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mmecossourcis soraanie IN DossiE FRANGOIS SOULAGES Mm A fotograficidade ‘Tradugio: Sonia Taborda RESUMO artigo apresenta.o conceito da fotograficidade como uma especificidade e singularidade da fotografia, e aborda fundamentalmente a fotografia como o resultado da articulacao entre dois elementos: a irreversivel obtencao da imagem através do golpe fotografico, e a inacabavel possibilidade de trabalho e de interpretagao dessa mesma imagem, através de um negativo. Tal negativo, obtido de uma maneira irreversivel, vai possibilitar e abrir-se ao trabalho de interpretacao do fotdgrafo no laboratério. O texto procura também fundar uma estética possivel da fotografia, estética essa que estaria ligada a irreversibilidade da perdae 20 possivel trabalho de recuperacio (luto) dessa mesma perda. PALAVRAS-CHAVE Fotograficidade, negativo, irreversivel, inacabavel, perda e metafotografico. BED rorroseromonscr is. nea.nAcrns possié Ss 4 Sooages Frans, Etiuede ‘a phtarapie, Pts: Nathan, 3 dition, 200, A FOTOGRAFICIDADE © que é que especifica a fotografia? $6 0 conceito de fotograficidade! permite resolver este problema. Esta ltima se caracteriza como a surpreendente articulacio do irreversivel e do inacabavel — irreversivel obtencao do negativo e inacabavel trabalho do negativo. Essa especificidade funda nao sé a singularidade da fotografia, mas também uma tripla estética da fotografia — a do irreversivel, a do inacabavel ea da articulagao dessas. estéticas. E no seio da estética da fotograficidade que adquirem sentido a estética das cescolhas, a dos possiveis, a da imagem de imagens, a dos avatares, a da mistura, a das inacabiveis recepgbes, etc. © problema da especificagao da fotografia ‘Trés realidades parecem especificar a fotografia: as condigées de possibilidade de uma foto, a foto em si e suas condicdes de obtencio. Mas seré tio simples isso? 1) Com efeito, as condigées de obtengao de uma foto dependem principalmente da exterioridade e dos sujeitos receptores; ora, estes titimos se diferenciam por sua histéria pessoal e coletiva. Essas condigdes de obtencio nao podem, portanto, ser 0 objeto de proposicées universalizéveis, vélidas para toda obtengio de qualquer foto. Ademais, como demonstraremos, 0 trabalho do negativo jd ressalta a obtengao; também a prépria andlse da producéo de uma foto integra necessariamente a andlise da obtencéo do negativo, por conseguinte, de um elemento possivel da foto — sendo, assim, a segunda andlise depende da primeira. Aprofundaremos este problema posteriormente, quando nos defrontarmos com a ‘no-arte’ e a arte, com a obra e a arte fotogréficas. Por essas duas razées, devemos, pois, reconhecer que no é realizando o estudo das condigées de recepgio de uma foto que a fotografia pode ser explicitada. jes de 2) Seré que se poderia chegar a isso, gragas ao exame das condigi possibilidade de uma foto? Estas tltimas séo os correlatos intencionais de FRANCOIS SOLIAGES, 4 fotografie f+] 3) 4) qualquer foto, a saber, 0 objeto a fotografar, o sujeito que fotografa e o material fotogréfico. Estudemo-los um a um. Ji demonstramos que, com 0 objeto a fotografar o teérico & confrontado com um buraco negro: © = x; nada pode ser dito sobre isso. A relacao entre esse objeto € 0 objeto fotogrifico continua, portanto, m reutilizagao dos conceltos de Pierce — icone, indice e simbolo — possa fornecer alguns indicios. © objeto a ser fotografado ndo permite, pois, compreender a especificidade da fotografia. Uma reflexao sobre 0 sujeito que fotografa seria mais esclarecedora? De fato, hi sempre um sujelto que fotografa, mesmo que a foto sea feitaautornaticamente, ou até ‘mesmo de maneira aleatéria, pols um sujeito sempre comanda a tomada, podendo este comando ser cronologicaente muito anterior & tomada. O sujeito desempenha, portanto, um papel importante na realizacéo fotogratica: o ato fotogrdfco, a a¢do fotogrdfica © © metafotogréfico permitem em parte, mas somente em parte, explicar esta itima; com efeito, esse sujeito sempre corre orisco de se ludir em sua pretenséo de conhecer-se, até mesmo na esperanca de que alguém possa perceber isso, Esse risco é ainda mais importante porque o ato fotografico ¢ interativo, na medida em que ¢ instaurado por um sujelto vivo que age em funcéo do objeto a ser fotografado e, conseqiientemente, reage — seja a uma paisagem, a uma pessoa, a si mesmo, etc. ele nao funciona como uma pura e simples maquina automtica. Além do mais, quando © ‘objeto fotografar é um ser humano, este titimo, por sua vez, reage nao s6 20 fate, de ser fotografado, mas & personalidade particular do fotégrafo: fotografar & fotografar uma relacio. Certamente pode-se perceber uma parte do que o fot6grafo pretende com a fotografia, mas o essencial fica desconhecido, pois o sujeito que fotografa também 6 um buraco negro para a teoria: $ = x; a teoria de Kant centrada no cconceito da coisa em si, ea de Freud, completamente diferente, centrada no conceito de inconsciente’,liberam-nos da iluso de um conhecimento total do fotdgrafo. Isso fundamental, especialmente para compreender (os limites) das experiéncias fotogréficas no curso das quais 0 sujeito busca a si mesmo, seja diretamente com 0 auto-retrato, a fotobiografa ou a fotografia de familia, seja indiretamente com a fotografia do passado, o retrato e qualquer fotografia em geral. Artistas como Denis Roche, Claude Maillard, Christian Boltanski, tomam como objeto exatamente este buraco negro da fotografia. Assim, um dos atores principais do ato e da acio fotogréficos se revela incognoscivel em seu préprio intimo: a auto-andlise do sujeito que fotografa é, freqientemente, racionalizaco ou fabula, sendo sua psicandlise demasiadamente tosca para ser séria: e mais, a particularidade do fotdgrafo muito singular para poder ser generalizivel e universalizivel. Assim, a especificagio da fotografia nao se torna possivel pelo conhecimento do fotégrafo nem pelo ‘conhecimento do ato fotografico, da acéo fotogréfica ou do metafotogratico. misteriosa, mesmo que a Dossié il iesseeresssresseteserese Souls, Frais, Phare 4 incon, Pts: sii, 196 BB] esnrorosreromonscre wise nacras possié a Poles ria ob (R) ali, Transpostinigat, Pais: Pais il, 8, qu csi uma ds -Berdages aspera da ft pa sais del Php 16 "es eps png, e lie” (1982, a 7, es expaces haps, age” (18D. 1? 10, "es comacs” (988) en 1, “Gress (18). a In Qc ge bse, Par Leal 16 5) Das trés condigées de possibilidade de uma foto, que deveriam esclarecer-nos sobre a natureza da fotografia, duas parecem muito limitadas para realizar esta tarefa. O que dizer da terceira, a saber, do material fotogréfico? Jd mostramos 0 papel que este desempenha na formacéo de uma foto: ele se compe da cimera fotogrifica — salvo, 6 claro, nos casos em que ela nao ¢ utlizada, mas is30 ndo constitu um problema teérico -, do filme — a mesma observagao deve ser feita -, das solugdes quimicas, da luz natural ou artificial, etc., e do suporte sobre 0 qual é tirada ou projetada a foto. material fotogrifico tem, assim, um ‘estatuto particular e problemético, na medida em que, de um lado, ele constitul uma das condicbes de possibilidade de uma foto e, de outro, fornece a matéria~ prima que sera transformada em foto; & preciso, pois, para compreender 0 papel e o estatuto do material fotografico, conceder um lugar & parte ao suporte. Com certeza, estudando o material fotogréfico, as condigées quimicas, éticas €, sobretudo, epistémicas da fotografia se esclarecem, porém, a especificacéo mesma da fotografia nao & dada por isso 6) Nema andlise das condigdes de recepgio de uma foto nem a de suas condigdes de possibilidade permitem-nos, por conseguinte, especificar a fotografia: resta-nos apenas um caminho a explorar, a saber, o estudo das condigées de producdo de uma foto, portanto, da foto em si, em sua realidade mais material. Mos & obra! Aespecificidade da fotografia A fotografia ¢ fabricagao de um material; esse material é a foto. A fotografia néo pode ser entendida somente a partir de suas condig6es de possibilidade —fordgrafo, ato fotogrifico, agio fotografica, metafotogratica, objeto a fotografar, material fotogréfico nem somente como indice, até mesmo simbolo ou icone; de outra parte, é nao entender uma coisa considerar apenas 0 que a torna possivel; é necessério também considerar a coisa em si mesma para compreendé-la: motivo a mais para considerar e estudar a foto para entender a fotografia. Oconceito de fotograficidade 1) O que é, entéo, uma foto? © que faz com que uma coisa seja uma foto? © que, numa foto, é do dominio da fotografia’? Em outras palavras, o que é a fotograficidade? © conceito de “fotograficidade” designa o que é fotogrfico na fotografia. Todavia podemos acrescentar-Ihe uma segunda caracteristica ‘que torna a fotograficidade simétrica a literariedade de que fala Todorov em Lo Poétique'; para este, a ciéncia estrutural “preocupa-se néo mais com a rravgos sours. fovganasce ERI literatura real, mas com a literatura possivel, em outras palavras, com esta propriedade abstrata que faz a singularidade do fato literério, a literariedade”. Assim, a fotograficidade designa esta propriedade abstrata que faz a singularidade do fato fotogréfico ~ sendo que esse fato remete tanto & néo-arte quanto a arte. Mas, o que é ainda mais interessante de notar, a partir da proposigio de Todorov, é a possibilidade de se preocupar, gracas ao conceito de fotograficidade, nao mais s6 com a fotografia real, mas também com a fotografia possivel, até mesmo com as potencialidades fotograficas. Ora, ‘exatamente uma das caracteristicas da fotograficidade & o inacabavel, isto &, 0 fato de ter potencialidades sempre desdobraveis ao infinito: a fotografia é, portanto, a arte do possivel, tomada em todos os sentidos. ‘Quando estudamos a materialidade de uma foto, somos, em primeiro lugar, ‘confrontados a suaimpossivel definicio: afoto pode ser feta ern uri nimero indefinido cde matérias, melhor, s6 pode existr no estado de luz, como no caso do diapositivo. ‘que ha, entio, de comum —materialmente falando — entre um diapositivo projetado ‘numa tela e uma foto impressa em um livro? Aparentemente nada, De outra parte, 0 que é uma foto no caso de um diapositive? © préprio diapositivo ou, entio, a imagem projetada? Do mesmo modo, deve-se pensar que a foto é negativo ou a imagem material que foi fabricada a partir deste? Tudo isso apresenta dificuldades. Para resolver essa dificuldade, & preciso fazer um deslocamento e passar do resultado — a foto produzida, a imagem projetada a partir do diapositivo ~ relacdo existente entre a matriz de partida — o negativo, 0 diapositivo — e 0 produto que daf resulta. Essa relagao é uma das caracteristicas da fotograficidade: noternos bem que essa caracterlstica ndo remete a uma matéria qualquer nem a um tipo de formas quaisquer, nem a um ser qualquer, mas a uma relacao habitada por uma infinidede de possibilidades. Essa relagao, em sua realizagéo concreta, nunca pée em relevo uma necessidade, mas uma escolha que faz passar dos possiveis a um real, a saber, a uma foto particular. DossiE O cere do problema: Humanismo ou materialsmo? 1) Uma foto ¢ feita em trés etapas: 0 ato fotogrifico, a obtencéo do negativo e 0 trabalho do negativo. Por ocasiao do ato fotogréfico, o fotégrafo aperta o botdo e assim abre 0 ‘obturador da cémera — 0 obturador pode abrir-se automaticamente, este no € 0 problema: o filme € entdo exposto a luz: o filme virgem 6, portanto, transformado e se torna o filme exposto. BB] socom ronronstey 3 sen nwones Dossié A segunda etapa é a da obtengéo do negativo: consiste em transformar esse filme ‘exposto em negativo. E 0 tempo do desenvolvimento, composto de cinco momentos: a revelagdo que transforma a halogenacao de prata do filme em prata metal, a interrupcio, a fixagdo, a lavagem e a secagem. Obtém-se, assim, um negativo que é a matriz das futuras fotos e que, a menos que haja uma intervengao excepcional e voluntaria sobre ele, ndo se transformaré mais, apesar de todas as passagens de luz que se fario através dele para fazer fotos. A terceira etapa pode entio ocorrer: & a cépia da foto, 0 que chamamos de trabalho do negativo, isto é, a passagem do negativo & foto em si. Habitualmente. © fotégrafo escolhe um dos fotogramas que compéem 0 negativo, depois, procede a seis operacées: em geral, gracas a um ampliador , coloca a vista escolhida em um porta-negativos e faz a exposicéo através da luz sobre um papel sensivel; esse papel é, por sua vez, revelado, depois, mergulhado em um_ fixador e depois lavado, e por fim, secado; tem-se, entéo, a foto. Podemos notar uma simetria perfeita entre as duas primeiras etapas, de um lado, ¢ a terceira, do outro: seis operagées as caracterizam: exposicio, revelacdo, paragem, fixacdo, lavagem e secagem. E preciso, portanto, distinguir duas maneiras de analisar e de pensar o trabalho do fotégrafo: a primeira estabelece uma cisio entre 0 ato fotogréfico e o trabalho no laboratério; a segunda estabelece essa cisio entre, de um lado, 0 ato fotografico e a obtengéo do negativo e, do outro, o trabalho do negative. Este 0 problema: pode-se analisar a fotografia, seja a partir da vivéncia do sujeito que fotografa, seja a partir do proceso fotogrifico, por conseguinte, seja com uma abordagem humanista, isto 6, relativa ao homem fotégrafo ~ 0 tempo do homem na maquina fotogréfica, depois o tempo do homem no laboratério, — seja com uma abordagem materialista, quer dizer, relativa a0 material fotografico — da primeira exposicao até a secagem do negativo, da segunda exposicio até a secagem da foto. A fotograficidade: articulagao do irreversivel e do inacabavel Indicamos acima 0 estatuto ambiguo do material fotogréfico: parecia que ele estava, ao mesmo tempo, do lado das condicdes de possibilidade da foto e do lado da foto em si. Hé problema. Esse problema nao foi resolvido pela abordagem humanista da fotografia, na medida em que, durante esses dois, tempos, 0 homem 6 confrontado ao material fotografico. Todavia essa abordagem insiste, com razo, na irreversibilidade do ato fotografico ~ caracteristica que, mostraremos mais adiante, € muito importante. A existéncia do problema do material fotografico, longe de nos levar a um. impasse, vai permitir-nos descobrir que tipo de andlise ~ humanista ou é preciso empregar para compreender a fotografia e nos conduzir materialista? rsconsourcs bootie a solugdo do problema geral da esséncia da fotografia. Com efeito, visto que a distingao humanista se revela inoperante pelo simples fato do estatuto equivoco do material fotogréfico, tenteros a outra distingao: a abordagem materialista. © corte, entdo, nao & mais entre o ato fotografico e a agao no laboratério, mas entre a obtengao generalizada do negativo ~ entendamos por isso a articulacao do ato fotogréfico e a obtencao restrita do negativo, a saber, as seis operagées que vio da primeira exposigao & secagem do negativo — € o trabalho do negativo que poderiamos, entio, chamar de a opbtencdo restrita da foto, isto &, as seis operagées que vao da segunda exposi¢io, a secagem da foto, © que caracteriza estes dois procedimentos? Nos dois casos, eles resultam na obtencao de uma coisa que ser definitivamente fixa (a menos que se aja possié voluntariamente sobre ela): em um caso, obtém-se um negativo; no outro, uma foto. Em contrapartida, a obten¢io generalizada do negative e 0 trabalho do rnegativo se distinguem fundamentalmente quanto a seu modo de ser. De fato, a primeira é marcada por aquilo que assinalamos antes, a saber, @ irreversibilidade. Entio, 0 ato fotogréfico, uma vez realizado, é irreversivel, ndo se pode mais fazer com que ele nao tenha existido; o fotdgrafo pode sempre fotografar de novo, porém, no mals redesencadear o mesmo processo: o filme indo é mais virgem, mas exposto; pode-se, com certeza, expé-lo novamente, mas nao se pode reencontrar a virgindade origindria; do mesmo modo, as cinco cetapas seguintes — revelacio, interrupgao, fixacio, lavagem, secagem ~ si0 irreversiveis. Em compensacio, a partir de um negativo, pode-se fazer urn ntimero infinito de fotos diferentes, intervindo particularmente em cada uma das seis cetapas — exposicio, revelacao, paragem, fixagio, lavagem, secagem; assim, a partir de um mesmo negativo, o trabalho do negativo & inacabével, na medida em que pode sempre ser retomado e executado uma nova vez, ¢ isso, de modo potencialmente diferente. A fotograficidade 6, portanto, essa articulagdo surpreendente do irreversivel e do inacabével, E a articulacio, de um lado, da irreversivel obtengdo generalizada do negative ~ constituido inicialmente pelo ato fotogréfico, ou seja por esta confrontagao de um sujeito que fotografa a alguma coisa a fotografar, gracas & mediagao do material fotogréfico ou, em outras palavras e de maneira mais geral, pelas condicées de possibilidade da producao do filme exposto e a realizagao dessa exposicao, e em seguida, pela obtencdo restrita do negativo, ou seja, suas cinco outras operagées que o produzem (revelagao, interrupgio, fixacio, lavagem e secagem) ¢, de outro lado, do inacabével trabalho do negativo — a partir cdo mesmo negativo de saida, pode-se obter um niimero infnito de fotos totalmente diferentes, intervindo particularmente quando das seis operagées que produzem a foto (exposicéo, revelagao, paragem, fixacio, lavagem e secagem). Para BB] eerwroronmeromonsev a warns Dossié 3) compreender a fotograficidade, deve-se, por conseguinte, passar de uma concepgéo humanista a uma concepsao materialista da fotografia Aperdae o resto A fotografia 6, pois, a articulagao da perda e do resto, Perda das circunstancias Linicas, causa do ato fotogréfico, do momento desse ato, do objeto a fotografar e da obtengio generalizada irreversivel do negativo, em suma, do tempo e do ser passados. Resto constituido por essas fotos que podem ser feitas a partir do negativo. A perda & irremedidvel: a fotografia o proclama para nés, mostra- os, faz-nos imagind-o; se a perda é absoluta e violenta no & porque o tempo, © objeto ou o ser perdidos tinham anteriormente um grande valor para nés ou fem si mesmos, mas porque esse tempo, esse objeto ou esse ser esto agora perdidos para sempre: & porque eles esto perdidos que, subitamente, seu valor se torna absoluto e que logo, esse absoluto atinge e contamina a perda, nossa perda. O resto nao pode ser um remédio milagroso, salvo para aqueles que necessitam acreditar em milagres; na verdade, ele nos consola da perda, permite-nos fazer © trabalho de seu luto? As vezes, talvez; em todo caso, 6 a Uinica coisa que nos resta, aquilo contra o qual va ser preciso bater-nos, debater- nos, combater-nos, aquilo gracas 20 qual o artista podera trabalhar: a fotografia ou a arte de acomodar os restos. Perdas infnitas, restos infnits... ‘Aprofundemos a simetria e as diferencas existentes entre a etapa que destaca o irreversivel e aquela que destaca o inacabavel. Quanto a primeira, 0 fotdgrafo cestd ante 0 objeto a fotografar (O = x), no domindvel no cognoscivel, a nao ser por seu fenémeno visivel. Quanto a segunda, ele esta ante o negativo que domina e manipula como uma ferramenta. Parte, no primeiro caso, desse objeto para fazer um negativo e, no segundo, do negativo para fazer uma foto. No primeiro caso, ele pode fazer varios negativos, mas jamais serao exatamente ‘05 mesmos, tendo em conta o decurso do tempo; ele vai, eno, lutar contra o tempo ¢ o irreversivel; uma vez desencadeado o procedimento ~ da exposigao a secagem -, 0 processo val irremediavelmente terminar, néo poder nunca voltar ao mesmo ponto de partida; é porque o proceso tem um fim que dele recomega um outro, do filme exposto & foto feita: esta problemitica e esta pratica so caras a Denis Roche e Opalka. Em contrapartida, no segundo caso, 6 0 inverso que se produz: ele pode teoricamente refazer a mesma foto, mas no & isso que tem interesse para ele que ndo é uma méquina; o trabalho do negativo © chama a fazer fotos diferentes, mas ele jamais terminou de fazer fotos diferentes; sua tarefa é inacabavel, portanto, ele vai lutar contra esse inacabavel e talvez, em algum momento, decretar que terminou, que desse negativo, nao fard mais fotos, que ele selecionou e criou aquela que queria, mas sabe que seu decreto nunca é defintivo: ele ou um outro pode sempre reexplorar FRANCOIS SOULAGS, 4 forogafcdade 4 (© negativo, fazer outras fotos; em suma, um artista poderia constituir toda a cobra de sua vida pela exploragio indefinida de um Gnico e mesmo negativo que até nao tivesse sido feito por ele. Assim, as duas priticas so habitadas por esforcos opostos: uma luta contra 0 decurso do tempo, a outra, contra 0 eterno retorno; uma ndo pode jamais realizar a mesma coisa, apesar de todos os seus desejos e de toda a sua vontade, a outra pode sempre fazer a mesma coisa, mas ¢ instigada, pela espectficidade do trabalho do negativo, a fazer diferentemente, Auséncia de negativo e imagem digital Poderdo ser integradas nesta andlise as imagens fotogréficas que, ou, como no comeco da fotografia e as vezes hoje, nao slo feltas com um negativo, ou, como agora, podem ser feitas a partir de uma sintese digital? Parece, & primeira vista, que em ambos os casos, estejamos tratando com a exploragao de uma tinica dimensio da fotograficidade. Esta Ultima néo seria entéo reexaminada, a0 contrério, seu conceito permitiria integrar todas essas dimens6es tornadas separadamente ou articuladas entre elas. De fato, para as primeiras fotos, como as de Nigpce, ou para os ralogramas, o trabalho do negativo nao existe, pela simples razao de que nao ha negativo: somos, entao, confrontados somente com o irreversivel e com a estética do traco, Simetricamente, para as imagens digitals, o equivalente do negative 6 a digitalizagao da imagem; a exploragao dessa digitalizagao 6 — como a exploracéo do negativo ~ da ordem do inacabével € da estética do tracado, Por conseguinte, em um caso, estética do impresso, no ‘outro estética do desenho: as duas etapas da fotograficidade. Utilizamos aqui as nogées de “tracado” e de “desenho”, para bem marcar quanto a pritica do inacabavel destaca de uma estética fundamentalmente diferente daquela do trago, do impresso e do irreversivel; de fato, a imagem digital permite uma exploragio ~ pritica e estética ~ infinitamente mais complexa e mais rica; a ‘estética digital 6 uma estética da hibridagio com potencialidades infintas; ela d4 acesso a uma cultura da hibridacdo, a uma nova ordem visual e a uma maneira de produzir, de comunicar e de receber imagens. Com efeito, 0 uso da digitalizagao corresponde a dois tipos de priticas muito diferentes. No caso que ainda & tradicional, 0 fotégrafo utiliza um scanner para digitalizar as c6pias j feitas ; seu computador Ihe permite, em seguida, fazer retoques ou transformages importantes e obter, em um disquete, uma nova, imagem que ele pode posteriormente editar em papel. Essa utilizacao do computador é apenas uma das modalidades possiveis ~ com certeza, muitissimo mais complexa tecnologicamente — do trabalho do negativo. O segundo caso & aparentemente mais revolucionério, na medida em que todo o processo depende da digitalizacao. A imagem digital, explica Edmond Couchot, “é a tradugio Dossié El] @erroronreroontcewnsean sons possié a Cac ("i einai detonating Ma Pair 4p. 12 [as esesseseeeresseees) ep, Ler sobre ee aso li de dard Couche Inge, De Foptgae 20 manérigue, Pais Hees, visual de uma matriz de ndmeros que simula real — 0 objeto ~ da qual ela pode restituir uma quase-infinidade de pontos de vista. € uma imagem-matriz capaz de cela mesma criar — porque & intimamente solidéria dos circuitos do computador € do programa que a gera — uma multiplicidade de outras imagens'.” Como 0 negativo, essa imagem-matriz pode ser gerada em relagdo ao real: aprisiona-se oticamente uma imagem, e ela é tratada digitalmente pelo calculo. Com certeza, passamos da légica da impressio para a da simulaglo, mas o que nos importa ‘aqui, ndo so as modalidades dessa referéncia 20 real , mas sua existéncia; esta Ultima autoriza a falar, entdo, de irreversivel, pela simples razo de que essa relacéo & uma relacio temporal com um real temporal e, portanto, irreversivl. Como © negativo, ainda, essa imagem-matriz pode ser explorada e aproveitada infinitamente ; ela reforga mesmo a dimensao do inacabivel, pois o objeto colocado ‘em imagem pode ser representado sob todos os dngulos e de todos os modos possiveis. Em contrapartida, a ruptura com essa relagio ao real é infinitamiente mals facil com a imagem digital que pode, se modificada a matriz de digitos, ser totalmente autonomizada em relagio ao real de origem e passar da esfera que, ‘em alguma parte, dependia de uma ldgica fotografia, aquela puramente digital ra qual se encontram também as imagens calculadas, feitas sen nenhuma relagio ‘com um real jé existente, com um real cuja imagem teria sido percebida, de passagem, pelo viés de um célculo — como teria sido possivel fazé-lo , mutatis mutandis, pelo viés de uma impresséo; nisso, a imagem digital é totalmente diferente do negative que é sempre, mesmo perfurado, recortado, até mesmo ‘queimado — como em Tom Drahos -, relagio com este real, ainda que o real a fotografar seja incognoscivel e infotografével, em suma = x; néo se perfura, nao se recorta nem se queima um algoritmo... Esta ruptura entre o digital e o fotografico tem a ver, portanto, com o fato de que, no primeiro caso, “deve-se, explica ‘Couchot, passar pela linguagem (de programacéo) para criar uma imagem (..que) 6 uma imagem com poder, imagem (... que) se apresenta no modo... interativo'. ‘As consequéncias pratico-estéticas Rumo a uma estética das opgées ‘Que conseqiéncias priticas e estéticas pode-se tirar disso? Comecemos por estudar as opgées ante as quais se encontra o fotdgrafo quando da etapa do irreversivel e do inacabavel. ‘Quanto a primeira etapa? Uma vez que o fotégrafo apertou o disparador, umasérie Infinita de oportunidades Ihe é oferecida: ele pode fazer uma ou varias fotos sobre a reancossouncs.afaoganccase EMI mesma superficie do flme, ou entio deixar desenrolar-se “normalmente o filme: pode desenvolver de mil e uma maneiras esse filme, isto 6, itervir como quiser no momento da revelacéo, do interruptor, da fixaglo, da lavagem e da secagem. Os acidentes técnicos parao desenvolvimento do filme podem involuntéria ou voluntariamente ser infinitamente ‘multiplicados — como para as fotos de Robert Capa, do Débarquement de la Normandie, que so o resultado de um problema técnico ligado a imersao involuntaria da camera do fotdgrafo na gua; ora, essas so, paradoxalmente, as mais belas fotos de Capa, nao porque tivessem falhado, mas porque o artista assumiu trabalhoua possibiidade oferecida pela imersdo; a mesma coisa com as fotos de Cameron. Assim, esta série de possibilidades desemboca em um negativo. O fato de que haja um nimero infinito de possibilidades é importante, mas nao é fundamental: com efeito, o que caracteriza essa primeira etapa é que ndo se possa retornar ao filme virgem: ela é irreversivele ndo, inacabével. (© que faza especificidade da segunda etapa ndo é a possibilidade de intervengio, & a reversibilidade e a inacababilidade de toda a operacio. De fato, obtido e fixado 0 negativo, o fotégrafo vai poder executar um niimero infinito de operacdes, sempre Partindo do mesmo negativo. Benjamin tinha vislumbrado esta riqueza de operacées e cesta especificidade da fotografia para nao insistir sendo na questio da reprodutibilidade ao infinito’. A particularidade da fotografia no é essa clonagem possivel a partir do mesmo elemento de saida: jd existe clonagem para literatura, com a impressio e até com a escrita. A particularidade da fotografia consiste na possibilidade de fazer fotos totalmente diferentes entre si, a partir do mesmo negativo: o que ha de extraordinatio no € que se possa fazer a mesma foto em varias cépias — o molde, a impressao, as técnicas de gravura, etc. d o permitiam — é que se possa fazer uma infinidade de fotos diferentes. A fotografia nao demanda uma prética e uma estética da repeticao ou da similitude. Indiquemos algumas destas possibilidades de infinitas diferencas que se oferecem ao fotégrafo: 1) aescolha da foto ou das fotos a tira: 0 fotégrafo realiza ja uma selecéo a qual, no decorrer de sua vida, ele sempre poderé retornar; qualquer pessoa, que nao ele, pode também fazer outra escolha, o que é 0 caso apés a morte de um {fotdgrafo. Este trabalho de selecao atualmente se faz cada vez mals a partir da prancha de contato. Pode-se até publicar a prépria prancha de contato, apresentando-a de mil e ura maneiras possivels ou, entdo, somente uma parte da reveladora, etc; 2) quando ele escolhe tal parte do negativo a reproduzir, ainda ai uma infinidade de possibilidades se oferece a ele: pode reproduzir inteiramente um fotograna, em parte, com outras vistas, etc. Pode néo utilizar 0 passe-wie ou utiliz-lo diferentemente: assim, sobre a foto, ver-se-do, por exemplo, os sinais da borda do negativo, as perfuragées ou a moldura preta téo cara a Cartier-Bresson. Ele Dossié .______ Bejan (W). "Lure dar fee esa reduc techie em ‘ais (83514) ari: Deno Gone, I, p 2-06. ero ec lear de Fire Moin "eee arta Tre de sa. capreducion ecg” (in span, ude 2 ar 197, Nagle). BE] t

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