrescer a populago do campo. Mas A medida que se expandia o mundo urbano de SertdozinHo, urbaniza-se também o mundo rural, Foi a agroindustria agucareira que tornou bastante urbanizadas as relagdes sociais, os valores e os padrdes de pensamento e comportamento nos canaviai e nas usinas de Sertdozinho. ‘A andlise e os dados apresentados aqui no pretendem ser exaustivos. Eles narram apenas © perfil, algumas relagdes e 0 andamento da economia e sociedade de Sertéozinho. Ao descrever a formacdo da agroindistria agucareira, surgiram, necessariamente, dados e sugestées sobre as relacdes entre agricultura e inddstria, o campo e cidade, proletérios e burgueses. Alguns dos temas apenas sugeridos, sero retomados em seguida. Por agora, 0 que é necessdrio, é chamar a aten¢do para o fato de que a expansio e hegemonia da agroindistria acucareira, em Sertdozinho, implicou no aprofundamento e generalizagéo das relacdes capitalistas de producao, Nao se trata de dizer que © capitalismo no campo chegou em Sertozinho com os canaviais. Nao é isso. Em Sertdozinho o capitalismo chegou com os cafezais, em fins do século XIX. Ocorre que a cafeicultura propiciou um tipo particular de organizaco capitalista das forcas produtivas e das relacdes de producio. A cafeicultura que se desenvolveu em Sertdozinho provavelmente implicava numa baixa composicao corganica do capital. Isto é, implicava em numerosa mio-de-obra agricola, e principalmente agricola. Nas condigées histéricas em que se desenvolveu a cafeicultura em Sertdozinho, a forca de trabalho era fornecida principalmente por imigrantes italianos e seus descendentes. Isso significou que o proletariado agricola dos cafezais tinha certa protego politica da embaixada e consulados italianos. Além disso, as remessas de dinheiro, que os imigrantes faziam para os seus familiares, fizeram com que 0 governo italiano e uma parcela da burguesia financeira desenvolvessem algum interesse pelo que ocorria com os italianos dos cafezais*. Por esses e outros motivos, os colonos italianos dos cafezais tiveram alguma protegdo politica e juridica. De qualquer forma, o ciclo do café foi, em Sertdozinho, uma primeira forma de desenvolvimento das relagées capitalistas de producéo no campo. Em seguida, entre 1920 e 1950, quando decai a cafeicultura, crescem momentarieamente os algodoais e diversificam-se as atividades agricolas, a economia e a sociedade de Sertdozinho continuam baseadas principalmente na produgo para o mercado. A decadéncia do café foi acompanhada de um rearranjo da estrutura fundidria e da estrugura produtiva, mas ndo de uma decadéncia econémico-social do lugar. Desenvolveu-se-a policultura. Esta seria uma segunda forma de desenvolvimento das relagSes capitalistas de produgo no campo. Esta foi, ainda, uma forma na qual a forca de trabalho foi usada extensivamente. Em seguida, quando se expande e predomina a agroindistria acucareira, entra em causa uma terceira forma de organizacio social e técnica das TABELA IX — Populagdo urbana @ rural — jo de Sertdozinho 1940-1970 Populagio urbana Populagio rural Total ‘Ano —— ———- ne % No % % 1940 5602 26,3 15688 73,7 21290 © 100.0 1950 7185 35,1 13202 64.9 20357 100.0 1960 13.758 52,0 12683 48,0 26.441 100.0 1970 22878 73.6 8188264 31066 = 100.0 FONTE: IBGE — Censos Demogréficos. 29 forgas produtivas e das relagdes de produgio. Neste caso, passou a elevar-se a composigo orgénica do capital. Isto 6, desenvolveu-se a divisio social do trabalho, cresceu continuamente o capital investido em méquinas e equipamentos e reduziu-se relativamente o montante de capital aplicado na compra da forca de trabalho. Desde que a agroinddstria agucareira tornou-se preeminente no mundo agrério de Sertéozinho, modificaram-se substantivamente as relagdes de interdependéncia € antagonismo entre o campo e a cidade, a agricultura e a indistria, os operérios e os burgueses. Notas (1) 0 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE) tem trabalhado com a noréo de estabelecimento, como Lunidade administrativa na qual se processa “uma explorago agropecusria”. Ao passo que o Instituto Nacional de Colonizagdo e Reforma Agréria (INCRA) trabalhou em 1972 com a nogdo de imével rural, como unidade “que possa ser utilizada em exploracio agricola”, independentemente de sua “localizagéo na zona rural ou urbana do Municipio". CF. Estatisticas Cadastras/1, INCRA, pp. IX-X. (2) Antonio Furlan Junior, op. cit., pp. 52-55. (3) Richard L. Meyer e Paulo F. Cidade de Araujo, Aspectos Econmicos da Agricultura na Regio de Ribeiréo Preto, Ano Agricola 1969/70, Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Piracicaba, 1971. Consuttar também: Roberto José Moreira, Andlise do Investimento a Nivel de Propriededes Agricolas da Regio de Ribeiréo Proto, Estado de Sio Paulo, Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Piracicaba, 1973. (4) Constantino lanni, Homens Sem Paz, Civilizagdo Brasileira, 1972, pp. esp. pp. 162-166. VI — A Expansio da Agroindistria agucareira A produgdo agucareira do Brasil, e em especial do Estado de Séo Paulo, vinha crescendo ou menos ininterruptamente desde o término da Segunda Guerra Mundial (1939-45), Nessa fo se restabelece e dinamiza o comeércio internacional, que havia sido interrompido ou prejudicado pelo comércio da guerra. Nessa ocasido, foi restabelecido e dinamizado o comércio de géneros alimenticios, matérias-primas e manufaturados. E 0 acticar entrou como um item importante do comércio internacional de géneros alimenticios. Ao mesmo tempo se restabelece e dinamiza 0 comércio interno, devido a liberacéo de forcas econdmicas e sociais, com o término da economia de guerra na qual se achava o Brasil. Esse foi o contexto no qual se iniciou e desenvolveu uma época notavel da agroindstria acucareira no Brasil, em geral, e no Estado de Sao Paulo, em especial. Esse foi 0 contexto no qual realizou-se uma notdvel expanséo da agroindistria agucareira no Municipio de Sertaozinho. Entre 1951 e 1968, a producdo brasileira de agticar passou de 26.595.636 sacos de 60 kg para 68.530.445 sacos. Nesse perfodo, a producio acucareira do Estado de So Paulo passou de 30,47 por cento do total nacional para 48,95 por cento. No perfodo 1969-73, a producdo brasileira continuou a expandir-se, passando de 72.215.665 sacos para 111.381.873. Nesse mesmo periodo, a produgao da regigo centro-sul, na qual o Estado de Sado Paulo é 0 maior produtor, passa de 62,94 por cento do total para 70,44 por cento. Contemporaneamente a essa expanséo da producdo agucareira, expande-se tanto 0 consumo interno como a exportagdo de agiicar. Com altos e baixos, naturalmente, a exportacao acucareira do Brasil vinha crescendo desde o término da Segunda Guerra Mundial. A Tabela X dé uma idéia da evolucdo dos indices dos valores de exportaggo do agicar, café, cacau e algodao, entre 1944 e 1973. Em termos de indice, o agicar passou de 27, em 1944, para 100 em 1953. Em 1960 alcancou 258; em 1970 havia chegado a 590 e em 1973 chegou a 2.464 0 indice do valor da exportagéo de agiicar. ‘A produgéo acucareira do Brasil ganhou novo impacto a partir de 1960, quando Cuba perdeu a sua cota no mercado interno norte-americano. A vitéria da revolucdo socialista em Cuba, em 1959-60, foi também um acontecimento de importéncia na evolucgo do setor acucareiro no Brasil. A partir dessa ocasiao, iniciou-se a exportaggo de acticar brasileiro para o mercado interno norte- -americano e expandiu-se cada vez mais a exportago desse produto para outros mercados. “A 31 ze TABELA X — indices de exportagéo de produtos agricolas ~ Base: 1953 = 100 “Quantum” Valor USS Perfode - core Cacau —agicar MIPEPS pint algodio Café —Cacau—Aptcar = MMEFS inh algodtto 1944 87 94 28 a st o77 19 2 27 4 47 35 1948 81 7 1" 19 4B 21 16 13 6 43 55 1946 100 120 86 a Bt 83 2 47 7 1 86 156 1967 8 a 24 138805 39 76 54 3 100 165 1948 12 66 141 38102185, 45 7 168 14 m1 181 1949 12502122 15 4368100 88 70 19 24 7 107 1960 9 121 9 5) 8882 79105 18 29 84 104 1951 105 a8 8 84117103 97 92 16 56 129 204 1952 102 54 7 100027020 96 56 23 102 85 4 1953, 100 100 100 © 100 100—S100 100 100 100 100 100 100 1954 7 6077222 87180 55 93 98 219 1985 8 12 24 641128 m2 209 130 152 129 1956 08116 7 17% 70 102 95 89 7 152 88 a4 1957 2 101 ws a7 8 93 205 207 168 43 1988 83 8 27012 2 63 19 258 170 135 24 1959 112 B 21252878 67 79 191 188 99 35 1960 108118 31329, 100 63 2 258 230 1 45 1961 109 608847 65 61 293 259 123 108 1962 105 174486815 59 2 176 299 95 110 1963 125 205 2-527, a8 6 47 223 308 a1 12 1964 96 9 ett 56 70 46 148 349, 123 108 1965 a7 8s 270 e224 ca 37 253 446, 136 94 1968 108 103 33023129169 70 87 359 434 146 109 1967 108 108 31 ott 109136 6 79 359 446 128 89 1968 3 51 464 128 1969 16 526 193 1970 90 86 590 152 1971 n 101 633 135 1972 7 01799 187 1973 1231642464 24 FONTE: Conjuntura Econémica, Vol. XXIII — n? 10 — 1969, presenca do acticar brasileiro no mercado americano s6 foi possivel quando, em meados de 1960, como conseqiiéncia do rompimento de relagdes diplométicas com Cuba, os Estados Unidos resolveram admitir novos fornecedores, a t/tulo precério e experimental. Assim, iniciamos as nossas exportacdes a titulo de non quota mas com as vantagens do sistema de preferéncia, até que, em 1962, fomos admitidos em cardter definitivo, com uma participagdo bésica de 6,37%, elevada em 1965' para 7,56%, como até hoje (1971) permanece”” . As perspectivas abertas a agroindéstria agucareira do Brasil naturalmente provocaram uma aco mais sistemética e generalizada do gaverno. Algumas decisdes relativas a cotas de produgao, comercializag#o e exportacdo foram adotadas, de modo a aproveitar as novas possibilidades de exportagdio. Adotaram-se também incentivos governamentais, destinados a melhorar a produtividade das usinas e dos canaviais. Em 1964, devido 4 expansZo do mercado externo e a redistribuic¢do das cotas pelas regides, dreas ¢ usinas do pais, 0 Estado de Séo Paulo “passou a desenvolver grandemente seu parque acuicareiro, ampliando o nimero de usinas e modernizando a tecnologia da produgo, de modo que na safra de 1970-71, por exemplo, a produgo da regio norte- nordeste atingia a 34% do total do Brasil, enquanto a do centro-sul passava a 66%; s6 0 Estado de So Paulo respondia por cerca de 50%", “No que diz respeito a eficiéncia das usinas, 0 decreto-lei n? 1.186, de 27 de setembro de 1971, relativo a fusio, incorporagdo e relocalizagao de usinas de agticar em todo o pals, representa a medida mais recente no sentido de obtencao de economias de escala condizentes com o propésito de eficiéncia que caracteriza a politica governamental. ..”°. Esse foi 0 contexto no qual ocorreu a formagdo e a expanstio da agroindistria agucareira do Municfpio de Sertozinho, ao longo dos anos 1945-75. As cinco usinas de acticar de Sertéozinho so, a0 mesmo tempo, parte e expresso da forma pela qual tem se desenvolvido 0 setor acucareiro no Brasil. Em boa parte, essas usinas refletem os movimentos e andamentos da economia acucareira do Brasil; e em especial do Estado de Sdo Paulo. Isso pode ser observado nos dados apresentados na Tabela XI. A titulo de exemplo, note-se como evolui a produggo de sacos de acticar da usina Sio Geraldo. Em 1946, eram produzidos 4.020 sacos. Em 1954 séo 152.410; em 1964 passam a ser 400.855. E em 1974, 836.910. Para 1975, a previsdio 6 de 924,000 sacos de 60 k, Evolucdo semelhante ocorreu na produgdo das outras usinas de Sertéozinho. E inegével que a expansio da demanda de agiicar, bem como as alteragdes havidas no mercado internacional propiciaram condigées para a expanséo da produedo acucareira no Brasil, no Estado de S%0 Paulo e no Municfpio de Sertdozinho. Mas esse processo no foi comandado apenas pela demanda, ainda que 0 comportamento da demanda seja crucial no que diz respeito a géneros alimenticios. O crescimento da produg%o acucareira foi também o resultado do desenvolvimento das forgas produtivas e das relagdes de producao na agroindistria agucareira. Progressivamente cresceu a importéncia relativa e absoluta da mdquina, fertilizante, defensivo, energia elétrica, derivados do petréleo e da acio governmental. Ao mesmo tempo, alterouse a composigzo e a participagéo da forca de trabalho no proceso produtivo, tanto nos canaviais como nas usinas. Uma imagem da crescente “maquiniza¢éo” do processo produtivo, na agroindéstria acucareira do Estado de Sg Paulo, pode ser obtida pelo exame dos dados apresentados na Tabela XI. Nessa tabela comparam-se dados sobre o emprego de fatores de produco, na cultura da cana” para os Estados de Sao Paulo e Pernambuco. “Observa-se que 0 emprego de mao-de-obra em Sao Paulo & cerca de um quarto da forca de trabalho utilizada em Pernambuco. O uso de animais é também menos acentuado no Estado de Séo Paulo que utiliza cerca de 12 vezes mais equipamentos méquinas que Pernambuco’’* Em Sertdozinho, da mesma maneira que em outras areas do Estado de Sdo Paulo, tem crescido o coeficiente de capital investido em méquina e equipamentos;'ao mesmo tempo que se reduz relativamente a esse 0 capital destinado & compra de forca de trabalho. Nas usinas e nos canaviais, 0 processo produtivo tem provocado a expulséo de trabalhadores, bem como a redefinic&o das condigdes de trabalho dos trabalhadores que continuam a ser necessérios. Mas essa mudanga na composi¢ao das forcas produtivas envolvidas na agroinddstria acucareira ndo tem ocorrido apenas devido ao interesse dos empresérios em aumentar e aperfeicoar a producdo. Também a progressiva extensdo da legislacgo trabalhista a0 mundo agrério tem sido uma condi¢go 33 TABELA XI — Produgo agucareira de Sertdozinho: 1946-1975 Sacos de 60k ioe natin —=—. Ein Aono S Franchco 8. Cale wei 20am too now 582 toe wir wa Shas tees pos ees 28208 too noe 10200 «sae 1951 113 160 54712 24787 64 003 tee ez Tea, Sorta sa8 toes tos geeo, sted tt 8 tose weeco = ataete sr? tazsto 1955 120 000 104 476 50 792 116 187 toe8 reso two savar taza toe? reo gat nzzotd rae teee oven pats «te 760 en isso joo = izes Tae yte 228800 1960 483 500 265 572 175 594 282 840 wee foi srour=taosts= ze 1962 408 700 277 530 234 188 336 191 wees foam sove0 saat 7ee |g He tse Sesemm abies saaSot 00 1965 607 600 516 529 271 594 642 350 "S08 fovetn 522733, zane5o «St 23 ioe? tooo saree aot toa 128 rece foram gore asso 2248 reco teiaes==s nen omm=ae2 7 are a70 tev «250000 «=a tes=sconstt © atesoo (oat ten zoowes= ete saat sueaga e208 tz =saiozre == raceo=—=amma. = Treose_ as aoe ters aazsee=—= team gon aso—«sosaeo. ton as0 ts —saiztoo—=sonzera.=—=morace==seseaco. = gog10 1975" 278 000 984 000 923 000 992 000 924 000 * Previsdo estabelecida no Ato n? 11/75, de 10-6-1975, em conformidade com o Plano de safra de 1975/76 (Resolugdo nO 2092, de 20-5-1975, do IAA). bisica da mecanizagiio do processo produtivo. As obrigagées trabalhistas impostas aos empresérios, ao lado das reinvidicagdes dos operdrios industriais e agricolas, tem induzido os empresdrios a investir cada vez mais em méquinas e equipamentos® . Sob varios aspectos, a aprovacdo do Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963, e a criagéo do Fundo de Assisténcia ao Trabalhador Rural (FUNRURAL), em 1971, foram marcos importantes no desenvolvimento das relagées de producdo no mundo rural. Ao mesmo tempo, essas instituigSes da legislacdo trabalhista para o campo assinalam momentos importantes no processo de expansfo do uso de maquinas e equipamentos na agroindustria agucareira. Foi esse 0 contexto no qual a usina expandiu ainda mais a sua influéncia na economia e sociedade rurais. Com a usina, a propria industria vai ao campo e a agricultura é completamente submetida pelo capital. ‘TABELA XII — Emprego de fatores de produgdo na cultura da cana-de de Sio Paulo e Pernambuco, Safra de 1965/66 (em ha) Produtos Estados | DISCRIMINAGAO | Homens | Animais | Méquinas | Sementes | Quimicos | Adubos dia di dia ton (kg) | (kg) ” Usinas | 112,09 | 17,98 0,56 1,38 0,15 | 0,04 Fornecedores 9820 | 10.60 | 010 | 150 | 1,90 | 002 ¢ Média | 105,14 | 1420 | 033 | 144 | 1103 | 003 3° | Usinas 2963 | 154 | 673 | 172 | 099 | 086 | Forecedores | 3740 | 480 | 480 | 160 | 0,30 | 0,15 ¥ | 33,51 3,17 5,76 1,66 0,64 | 0,50 FONTE: Wilson Carneiro, “A Concentracdo Econdmica da Agroindistria Acucareira”, Brasil Apu: careiro, n? 72, novembro de 1968, pp. 28-35. Cf. Oriowaldo Queda, op. cit., p. 113, Notas m (2) (3) (4) (6) Francisco Ribeiro da Silva: “A lei americana sobre o acticar - ‘Sugar Art’ - seus propésitos e como funciona”, Brasil Acucareiro, 09 4, Rio de Janeiro, Abril de 1971, pp. 8-12, citagdo da p. 10. Ruy Miller Paiva, Salomao Schattan e Claus F. Trench de Freitas, Setar Agricola do Brasil, Secretaria de Agricultura, So Paulo, 1973, p. 165. Ruy Miller Paiva, Salomgo Schattan e Claus F. Trench de Freitas, op. cit., p. 167. Oriowaldo Queda, A Intervencéo do Estado e a Agroindustria Acucareira Paulista, Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Piracicaba, 1972, pp. 112-114. Roberto José Moreira, Andlise do Investimento a Nivel de Propriedades Agricolas da Regiéo de Ribeiréo Preto. Estado de Séo Paulo. Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Piracicaba, 1973; Richard L. Meyer ¢ Paulo F. Cidade Araujo, Aspectos Econémicos da Agricultura na Regio de Ribeiréo Preto, Ano Agricola 1969/ 70, citado; Oscar J.T. Ettori, Yoshihiko Sugai e Paul F. Bemelmans, “Custo de produgo de cana industrial produzida pelos fornecedores cotistas em Sdo Paulo”, Agricultura em Sio Paulo, Ano XV, n9s 1/2, So Paulo, 1968, pp. 33-54. 35 VII — A Sociedade da Usina ‘Ao longo dos’ anos 1945-75, as usinas de agiicar transformaram-se em niicleos importantes da vida econédmica e politica do Municipio de Sertdozinho. Ao lado das agéncias e organizacdes federais e estaduais, da Prefeitura Municipal e da empresa industrial Zanini S.A. Equipamentos Pesados, as cinco usinas de agticar existentes em 1975 em Sertdozinho sfo nicleos importantes da vida econdmica e politica do lugar. Sao estas as usinas que se acham em funcionamento em Sertéozinho, em 1975: Usina Albertina S.A., Usina Santa Elisa S.A., Usina Acucareira Santo Antonio, Usina Agucareira So Francisco S.A. e Usina So Geraldo. Essas usinas esto encarregadas das proprias usinas, ou das suas empresas associadas, como os canaviais de propriedade de fazendeiros e sitiantes, so processados nas cinco usinas, onde sdo transformados em vérios tipos de acticares dlcovis. Isso significa que as relagdes entre os usineiros e os fornecedores de cana-de- -agiicar, e entre estes e aqueles com os trabalhadores da agroindustria, néo podem ser compreendidas se ndo compreendermos 0 que é a usina, enquanto um universo social, ou politico- -econémico. A usina 6 uma fabrica fora do lugar, da cidade, no campo. Parece inserida no proceso de reprodugao do capital agrério. Na usina, 0 capital agrério e 0 capital industrial aparece conjugados, um subsumindo 0 outro. De longe, vista no campo, a usina parece engulida pelo canavial; a fabrica pela planta; a inddstria pela agricultura. Mas 0 que ocorre é 0 inverno, reverso. Na agroindistria agucareira, 0 capital industrial instalado no campo confere ao capital agrério as suas cores e 05 seus matizes. Na usina, a cana-de-agiicar é industrializada, transformada em aciicares e@ Alcoois, seguindo as exigéncias e a légica da producio industrial. Af comandam os processos fisicos e quimicos, mas sobressai a maquina e 0 andamento maquinizado. Na usina, a forca de trabalho e a divisio social do trabalho organizam-se produtivamente, segundo os movimentos e os andamentos do capital industrial. Pouco a pouco as exigéncias da usina se estabelecem e se impdem nos canaviais, sobre os fazendeiros, os plantadores e os operdrios rurais. E verdade que a cana-de- -aciicar se faz segundo o andamento da natureza, nas suas estagdes. Mas esse andamento pode acelerar-se algum pouco e aperfeigoar-se, segundo determinagdes provenientes da usina. E nesse jento que se aplicam e propagam o fertilizante, o defensivo, 0 caminhdo, o trator, a queima das folhas, a intensidade do corte, a velocidade do transporte, a intensificagdo da forga de trabalho 36 ‘Ao desenvolver-se no campo, a usina incute no verde dos canaviais uma vibracdo e uma aspereza que nada tém a ver com a docuca da cana madura. No centro desse movimento de crescente “maquinizago” do proceso produtivo, esté a usina, “A usina é uma fébrica de agticar, com investimento complementar na producdo (agricola) da matéria-prima. Uma parte substancial do seu ativo imobilizado 6 constitu/da pelo capital fix industrial, cuja valorizagao exige que sua capacidade de producSo seja aproveitada em elevada proporgdo, com absorcao de quantidades crescentes de cana. Além do mais, a exploragaio dos ganhos de escala provocou aparecimento de usinas cada vez maiores”. Na usina 0 processo produtivo envolve uma complexa diviséo social do trabalho organizada com base em processos e meios maquinizados. “Depois de esmagada a cana nas moendas, 0 caldo é submetido a uma série de processos fisicos e quimicos de purificagdo, para retirar as impurezas que impedem ou prejudicam a cristalizacdo do agéicar. Logo apés, 0 caldo beneficiado € concentrado em aparethos de evaporacio, de efeitos milltiplos, de acordo com o niéimero de vasos evaporadores, transformando-se em xarope. O agticar contido no xarope é cristalizado inicialmente, nos aparelhos do cozimento a vécuo, passando a massa cozida aos cristalizadores, para esfriar lentamente, tornando-se viscosa e esgotando 0 liquido-mée pelo depdsito de novos cristais. Em continuacao, a turbinagem cuida de reparar os cristais das éguas-maes que os envolvem. O acuicar retirado pelas ‘turbinas da massa cozida de primeira & chamado de primeiro jato. O mel rico volta a ser utilizado, ainda, para a obtencéo de agiicar de primeira, ao passo que 0 mel pobre destina-se & obtengdo de agiicar de segundo jato. Em algumas usinas as instalagdes permitem chegar fabricagdo de acticar de terceiro jato. O mel residual da Gitima centrifugagzio 6 chamado melaco ou mel exausto, a ser utilizado coma matéria-prima para a fabricagdo de dlcool ou aguardente. As operacdes acima indicadas obedecem ao seguinte escalonamento: a) esmagamento da cana e extrac do caldo; b) b) purificacéo do caldo — sulfitagSo, colagem, preaquecimento, decantagdo e tratamento dos residuos; c) evaporaco; d) cozimento; e) cristalizaggo; f) turbinagem; g) secagem e ensacamento. O proceso sofre determinadas alterages conforme 0 tipo de acticar que se deseja obter: acticar branco tipo usina ou agiicar escuro, tipo demerara. O cristal tem alta polarizagdo e sofre um descoramento mais completo, a0 passo que o demerara apresenta os cristais envolvidos por uma pelfcula aderente de melaco. Finalmente, o acticar cristal, antes de ser entregue ao consumo 6, via- -de-regra, submetido a um processo de refinagdo, destinado a torné-lo impecavelmente alvo, diminuir-lhe 0 grau de umidade e retirar-Ihe 0 cheiro que, por vezes, se apresenta, como decorréncia de defeito de fabricacdo ou por alteracdo subseqiiente do agticar bruto?. Note-se que 0s processos fisicos e quimicos envolvidos na operacdo da usina implicam numa complexa divistio social do trabalho, que vai do foguista a0 quimico, do engenheiro de maquinas a0 ensacador. ‘Ao mesmo tempo, a usina polariza 0 processo produtivo que vai dos canaviais ao agticar ensacado. Independentemente da quantidade e proporgio de cana que processa, a usina polariza todos os movimentos da agroindiistria acucareira. “A usina representa © nécleo irradiador de intensas atividades, objeto de vasta legislacao espectfica, nela centralizando-se a intervencao estatal. E 0 estabelecimento industrial titular de uma cota de produgdo de aciicar, o qual se abastece compulsoriamente de matéria-prima dentro de quantitativos rigidamente estabelecidos”® . Em 1975, so cinco as usinas de agiicar e dicool existentes no Municfpio de Sertdozinho. Antes, em 1956, havia sete usinas ali, além de engenhos de aguardente. Em seguida, 4 medida que se expandem os negécios do aciicar, no Brasil e no exterior, as usinas so reduzidas a cinco, com maquinério novo e maior produtividade. Produzem agticares para 0 mercado interno e para exportagio. Em 1975, sdo estas as usinas no lugar: Usina Albertina S.A. Usina Santa Elisa S.A. Usina Agucareira Santo Antonio, Usina Acucareira Séo Francisco S.A., e Usina Sé0 Geraldo. Algumas dessas usinas tiveram origem em engenhos de aguardente, pois que em Sertéozinho floresceram os engenhos de aguardente nos anos 1920-40. E os engenhos, por sua vez, em muitos casos sucederam a cafeicultura decadente. No caso da Usina Santa Eliza, a sua historia estaria ligada a um engenho de aguardente. “Em 1936, os Srs. Pedro Biagi e Joo Marchesi adquiriram em hasta piblica a propriedade denominada Retiro, no Municipio de Sertéozinho, Estado de So Paulo, e ali fundaram um engenho para fabricagdo de aguardente de cana-de-agiicar. Foi adotada a nova denominacao de Fazenda Santa Elisa. Em 1937, a sociedade foi registrada sob a razdo social M. Biagi & Cia, ocorrendo o ingresso dos Srs. Maurilio Biagi, Gaudéncio Biagi, Bandflio e Jogo 37 Pagano, e a safda do Sr. Jodo Marchesi, Houve amplicagdo das instalagSes industriais criando-se um complexo que compreendia usina de a¢ticar e alcool, além da antiga destilaria de aguardente. Naquele ano foram produzidos pela usina 15.600 sacos de acticar. Gradativamente, a producéo foi crescendo: 17.060 em 1938, 18.000 em 1939, até atingir 125.000 sacos em 1950. Em 1951 a empresa adotou a forma jur(dica de sociedade por agées, passando a girar sob a denominacao de Usina Santa Elisa $.A., com 0 capital de Cr$ 10.300,00". Em 1957 foi realizada a primeira grande ampliagdo das mdquinas e equipamentos da Usina, Entdo introduziram-se cinco moinhos acionados por dois motores a vapor. Em 1959 essa Usina incorporou a Usina Irmaos Everzut Ltda. Em 1951 havia produzido 133.160 sacos de agticar, ao passo que em 1960 produziu 483.500. Em 1968 incorporou a Usina Anhumas. E produziu 729.188 sacos de agticar em 1970. Em 1969 teve infcio um programa de ampliacgo e renovacdo total das instalagdes, maquinas e equipamentos. “Em 1973, a Usina Santa Elisa S.A. situada no Municfpio de Sertdozinho, no Estado de Sio Paulo, inaugurou as suas novas instalagdes industriais. Com a montagem dos novos equipamentos, a Usina Santa Elisa transformou-se numa das fabricas de acticar mais modernas do pafs e a sua capacidade nominal de producdo chegou a 1,5 milhdes de sacos de 60 Kgs. de agticar (90 mil toneladas) por safra. O projeto e 0s equipamentos foram proporcionados, por completo, por Zanini S.A. Equipamentos Pesados (empresa pertencente ao mesmo grupo Biagi, proprietério da Usina) que iniciou os trabalhos de reforma e ampliac3o do setor industrial em 1969'S. ‘Em meados de 1973, Zanini concluiu a montagem do setor de fabricagdo (boiling house) tanto como a ampliagéo da estacao de energia elétrica, completando assim as obras. O equipamento antigo foi desmontado e vendido”. Outras usinas foram instaladas na década dos anos 40, como a Sdo Geraldo (1946) e a Santo Antonio (1947). Mas também passaram depois por ampliacdes e renovagdes das suas méaquinas, equipamentos e instalagdes. Como jé indiquei, a progressiva ampliagdo e renovagao das méquinas e equipamentos na agroindistria agucareira, foi e continua a ser impulsionada pelas condigées de oferta de forca de trabalho, por um lado, e pela prépria acumulagdo do capital, por outro. Mas o fenémeno tende a ser verbalizado pelos usineiros, ou seus representantes, como decorréncia da escassez de mao-de-obra por um lado, e a necessidade de aumentar a produtividade, por outro. De qualquer forma, na agroindistria canavieira continuam crescer os investimentos em maquinas, equipamentos, fertilizantes e defensivos. Ao mesmo tempo, continua a concentrar-se 0 capital agroindustrial investido no setor. Em certos aspectos, a aco governamental tem estimulado © processo de concentragéo do capital no setor. O artigo 56 da lei n? 4.870, de 19 de dezembro de 1965, estabelecia que o IAA deixava a critério dos interessados “a venda, permuta, cesso ou transferéncia de maquindrio e de implementos destinados a atender o aumento da capacidade industrial das usinas”. E 0 Decreto-Lei n? 1.186, de 27 de agosto de 1971 destinou-se especificamente “‘conceder estimulos fusio, incorporaco e relocalizacio de unidades industriais agucareiras”. Isto é, 0 governo passou a conceder incentivos fiscais e financeiros as usinas e a0 fornecedores, de modo a propiciar a intensificacdo da mecanizacdo do processo produtivo e o aumento da produtividade. E o Ato n? 50/71, de 29 de dezembro de 1971, destinou-se a estabelecer as nomas para a aplicacao do disposto no referido Decreto-lei. Dessa forma, a acdo governamental passou a orientar-se expressamente no sentido ‘centralizago ou concentrago do capital agroindustrial. Nesse proceso, a usina adquire ainda maior preeminéncia no mundo social, ou politico-econémico, no qual se destacam os usineiros, os plantadores, os operdrios das usinas 08 operdrios agricolas, residentes e no residentes. Uma parte da cana-de-acucar processada pelas usinas tem sido produzida nas terras das proprias usinas, ou suas empresas associadas. E a outra parte tem sido produzida em sitios e fazendas. Os proprietérios dos sitios e fazendas sdo os fornecedores de cana industrial. As vezes dedicam-se com exclusividade cultura da cana. Outras vezes combinam e revesam a cultura da cana com outras, tais como milho, algodo, arroz, amendoim e outras. Mas é grande o numero de fornecedores de cana para as usinas de agicar de Sertdozinho. Em 1975, estes sio os fornecedores registrados na Associacdo de Fornecedores de Cana-de-Acicar: Albertina, 33; So Francisco, 40; S4o Geraldo, 85; Santo Antonio, 112 e Santa Elisa, 147. Ao todo, em 1975, 0s fornecedores de cana do Municfpio de Sertdozinho so 417. Vejamos agora, de modo breve, alguns caracteristicos sociais e politicos da usina. Esses caracteristicos parecem ser, a0 mesmo tempo, condic¢o e conseqiléncia da forma pela qual ocorre a reprodugao do capital agroindustrial no setor agucareiro. 38 Conforme jé vimos, a Usina Acucareira So Geraldo foi fundada em 1946, Sua produgao aumentou de 4.020 sacos de 60 kgs em 1946, para 606.211 em 1970. Em 1974 produziu 836.910 sacos de agticar. E claro que essa expansio implicou numa ampla e complexa mobiliza¢do de forcas produtivas, nas quais sobressaem méquinas e equipamentos destinados a potenciar a produtividade da forca de trabalho. Ao mesmo tempo, é claro, desenvolveu-se a divisio social do trabalho. Pouco @ pouco a usina vai mobilizando uma massa ampla de operdrios industriais e agrfcolas, além de empregados de escritérios, técnicos, engenheiros, quimicos e outras categorias profissionais. Ao relatar 0 que era a Usina Séo Geraldo, em 1956, o cronista de Sertdozinho fazia uma sintese do que era o mundo social nesse niicleo da agroindiistria agucareira. “A sede possui todas as benfeitorias e requisitos de uma usina moderna: agougue, armazém, cinema,’ ambulatério médico, gabinete dentério, barbearia, pensdo para alojamento de 80 pessoas e 6 escolas distribu(das e localizadas na drea da fazenda onde a densidade de lavradores & mais intensa. As casas da sede e dos gerentes, com seus magnificos parques, merecem um cap/tulo 2 parte. Por suas instalagdes e pelo conforto que oferecem colocam-se na primeira plana das construcdes similares de todo o pats. ‘S80 bem dignas dos usineiros que conseguiram uma organizagao de escol como 6 a da Usina Acucareira Séo Geraldo”””. Uma noticia publicada em 1972, sobre a Usina Séo Geraldo diz 0 seguinte. “Para a manuten¢éo dos servigos na Usina, sio utilizados 1.220 empregados, sendo que 250 operam na parte industrial e 970 na parte agrfcola, que por sua vez, utilizam-se de 62 tratores, 25 caminhdes e diversos carros, possuem também um avio Cessna para uso exclusivo da diretoria”*. Ao mesmo tempo, a usina seguia um plano de assisténcia social englobando ambulatério médico e gabinete dentério. Quanto as atividades educacionais, esportivas e recreativas, possu/a grupo escolar, duas classes do Mobral, o Esporte Clube S80 Geraldo, campo de futebol, quadra de futebol de saléo e quadra de basquete’. Trata-se de um mundo social amplamente urbanizado. Caracter(sticas sociais, ou econdmicas e politicas, semethantes aparecem na organizagdo nucleada também pelas outras usinas. Em 1956, a Usina Santa Elisa j4 se achava amplamente urbanizada. Conforme escreveu 0 cronista de Sertdozinho, descrevendo essa usina: “A drea total da fazenda Santa Elisa é de 1.700 alqueires de terra roxa mista, dos quais 900 alqueires so destinados ao cultivo da cana-de-agticar da propria fazenda. A lavoura é mecanizada e obedece aos requisitos da moderna e racional agricultura. Sessenta lavradores vizinhos com uma drea de 335 alqueires fornecem anualmente para mais de 30 mil toneladas de cana”. E acrescenta: “‘Dedicam suas atividades 2 Usina cerca de 1.200 pessoas, que recebem assisténcia médico-hospitalar, de enfermagem, intelectual, espiritual e até recreativa. Assim & que a Usina possui ambulatério médico, dentério, posto de puericultura, um grupo escolar com 180 alunos e uma escola isolada mista e uma igreja espagosa. Na parte recreativa destacam-se um clube para reunides dancantes e literérias, moderno cinema e um magnifico campo de futebol para a pratica desse popular esporte’!. Esse mundo social bastante urbanizado continua a desenvolver-se nos anos seguintes: sempre polarizado em torno da usina e da figura do usineiro. Como as outras, a Usina Santa Elisa transformou-se num universo s6cio-cultural e politico-econémico urbanizado. “E composta de um niicleo principal, onde se localiza a indGstria, com 3 nUicleos habitacionais, totalizando 145 residéncias; além do nucleo principal hé 3 segdes: engenho central, fazenda Vassoural e Lagoa da Serra, tendo cada uma Tespectivamente 29, 24 e 53 casas residenciais. Conta atualmente com 1.900 empregados, sendo 1.350 da lavoura, onde 750 so fixos e 600 so contratos de safra; e 550 da Indistria. Grande parte dos empregados reside na sede e nas segdes. Os demais distribuem-se pelas cidades de Sertozinho onde se localiza o maior contingente, e outras cidades: Pitangueiras, Pontal, Jaboticabal, Jardin6polis, Ribeiro Preto etc.. A Usina presta aos seus empregados assisténcia médic -odontolégica, farmaucéutica, escolar, religiosa, etc.. Os empregados mais beneficiados sio os que residem na sede e secdes. Os demais, de uma maneira geral, buscam em suas préprias cidades os postos do Funrural, INPS, ou outros existentes para o atendimento da populacdo local”, Nao hé divida de que a extensdo da legislacdo trabalhista a0 campo destinou-se, em parte, a proteger os operdrios rurais, nas suas relagdes com os compradores de forga de trabalho. Mas & inegdvel que a legislacdo relativa 4 “asistencia social aos trabalhadores das usinas, destilarias e fornecedores de cana” permite que 0 usineiro e o fazendeiro aumentem o seu controle politico sobre os operdrios industriais e rurais. E verdade que 0 governo vem ampliando e sistematizando a 39 legislagdo destinada a proteger o trabalhador rural e garantir-lhe assisténcia social. No caso do proletariado industrial e rural que trabalha no setor da cana-de-acticar, essa politica esté presentemente regulada pelos artigos 35, 36 e 37 da Lei n? 4,870 de 1 de dezembro de 1965, e pelo Ato n? 3, de 25 de janeiro de 1968. O artigo 36, da referida lei, estabelece o seguinte: “Bicam os produtores de cana, agticar e dicoo! obrigados a aplicar, em beneficio dos trabalhadores industriais e agrfcolas das usinas, destilarias e fornecedores, em servicos de assisténcia médica, hospitalar, farmacéutica e social, importancia correspondente no minimo, as seguintes percentagens: a) de 1% (um por cento) sobre 0 preco oficial do saco de acticar de 60 (sessenta) quilos, de qualquer tipo. ..; b) de 1% (um por cento) sobre o valor oficial da tonelada de cana entregue, a qualquer t/tulo, as usinas, destilarias anexas ou auténomas, pelos fornecedores ou lavradores da referida matéria; c) 2% (dois por cento) sobre 0 valor oficial do litro de dlcool de qualquer tipo produzido por destilarias, Os recursos previstos neste artigo serdo aplicados diretamente pelas usinas, destilarias e fornecedores de cana, individualmente ou através das respectivas associages de classe, mediante plano de sua iniciativa, submetido aprovacdo e fiscalizagdo do IAA". O Ato n? 3 reafirma a obrigatoriedade das associacdes ou cooperativas de fornecedores de responsabilizarem-se pela aplicago do disposto na alfnea “b” do artigo 36 da Lei n? 4.870 “obrigatoriamente em beneffcio dos trabalhadores agrfcolas dos fornecedores de cana e dos pequenos fornecedores e de seus familiares”. O mesmo ato de 1968 especifica que as usinas e destilarias esto obrigadas a aplicar os recursos estipulados nas alineas “a” e “c’” do artigo 36 da referida lei, nas seguintes reas: assisténcia médica (hospital, maternidade, ambulatério, enfermaria) medicina preventiva e higiene; assisténcia farmacéutica; assisténcia odontolégica, auxilios funeral e pré-natal; assisténcia educativa; e assisténcia recreativa. Sob varios aspectos, pois, a usina parece polarizar as relagdes econémicas e politicas que esto na base do funcionamento da agroindustria acucareira. Sob varios aspectos, a usina pode ser vista como um mundo social (econdmico, politico e cultural) complexo e relativamente isolado e auténomo. Vejamos, numa sintese, alguns dos caracterfsticos da sociedade que esté polarizada pela usina; isto 6, polarizada pela reprodugo do capital agroindustrial comandado pelo usineiro. ‘Na usina, entendida como um complexo produtivo que engloba fabrica e plantacées, as pessoas se dividem em operérios industriais, operérios agrfcolas, capatazes, feitores, fiscais, técnicos, engenheiros, qu{micos, empregados de escritério e outros, além da diretoria, que engloba os proprietérios. H4 também médicos, enfermeiros, dentistas, professores, assistentes sociais, guardas, vigilantes, porteiros, mensageiros e outros tipos de trabalhadores. No conjunto, a populacgo que trabalha na usina e’nas plantacdes esté organizada segundo as Bxigéncias da reproducao do capital agorindustrial, da divisio do trabalho, das hierarquias das posigdes e mandos, das formas e niveis de participagéo no produto do trabalho coletivo dos operdrios agricolas e industriais; tudo sob o comando do usineiro e seus prepostos, Essa humanidade, que vive e se reproduz na usina e canaviais, colénias e escritérios, em geral se compde de familias completas, as vezes de trés geragSes. Distribuern-se em pperérios agricolas, operérios industriais, empregados, etc... Na época da safra (junho-dezembro) agregam-se a populacao preexistente na usina e nos canaviais os trabalhadores contratados, temporérios, provenientes das periferias da cidade de SertZozinho, de outras cidades ou outros Estados, tais como: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco ou outros. Esses so 0s trabalhadores tempordrios da época da safra, conhecidos como paus-dearara, bdias-frias, volantes, baianos ou outras denominagdes. Sao operdrios agricolas e industriais que fazem aumentar de cerca de 50 por cento, no caso da usina, a 100 por cento, no caso dos canaviais, a populaco assalariada. Mas todos se ajustam as relagdes hierérquicas e estruturas vigentes na agroindistria polarizada em torno da usina. As relagdes e estruturas de apropriagéio e dominagdo vigentes na usina e canaviais adquirem o seu maximo dinamismo na época da safra. A rigor, a populacgo que movimenta a usina e os canaviais esté organizada em classes e setores de classes: operdrios rurais, operdrios industriais, capatazes, fiscais, empregados administrativos, técnicos, proprietérios. E claro que esse mundo social (econémico, politico e cultural) esté influenciado, marcado, identificado e movimentado pelos valores, padrdes, normas, relacdes vigentes e predominantes na sociedade brasileira. Af esto as igrejas e seitas, os governos e governantes, as escolas e jornais, as revistas e livros, as rédios e tevés, as freiras e padres, os assistentes sociais e propagandistas, as lojas e os comerciantes, os jogos e campeonatos, inclusive eleicdes, eleitores e eleitos. Também 40 esto presentes no mundo social da usina e canaviais as varias organizagdes que definem, delimitam e fazem funcionar as relagSes entre as pessoas, fam/lias, grupos e classes sociais: o Instituto do Aciicar e do Alcool (IAA), 0 Programa de Assisténcia a0 Trabalhador Rural (PRORURAL), o Fundo de Assisténcia ao Trabalhador Rural (FUNRURAL), a Consolidacéo das Leis do Trabalho (CLT), 0 Instituto Nacional de Previdéncia Social (INPS), a Cooperativa Central dos Produtores de Agicar e Alcool do Estado de S8o Paulo (COPERSUCAR), a Associagdo dos Plantadores de Cana do Oeste do Estado de Séo Paulo, o Sindicato dos Cortadores de Cana de Sertdozinho, a casa da Lavoura, a Prefeitura Municipal, a Delegacia de Policia, o Juiz de Direito, 0 Promotor Publico. Isto 6, 0 poder econdmico e politico esté organizado nas usinas, no campo, na cidade, no conjunto do Municipio de Sertozinho, em conformidade com as exigéncias do poder polftico-econdmico expresso no Estado e em conformidade com as exigéncias da reproducao do capital agroindustrial investido nos negécios da cana-de-agticar. Nesse mundo social (econémico, polftico e cultural) bastante complexo, assinalado pelos perfis e dinamismos peculiares da entressafra (janeiro-maio) e safra (junho-dezembro) destacam-se varios caracteristicos bésicos; caracteristicos esses que precisam ser compreendidos de forma integrada. Em primeiro lugar, trata-se de um ambiente social amplamente urbanizado. Todas as relacdes estruturas, todos os valores e padrdes esto, em algum grau, impregnados das relacdes e estruturas dos valores e padrdes vigentes e predominantes no mundo urbano. Nao hé, praticamente, descontinuidade entre a cidade e 0 campo, a inddstria e a agricultura, a fabrica e o canavial. Em segundo lugar, a forca de trabalho é, ao mesmo tempo, agricola e industrial. E verdade que o cortador de cana se distingue do operdrio da usina. Trabalham em condigdes sociais e técnicas distintas. Reproduzem-se de forma diversa, se pensamos na organizago social e técnica das relagbes de produgio. Mas esto relacionados, ligados por duas formas. Esto ligados na continuidade de um mesmo proceso produtivo que ata o corte da cana, a moagem e 0 aciicar. Um segue e realiza 0 outro, enquanto processo social de produgdo, enquanto realizago de valor, enquanto utilizagdio de fora de trabalho. Ao mesmo tempo, estao ligados pela continuidade do mercado de forga de trabalho. O cortador de cana em geral quer ser um operdrio na usina. O corte da cana é trabalho éspero e longo. Na safra, a jornada de trabalho freqiientemente tem 10 a 12 horas de durago. E 0 ganho é por tarefa realizada, cujo prego ¢ estipulado pelo IAA, em conformidade: com 08 interesses do usineiro. Além do mais, 0 trabalho no corte da cana é tempordtio. Dura meses. Depois termina. € instdvel. Na lavoura, as garantias sociais sd mais precdrias, Quando ha cana para cortar, acima do cortador esto 0 capataz, fiscal, o caminhoneiro e 0 fazendeiro ou © usineiro. Para 0 operdtio rural ¢ muito vistvel e pesada a carga do trablho, dos encargos, dos que precisam ser carregados. Na usina, a jornada de trabalho estd regulada de forma diversa. As bases da jornada so as 8 horas e 0 saldrio minimo; o que se trabalha a mais so horas extras, pagas com acréscimos. E af as garantias sociais séo menos precérias. As proprias condigdes de aposentadoria so melhores. Por essas e outras razSes, a massa de operérios rurais esté sempre pressionando no sentido de entrar na esfera de producdo industrial. Naturalmente é apenas uma pequena parcela que logra a mudanga. Nem por isso, no entanto, uns e outros, operdrios industriais e rurais, deixam de estar num mercado de forca de trabalho relativamente continuo. Em terceiro lugar, 0 mundo social no qual esto integrados a usina, os canaviais, e os varios tipos de trabalhadores, 6 um mundo social (econémico politico e cultural) no qual domina, predomina o usineiro. Ele é a figura e a figurago do que se pode e deve fazer, do que é permitido e proibido, do que se premia e castiga. Ele é 0 proprietério, dono e prefeito de tudo. As pessoas empregadas na usina e nos canaviais, nos escritérios e nos ser véem nele 0 niicleo do poder, das decis6es, das possibilidades, das proibigdes. Nas plantagdes e na usina, nas colénias e escritérios, nos caminhos e porteiras, 0 usineiro aparece como a autoridade méxima, predominante, ou quase Gnica, Tanto assim que a Prefeitura, a Delegacia, 0 Sindicato, a lgreja e outras instituigdes néo operam na rea da usina e seus canaviais a ndo ser por meio de alguma forma de intermediaco do usineiro ou seus prepostos. Algumas relagdes “externas” fundamentais das pessoas, fam/lias e grupos que trabalham e residem nas herdades do usineiro esto sob 0 controle da direco da empresa. No mundo social da usina e canaviais, tudo tende a tornar-se privado, organizado segundo as exigéncias da reproducdo do capital agroindustrial especializado na produgSo de acuicares e dlcoois. a Notas a (2) (3) (4) (5) (6) 0) (8) (9) (10) ay Poul Singer, Desenvolvimento Econémico ¢ Evolugio Urbane, Companhia Editora Nacional, So Paulo, 1968 p. 333. Brasil/Agticar, Instituto do Agicar e do Alcool, Rio de Janeiro, 1972, pp. 107-108. Helio Pina, A Agro-Indistria Acucareira e sua legislacéo, Apec, Rio de Janeiro, 1971, p. 169. Hist6rico, Usina Santa Elisa S.A. Consultar também: Antonio Furlan Junior, op. cit., esp. pp. 113-114; Santa Elisa”, Sugar Y Azucar, vol. 69, n® 12, New York, december 1974, pp. 37-43. “"Usina Santa Elisa”, Sugar ¥ Azucar, citado; Hist6rico, Usina Santa Elisa S/A, citado, “"Usina Santa Elisa”, Sugar Y Azucar, citado Antonio Furlan Junior op. cit, p. 118 Sertéozinho: A Capital do Acdcar, publicagio de 1972, época da administragao do Prefeito Municipal sr. Arnaldo Bonini, p. 9. Sertéozinho: A Capital do Agticar, citado, p. 8. Antonio Furlan Jr, op. cit, p. 113. “Plano minimo de aplicago conjunta em Assisténcia Social - artigo 36 da Lei 4.870/65", Sertéozinho, 20 de janeiro de 1975. “Using 42 VII — © Operdrio da Usina e do Canavial No Munic/pio de Sertaozinho, a populagdo rural decresceu bastante, em termos relativos e absolutos, 8 medida que se expandiu a agroindistria agucareira. Em 1940, vivia no meio rural 73,7 por cento da populag3o do Municfpio. Em 1970 essa populagao havia se reduzido a 26,4 por cento. Entre 1960 e 1970 a populacdo rural caiu de 48,0 para 26,4 por cento. Os dados apresentados anteriormente, na Tabela IX (Cap. V), dio uma idéia desse processo de urbanizagao, a0 longo das décadas, durante as quais a agroindistria acucareira passa a predominar amplamente ‘no mundo social rural. Note-se que em 1938 Sertdozinho perdeu o Distrito de Pradépolis para 0 Municipio de Guariba e que em 1953 0 Distrito de Barrinha, até entdo-pertencente a0 Municipi de Sertdozinho, foi elevado & categoria de Munic(pio. Mas esses fatos no alteram o significado do processo indicativo pelos dados da Tabela 1X, apresentada no Capitulo V. Seria enganoso pensar que a acentuada transferéncia de populac3o do campo para a cidade significou um despovoamento do campo. Nada disso. O que houve foi a expansdo da agroindistria agucareira, que modificou o mundo social do campo. Mais que isso, a expansdo da agroindistria provocou @ urbanizag4o do mundo rural. A populagdo que reside ou trabalha nas usinas e canaviais passou a consumir a produco material e espiritual do mundo urbano, desde o programa de televiséo & pflula anticoncepcional, desde o sindicalismo assistencialista aos jogos e divertimentos programados pelo usineiro ou seus prepostos, desde as deliberacdes do IAA as classes do Movimento Brasileiro de Alfabetizago (MOBRAL). A medida que se reduz a populacdo que habita © campo, urbaniza-se 0 campo e redefinem-se as relagdes de produg3o na agroindustria canavieira. Tanto assim que modifica-se a composi¢ao social da massa de trabalhadores envolvidos nessa agroindistria. Pouco a pouco 0 colono deixa de ser a principal categoria de trabalhador. Isto é, ele é transformado em trabalhador permanente ou temporério, em mensalista ou diarista. Muitos colonos so expulsos das colénias, dos niicleos habitacionais dispersos ao largo da casa grande, da usina ou dos canaviais. As terras das coldnias, suas hortas e quintais so tomados pelos canaviais ou construgdes das usinas. E os colonos transformam-se em assalariados residentes, alguns, ¢ no residentes, outros, cada vez mais numerosos. Os dados da Tabela XIII assinalam dois aspectos importantes dessa etapa da histéria do proletariado rural de Sertdozinho. Entre 1940 e 1972, os assalariados permanentes reduzem-se de 3.856 para 2.105. Na mesma época, os assalariados temporérios passam de 123 para 4.177. 43 TABELA XIII ~ Operérios Rurais. Sertdozinho 1940-1972 ASSALARIADOS —_ ASSALARIADOS AMO 'PERMANENTES —TemporAnios. = TOTAL 1940 3.856 123 3.979 1950 2077 289 2.936 1960 2.433 3.836 6.268 1972 2.108 aa77 6.282 FONTES: IBGE. Censos Agricolas. INCRA, Recadastramento, 1972. Esses movimentos da forga de trabalho expressam os movimentos do capital agroindustrial, cujo ciclo esta influenciado pelo ciclo sazonal que governa o corte da cana e a fabricagdo de agticar. Conforme um relatério da Usina Santa Elisa, de Sertéozinho: “Conta atualmente com 1.900 empregados, sendo 1.350 da Lavoura, onde 750 so fixos e 600 so contratos de safra; e 550 da Indistria. Grande parte dos empregados reside na sede, e nas segdes. Os demais distribuem-se pelas cidades de Sertdozinho, onde se localiza 0 maior contingente, e outras cidades: Pitangueiras, Pontal, Jaboticabal, Jardinépolis, Ribeiro Preto etc.” ‘Ao longo do processo de expansdo da agroindustria acucareira, tende a reduzir-se o emprego de trabalhadores permanentes, ao mgsmo tempo que aumenta o contingente dos temporérios, Esse processo foi registrado por José Cesar A, Guaccarini, em estudo sobre a agroindistria agucareira do Estado de Sdo Paulo®. Nesse estudo, que inclui usinas de Sertéozinho, ele constatou que tem aumentado 0 contingente de trabalhadores que as usinas e os canaviais mobilizam na época da safra. Entre 1958 e 1968, os trabalhadores ocupados na entressafra passaram de 10.505 a 17.618, Ao paso que no mesmo perfodo os trabalhadores empregados na safra aumentaram de 15.735 para 31.225. E 0 que registra a Tabela XIV. Esse processo de expulsio de trabalhadores das usinas e canaviais para as periferias das cidades e simultanea transformacao da estrutura do proletariado da agroindustria agucareira, foi e continua a ser o produto combinado de varios movimentos do capital agroindustrial. Vejamos dois desses movimentos, que aliés ocorrem simultanemante, um influenciando 0 outro. Em primeiro lugar, tem havido uma crescente mecanizago dos processos de trabalho, nas usinas e nos canaviais. © preparo das terras para plantio, a adubaco, 0 plantio, o trato dos TABELA XIV — Trabalhadores agricolas ocupados nas terras das usinas pesquisas: 1958-1968 Ano e Perfodo N° de Trabalhadores —‘Relages a : b 1968 a) ante-safra 10.505 b) safra 18.736 ey (NO de usinas) 32) 1968 a) ante-safra 17.618 b) safra 31.618 UB (N@ de usinas) (42) FONTE: José C, A, Guaccarini, op. cit, p. 194. 44 canaviais, a aplicagdio de defensivos, so as varias atividades que tém imcorporado processos mecénicos. Tudo isso reduz e redefine os usos da forga de trabalho nos canaviais. Tudo isso em nome do aumento da produgdo e da produtividade, para atender as crescentes demandas dos mercados interno e externo. Ao mesmo tempo, cresce 0 coeficiente de capital investido em méquinas, equipamentos e instalagdes para fabricar agiicar e alcool. Tem havido vérias ampliagdes @ renovacdes das maquinas, equipamentos e instalagdes das usinas, com apoios e incentivos governamentais por via do IAA. Muda a composi¢ao técnica e orgénica do capital, crescendo bastante o capital constane, ou imobilizado em terras, maquinas, equipamentos, instalagdes etc... E decresce 0 montante do capital invertido na compra de forca de trabalho. Mesmo porque a forca de trabalho produz cada vez mais, devido a potenciacgo da sua produtividade, pela incorporagdo da tecnologia e a redivisdo social do trabalho. Em segundo lugar, mais ou menos contemporaneamente a expanso da agroindustria acucareira, ocorreu uma progressiva formalizagio das relagdes de produgdo nas usinas e canaviais. Adotou-se uma legislacdo trabalhista (sindical e previdencidria) que organiza e disciplina as condigdes polfticas e econémicas de oferta e demanda da forca de trabalho nessa agroindustria. Foi em 1944 que a legislacao relativa & agroindistria agucareira comegou a abordar, de modo explicito, o operdrio tural e industrial do setor. Na legisla¢do anterior, da qual se destaca o Estatuto da Lavoura Canavieira (Decreto-lei n° 3.855, de 21 de novembro de 1941) falava-se em lavrador, parceiro ou arrendatério como fornecedores de cana-de-agiicar as usinas. Portanto, falava-se em sitiantes e fazendeiros, as vezes parceiros e arrendatérios, que eram proprietdrios de plantacdes de cana. Alids, © Estatuto da Lavoura Canavieira destinou-se principalmente a regulamentar as relagdes dos fornecedores de cana com as usinas, de modo a garantir a sobrevivéncia dessa categoria social em face da expansio do capital agroindustrial dos usineiros. E essa finalidade 6 especificada no artigo 2 do decreto-lei. E 0 seu artigo 3 estabelece que o Estatuto no se aplica a assalariados. Foi o Decreto-lei n? 6.969, de 19 de outubro de 1944 que comegou a definir juridicamente a condigdo do operérig rural e industrial do setor canavieiro. Entre outros direitos garantidos aos “trabalhadores rurais” por esse decreto-lei, foi estabelecido no artigo 19 que “considera-se trabalhador rural aquele que presta os seus servigos na lavoura canavieira em caréter permanente, periddico ou transitério”. Estabeleceu, também, que os trabalhadores rurais “tero a sua situago regulada em contratos-tipos aprovados pelo IAA’. Ao mesmo tempo, no artigo 22 registrou que os contratos-tipos deveriam observar os seguinte princ{pios: proibi¢do de quaisquer descontos em salérios, por motivos de mas colheitas; direito a moradia para a fam(lia do trabalhador; direito a assisténcia médica, dentéria e hospitalar gratuita; também ensino gratuito aos filhos de trabalhadores; e garantia de indenizacdo, no caso de despedida injusta. O artigo 23 estipulava que “o trabalhador rural com mais de um ano de servico, tera direito 4 concessdo, a titulo gratuito, de uma drea de terra proxima 4 sua moradia, suficiente para a plantacdo e criacdo necessdrias 4 subsisténcia de sua familia”, Como se vé, tratava-se de uma tentativa de garantir o regime do colonato, numa época em que ele jé comecava a desagregar-se de novo. Alids, 4 medida que séo organizadas juridicamente as relagdes de produco no setor, essa mesma legislagdo impulsiona a mudanca das mesmas relacdes de producao. Notesse que esse mesmo decreto-lei estabeleceu que os operdrios das usinas tém direito a uma “carteira profissional”. E mais: “Durante a prestacdo de servicos industriais na usina o trabalhador rural estar subordinado aos dispositivos da Consolidacdo das Leis do Trabalho (CLT) e das demais de protecao ao trabalhador, inclusive dos que regulam o salario.” Mas essa lei s6 “pegou” anos depois, devido 4s mudangcas politico-econémicas havidas na agroinddstria agucareira e no conjunto da sociedade brasileira. Somente em 1959 reconheceu-se que 0 operdrio da usina estava amparado pela CLT. "Jd a partir de 1959 0 Tribunal Superior do Trabalho entendera que os empregados rurais dos estabelecimentos industriais estavam amparados integralmente pelas disposiges da Consolidacao das Leis do Trabalho, sendo este entendimento também o do Supremo Tribunal Federal. Iniciou-se por essa época um movimento de arregimentacdo dos trabalhadores rurais das usinas e engenhos de acdicar paulistas, por iniciativa de liderancas dos sindicatos de trabalhadores industriais. O movimento centralizou-se desde o infcio em torno de assisténcia judicial para efeito de reclamagées de saldrios nao pagos, diferencas de salério, regularizago das cadernetas de trabalho, indenizacao por estabilidade em caso de rescistio de contrato de trabalho, indenizacdo por benfeitorias realizadas nas terras alheias, falta de prestacdo 45 de contas decorrente do sistema de fornecimento por meio de “vales’” nos armazéns de géneros de propriedade das usinas, descontos ilegais etc..”°. Essa movimentaco politica acelera o proceso de dissolugo do colonato e a transformag3o dos operérios rurais e industriais em operarios ndo residentes. Ao mesmo tempo, desenvolve-se 0 processo de expanséo do contingente de trabalhadores temporérios. Ao garantir direitos e deveres dos operdrios rurais e industriais, nos canaviais e nas usinas, os sitiantes, fazendeiros, usineiros e dono de engenho de aguardente reagem pela incorporaco de méquinas e equipamentos. Reorganizam as forcas produtivas e as relagdes de produgo de modo a potenciar a produtividade da forga de trabalho; isto é, aumentar o capital investido em maquinas, equipamentos, instalagdes e organizagdes. Este processo ocorre de par-em- -par com a generalizagdo e sistematizagdo da legislacdo trabalhista (previdenciéria e sindical), além de algumas leis sobre a posse e 0 uso da terra. Vejamos uma lista de algumas das leis editadas pelos governantes nos anos 1960-75: a Lei Delegada n? 11, de 11 de outubro de 1962 criou a Superintendéncia de Politica Agréria (SUPRA) relativa a questdes de posse e uso da terra. Competia 4 SUPRA “planejar, promover, executar e fazer executar” a reforma agréria, assisténcia técnica, financeira, educacional e sanitaria. A lei n? 4.214, de 2 de marco de 1963, dispondo sobre o Estatuto do Trabalhador Rural, definiu 0 que se devia entender por trabalhador rural e estabeleceu 08 set's direitos quanto 2 remuneragao, salério minimo, repouso remunerado, férias, seguranga do trabalho, trabalho da mulher, trabalho do menor, aviso prévio, estabilidade no emprego, sindicalizaco etc.. ““Trabalhador rural para os efeitos desta lei ¢ toda pessoa fisica que presta servicos a empregador rural, em propriedade rural ou prédio ristico, mediante salério pago em dinheiro ou in natura, ou parte in natura @ parte em dinheiro”. A partir dessa lei, acelerou-se o processo de mudanca nas relacdes de produgo no mundo rural e na agroindistria agucareira, A medida que se estendeu, a legislagdo trabalhista provocou uma rea¢do politico-econdmica do capital agroindustrial. Como escreveu Caio Prado Junior, em 1963, a0 comentar a promulgacdo do Estatuto do Trabalhador Rural, os fazendeiros e proprietarios rurais em geral, ““pressionados pelos seus trabalhadores e leis que valorizam a mo-de-obra, devero necessariamente recorrer a um aumento de produtividade, 0 que importard numa substituigdo dos eficientes e onerosos processos de Producao que hoje empregam, por outros de padrées mais elevados’*. A mesma época, comentando a mesma lei, outro estudioso de problemas rurais escreveu: “E de se esperar que o empresério agr{cola va tentar diminuir seus encargos com méo-de-obra, quer através de uma mudanca no tipo de exploragdo, quer através de uma recombinagdo de fatores de produgio"’. De fato, desde entdo acelerou-se 0 desenvolvimento das forcas produtivas no mundo rural, ocorrendo a modificagdo da composiggo das forcas produtivas e a mudanga das relagSes de producdo. Mesmo porque, nos anos seguintes, outras leis foram promulgadas e, pouco a pouco, postas em prdtica. A 30 de novembro de 1964 promulgou-se a Lei n? 4.504, dispondo sobre o Estatuto de Terra, isto &, a posse e 0 uso da terra, com vistas & reforma agréria em algumas éreas. A Lei n? 4.870, de 1 de dezembro de 1965, também abordou a assisténcia dos trabalhadores do setor canavieiro em seus artigos 35, 36 e 37. O Ato n9 3, de 25 de janeiro de 1968, estabeleceu normas para a prestacdo de assisténcia social aos trabalhadores das usinas, destilarias e fornecedores de cana. A Lei Complementar nO 11, de 25 de maio de 1971, instituiu o Programa de Assiténcia ao Trabalhador Rural (PRORURAL) que por sua vez criou o Fundo de Assiténcia ao Trabalhador Rural (FUNRURAL). 0 FUNRURAL Passou a prestar os seguintes beneffcios ao trabalhador rural: aposentadoria por velhice e invalidez, pensfo, auxilio funeral, servigo de satide e servico social. Ao mesmo tempo continuou vélido e obrigatério o artigo 36 da Lei n? 4.870, conferindo as usinas e fornecedores a faculdade de por em prética a assisténcia social exigida pelo governo, através do IAA: "Ficam os produtores de cana, acticar e alcool obrigados a aplicar, em beneficio dos trabalhadores industriais e agrfcolas das usinas, destilarias e fornecedores, em servicos de assisténcia médica, hospitalar, farmacéutica e social” certos percentuais sobre os pregos oficiais de cana, agticar e dleool. Ao longo dese processo politico-econdmico, que aparece sob a forma juridica, modificaram-se as relagdes de produgao e a estrutura da parte da classe operdria ligada as fainas dos canaviais e usinas. Em resumo: “Dois fatores contribufram para que o regime do colonato cafsse em desuso em Séo Paulo. O primeiro deles diz respeito a um relativo controle que as usinas médias e grandes passaram a ter depois de 1960 sobre 0 mercado de acticar, ao se organizarem em uma cooperativa central de vendas. O segundo refere-se, de um lado, 4 aprovago do Estatuto do Trabalhador Rural e a correlata agitagdo 46 rural pola sua aplicagao entre os anos de 1962 e 1963, e, de outro, a regulamentacdo entre os anos de 1965 © 1967 dos dispositivos do Estatuto da Terra dizendo respeito aos direitos dos parceiros agricolas e relagdes de trabalho assemelhados, somando-se a estas disposigSes legais e regulamentago, feita em 1965, de um dispositivo criado por Vargas, nos tempos da ditadura, garantindo aos trabalhadores residentes reas minimas de terra para se proverem sua subsisténcia, de preferéncia sob a forma cooperativa. Ora, 0 custo das terras nas regides canavieiras atingiu, inclusive em termos comparativos, com regides néo-canavieiras, indices onerosos, e a possibilidade de expansdo da drea canavieira no Estado de Sao Paulo jé esté proxima da exaustdo"”* . Em seguida, além do Estatuto do Trabalhador Rural, de 1963, do Estatuto da Terra, de 1964, da Lei 4.870, de 1965 e do FUNRURAL, de 1971, outras leis e decisdes governamentais, diretas ou por via do IAA, continuaram a especificar ou reformular dispositivos anteriores. Em 1974, o Decreto n? 73.617 de 12 de fevereiro, aprovou o regulamento do programa de assisténcia ao trabalhador rural. Ademais, a Lei n9 6.195, de 19 de dezembro de 1974, atribui ao FUNRURAL a responsabilidade pela assisténcia social aos acidentados em atividades rurais. Progressivamente, pois, estendeu-se no mundo rural, nas plantagdes e fébricas, uma legislago trabalhista principalmente assistencial. Dessa forma, as relagdes de producdo passaram a organizar-se em termos mais formais, isto &, segundo os requisitos juridicos, ou politico- -econémicos ditados pelo poder estatal, diretamente ou por intermédio do IAA. Esse foi o contexto histérico em que se dissolveu o colonato na agroindiistria acucareira. Esse foi o mesmo contexto no qual © proletariado rural (colonos, camaradas, empregados, agricultores, trabalhadores, agregados e outros) desenvolveu-se ainda mais. Af surgiram os trabalhadores permanentes e os tempordrios, residentes e no residentes, erh varias formas de organizacdo do processo de reproduco do capital agroindustrial. Note-se que 0 sindicalismo nao teve maiores desenvolvimentos na érea da agroindistria agucareira. E verdade que ele recebeu um forte impulso em 1963, com a adogao do Estatudo do Trabalhador Rural. Todo o titulo VI dessa lei é dedicado & organizago sindical. De fato, nesse ano € nos primeiros meses de 1964 houve intensa movimentago no meio rural brasileiro, no sentido da organizagao e atividade sindicais. De certa forma, haviam-se combinado os fins pol{tico-econémicos da SUPRA, criada em 1962, e do Estatuto, de 1963. A 31 de dezembro de 1963, 0 Decreto n? 53.517, do presidente Joo Goulart, reconhecia a Confederagao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. Mas a partir do novo governo, instalado com o golpe de abril de 1964, o sistema sindical ficou sob intervengdo. Além disso, 0 governo comegou a transformar o sindicato rural e urbano na direggo do assistencialismo “despolitizante” e ainda mais propicio aos interesses ‘empresariais. Alm disso, 0 ministerialismo e o peleguismo inspirados na ditadura passaram a imobilizar ainda mais as organizagdes e as atividades dos sindicatos, no campo e na cidade, nos canaviais e nas usinas. A Portaria nO 71, de 2 de fevereiro de 1965, aumenta o controle governamental sobre os sindicatos rurais. Inclusive estabelece que os diretores do sindicato devem dar “‘prova de boa conduta firmada pela autoridade publica"; isto 6, atestado ideolégico. Eo Decreto n9 67.227, de 21 de setembro de 1970, trata de acentuar o cardter assistencialista que o governo jé vinha dando ao sindicato. Essa lei procura valorizar “a participagdo das entidades sindicais no esforgo para a promogio social do trabalhador”. Por meio destas leis, o sindicato é teduzido a uma organizacdo preocupada e voltada para atividades assistenciais e recreativa, sem qualquer capacidade de discusso de questdes politicas ou econémicas do interesse do proletariado. Notas (1) “Plano minimo de aplicagdo conjunta em Assisténcia Social - artigo 36 da Lei 4.870/65", Sertiozinho, 20 de janeiro de 1975. (2) José Cesar Aprilante Guaccarini, Estado, Ideologia e Agio Empresarial na Agroindistria Acucareira do Estado de Sao Paulo, mimeo, Si Paulo, 1972, p. 194. (3) José Cesar A. Guaccarini, op. cit., p. 9. (4) Caio Prado Junior, "0 Estatuto do Trabalhador Rural”, Revista Brasiliense, n® 47, Séo Paulo, 1963, pp. 1-13; citagdo da p. 10, {6) Antonio Dinaer Piteri, “O Estatuto do Trabalhador Rural”. Agricultura em Sao Paulo, Ano XI, n9s 1 ¢ 2, So Paulo, 1964, pp. 1-16; citagio da p.6. (6) José Cesar A. Guaccarini, op. cit., p. 9. 47 IX — O Boia-tfria béia-fria é provavelmente o trabalhador mais caracter(stico das relagées de producdo imperantes na agroindustria agucareira, Ele tem sido chamado béia-fria, pau-de-arara, volante, trabalhador temporério, diarista ou outras denominagSes. Ao lado do usineiro e do IAA, ele simboliza 0 cardter das relagées de produ¢do imperantes na agroindistria agucareira de SertZozinho. Naturalmente hé varios e muitos outros personagens nos canaviais e usinas. Estes sdo alguns deles administrador, capataz, feitor, fiscal, engenheiro, quimico, tratorista, motorista, empreiteiro de méo- -de-obra, trabalhador permanente, trabalhador temporério, mecinico, foguista, eletricista, colono, mensalista, diarista, servente etc.. Devido as condicdes sazonais em que se desenvolve 0 processo produtivo na agroindiistria acucareira, a forga-de-trabalho ndo é empregada de forma permanente has usinas e canaviais. Nesse setor econdmico, a demanda de forga de trabalho é razoavelmente elistica. Na usina, as mdquinas param na entressafra: si desmontadas, consertadas, preparadas para entrar em plena e intensa atividade na época da safra. Durante a entressafra, pois, reduz-se a quantidade de trabalhadotes na usina. Ao passo que na safra todas as atividades so retomadas, desde a descarga da cana vinda dos canaviais a0 ensacamento e transporte do acticar, desde 0 foguista ao quimico. No canavial, na entressafra, as atividades so muitas: preparo da terra para plantio, plantio, carpa, conservacao dos caminhos, abertura ou limpeza de valas, cérregos, riachos, rios, limpeza e conservagdo de patios e quintais. Na safra, no entanto, todos so chamados para as fainas da queima das folhagens dos canaviais, 0 corte da cana, carregamento da cana cortada e seu transporte para as esteiras da usina. Nesta época, na safra, aumenta bastante a demanda de forca de trabalho no canavial. Nas condigdes em que se desenvolvem, a0 longo do ano agrfcola, do ciclo produtivo na agroindistria acucareira, as relacdes de produgdo implicam na demanda razoavelmente eléstica de forca de trabalho, na usina e no canavial. E quanto mais se desenvolvem essas relagdes de produgio, em termos de tecnologia, divisio social do trabalho, formalizaco das condigées de oferta e demanda de trabalhadores, extenso da legislagdo trabalhista e previdencidria no campo etc., quanto mais se desenvolvem essas relacdes, mais se exige que a oferta e a demanda de forca de trabalho seja eldstica. E preciso que esta forca produtiva, da mesma forma que as outras, se ajuste as exigéncias da reprodugdo do capital. Daf porque a expansdo da agroindistria acucareira, ao longo das ltimas décadas, tem sido também um proceso de expulséo do trabalhador das 48 terras das usinas e canaviais para outros lugares, principalmente as periferias das cidades préximas. A medida que se desenvolve, a agroindtstria agucareira produz e reproduz o béia-fria, volante ou pau-de-arara. O bdia-fria é a forma mais desenvolvida em que se expressa 0 cardter das relagdes de produgo na agroindisstria acucareira. Devido ao cardter sazonal das atividades produtivas, a crescente formalizagao das condigées de oferta e demanda da forca de trabalho e a crescente burocratizagio das condigdes de produgdo do lucro do usineiro e do fornecedor de cana para a usina, 0 trabalhador da agroinddstria acucareira transformou-se num operdrio sem nenhum dos meios de produgdo, salvo 0 podio. Reside fora das terras da usina e do canavial e 6 contratado apenas nas épocas, ocasies, meses, semanas ou dias em que é necessdrio para a continuidade da reproducdo do capital agroindustrial. “Quando os diaristas residem fora do estabelecimento, principalmente na zona urbana, e vém a propriedade para prestar servigos em determinadas épocas do ano, so denominados “volantes”. A remuneraco dos volantes & exclusivamente em dinheiro e a mesma 6 estabelecida por dia ou por tarefa executada. No geral, as didrias dos volantes so superiores aquelas recebidas pelos camaradas permanentes da propriedade. Os volantes diaristas geralmente so contratados em grupos, através de entendimento direto entre a propriedade e 0 chefe ou encarregado da “‘turma”, o qual em certas regides € denominado de “gato. Além da legislacdo trabalhista, que passou a ser um dado importante do mundo social na agroinddstria agucareira, também a mecaniza¢ao passou a ser um dado importante desse mesmo mundo social. € claro que as duas tendéncias combinaram-se e influenciaram-se reciprocamente: a crescente formalizago das relagdes jurfdicas, ou politico-econémicas, entre compradores e vendedores de forca de trabalho, por por um lado, e a crescente mecanizacdo dos processos produtivos, por outro. & o que se registra nos dois relatos apresentados a seguir. “Em algumas éreas, de agricultura mais organizada e permanente como so as lavouras de café e de cana-de-agiicar, a aplicagdo desses direitos (trabalhistas) tem sido feita as vezes com excessivo rigor, impondo aos empregadores multas que se podem chamar de injustas. Os proprietérios agricolas, por sua vez, procuram defender-se dos excessos de rigor da lei usando medidas cujos controles nao foram previstos no quadro geral da legislacdo, como 6 0 de simplesmente despedir os empregados seguindo as exigéncias da lei contraté-los como diaristas (chamados de “volantes”’) e através de “empreiteiros” que tomam a si 05 encargos trabalhistas do empregador rural, mas que podem mais facilmente burlar as exigéncias legais”*. “A lavoura da cana vem, hé tempos, dispensando 0 trabalho do homem, antes exigido em todas as suas etapas. Hoje, o preparo do solo jé é totalmente mecanizado; o plantio, parcialmente mecanizado, 0 mesmo acontecendo com a aduba¢ao; a carpa do terreno, que era manual, praticamente jé nao existe, com a aplicacdo mecanizada de herbicidas logo apds o plantio”?. Ao lado da legistagdo trabalhista, a mecanizaco e a aplicago de fertilizantes e herbicidas alteram o volume ea qualidade da forga de trabalho engajada nas fainas dos canaviais e usinas. Esse é 0 contexto social no qual aumenta o niéimero dos trabalhadores temporérios, volantes, paus-de-arara ou béias-frias. “No perfodo de maio a novembro, os fornecedores de cana contratam os trabalhadores volantes, os chamados béias-frias, que se deslocam da cidade para a zona rural a fim de fazer a colheita. Nos outros meses, a prépria lavoura da cana exige o trabalho manual, mas jé em nimero menor, uma vez que a mecanizacdo esté atingindo todas as fases do trabalho, e os operdrios nao ‘ocupados nessa atividade deslocam-se para outros municipios para a colheita de cereais, que vai de janeiro a junho: café, algodao, arroz, feijéo e milho"* . Para compreender as condigdes sociais nas quais trabalham os béiasrias, nada mais explicito do que os relatos que eles préprios fazem. Vejamos, pois, 0 que nos dizem as declaragdes de quatro béias-frias que trabalhavam na agroinddstria acucareira de Sertéozinho & época em que foram entrevistados. Dois homens foram entrevistados por Carlos Alberto de Medina, em 1962-635. Ao passo que os outros dois, uma mulher e um homem, foram entrevistados em 1975, por Maria da Conceicéo Quinteiro. a) “Tenho 52 anos e uma vida agitada. Hd 8 anos trabatho como diarista. Com meus dois filhos preferiria ter terra para poder descansar. Eu trabalhei antes no Cambucy. La comprei 5 alqueires (12 hectares) de um loteamento para pagar a prestacdo. Mais tarde vendi-o e comprei um terreno aqui na cidade, onde ha 8 anos construf uma casinha e outra hé 5 anos. Caso meus filhos queiram mesmo sair daqui e ir para Brasilia, eu vendo as duas e vou comprar terra longe, porque aqui ndo 49 4 jeito no. Hoje, ninguém mais pode comprar nada, nem fazer casa. O custo ¢ exagerado. Os meus colegas esto ainda pior do que eu. Imagine que a didria legal é Cr$ 520,00, mas ela oscila, um dia sendo 300 cruzeiros, no outro 400, outro 500. Depois, ndo se ganha aos domingos, nem dia de chuva, nem quando se fica doente. E tem vez que falta servico. Trabalha-se 8 horas por dia: das 7 as 13 e das 14 as 17. No intervalo se come ou se descansa. A gente recebe de 15 em 15 , @ para saber se hd servico 6 sé perguntar no comércio. No ano passado meu maior salério mensal foi no corte de cana, Cr$ 23.000,00. Na época das chuvas tive o menor, Cr$ 4.000,00. O maximo que se pode tirar nas épocas das chuvas é Cr$ 8.000,00. Ganhamos muitas vezes por unidades, assim Cr$ 13,00 para limpar o pé de café, 130 a 150 cruzeiros por arroba de algodéo colhido. Um homem pode catar 3 a 4 arrobas diérias. Por empreita ganha-se mais, mas ndo tem horério certo". b) “Sou de Cajuru. Minha familia ainda esté lé. Sai, porque Id é pior. Aqui se ganha Cr$ 500,00 por dia. Lé ¢ Cr$ 300,00. Estive ld agora e estavam ganhando Cr$ 350,00. Trabalho hé 5 anos e hd um més 86 por diérias. Meu sogro é meeiro em Cajuru e com 2 filhos toca a roca. Na fazenda pagam Cr$ 400,00 mais casa, lenha e luz, mas eu prefiro aqui. Na proxima quinzena vamos comegar a receber 630 cruzeiros por dia. Meu servico é carpir, cortar e apanhar cana como empreitada e, por didria, plantar cana, carpir arroz e plantar feijao. No ano passado o més em que ganhei mais, consegui Cr$ 8.000,00 e 0 menor salério mensal foi Cr$ 4.000,00. Minha muther lava para fora e ganha Cr$ 2.400,00 mensais. Tenho servico o ano todo. O empreiteiro com quem trabalhado é meu amigo. Ele me adianta até Cr$ 5.000,00, depois vai descontando como se pode. Estou com ele desde que cheguei. Aos domingo ndo ganho. Eu gostaria de ter terra a meia e melhor salério. O pior é que sem leitura nao se arranja emprego fixo. Terra boa, animal bom e ferramentas, isto sim, quebrava o galho"’”. ¢) "Prefiro moré mais no campo, agora a gente veve na cidade e vai todo dia pro campo, aqui temo temo que pagé aluguel s6 para dormir. No campo a gente pode crié, planté uma coisa. Nzo mudamo de novo pro sitio porque eles ndo qué compromisso, eles preferem leva a gente de pau-de-arara, Os patrdo, os dono de terra, eles prefere ajusté a turma da cidade do que nos ficd nas colénias. A gente procura o dono do pau-de-arara, leva a carteira de trabalho com 3 fotografia e a gente leva tudo pro escritério da usina, Durante 0 tempo que a gente trabalha, a carteira fica ld presa, quando a gente sai, vai | e pede pré dé baixa, tendo a carteira a gente tem o seguro que 6 0 Funrural que paga. Tou cortando cana na usina Séo Francisco. O dono do caminhdo paga a gente, a usina paga ele. Ele ndo sai do servico, tem o feitor da fazenda, e ele tem também um. O feitor fica 14 olhando, vé se a gente ta trabalhando direito, e explica o que tem que fazé para os empregados novo. O dono do caminho, ele também tem armazém, ele dé um vale, a gente vai, faz as compras ¢ desconta no fim do més”. “Quem paga o dono do caminhdo é a usina, por empreitada”. “Os dias que eu tou faltando é porque nao tou boa do estémago e das costas, tinha que ir na fazenda tird uma ficha pré fazé consulta na cidade. Meu patrao falou (empreiteiro) “se a senhora ndo pega a ficha, a senhora ndo pode recebé estes dias, mas também, mesmo doente prd receber tenho que trabalhé no domingo e eu no tou boa, nem prd ir domingo. Quase todos dos que véo no caminh3o morava tudo no campo. Eu corto 4 a 4 e meia toneladas por dia, tem deles que corta mais, até 11 toleladas. Eu, sabe como 6, a gente vai ficando velha, néo da mais. Todo 10 eles paga se cai de sdbado, se no eles espera o sébado pré pagd. Eles paga Cr$ 6,00 a tonelada, 6 0 prego antigo, do ano pasado. $6 quando o instituto manda o preco deste ano é que eles pagam no novo preco, af eles fazem o ajuste do atrasado. No nosso caminhao tem 42,18 so tudo mulher, tem também muita crianga. Das mulher, a maioria & tudo solteira. No caminhdo é tudo daqui, os que vem de fora, baiano, pernambucano, mineiro, vai trabalhd s6 na usina, depois volta tudo. Nés do pau-de-arara no, acaba a safra e sempre tem servico, af vamo carpi cana. As vez a gente carpi de empreita, as vez a gente planta cana, café, af eles paga por dia”®. 4) “Todo ano na safra venho pré cd. Sou de Paramirim, na Bahia, desde 1969 que eu venho. Fiquei sabendo porque meu tio vinha sempre e sabe como é, um vai falando pro outro, e um dia a gente vem também. Lé se falava que aqui era bom, a gente ganhava bem e que era chegar ¢ 50 arrumava logo emprego. Lé em Paramirim nés toca lavoura: plantava arroz, feijéo, milho, cana etc. Toda a famflia ficava no campo trabalhando. Todos 5 filhos mais meu pai. A gente vive do que planta e vende. Somo 2 homem e 3 mulher. Vai de 17 a 31 anos. Eu sempre vim sozinho, junto com os outro que vér também, mas desta vez trouxe a fam{lia, viemo tudo e mais um primo. Sozinho a gente sofre muito, a gente tem que pagar tudo e no acha as coisa do jeito que a gente quer. Das vez que eu vim sozinho cheguei a mora 2 ano em alojamento da usina, era muito ruim, era mais de 20 homem num lugar pequeno, apertado, num dava nem pré gente se mexé, deicado tinha que ficé esticado e duro. Os outros ano morei em penséo, mas era aquela nota, era pagd tudo, comer mal, o dinheiro que a gente veio pré ajunté, acabava gastando quase tudo. Af resolvi vim com a famflia, disseram por ld que todos nés arrumava emprego e viemo tudo. Deixamo Id meu tio tomando conta. Todos nés tamo na usina Albertina. Eu trabalho na méquina de costura, meu irmao é turbineiro, meu pai e meu primo trabalham na caldeira. Chegamo em fim de maio, dia 23, chegamo e procuramo o empreiteiro, ele levou a gente na usina e ficou tudo acertado. La nds ganha por més. Esta casa foi o empreiteiro que arrumou pré gente moré, tamo pagando aluguel, mas todos nés trabalha, entdo é até menos do que mora sozinho em pensdo. Acabando a safra todos voltam é diffcil de um ficd. Nés mesmo vamo ficd aqui, esta e a proxima, depois voltamo. A gente vem pré cé por causa mesmo de dinheiro, porque a gente se mata demais. A gente trabalhamo todos os dias 12 horas e de domingo trabalhamo 24 horas. A gente sente falta de divertimento, de baile. Meu pai e minha mée so analfabetos, nés fomo tudo na escola, sabemo |é e escrevé. Somos catélicos, mas eu vou de vez em quando na missa. Eu até que gosto daqui, mas o meu pessoal gosta mais de ld, eles nunca tinham safdo de Id e ndo se acostumam por aqui. Aqui & s6 bom por causa do emprego. Eu pretendo casar até os 30 anos, com moa de 1é, ainda no tenho namorada, mas vai ser de 14, 6 mais facil, a gente entende um ao outro, sendo do mesmo lugar. E, 0 casamento € sorte, pode ser que a preferéncia seja de moca daqui, mas melhor mesmo & moga de Id. Eu quero té 1 ou 2 filhos ou nada, porque a gente nao pode criar bastante, familia grande nao dé pré criar eles de acordo"? Conforme sugerem os dados apresentados pelos béias-frias, a sua atividade produtiva implica na atividade do empreiteiro de méo-de-obra, 0 dono do caminho que arregimenta e conduz diariamente 0s trabalhadores a fainas dos canaviais. Vejamos como dois caminhoneiros descrevem as suas atividades. O relato do primeiro foi registrado por Carlos Alberto de Medina, em 1962-63. ‘Ao passo que 0 outro foi registrado por Maria-da Conceigdo Quinteiro, em1975. a) “‘Levo e trago no caminho a turma que vai trabalhar. Durante a safra trabalha-se de junho a dezembro e de segunda a sdbado, Meu lucro 6 a diferenga paga por tonelada de cana cortada pela usina, isto 6, Cr$ 15,00. Ndo cobro o transporte de caminhio. Recebo o meu pagamento no sdbado e pago aos trabalhadores no sébado 4 tarde ou no domingo pela manhi. Preciso ter um ndmero certo de cortadores para manter uma média de corte durante toda a semana, desde que no chova muito, quando nao se pode trabalhar. Vou as fazendas para saber o inicio da safra e me ofereco. Caso a época seja modificada sou avisado antes. No ano pasado devido ao atraso da safra, sofri um pouco, pois j4 tinha contratado gente. Ndo tenho qualquer relaco nem sofro qualquer jurisdi¢ao por parte do patrao da fazenda. Minha combinagao é cortar tantas toneladas e procuro fazer assim, pois, caso contrdrio, a fazenda arranja outro empreiteiro’”*. b) “Tenho 32 anos, casado, 3 filhos, catélico. Trabalham comigo 50 a 60 béias. Eu nasci em Barrinha, casei lé, e continui morando, mais dois anos, no sitio do meu pai, mas o que a gente plantava n&o dava pra tantos filhos e eles. Tenho 5 irmaos, todos moravam e trabalhavam |é. Af vim para c4, meu pai comprou esta casa e vim morar nela. Trabalhei um ano na Zanini, era ajudante, mas no dava pré viver. Para subir de posto tinha que estudar, mas na época certa, quando era mais novo, néo quis e depois de casado, com as responsabilidades dos filhos, af ndo dava. Af consegui um dinheiro, comprei o caminhao e comecei a trabathar nisso. Trabalho para a Cooperativa de Guariba, estamos cortando cana na fazenda Sao Carlos. Todos os volantes sio registrados na cooperativa e recebem por Id. Eu tomo conta do eito, anoto o que cada um cortou, socorro levando para a cidade quem se machuca. Entrego tudo em ordem na cooperativa para os 51 volantes receberem. Eu ganho por cada tonelada cortada. No ano pasado pagaram para mim Cr$ Cr$ 1,30 a tonelada. A cooperativa é como se fosse a empreiteira para as usinas. Os volantes que eu levo so maioria homens, tem sb 4 mulheres. Tem alguns menores. Todos so de Sertdozinho e moram por aqui: $0 Jodo, Alvorada, Shangri-ld. Os casados tem 2 ou 3 filhos, no tem mais nem da para viver com s6 esses. A gente sai daqui as 5:30 para chegar as 7 horas. O meu pessoal nunca fica parado, os que quer trabalhar, sempre trabalham. Na entressafra, tem © que nés chama de quebra-galho — é 0 servico que aparece, carpa, por exemplo. Minhas criangas estéo no grupo, minha mulher no trabalha. Aqui no tem servico para mulher casada. S6 pré moga. Casada s6 se for ser doméstica ou cortar cana. Num tem comércio ou industria que tenha trabalho prés casadas. Entdo elas ou vao cortar cana, que é um servico danado, ou aguenté patroa chata. Como eu disse, pelo menos os meus volantes trabalham sé com isso. Os outros no sei, desconhego, mas nas entressafras tem muito o que fazer também". Dentre outros aspectos e relagdes importantes, que aparecem nos relatos dos béias-frias, sobressai a figura do empreiteiro de mao-de-obra. O gato, caminhoneiro, turmeiro ou empreiteiro de mio-de -obra (volante, pau-de-arara ou béia-fria) para o corte da cana, na época da safra, é uma categoria social particularmente importante, por varios motivos. E 0 empreiteiro que arregimenta, leva-e-trés, todos os dias, os trabalhadores que residem nas periferias da cidade de Sertéozinho (bairros Alvorada, So Jodo, Shangri-li e outros) e de outras cidades, como Pitangueiras, Pontal, Jaboticabal, Jardinépolis, Ribeirdo Preto e outras. Diante dos trabalhadores e do dono do canavial (usineiro ou fazendeiro), ele é 0 responsdvel por esse movimento didrio da méo-de-obra. Ocorre que o empreiteiro ganha em fungdo dessa atividade. Recebe do proprietério do canavial em fungdo da produtividade dos trabalhadores, os bdias‘rias, que ele transporta. Por isso ele tem interesse em levar sempre a quantidade contratada de trabalhadores, evitando as faltas. O seu caminhio, 0 trabalho didrio de levar e trazer e a capatazia que desempenha durante o corte da cana, tudo isso ¢ 0 que Ihe dé o direito a paga que Ihe faz 0 dono do canavial. 1ss0 significa que o empreiteiro é uma espécie de empresério de mo-de-obra, de forga-de-trabalho, sobre cuja produtividade ele recebe o seu ganho. Nessas condigdes, 0 empreiteiro exerce um controle bastante grande sobre os trabalhadores que fazem parte da “sua turma’ que viajam no “seu caminhao”’, sobre os quais ele responde junto ao dono do canavial. Ele 6, a0 mesmo tempo, o responsavel pela arregimentacdo, transporte, disciplina produtividade de cada um e todos 0s trabalhadores da sua turms. Além disso, 0 empreiteiro & a pessoa por meio da qual o proprietério do canavial exerce 0 seu mando social (politico-econémico) sobre 0 trabalhadores, E ébvio que ao empenhar-se na disciplina, regularidade e produtividade do trabalho dos béias-frias que compdem a sua turma, 0 empreiteiro estd, a0 mesmo tempo, garantindo o seu ganho e garantindo a disciplina, a regularidade e a produtividade da forca-de-trabalho comprada pelo Proprietério do canavial, fazendeiro ou usineiro. Essa situagdo coloca o béia-fria (homem ou mulher, adulto, velho ou menor) 4 mercé de duas pessoas: 0 empreiteiro e 0 dono do canavial, ou os seus prepostos: administrador, fiscal, feitor ou outros, So ao menos essas duas pessoas as interessadas no trabalho excedente do béia-fria. E nessa situado que o béia-fria, 0 cortador de cana, ¢ levado a exaurir diariamente as suas forcas (e, muitas vezes, as de membros da sua fam(lia: mulheres, velhos, menores, doentes etc.) a fim de garantir um quantum de trabalho necessério & reproducdo da sua famflia. Nessas condigdes, ele é levado a ampliar o quantum de trabalho excedente exigido pelas condigdes de produgdo nas quais o dono da plantagdo (usineiro ou fazendeiro) submete tanto o b6ia-fria como o empreiteiro de mao-de-obra. Notas (1) Oscar J. Thomazini Ettori, “Mio de Obra na Agricultura de So Paulo”, Agricultura em Séo Paulo, Ano VIII, ‘nO 12, Séo Paulo, 1961, pp. 13:39 citagio da p. 18. (2) Ruy Miller Paiva, Saloméo Schattan e Claus F. Trench de Freitas, Setor Agricola do Brasil, citado, p. 218. (3) “Safra mecanizada de cana ameaca 50 mil empregos”. Matéria jornalistica relativa a regio de Ribeirdo Preto, na qual esté Sertéozinho, O Estado de Séo Poulo, 14-11-1973. (4) “Safra mecanizada da cana ameaca 50 mil empregos”, citado, (5) Carlos Alberto de Medina. Sertéozinho e Jardinépolis - So Paulo, mimeo, Piracicabs, 1963, pp. 80-81. 52 (6) Carlos Alberto de Medina, op. cit., p. 80. Note-se que 0 governo brasileiro criou 0 cruzeiro novo em 1967, ‘quando Cr$1.000,00 passou a Cr$1,00. (7) Carlos Alberto de Medina, op. cit., pp. 80-81. (8) Maria da Conceigéo Quinteiro, Entrevistas, pp. 36-37. (9) Maria da Conceicéo Quinteiro, Entrevistas, pp. 43-44. (10) Carlos Alberto de Medina, op. cit., pp. 81-82. (31) Maria da Conceigdo Quinteiro, Entrevistas, pp. 1-2. 53 X — A Estrutura do Proletariado Ao lado do béiafria, que é arregimentado e administrado pelo empreiteiro, trabalha também © feitor, 0 fiscal, 0 tratorista, 0 motorista de caminhdo de transporte de cana. Na usina também sio varias as categorias profissionais, desde 0 foguista ao quimico, desde o ensacador ao gerente. No conjunto, as relagdes de producdo na agroinddstria agucareira sio bastante complexas, devido as miltiplas atividades produtivas em que se subdivide e organiza a reproducao do capital agroindustrial. A diviso social do trabalho e a interdependéncia das atividades produtivas nos canaviais e usinas transformam a agroindistria num complexo social (politico-econdmico) fundado nna reproduciio do capital agroindustrial. No proceso de formacdo e expansio dessa agroindustria, 0 capital agrério foi subsumido pelo capital industrial. Ao mesmo tempo, este ganhou caracterfsticas singulares, assinalados pela sazonalidade do processo produtivo, pelas peculiaridades sazonais do ciclo de reproducgo do capital agroindustrial; e ndo simplesmente industrial ou agrério. So as pecualiaridades do ciclo de reproducdo do capital industrial que estéo na base das peculiaridades da forca de trabalho exigida por ele. Junto com a divisio dos trabalhadores em residentes e ndo residentes esté a divisio dos trabalhadores permanentes e tempordrios. Devido as condigdes de produgdo nessa agroindistria, hé sempre uma parte da mao-de-obra que estd ou disponivel ou a migrar diretamente das periferias das cidades aos locais de trabalho nos canaviai e usinas. Devido as condigdes de produgio na agroindiistria acucareira, 0 seu proletariado apresenta peculiaridades ou diferenciagSes secunddrias que precisam ser registradas pela andlise. A forma pela qual se desenvolve a diviso social do trabalho, na lavoura e na usina, nas relagdes entre a produgdo agréria e a industrial, a0 longo das épocas de safra e entressafra, faz com que as relagdes de producdo na agroindustria acucareira ndo sejam exatamente homogéneas ou semelhantes para todo 0 proletariado. Em primeiro. lugar, a sucesso das atividades relacionadas com o preparo da terra para o plantio, 0 plantio, a carpa, 0 corte da cana, 0 seu transporte, a moagem etc., faz com que o volume da fora de trabalho empregada varie bastante a0 longo das épocas, principalmente na safra, quando hé ampla ocupacSo, e na entressafra, quando a ocupacéo se reduz bastante. 1sso signifi que cresce e decresce a massa de trabalhadores no curso de um ano agricola, ou no curso do ciclo do capital agroindustrial. Em geral, a safra vai de junho a dezembro. Disso resulta que os trabalhadores se dividem em permanentes e temporérios, tanto nos canaviais como nas usinas. 54 Em segundo lugar, os trabalhadores so divididos em residentes e ndo-residentes. Devido extensio e a intensificagio da exploragdo da terra, tecnologia e fora de trabalho, 0 usineiro e 0 fazendeiro (as vezes a mesma pessoa, fam{lia ou grupo econémico) reduzem a um minimo as familias de trabalhadores residentes nas suas terras. RazGes econémicas e politicas, principalmente desde 1960, fazem com que os trabalhadores e os seus familiares sejam expulsos das terras das empresas, usinas, fazendas e sitios. Daf porque os trabalhadores so também divididos em residentes e ndo-residentes. Os néo-residentes podem residir nas periferias de Sertozinho ou outras cidades vilas. Cruz das Posses, distrito de Sertozinho, é uma espécie de reservatério de mao-de-obra permanente e tempordria para as usinas e 05 canaviais. Da mesma forma séo os bairros Alvorada, ‘$0 Jodo e outros, da cidade de Sertéozinho. Na época da safra, o trabalhador, néo-residente ‘tempordrio, vem também de outros municfpios e Estados. Em terceiro lugar, 0 trabalhador residente habita uma casa da usina ou fazenda. No paga aluguel ou o aluguel é simbélico. Paga a luz, tem direito de plantar pequena horta, alguma drvore frutifera, ter galinhas. E claro que essas condicdes diferenciam significantemente o trabalhador residente (permanente, pois) do ndo-residente. Este apenas recebe salério: vem e volta, a usina ou 4 lavoura todos bs dias, mesmo quando é permanente. Independentemente dos niveis salariais, é inegavel que um e outro se configuram como dois estratos distintos no seio do proletariado. Em termos de salério, 0 néo-residente, ou boia-fria pode até ganhar um pouco mais do que o residente. Mas este recebe a moradia e as vezes, algumas outras vantagens, em comparagdo com o outro. A casa e a assisténcia social, na usina por exemplo, atam o trabalhador de forma muito especial. Em quarto lugar, quem reside na cidade possui perspectivas e relacdes, ou horizonte cultural, distintos de quem reside 05 nicleos residenciais (coldnias) das usinas e fazendas. O assalariado residente, mesmo quando motorista ou funciondrio de escritério, é um pouco um “sidito” do sineiro ou fazendeiro, Hé movimentos seus, ou relagdes social (politico ou outras) que séo con controlados, proibidos, permitidos ou tolerados. E diversa a situacdo do que habita em Sertdozinho. Um esté sob a influéncia do usineiro, ou fazendeiro; 0 outro esté sob a influéncia do prefeito, da camara de vereadores, do vigério, do delegado de policia, do sindicato, do partido. Em quinto lugar, 0 proletariado da agroindéstria acucareira esta disperso no espago ecolégico. Distribui-se em “coldnias”, ou niicleos residenciais, de varios tipos (antigas e novas, boas e mas, etc.) dispersos nos amplos espacos verdes dos canaviais e usinas; também distribui-se nos bairros e lugares da area urbana de Sertéozinho (So Jodo, Alvorada, Shangri-la etc.) e de outras cidades. Essa disperséo ecolégica obviamente é um dado das relagdes de produgio, tanto quanto das condigdes de convivio e intercambio, entre os proprios operdrios das usinas e canaviais. Eles se redinem principaimente por ocasiéo dos jogos de futebol, festas religiosas, festas de abertura de safra, de encerramento de safra etc., em geral feitas, organizadas e patrocinadas pelo usineiro, fazendeiro ou seus prepostos, com os recursos estabelecidos por lei e fiscalizados pelo IAA. Em sexto lugar, na agroindastria acucareira ocorre a exploracdo combinada da mais-valia relativa e da mais-valia absoluta. Na usina, onde tudo esté mecanizado, a massa de forga de trabalho tem diminufdo, em termos relativos, em confronto com o capital empregado em méquines, equipamentos e organizacdes. Ar cresce a composicdo organica do capital, isto é, a proporcéo de tecnologia (méquinas, equipamentos etc.) em face da forca de trabalho. Esse é 0 contexto social e técnico da producdo de mais-valia relativa, quando a tecnologia potencia a produtividade da forea de trabalho. Mas também se extende a jornada de trabalho na época da safra. Na safra, em geral o funcionamento da usina é ininterrupto. E as turmas de trabalhadores se revesam de 12 em 12 horas horas. Isso significa que cada operério trabalha as 8 horas normais e mais 4. Esse é 0 ritmo ea exigéncia do ciclo da reproducao do capital. Todo 0 operdrio é levado a aceitar e a ajustar-se a essas condicées. Nesse caso, tende a combinar-se 2 producdo de mais-valia relativa com a de mais-valia absoluta. Na lavoura também combinam-se as duas formas de mais-valia. A mecanizacio, em sentido lato, se extende: aplicam-se cada vez mais tratores, caminhées, fertilizantes, defensivos etc. Na 6poca da safra, no entanto, a jornada ultrapassa as 8 horas; e 0 ritmo do trabalho é intensificado. O fato de que 0 cortador ganha por tonelada cortada, 0 leva a empenhar-se bastante na faina do corte. Inclusive muitas vezes ele engaja no trabalho de cortar cana a mulher e filhos. O contrato de trabalho por tarefa em geral faz com que o trabalhador trabalhe com a ilusao de que ele pode ganhar mais. Nessa ilusio, ele aplica todas as suas energias, 0 maximo de tempo possivel. 55 E esse sistema de relagdes e estruturas que esté na base da capacidade do operdrio rural e industrial da agroindastria acucareira para: negociar; pressionar; unir-se; defender interesses especiais e gerais; formular programas de atuago que correspondem aos seus interesses; elaborar uma consciéncia propria, articulada ou critica; etc.. 56

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