Você está na página 1de 127
Edmund. HUSSERL A IDEIA DA FENOMENOLOGIA PULL NUL Onc CORT eS Titulo original: Die Idee der Phinomenologie —— (Band II Husserliana) © Martinus Nijhoff Tradugéo de Artur Morao Capa de Edigdes 70 Depésito legal n.° 32973/89 Direitos reservados para todos os paises de lingua portuguesa por Edigdes 70, L.*, Lisboa — PoRTUGAL EDICOES 70, L.*, Av. Elias Garcia, 81, r/c — 1000 LISBOA Telefs. 76 27 20 / 76 27 92 / 76 28 54 Telegramas: SETENTA Telex: 64489 TEXTOS P DISTRUBUIGAO NO NORTE EDICOES 70, L.>* Rua da Rasa, 173 4400 VILA NOVA DE GAIA EDICOES 70 (BRASIL), Ltda. Rua Sao Francisco Xavier, 224-A, Loja 2 (Tijuca) CEP 20550 RIO DE JANEIRO, RJ Telef. 2842942 Esta obra esté protegida pela’Lei. ‘Nao pode ser reproduzida, no todo ou em Parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocépia € 46% copia, sem prévia autorizagdo do Editor. Qualquer wranepiesdh 3 a Lei dos Direitos de Autor serd passivel de procedimento judicial, ADVERTENCIA DO TRADUTOR Na versao deste famoso opitsculo de Edmund Husserl, que constitui o HU volume da Husserliana (1), foi meu propésito aderir o mais estreitamente possivel ao texto original; apesar de ser claro, conciso € logicamente con- catenado, nem sempre prima pelo_fulgor literdrio, e, por vexes, mostra-se demasiado redundante. Impus-me, pois, a ‘fidelidade total d expressdo e ao contetido do pen- samento de Husserl. Procurei, para isso, encontrar ou adaptar termos correspondentes que, embora nao muito vulgares no nosso idioma, the sao, no entanto, consenta- neos ¢ ndo ferem a sua ldgica interna. No fim do volume, um breve glossdrio includ. os termos mais nucleares ou, pelo menos, mais problemdticos. Prestou-me grande ajuda a tradugao espanhola de Miguel Garca-Baré (1), de que aproveitei a selecgéo 1) Die Idee der Phanomenologie. Funf Vorlesuncen. Hirsg.u.eing Walter Biemel (Husserliana, D), Haia, Mar- tinus Nijhoff 1973. Dele existem jA as seguintes tradugdes: The Idea of Phenomenology (trad. de W. P. Alston e G. Nakhnikian; intr. de G. N,), The Hague, M. Nijhoff 1964; L'ldée de la phénoménologie (tad. de ‘Alexandre Lowit), 9 das notas criticas ao texto (alids, por indicacdéo da Edi~ tora Martinus Nijhoff) e uma ou outra solucdo relativa a termos mais dificeis. Esta neste caso a dupla de ajecti- vos alemdes real e reell, que nao é posstvel conservar em portugués sem gerar confuséo. O primeiro significa, em Husserl, ‘real’ no sentido de ‘mundano, pertencente 4 realidade natural’, e 0 segundo quer também dizer ‘real’, mas em relacéo apenas as componentes do vivido (segundo P. Ricoeur) (2), isto é, aguilo que forma parte da consciéncia e se encontra no tempo fenomenoldgico. Aproveitando a versio do tradutor espanhol —o qual, por seu turno, depende de José Gaos—, traduzi reell por ‘ingrediente’ (ou, ainda, ‘incluso’ ), Na margem de cada pdgina do presente volume, indica-se, entre barras, a paginagdo da edicéo alema. As notas criticas finais fornecem apenas as observagdes mais importantes que Husserl fez ao texto primitivo. Quem desejar um conspecto mais circunstanciado teré de consuliar o respectivo volume da Husserliana, Espero que este esforgo de translagao da terminologia de Husserl para a nossa lingua seja bem aceite, embora seja eu o primeiro a sentir-me insatisfeito com 6 resul- tado. Mostrar-me-ei, pois, grato a quem apresentar cor- recedes (para futuras reimpressdes) ou sugestées mais felizes e adequadas para determinados termos. Husserl merece uma tal solicitude e atengao. Artur Morio Paris, P.U.F., 1970; La Idea de la Fenomenologia (trad. por Miguel Garcfa~Baré), México-Madrid, Fondo de Cultura Econdémica 1982. (2) Cf. na sua tradingio das Idées directrices pour une phé- noménologie de Husserl, Paris, Gallimard 1950. ” 10 INTRODUGAO DO EDITOR ALEMAO O significado das cinco ligdes presentes —A Ideia da Fenomenologia (introdugao a Fragmentos da Feno- menologia e da Critica da Raziio) —, pronunciadas por Husserl em Gotinga, de 26.1v a 2. de 1907, sobressai inequivocamente quando procuramos entender em que momento da evolugao espiritual de Husserl elas surgiram, que viragem no set pensamento representam. Eis 0 que se propde esclarecer esta introdugao. Seis anos apds 0 aparecimento das Investigagdes Légicas, Husserl atravessa uma dificil crise. Na altura, sofre ainda a humilhagdo de ver recusada pela Universi- dade de Gotinga a proposta do Ministério da Educagao para a sua nomeasao como professor ordindrio de filosofia. Parece que este «desprezo dos colegas» 0 afectou mais do que ele queria admitir. Mas, mais grave do que este fracasso externo é a diwida acerca de si mesmo que o atormenta, e de tal modo que poe em questo a sua exis- téncia como fildsofo. Deste desespero brota-a decistio de fazer luz sobre si préprio e sobre a sua tarefa. we Al Em 25.1x de 1906, escreve na sua agenda em que, de vez em quando, inseria anotagies em estilo de did - tio (1): «Em primeiro lugar, menciono a tarefa geral que tenho de resolver para mim mesmo, se & que pretendo chamar-me fildsofo. Refiro-me a uma critica da razio. Uma critica da razao Ibgica, da razio prdtica e da razao valorativa em geral. Sem clarificar, em tragos gerais, o sentido, a esséncia, os métodos, os pontos de vista capitais de uma critica da razdo; sem dela ter pensado, esbo- gado, estabelecido e demonstrado um projecto geral, no posso verdadeira e sinceramente viver. Os tormentos da obscuridade, da diwvida que vacila de um para o outro lado, jd bastante os provei. Tenho de chegar a uma intima firmeza. Sei que se. trata de algo grande e imenso; sei que grandes génios ai fracassaram; e, se qui- sesse com eles comparar-me, deveria de antemao desesperar...» (p. 17 5). A ressondncia do titulo da principal obra kantiana nao é acaso nenhum. Husserl, nesta época, ocupou-se deti- damente de Kant; desta ocupagéo veio-lhe a ideia da fenomenologia como filosofia transcendental, como idea- lismo transcendental, e a ideia da redugio fenomeno- légica (2). (Hd que renunciar aqui a abordar a questéo da diferenga entre 0 pensamento de Kant e o de Husserl, em especial relativamente a ideia bdsica da «constituigéo».) A reducio fenomenolégica proporciona 0 acesso ao modo de consideragao transcendental; possibilita 0 retorno 4 «onsciénci, Vemos nela como € que os objectos se constituem. Efectivamente, com o idealismo transcenden- tal, caminha-se para o centro do seu pensamento, o pro- blema da constituigéo dos objectos na consciéncia ou, (1) A agenda encontra-se no Arquivo sob a indicago Kx 5. 2) B nesta altura que Huser! trava conhecimento com Dilthey, que foi para ele de grande importancia. — Infe- lizmente, até agora nfo se encontraram as cartas destes anos, como Husserl também diz, «a dissolugao do ser na cons- Nas Cinco Licdes, exprimiu Husserl pela primeira vez em piiblico estas ideias, que haviam de determinar todo o seu pensamento ulterior. Nelas oferece uma clara exposig¢ao tanto da redusao fenomenoldgica como da ideia fundamental da constituigao dos objectos na consciéncia. Um primeiro rudimento da ideia da reducgdo encon- tramo-lo ja no verio de 1905, nas chamadas Folhas de Seefeld (Indicagao: A vii 2 5); no entanto, a diferenca relativamente ds Cinco Ligdes é muito grande. Em 1905, pode falar-se sobretudo de um primeiro tactear titubeante, ao passo que, nas Cinco Ligdes, 4 ideia (jé estd expressa em toda a sua significaco, e jd se divi- ‘sou o nexo com o essencial problema da constituigio. As ideias fundamentais das Cinco LigSes nado mais abandonaram Husserl, como nos mostram os manuscritos conservados, entre os quais queremos mencionar apenas os mais importantes e em imediata conexdo com as ligdes. De Setembro de 1907 ¢ Setembro de 1908, os manuscri- tos Bx 1 e Bur 2; em seguida, a ligao de 1909 — «Ideia da fenomenologia e do seu método» (F 1 17); a ligdo sobre a reducdo ampliada, de igtoji1 (F 1, 43); ligao sobre a reducdo fenomenolégica, de 1912 (B wu 19); e, por fim, a ligao de 1915, paralela a de 1909 — «Pro- blemas fenomenolégicos selectos» — (F x 31). Num destes manuscritos (Setembro de 1907, B u 1), especi- fica Husserl 0 seguinte acerca da sua nova posigéo, em ligago com as Investigacbes Légicas: «As ‘Investigagées Légicas’ faxem passar a fenomenologia por psicologia descritiva (embora fosse nelas determinante 0 interesse tedrico-cognoscitivo). Importa, | porém, distinguir esta psicologia descritiva, e, claro, entendida como fenomenologia empi- rica da fenomenologia . O que nas minhas ‘Investigasbes Légicas’ se designava como feromenologia psicoldgica descritiva conceme a simples esfera das vivencias, segundo. o'sex contelsdo incluso: As ‘vivéncias sto 3 vivéncias do eu que vive, e nessa medida referem-se empiricamente as objectidades da natureza. Mas, para uma fenomenologia que. pretende ser gnoseolégica, para uma doutrina da esséncia do conhecimento (a priori), fica desligada a referéncia empirica. Surge assim uma fenomenologia transcendental, que foi efec- tivamente aquela que se expds em fragmentos, nas ‘Investigacses Légicas’. Nesta fenomenologia transcendental, nao nos havemos com ontologia apridrica, nem com ldgica formal e matemdtica formal, nem com geometria como doutrina apridrica do espaco, nem com cronometria e foronomia apriéricas, nem com ontologia real aprié- rica de qualquer espécie (coisa, mudanga, etc. ). A fenomenologia transcendental & fenomenologia da conscién- cia constituinte e, portanto, nao the pertence sequer um tnico axioma objectivo (referente a objectos que nao sao consciéncia... ). O interesse gnoseoldgico, transcendental, néo se dirige ao ser objectivo e ao estabelecimento de verdades para o ser objectivo, nem, por conseguinte, para a ciéncia objectiva. O elemento objec tivo pertence fustamente ds ciéncias objectivas, e ¢ afazer delas e exclusivamente delas apenas alcangar 0 que aqui falta em per- feigéo a ciéncia objectiva. O interesse transcendental, o interesse da fenomenologia transcendental dirige-se antes para a cons- ciéncia enquanto consciéncia, vai somente para os fenédmenos, Sendmenos em duplo sentido: 1) no sentido da aparéncia (Ers~ cheinung) em que a objectividade aparece; 2) por outro lado, no sentido da objectidade {Objektitat) to sb considerada enquanto justamente aparece nas aparéncias e, claro. estd, «transcendental- mente, na desconexdo de todas as posigées empiricas... Dilucidar estes nexos entre verdadeiro ser e conhecer e, deste modo, investigar em geral as correlagses entre acto, signifi- cago ¢ objecto, ¢ a tarefa da fenomenologia transcendental (ou da filosofta transcendental). (Citado segundo 0 manuscrito origi~ nal: B 1 1, fothas 25 a e seguinte). Visto que este manuscrito, tal como as Cinco Ligdes, procede de 1907, haveria que corrigir a afirmacio de que Husserl sé. com as Ideias para uma Fenomenologia Pura (1913) transitou para o idealismo. ad ‘As Cinco Ligdes foram pronunciadas como introdu- gao a Ligdo sobre a Coisa, wma ligao de quatro horas, no semestre de verdo de 1907. A Lido sobre a Coisa pertence ao ciclo lectivo «Fragmentos principais da Feno- ‘menologia e da Critica da razon, em que Husserl tenta levar a cabo a starefa geral» de uma acritica da razdor. Ele préprio apelida de grande tentativa a ligéo sobre a coisa fisica: wensaio de uma fenomenologia da coisidade e, em particular, da espacialidader (% % 5, Pp 24). Pre- cisamente porque 4 ideia-meta nas Cinco Ligdes éa da constituiga@o, a de «que 4 toda a espécie fundamental de objectos corresponde uma constituigdo particular, que 4 fenomenologia deve investigar», nao é de estranhar que ‘Husserl Ihes fizesse seguir, por assim dizer como exe- cugdo de uma tal investigacdo constitutiva, @ ligéo acerca da constituigao da coisa. Os discipulos, no entanto, parecem nio ter apreendido a importincia da Ligio sobre a Coisa, pois Husserl fez esta observagdo erm 6.111.1908 (XX 5, P 24): «Era um novo comeco, infelizmente nao compreendido nem aceite pelos meus discipulos, como eu esperava, AS dificuldades eran também demasiado grandes ¢ nao podiam 5 ser superadas logo a primeira tentativa». * * *x O estimulo para publicar 0 presente texto como volume segundo das Obras Completas provém do Prof. H. L. Van Breda, O. F. M., director do Arquivo Husserl. Aqui the expresso 0 meu agradecimento pelo seu apoio € elos seus conselhos. Devo também a minha gratidao ao Prof. Fritz Kaufmann (Buffalo), 4 Dr L. Gelber e 4 minha mulher, bem como a0 Prof. Dr. S. Strasser. Watrer BreMEL Lovaina, Setembro de 1947 15 4 PARA A SEGUNDA EDICAO A segunda edigéio aparece, no essencial, sem modifi- cagées; foi unicamente completada com um indice ono- mastico. Eliminaram-se alguns erros tipogrdficos molestos. Esté previsto publicar num volume ulterior de Husser- liana outros manuscritos, que clarifiquem a evolugdo desde as InvestigagSes Légicas até as Ideias. Estes textos farao ressaltar ainda mais claramente a posigio~chave das Cinco LigGes. Expresso aqui 0 meu agradecimento pilblico ao Ctr- culo de Estudos do Norte-Westfdlia, que patrocinou enerosamente os trabalhos do Arquivo Hussefl na Uni- versidade de Colédnia. Waxrer BIEMEL Colénia, Fevereiro de 1958 7 A IDEIA DA FENOMENOLOGIA (Cinco Ligées) | ENCADEAMENTO DAS IDEIAS DAS LIGOES /3/ O pensamento natural, da vida e da ciéncia, des- preocupado quanto 4s dificuldades da_possibilidade do_conhecimento — 0 pensamento filoséfico, defmido pela posicio perante os problemas da possibilidade do conhecimento. As perplexidades em que se enreda a reflex3o sobre a possibilidade de um conhecimento atinente as proprias coisas; como pode o conbecimento estar certo da sua consonincia com as coisas que existem em si, de as «atingim? Qual a preocupagao das coi- sas em si pélos movimentos do nosso pensamento € pelas leis légicas que os regem? Sao elas leis do nosso pensar, leis psicolégicas. — Biologismo: as leis psi- colégicas como leis de adaptacao. Contra-senso: a0 reflectiz-se naturalmente sobre o conhecimento e ao ordend-lo, justamente com 4 sua efectuacio, no sistema do pensamento nat.ral das ciéncias, cai-se logo em teorias atractivas que, no entanto, tetminam sempre na contradigdo ou no contra-senso. —Tendéncia para © cepticismo declarado. ’ [4 Pode j4 chamar-se teoria do conhecimento 4 ten- tativa de tomada de posig&o cientifica perante estes problemas. Em todo o caso, a ideia de teoria do conhecimento surge como a de uma ciéncia que resolve as dificuldades aqui em discusséo ¢ nos for- nece uma intcleccHo ultima, clara, por conseguinte, auto-concordante, da esséncia do conhscimento e da possibilidade da sua efectuacio. —A critica do conhecimento é, neste sentido, 2 condicao da possi O método da critica do conhecimento € 0 feno- menoldgico; a fenomenologia é a doutrina universal das esséncias, em que se integra a ciéncia da esséncia do conhecimento. “Que método é este? Se o conhecimento em igeral se pde em questo quanto ao seu sentido ¢ a sua realizacio, como pode estabelecer-se uma cién- cia do conhecimento? Que método pode ela levar caté 2 meta? | A. PRIMEIRO GRAU DA CONSIDERAGAO FENOMENOLOGICA 1) Num primeiro momento, duvida-se de se uma tal ciéncia € em geral possivel. Se pde em ques- tZo todo o conhecimento, como pode ela encetar-se, j4 que cada conhecimento escolhido como ponto de partida é, enquanto conhecimento, posto em questao? No entanto, esta é uma dificuldade meramente apa- rente. O conhecimento nao se nega nem se declara em todo o sentido como algo de duvidoso pelo facto de se «pdr em questo». Questionam-se certas realiza~ gdes que lhe so atribufdas, mas fica ainda em aberto se as dificuldades concernem a todos os tipos pos- siveis de conhecimento. Em todo o caso, se a teoria do conhecimento quiser concentrar-se na -possibili- dade do conhecimento, tem de ter conhecimentos sobre possibilidades cognitivas que, como tais, sio indubitiveis e, claro esta, conhecimentos no sentido mais estrito, a que cabe a apreensibilidade, e acerca da «sua» propria possibilidade cognitiva, cuja apreen- sibilidade é absolutamente indubitdvel. Se se tornou ouco claro e duvidoso como € possivel a apreensi- ilidade do conhecimento, ¢ se nos inclinamos a a duvidar de que isso seja possfvel, devemos ent3o, em primeiro lugar, ter diante dos olhos casos indubitd- veis de conhecimentos ou de conhecimentos possi- veis, que atingem ou atingiriam. realmente os seus objectos. De inicio, nao nos é permitido admitir conhecimento algum como conhecimento; de outro modo, nao teriamos nenhuma meta possivel ou, 0 que ¢ a mesma coisa, uma meta com sentido. Proporciona-nos um ponto de partida a medita~ cdo cartesiana sobre a divida: a existéncia da cogitatio, da vivéncia, ¢ indubitével enquanto se experimenta € sobre ela simplesmente se teflecte; o apreender € © ter intuitivos e directos da cogitatio sio jé um conhecer; as cogitationes sAo OS primeiros dados absolutos. 2) Com isso se religa naturalmente a primeira reflexdo gnoseolégica: Que € que, nestes casos, decide a inquestionabilidade €, por oposicao, moutros casos de pretenso conhecimento, a questionabilidade? Por- qué em certos casos 2 propensdo para o cepticismo a davida sobre como pode ser captado um ser pelo conhecimento; e porqué ¢ que nao existe nas cogita- tiones essa dirvida e essa dificuldade? | Responde-se, de comego — ¢ é essa precisamente a resposta mais 4a m3o — com o par de conceitos ou de palavras imanéncia e transcendéncia. O conheci- mento intuitivo da cogitatio é imanente, o conheci- mento das ciéncias chjectivas —ciéncias da natu- reza e ciéncias do espirito — mas também, vendo de perto; o das ciéncias .matematicas, é transcendente. 23 Nas ciéncias objectivas, existe a divida sobre a trans- cendéncia, a questio: como pode o conhecimento ir além de si mesmo, como pode ele atingir um ser que nfo se encontra no 4mbito da consciéncia? Esta dificuldade cessa no conhecimento intuitivo da cogitatio. 3) Inicialmente, tende-se a —e considera-se como algo evidente — interpretar a imanéncia como imanéncia inclusa (reelle) e, claro, em sentido psi- colégico, como imanéncia real (reale): na vivéncia cognoscitiva, como realidade efectiva que é, ou na consciéncia do eu, a que pertence a vivéncia, encontra-se também o objecto de conhecimento. Que numa mesma consciéncia e num mesmo agora efectivo o acto de conhecimento possa encontrar e atingir o seu objecto — eis algo que se considera evi- dente. O imanente, diré aqui o principiante, est em mim; o transcendente, fora de mim. Numa consideragio mais atenta, porém, distin- gue-se entre imanéncia inclusa ¢ imanéncia uo sentido do dado em si mesmo que se constitui na evidéncia. O ima- nente incluso surge como o indubitével, justamente porque nada mais exibe, nada mais «ntenta para li de si mesmo», porque aqui o que é intentado esta também autodado de modo completo e inteiramente adequado. Antes de mais, nfo entra ainda no campo visual outro dado em si mesmo além da do ima- nente incluso. 4) Por isso, de comego, nfo se distingue. O pri- meiro grau de clareza é, pois, este: 0 imanente ingre~ diente. ou, o que aqui significa o mesmo, o adequa- damente dado em si mesmo € inquestion4vel, e que me é permitido utilizar. O transcendente (0 nio inclusamente imanente) nao me é licito utiliz4-lo, por isso, tenho de levar a cabo uma reducéo fenomenold~ gica, uma exclustio de todas as posigées transcendentes. Porqué? Para. mim ¢ obscuro como pode o conhe- cimento atingir o transcendente, o no autodado, mas o transintentado; | pelo que certamente /6/ nenhum dos conhecimentos ¢ ciéncias transcenden- tes me pode ajudar em vista da claridade.(*) | O que eu quero € claridade, quero compreender 4 possibili- dade deste apreender, isto ¢, se examino © seu sen- tido, quero ter diante dos meus olhos a esséncia da possibilidade de tal apreender, quero transforma-lo intuitivamente em dado. O ver nao pode demons- trar-se; 0 cego que quer tormar-se vidente no 0 consegue mediante demonstragées cientificas; as teo- tias fisicas e fisioldgicas das cores nao roporcionam nenhuma claridade jntuitiva do sentido da cor, tal como o tem quem vé. Se, pois, como indubitavel se torna em virtude deste exame, a critica do conheci- mento é uma ciéncia que quer continuamente, s6 € para todas as espécies € formas de conhecimento, criar claridade, ent3o nao pode utilizar nenhuma Giéncia natural; nao pode religar-se aos scus resul- tados nem 3s suas assergdes sobre o ser; estes Per” manecem para ela em questio. Todas as_ciéncias so para ela apenas fendmenos de ciéncia. Toda a vin- culagao significa uma perdBaors errénea. Esta, por seu turmo, ocorre por um erréneo deslocamento do problema, mas, claro, muitas vezes dbvio: entre a explicagio cientifico-natural (psicoldgica) do conheci- mento como facto natural € a elucidacio do conhe- cimento quanto 3s possibilidades essenciais da sua efectuacio. Portanto, para evitar este deslocamento € conservar constantemente no pensamento © sentido da pergunta, por aquela possi ilidade, precisa-se da _ redugéo fenomenoldgica. Diz ela: a todo o transcendente (que nfo me € dado imanentemente) deve atribuir-se 0 indice zero, jsto é, a sua existéncia, a sua validade no devem (*) As letras mintsculas entre barras remetem pata as notas ctiticas no fim do volume.” 25 fal pdr-se como tais, mas, quando muito, como fendmenos © de validade. E-me permitido dispor de todas as cién-, cias s6 enquanto fendmenos, portanto, nao como sistemas de verdades vigentes que possam para mim ser empregues a titulo de premissas ou até de hipd- teses, como ponto de partida; por ex., toda a psico- logia, toda a ciéncia da natureza. Entretanto, o genuino sentido do principio ¢ a exortagio constante a permanecer junto das coisas (bei den Sachen) que aqui, na critica do conhecimento, estio em questo, ea nio misturar os problemas aqui presentes com outros completamente diversos. A elucidacio das possibilidades do conhecimento nfo se encontra na senda da ciéncia objectiva. / Fazer do conhecimento um dado evidente em si mesmo e querer af intuir a esséncia da efectuagio no significa deduzir, indu- zir, calcular, etc., ndo significa inferir novas coisas com fundamento a partir de coisas j4 dadas ou que valem como dadas. B. SEGUNDO GRAU DA CONSIDERACAO FENOMENOLOGICA Para levar a um grau, mais elevado de claridade a esséncia da investigacio fenomenoldgica e dos seys problemas, requer-se agora um novo estrato de con- siderages. 1) Antes de mais, j4 a_cogifatio cartesiana neces- sita_da_reducio fenomenolégica, O fendmeno psi- coldgico na apercepcio € na objectivacio psicolégi~- cas nao é realmente um dado absoluto, mas sé 0 é o fendmeno puro, o fendmeno reduzido. O eu que vive, este objecto, o homem no tempo mundano, esta coisa entre as coisas, etc., no é nenhum dado absoluto; por conseguinte, também o nio ¢ a vivén- cia enquanto sua vivéncia. Abandonamos definitiva- mente o solo da psicologia, inclusive da psicolagia descritiva. 26 ‘Assim se reduz igualmente a pergunta que, original- mente, nos impelia. Nao ¢ —‘Como posso ¢u, este homem, atingir nas minhas vivéncias um ser em si, fora de mim?’ — Em vez desta pergunta, de antemao ambigua e —em virtude da sua carga trans- cendente — complexa e multifacetada, surge agora a questao fundamental pura: ‘Como pode o fens- meno puro do conhecimento atingir algo que lhe nio imanente, como pode o conhecimento (abso- lutamente dado em si mesmo) atingir algo que no se di em si absolutamente? E como pode compre-}. ender-se este atingir?’ ‘Ao mesmo tempo, reduz-se 0 conceito da ima- néncia inclusa; j n&o significa conjuntamente a ima- néncia real, a imanéncia na consciéncia do homem ¢ no fendmeno psiquico real. —_ [ 2) Se ja temos os fendmenos intuitivos, parecei /b/ ) que também j4 temos uma fenomenologia, uma... - ciéncia destes fendmenos. Mas, logo que a encetamos, notamos uma certa estreiteza, o campo dos fenémenos absolutos /8/ ~ tomados estes na sua singularidade — nfo parece satisfazer capazmente as nossas intengdes. Que é que as intuigdes singulares nos devem subministrar, por mais seguramente que nos tragam cogitationes para em si mesmas se darem? Parece desde logo evidente que, com base nestas intuigdes, se podem empreen- der operages légicas, comparar, distinguir, subsu- mir em conceitos, predicar, se bem que por detras de tudo isso, como depois se torna patente, estejam novas objectividades. Mas admitir tudo isso como evidente e no mais reflectir, ¢ ndo ver como importa poder aqui fazer assergdes universalmente validas da espécie de que aqui necessitamos. Uma coisa, porém, parece ainda vir a ajudar-nos: a abstraccao ideativa, Fornece-nos universalidades inte- ligiveis, espécies, esséncias, € parece assim que fica dita a palavra salvadora: buscamos efectivamente a claridade intuitiva sobre a esséncia do conhecimento. . © conhecimento pertence 4 esfera das cogitationes ; ergo, temos de clevar_intutivamente 3 consciéncis da_yniversilidade as_objectalidades—untversais_desta esfera, e torna-se possfvel uma doutrina da esstneia do comhedmento. SO amos este passo em ligacio com uma conside- racio de Descartes acerca da percepcdo clara e distinta. A «existéncia» da cogitatio é garantida pelo seu abso- luto dar-se em si mesma, pelo seu cardcter de dado na pura evidéncia. Sempre que temos evidéncia pura, puro intuir e aprender de uma objectividade, direc— tamente e em si mesma, temos entZo os mesmos direitos, a mesma inquestionabilidade. Este passo forneceu-nos uma nova objectividade como dado absoluto, a objectividade da esséncia, e visto que, desde inicio, os actos Idgicos, que se expressam na enuncia¢o com base no visto, permanecem inad- vertidos, revela-se aqui ao mesmo tempo o campo dos enunciados sobre esséncias, rsepectivamente dos estados de coisas genéricos, dados no ver puro. Por- tanto, de inicio, nio distintos dos dados universais isolados. 3) Temos assim j4 tudo, temos assim a fenome- nologia plenamente delimitada e a clara evidéncia de estar na posse do que precisamos na critica do conhecimento? / E dispomos de claridade acerca dos problemas que importa resolver? N&o, 0 passo que demos leva-nos mais longe. Em primeiro lugar, torna-nos patente que a imanéncia ingrediente (respectivamente a transcendéncia) ¢ ape- nas um caso especial do mais amplo conceito de imanén— cia em geral. J& nao é, porém, evidente e sem reparo que o absolutamente dado e 0 inclusamente imanente sejam o mesmo, pois, 0 universal é absolutamente dado e no inclusamente imanente. O conhecimento do universal ¢ algo de si re uM moment na_corrente da_consciéncia; © proprio universal, que ai esté dado na evidéncia, nio ¢ algo de singular, mas, sim, MM universal, portanto. transcendente em _sen- tido verdadeiro. j Por conseguinte, o conceito da reducio fenomenold- gica adquire uma determinacao mais precisa, mais profunda e um sentido mais claro: nio é exclusio do verdadeiramente transcendente (por ex., nO sen- tido empirico-psicolégico), mas exclusio do trans- cendente em geral como de uma existéncia a admi- tir, isto é, de tudo o que nao é dado evidente no sentido genuino, dado absoluto do ver puro. Mas, naturalmente, mantém-se tudo o que dissemos: ficam excluidas € aceitam-se s6 como «fenédmenos» as vigéncias ou as realidades, etc., derivadas nas ciéncias por indugao ou dedugio a partir de hipoteses, factos ou axiomas; e fica igualmente em suspenso todo o recurso a qualquer «saber, a qualquer «conhe- cimento»: a investigacao deve manter-se no puro ver (im reinen Schaven), mas nem por isso tem que fixar~ “se no imanente incluso; ¢ investigagdo na esfera da evidéncia pura ¢, claro, investigagio de esséncias ( Wesensforschung). Dissemos também que 0 seu campo € © apriori dentro do absolutamente dado em si mesmo. Assim, pois, esta agora caracterizado este campo; é um campo de conhecimentos absolutos, para o qual ficam indecisos 0 eu, o mundo, Deus e as mul- tiplicidades matemiticas e todas as objectividades cientificas; conhecimentos que, portanto, nio sio dependentes de todas estas coisas, valem 0 que valem, quer a respeito deles se seja céptico ou nao. Tudo isto, portanto, se mantém. Porém, o fundamento de tudo é a captagio do ‘sentido do dado absoluto, da absoluta daridade do estar dado, que | exclui toda a divida que tenha sentido; numa palavra: a captagdo do sentido da evidéncia, absolutamente. intuitiva, que a si mesma se apreende. De certo modo, na sua descoberta 29 reside a significac3o histérica da meditag&o cartesiana sobre a dtvida. Mas, em Descartes, descobri-la e perdé-la foi tudo uma sé coisa. Nada mais fazemos - do que captar na sua pureza e desenvolver de modo consequente 0 que ja se encontrava nessa intengZo velhissima. —- Neste contexto, j4 discutimos a inter- pretacdo psicologista da evidéncia como sentimento. C. TERCEIRO GRAU DA CONSIDERAGAO FENOMENOLOGICA Precisamos, mais uma vez, de um novo estrato de consideragSes que nos fagam remontar a uma maior claridade sobre o sentido da fenomenologia e da problemiatica fenomenolégica. Até onde se estende o que em si esté dado? Est4 encerrado mo [Aambito do] dar-se da cogitatio ¢ das ideagSes que genericamente a captam? Até onde ele se estende, «estende-se» a nossa esfera fenomeno- légica, a esfera da claridade absoluta, da imanéncia no sentido auténtico. Fomos conduzidos um pouco mais para as pro- fundidades, e nas profundidades residem as obscuri- dades e, nas obscuridades, os problemas. A princfpio, tudo parecia simples e sé a custo se exigia de nés um trabalho muito dificil. Ainda que se rejeite o preconceito da imanéncia enquanto ima- néncia ingrediente, como se justamente ela fosse importante, permanece-se, no entanto, apegado ini- cialmente 4 imanéncia inclusa, pelo menos em certo sentido. Parece, desde logo, que a consideragio de esséncias sé tem que captar genericamente o inclusa- mente imanente 4s cogitationes e que sé tem de esta~ belecer as relagSes que se fundam nas esséncias; apa~ rentemente, é, pois, uma coisa facil. Faz-se uma refle~ xio, dirige-se o olhar para os prdéprios actos, deixam~ -se valer os seus contetidos ingredientes (reell), tal 20 como séo, s6 que em redugao fenomenoldgica; esta parece ser a tmica dificuldade. E, naturalmente, nada mais hd a fazer do que elevar o intuido 4 cons- cigncia do universal. Se, porém, virmos de mais perto os dados, a coisa torna-se menos cémoda. Em primeiro lugar, as cogitationes que, enquanto simples dados, de modo nenhum consideramos como algo de misterioso, ocultam transcendéncias de toda a indole. Se olharmos de mais perto € advertirmos como, na vivéncia, por eX., de um som, mesmo depois da redugio enomenoldgica, se opsem 0 fendmeno (Erscheinung) (*) € 9 que aparece © como se opdSem fe seio do dado puro, efgo, da imanéncia auténtica, fica- mos perplexos. Por exemplo, o som dura; temos ai 4 unidade evidentemente dada do som e da sua dis- tensio temporal com as suas fases temporais, a fase do agora e as fases do passado; por outro lado, se teflectirmos, o fenémeno da duracio do som, que éem si algo de temporal, tem a sua respectiva fase do agora e as suas fases do passado. E numa fase seleccionada do agora do fendmeno nao s6 € objecto o agora do proprio som, mas © agora do som é apenas um ponto puma duragio sonora. Esta indicagdo — andlises mais pormenorizadas pertencem as nossas tarefas especiais no que sc vai seguir — ¢ suficiente para nos fazer ver 0 que aqui hd de novo: o fendmeno da percep¢io de um som e, claro, da percep¢ao evidente e reduzida, exige uma fe Mea interior . Por conseguinte, temos dois dados a_imanén absolutos, 0 dado do fenémeno € 0 dado do objecto; eo objecto, dentro desta imanéncia, nao éimanente (1) (*) No sentido de «manifestagdo», caparigion (LE, vivén- ‘”) ‘No manuscrito est «transcendenter. 31 no sentido incluso, no ¢ um fragmento do fené- meno: a saber, as fases passadas da duragio do som _ sio agora ainda objecto e, no entanto, nao estao inclusamente contidas no ponto-do agora do fené- meno. Por conseguinte, encontramos também no fenémeno da percepc3o 0 mesmo que encontr4vamos ma consciéncia da universalidade, a saber, é uma consciéncia que constitui um dado que em si mesmo se da, que nfo est4 contido no incluso ¢ nfo é em geral para encontrar como cogitatio |. No grau infimo da consideracZo, no estédio da ingenuidade, parece a principio que a evidéncia era um simples ver, um olhar do espirito desprovido de esséncia, em todos os casos um sé € 0 mesmo e em si indiferenciado: o ver divisa justamente as coisas, / as coisas simplesmente existem e, no intuir verdadei- ramente evidente, existem na consciéncia, e o ver centra-se simplesmente nelas. Ou, indo buscar a ima~ gem a outro sentido: é um directo captar, ou tomar, ou apontar para algo que simplesmente é ¢ esta ai. Toda a diferenca «est», pois, nas coisas, que sio para si e tém por si mesmas as suas diferencas. E, no entanto, numa andlise mais precisa, quio diverso se revela agora o ver_as_coisas! Se bem que se conserve sob o nome deCatencio) o olhar em si indescritivel e indiferenciado, mostta-se, porém, que efectivamente nfo tem’ sentido algum falar de coisas que simplesmente existem e apenas precisam de ser vistasy“Mmas que esse_«meramente_existim so _certas tem a percepgao, a fantasia, a recordacao, a predica- sf, etc ¢ que as. coisas nao esiéo nelas como num envolucro ou num recipiente, mas se constitvem nelas a5 Colsas, as quais nio podem de modo algum encon- aS coisas g exibir-se (ser representadas) de tal e tal modo em tais fenémenos. E af as coisas nio exis- tem. para si mesmas ¢ «enviam para dentro da cons- cincia» os seus representantes. Algo deste género nio nos pode ocorrer no interior da esfera da redugio fenomenoldgica, mas as coisas so € estio dadas em si mesmas no fendmeno (Erscheinung) e em virtude do fenémeno; so ou valem, claro esta, como indivi- dualmente separaveis do fendémeno, na medida em que nio importa este fendmeno singular (2 conscién- cia de estar dadas), mas. essencialmente sio dele inse- paraveis. : Mostra-se, pois, por toda a parte, esta admirével correlacio entre 0 fendmeno do conhecimento e 0 objecto de conhecimento. Advertimos agora que 2 tarefa da fenomenologia, ou antes, 0 campo das suas tarefas e investigagdes, nfo é uma coisa tio trivial como se apenas houvesse que olhar, simplesmente abrir os olhos. Jé nos casos primeiros € mais simples, nas formas infumas do conhecimento, se propdem a and- lise pura e A pura considera¢ao de esséncias as maio- tes dificuldades; ¢ facil falar em geral da cortelac3o, mas muito dificil elucidar 0 modo como se constitui no conhecimento um objecto cognoscitivo. | Ea tarefa ¢, agora, dentro do ambito da evidéncia pura ou do dar-se em si mesmo ( Selbstgegebenheit), ras- trear todas as formas do dar-se e todas as correlacées € exercer sobre todas elas a andlise esclarecedora. E, naturalmente, consideram-se aqui nZo 86 os actos iso- lados, mas também as suas complexdes, os seus nexos de concordancia e discordancia e as teleologias que surgem. Estes nexos no sao conglomerados, mas uni- dades peculiarmente ligadas que, por assim dizer, se sobrepdem; ¢ unidades do conhecimento que, como unidades cognitivas, tém também os seus cor relatos objectivos unitérios. Pertencem, pois, elas proprias aos actos de conhecimento, os seus tipos sto tipos cognitivos, as suas formas sio as formas do pen- samento ¢ as da intuicio (a palavra nao se entende aqui em sentido kantiano). . Trata-se, aqui, de rastrear gradualmente os dados 33 [33] [14] em todas as modificagdes: os auténticos ¢ os inautén- ticos, os simples e€ os sintéticos, os que, por assim dizer, se constituem de um sé golpe e os que, segundo a sua esséncia, se edificam apenas passo a passo; os que valem absolutamente e os que se apropriam em gradagio ilimitada, no processo do conhecimento, de um dar-se e de uma plenitude de validade. Por este caminho, acabamos também por chegar &4 compreensio de como pode ser captado o objecto real transcendente no acto de conhecimento (ou conhecer-se a natureza) como aquilo que, de inicio, é intentado; ¢ ainda como o sentido deste intentar (Meinung) se cumpre pouco a pouco, no nexo cog- noscitivo continuado (contanto que tenha apenas as formas concernentes justamente a constituigio do objecto da experiéncia). Compreendemos entio como se constitui continuamente o objecto empirico e como The est4 prescrita precisamente esta espécie de consti~ tuicao, e que ele exige, por essncia, justamente uma tal constituicfo gradual. ~ Tornam-se por esta via manifestas as formas meté- dicas, que sio determinantes para todas as ciéncias e sio constitutivas para todos os dados cientificos, por conseguinte, a elucidacao da teoria da ciéncia e, assim, implicitamente, a elucidac3o de todas as ciéncias: mas, claro, sé implicitamente, isto ¢, quando se levar a cabo este colossal trabalho de clarificacSo, a critica do conhecimento | estaré capacitada para fazer a critica das ciéncias particulares e, portanto, para realizar a sua valoracio metafisica. Tais sto, pois, os problemas do dar-se, os pro- blemas da constituigéo des objectalidades de toda a espécie no conhecimento. A fenomenologia do conhecimento é ciéncia dos fenémenos cognoscitivos neste duplo sentido: ciéncia dos conhecimentos como fenémenos (Erscheinungen), manifestagdes, actos da consciéncia em que se exibem, se tornam conscientes, passiva ou activamente, estas e aquelas objectalidades; e, por 4 outro lado, ciéncia destas objectalidades enquanto a si mesmas se exibem deste modo. A palavra ‘fend- meno’ tem dois sentidos em virtude da correlagio essencial entre 0 aparecer € 0 que aparece. pawvopevov significa efectivamente «0 que aparece» €, No entanto, utiliza-se de preferéncia para o proprio aparecer, para o fenémeno subjectivo (se se permite esta expres- sio grosseiramente psicolégica, que induz a mal- -entendidos). Na reflexio, torna-se objecto a cogitatio, o proprio aparecer, € isto favorece a formagio de equivocos. Finalmente, n3o é preciso realgar que, 20 falar de investigaclo dos objectos cognoscitivos € dos modos de conhecimento, se pensa sempre neste como inves- tigacdo de esséncias, o qual, na esfera do que se da de maneira absoluta, salienta genericamente © sentido fltimo, a possibilidade, a essencia da objectalidade do conhecimento e do conhecimento da objectalidade. Naturalmente, a fenomenologia universal da razdo tem igualmente que resolver os problemas paralelos da correlacio entre valoragao e valor, etc. Se o termo ‘fenomenologia’ se empregar numa acepgio tao ampla que se abranja «a» anélise de tudo o que se da em si mesmo (Selbstgegebenheit), teunem~se entio data desconexos: andlise dos dados sensiveis segundo os seus varios géneros, etc. — 0 comum encontra-se, ento, no método da anélise de esséncias na esfera da evidéncia imediata. | PRIMEIRA LIGAO ‘Atitude intelectual natural e ciéncia natural [p. 17] — Ati- tude intelectual filoséfica (reflexiva) [p. 18] — As contra- digdes da reflexZo sobre o conhecimento na atitude natu- ral [p. 20] — A dupla tarefa da verdadeira critica do conhe- cimento [p. 22]—A verdadeira critica do conhecimento como fenomenologia do conhecimento [p. 23] A nova dimensio da filosofia; o seu método préprio perante a cién- cia [p. 24]. | Em ligdes anteriores, distingui a ciéncia naturale a [17] ciéncia filoséfica; a primeira promana da atitude espi- ritual natural, ¢ a segunda, da atitude espiritual filo- s6fica. A atitude espiritual natural nfio se preocupa ainda com a critica do conhecimento. Na atitude espiritual natural viramo-nos, intuitiva e intelectualmente, para as coisas que, em cada caso, Ros estdo dadas e obvia- mente nos estio dadas, se bem que de modo diverso e em diferentes espécies de ser, segundo a fonte e 0 grau de conhecimento, Na petoep¢ao, por ex., estd obviamente diante dos nossos olhos uma coisa; esta af no meio das outras coisas, Vivas € mortas, animadas e inanimadas, portanto, no meio de um mundo que, em parte, como as coisas singulares, cai sob a per- cepgio e, em parte, est{ também dado no nexo da recordacio, e se estende a partir dai até ao indetermi- nado e ao desconhecido. ‘A este mundo se referem os nossos juizos. Faze- mos enunciados, em parte singulares, em parte uni- versais, sobre as coisas, as suas relagSes, as suas mudan- gas, as suas dependéncias funcionais ao modificar-se é as leis destas modificacdes: Exprimimos o que a experiencia directa nos oferece. Seguindo os motivos da experiéncia, inferimos:0 snilo:.experimentado a [x8] partir do directamente experimentado (do percep- cionado e do recordado); generalizamos, e logo de novo transferimos o conhecimento universal para os casos singulares ou deduzimos, no pensamento ana- litico, novas generalidades a partir de conhecimentos universais. Os conhecimentos nfo se seguem simples- mente aos conhecimentos 4 maneira de mera fila, mas entram em relagdes Idgicas uns com os outros, seguem-se uns aos outros, «concordam» reciproca~ mente, confirmam-se, intensificando, por assim dizer, a sua forga légica. Por outro lado, entram também em relacdes de contradi¢ao e de luta, no se harmonizam, sao aboli- dos por conhecimentos seguros, | rebaixados ao nivel de simples pretensdes de conhecimento. As contradi- gdes nascem talvez na esfera da legalidade da forma puramente predicativa: sucumbimos a equivocos, cometemos paralogismos, contamos ou calculémos mal. Se assim é, restauramos a concordancia formal, desfazemos os equivocos, ete. Ou entao, as contradicdes perturbam a conexio motivacional que funda a experiéncia: motivos empi- ricos pugnam com motivos empiricos. Como nos vamos desenvencilhar? Ora, ponderamos os motivos em prol das diversas possibilidades de determinacio ou explicac3o; as mais débeis devem ceder aos mais fortes que, por seu turno, s6 valem enquanto resistem, isto é, enquanto nfo tém de render-se, num combate ldgico semelhante, perante novos motivos cognitivos, que introduz uma esfera de conhecimentos ampliada. Assim progride o conhecimento natural. Apode- ra-se num 4mbito sempre cada vez maior do que de amtemio e obviamente existe e esté dado e apenas segundo o Ambito e o contetido, segundo os elemen- tos, as relagBes ¢ leis da-realidade a investigar de mais perto. Assim surgem e crescem as distintas ciéncias naturais, as ciéncias naturais enquanto. ciéncias da natureza e da natureza psiquica, as ciéncias do espi- 40 rito e, por outro lado, as ciéncias matematicas, as ciéncias dos nameros, das multiplicidades, das rela- goes, etc. Nestas tiltimas ciéncias, nao se trata de rea- lidades efectivas, mas de possibilidades ideais, validas em si mesmas, — de resto, porém, também de ante- mio aproblematicas. Em cada caso do conhecimento cientifico natu- ral, oferecem-se e resolvem-se dificuldades, € isto de um modo puramente légice ou segundo as préprias coisas, com base nos impulsos ou motivos cognitivos que justamente residem nas coisas, que parecem, por assim dizer, sair destas como exigéncias que elas, estes dados, pdem ao conhecimento. Contrastemos agora com a atitude intelectual natu- ral, ou com O$ Motivos cognitivos naturais, os filosé~ fico: Com o despertar da reflexao sobre a relagio entre conhecimento e objecto, abrem-se dificuldades abis- sais. | O conhecimento, a coisa mais ébvia de todas no pensamento natural, surge inopinadamente como mistério. Devo, porém, ser mais exacto. Obvia é, para © pensamento natural, a possibilidade do conhe- cimento. O pensamento natural, que actua com uma fecundidade ilimitada, e progride, em ciéncias sem- pre novas, de descoberta em descoberta, nio tem nenhum ensejo para langar a questo da possibilidade do conhecimento em geral. Sem divida, como tudo © que ocorre no mundo, também o conhecimento se torna de certo modo para ele um problema; torna-se objecto de investigagio natural. O conhecimento é um facto da natureza, ¢ vivéncia de seres organicos que conhecem, é um factum psicolégico. Pode, como qualquex factum psicoldgico, descrever-se segundo as suas espécies e formas de conexdo ¢ investigar-se nas suas relagdes genéticas. Por outro lado, o conheci- mento é, por esséncia, conhecimento da objectalidade (Erkenntnis von Gegenstindlichkeit) e & tal em. virtude do sentido que lhe é imanente, com 0 qual se refere 3 41 [19 [20] objectalidade. O pensamento natural também ja se ocupa destes aspectos. Transforma em objecto de investigagio, em universalidade formal, as conexdes apridricas das significagdes e das vigéncias significati- vas, as leis apriéricas que pertencem 4 objectalidade como tal; surge assim uma gramdtica pura e, num estrato superior, uma légica pura (um complexo integro de disciplinas gracas as suas diversas delimitagSes pos- siveis) e, além disso, brota uma légica normativa ¢ pratica como técnica do pensamento e, sobretudo, do pensamento cientifico, Até aqui, encontramo-nos ainda no solo do pen- samento natural (1). Mas, justamente, a correlagio entre vivéncia cognitiva, significagio e objecto — correlacio a que acabémos de aludir com o fito de uma contraposicio da psicologia do conhecimento 4 légica pura e 4s ontologias — ¢ a fonte dos mais profundos ¢ mais diffceis problemas, em suma, do problema da possi- bilidade do conhecimento. O conhecimento é, em todas as suas configuraces, uma vivéncia psiquica: € conhecimento do sujeito ue conhece. Perante ele esto os objectos conheci- ds. Mas, como pode o conhecimento estar certo da sua consonancia com os objectos conhecidos, como pode ir além de si e atingir fidedignamente os objec- tos? O dado dos objectos cognitivos no conhecimento, ébvio para o pensamento natural, torna-se um enigma. Na petcepgio, a coisa percebida deve imediatamente ser dada. Ai estd a coisa diante dos meus olhos que a percepcionam; vejo-a e agarro-a. Mas a percepcio é simplesmente vivéncia do meu sujeito, do sujeito que percepciona. Igualmente s3o vivéncias subjecti- vas a recordac3o ea expectativa, todos os actos inte- lectuais sobre elas edificados em virtude dos quais se () Cf Anexo 1 42 chega 4 posigao mediata de um ser real e a0 estabele- cimento de quaisquer verdades sobre o ser. De onde sei eu, © cognoscente, € como Posse etl saber confiada- mente que nao 6 existem as minhas vivéncias, estes actos cognitivos, mas também que existe o que elas conhecem, mais ainda, que, em geral, existe algo que haveria que pdr frente ao conhecimento como seu objecto? Devo dizer que s6 0s fendmenos s40 verdadeira- mente dados ao cognoscente, que jamais ele vai além desta conex3o das suas vivéncias; que, portanto, sé pode afirmar com pleno direito: ‘Eu existo, todo o nio-eu é simples fendmeno € se dissolve em nexos fenomenais’? Devo, pois, instalar-me no ponto de vista do solipsismo? Dura exigéncia! Devo eu, com Hume, reduzir a ficgdes toda a objectividade trans- cendente, ficgdes que podem explicar-se mediante a psicologia, mas nao podem racionalmente justificar- se? Dura exigéncia também esta. Porventura, a psi- cologia de Hume nio transcende, como toda a psico- logia, a esfera da imanéncia? Nao opera ela, sob as tubricas de ‘hdbito’, ‘natureza humana’ (human nature), ‘6rgio ‘sensorial’, ‘estimulo’, etc., com exis- téncias transcendentes (e transcendentes, segundo a sua propria confissic), quando o sew objectivo ¢ tebaixar ao nivel de ficcZo todo o transcender as «impresses € cideiasy actuais? (1) Mas de que serve referir contradicdes, se a | pro- pria ldgica est4 em questo ¢ se tormou problematica? Efectivamente, 4 significagao real da legalidade légica, que est4 fora de toda a questo para o pensamento natural, torna-se agora problemdtica ¢, inclusive, duvi- dosa. Ocorrem sequéncias de ideias biolégicas. Recor- damos a moderna teoria da evolugio, segundo a qual o homem se desenvolveu na luta pela existéncia e (!) Cf. Anexo IL. “43. [ps] /22) gtacas a seleccZo natural, e com ele, naturalmente, também o seu intelecto e, com o intelecto, igualmente . todas as formas que lhe sio préprias, isto ¢, as formas ldgicas. Por conseguinte, niio exprimem as formas e leis l6gieas a peculiar indole contingente da espécie humana, que poderia ser de outro modo e se tomar4 diferente, no decurso da evoluc%o futura? O conheci- mento ¢, pois, apenas conhecimento humano, ligado as formas intelectuais humanas, incapaz de atingir a natu- reza das prdprias coisas, as coisas em si, Mas, bem depressa irrompe de novo um contra- ~senso: témi ainda sentido os conhecimentos com que opera uma tal opinido e as préprias possibilidades que considera, se as leis Idgicas so abandonadas em semelhante relativismo? A verdade de que hd tal ou tal possibilidade nao pressupde implicitamente a vali- dade absoluta do principio de contradic3o, segundo © qual uma verdade exclui a contradigio? Devem bastar os exemplos seguintes. A possibili- dade do conhecimento em toda a parte se torna um enigma. Se nos familiarizarmos com as ciéncias natu- rais, achamos tudo claro e compreensivel, na medida em que elas est&o desenvolvidas de modo exacto, Estamos seguros de nos encontrar na posse da verdade objectiva, fundamentada por métodos fidedignos, que realmente atingem a objectividade. Mas, logo que reflectirmos, cafmos em enganos e perplexidades, Enredamo-nos em manifestas incompatibilidades e até contradigdes. Estamos em perigo permanente de deslizar para 0 cepticismo ou, melhor, para qualquer uma das diversas formas do cepticismo, cuja carac- terfstica comum é, infelizmente, uma sé e a mesma: © contra-senso. A arena destas teorias obscuras ¢ contraditérias, bem como das infindas disputas concomitantes, [é a teoria do conhecimento e a metafisica, com ela intima- mente entretecida, tanto histérica como objectiva— mente. A tarefa da teoria do conhecimento on eritica 44 da razio teorética ¢, antes de mais, uma tarefa critica. Tem de denunciar os absurdos em que, quase inevi- tavelmente, se envencilha a reflexdo natural sobre a relacio entre conhecimento, sentido do conhecimento e objecto do conhecimento, ergo, tem de refutar as teortas aberta ou ocultamente cépticas sobre a essén- cia do conhecimento mediante a demonstracio do seu contra-senso. Por outro lado, a sua tarefa positiva é resolver os problemas concernentes 3 correlacio entre conheci~ mento, sentido do conhecimento e objecto do conhe- cimento, gracas A inquiric3o da esséncia do conheci- mento. Entre estes problemas encontra-se também a patenteac3o do sentido essencial da objectalidade cog- noscivel ou, o que é o mesmo, da objectalidade em geral: do sentido que lhe esta prescrito a priori (isto é, segundo a esséncia), em virtude da correlagio de conhecimentos e objectalidade do conhecimento. E isto concerne também, naturalmente, a todas as configuragSes fundamentais de objectalidades em geral, tracadas de antem§o pela esséncia do conhe- cimento. (As formas ontoldgicas, tanto as apofanticas como as metaf{sicas). Justamente gracas ao cumprimento destas tarefas se torna apta a teoria do conhecimento para ser cri- tica do conhecimento ou, mais claramente, para ser critica do conhecimento natural em todas as ciéncias naturais. Pde-nos entio, efectivamente, em situagdo de interpretar de modo correcto e definitivo os resul~ tados das ciéncias naturais a propésito do ente. Com efeito, a perplexidade tedrico-cognoscitiva a que nos arrojou a reflexo natural (pré-gnoseoldégica) sobre a possibilidade do conhecimento (sobre uma possfvel apreensibilidade do conhecimento), condiciona nio sé opinides falsas acerca da esséncia do conhecimento, mas. também interpretagdes fundamentalmente erré- neas, porque em si mesmas contraditérias, do ser que é conhecito nas ciéncias naturais. Segundo a interpre- 45 taco considerada como necessdtia em virtude dessas reflexdes, uma e a mesma ciéncia natural se interpreta _ em sentido materialista, espiritualista, psicomonista, positivista ou em outros sentidos diversos, $6, pois, a reflex3o gnoseolégica origina a separagio de / ciéncia natural e filosofia. Unicamente por ela se torna patente que as ciéncias naturais do ser nfo sio ciéncias definitivas do ser. E necesséria uma ciéncia do ente em sentido absoluto. Esta ciéncia, que cha- mamos metafisica, brota de uma «criticay do conheci- mento natural nas ciéncias singulares com base na intelecc&o, adquirida na critica geral do conhecimento, da esséncia e da objectalidade do conhecimento segun- do as suas diferentes configuragSes fundamentais, e com base na intelecco do sentido das diversas cor- relacdes fundamentais entre conhecimento e objecta- lidade do conhecimento. Se abstrairmos das metas metafisicas da critica do conhecimento, atendo-nos apenas A sua tarefa de elu- cidar a esséncia do conhecimento e da objectalidade cogni- tiva, ela é ent&o fenomenologia do conhecimento e da objectalidade cognitiva e constitui o fragmento primeiro e basico da fenomenologia em geral. ‘Fenoménologia’ — designa uma ciéncia, uma conexio de disciplinas cientificas; mas, ao mesmo tempo e acima de tudo, ‘fenomenologia’ designa um método e uma atitude intelectual: a atitude intelectual especificamente filosdfica, 0 tmétodo especificamente filoséfico. Tomou-se quase um lugar comum, na filosofia contemporanea, na medida em que pretende ser uma ciéncia rigorosa, afirmar que s6 pode haver um método cognoscitivo comum a todas as ciéncias e, portanto, também 4 filosofia. Esta convicgio corres- ponde perfeitamente as grandes tradig6es da filosofia do séc, xvit, a qual também defendeu que a salvago da filosofia depende de ela tomar como modelo metéddico - as ciéncias exactas e, acima de tudo, pois, a matem4- £6 tica e a ciéncia natural matemética. A equiparacdo metddica est4 também ligada a equiparacao de objecto da filosofia com as outras ciéncias; e, hoje, deve ainda designar-se como predominante a opinido de que a filosofia e, mais concretamente, 2 doutrina suprema do ser e da ciéncia— pode estar nao s6 relacionada com todas as restantes ciéncias, mas também fundada nos seus resultados, {| da mesma maneira que as ciéncias se baseiam umas nas outras € OS resultados de umas podem actuar como premissas das outras. Lembro assim as fundamentagoes arbitrarias da teo- tia do conhecimento mediante a psicologia do conhe- cimento e a biologia. Nos nossos dias, aumentam as reaccées contra estes preconceitos funestos. Sio, efectivamente, preconceitos. Na esfera natural da investigagao, uma ciéncia pode, sem mais, edificar-se sobre outra ¢ uma pode servir a outra de modelo metédico, se bem que s6 em certa medida, determinada e definida pela natureza do respectivo campo de inyestigagio. A_filosofia, porém, encontra-se nuria dimensdo completamente nova. Precisa de pontos de partida inteiramente novos ¢ de um método totalmente novo, que @ distingue por princfpio de toda a ciéncia matural. Daf que os pro- cedimentos ldgicos, que dio unidade 4s ciéncias naturais —com todos os métodos especiais, que variam de ciéncia para ciéncia —, tenham um cardc- ter principal unitério, a que se contrapdem os pro- cedimentos metédicos da filosofia como uma uni- ‘dade em principio nova. EB dai também que, dentro do conjunto total da critica do conhecimento ¢ das disciplinas «criticas», a filososofia pura tenha de pres- cindir de todo o trabalho intelectual realizado nas ciéncias naturais e na sabedoria e conhecimentos natu- rais nio cientificamente organizados, € dele lhe nao seja permitido fazer qualquer uso. a 2a [25] A seguinte reflexdo desde jé nos aproximaré desta doutrina, cuja fundamentagio pormenorizada ser4 fornecida pelas consideracGes ulteriores. No ambiente céptico que necessariamente gera a teflexfo critico-cognoscitiva (refiro-me & primeira, a que precede a critica cientifica do conhecimento e se realiza no modo de pensar natural), toda a ciéncia natural e todo o método cientifico natu- tal deixam de valer, como uma posse disponivel. Com efeito, a apreensibilidade objectiva do conheci- mento em geral tornou-se, segundo o sentido e a possibilidade, enigmatica e, em seguida, até duvidosa, E, por conseguinte, o conhecimento exacto tornou-se n3o menos enigmético que o nio-exacto, o cientifico / nZo menos que o pré-cientifico. Pée-se em questZo a possibilidade do conhecimento, mais precisamente, a possibilidade de como ele pode atingir uma objecti- vidade que, no entanto, é em si o que & Mas isso supde que fica em questo a efectuacio do conheci- mento, o sentido a sua pretensio de validade ou legitimidade, 0 sentido da distinc3o entre conheci- mento valido e conhecimento simplesmente pte- tenso; por outro lado, também o sentido de uma objectalidade que existe e € o que ¢, quer seja ou nio conhecida e que, no entanto, enquanto objectalidade € objectalidade de um conhecimento possfvel, cognos- civel por principio, mesmo se facticamente jamais foi conhecida e o venha a ser; que é em principio per- ceptivel, represent4vel, determindvel mediante pre- dicados num possivel pensamento judicativo, etc. Mas nfo € de prever como o emprego de pressu~ postos tomados bo conhecimento natural ainda que nele estejam «exactamente fundadoss, possa ajudar- hos a resolver as davidas gnoseoldgicas, 4 responder aos problemas critico-cognoscitivos. Se o sentido e o valor do conhecimento natural em geral se tornaram probleméticos juntamente com todos os seus recursos maetddicos, com. todas as suas fundamentacdes exactas, 48 ento igualmente a problematicidade atinge toda a Proposic¢fo extraida & esfera do conhecimento natu- ral pretensamente aduzida como ponto de partida e todo o método de fundamentagio supostamente exacto, A mais rigorosa matemdtica e a mais estrita ciéncia natural matemética no tém aqui a menor superioridade sobre qualquer conhecimento, real ou pretenso, da experiéncia comum, E, pois, claro que de nenhum modo se pode dizer que a filosofia (a qual, no entanto, comeg¢a com a critica do conheci- mento e radica com tudo o mais que ela é na critica do conhecimento) tem de orientar-se metodicamente (ou até quanto ao seu objecto!) pelas ciéncias exactas; que deve delas tomar a metédica como modelo; que apenas lhe cabe Prosseguir e levar a cabo, segundo uma metddica principalmente idéntica em todas as ciéncias, o trabalho féito nas ciéncias exactas, A filo- sofia, Tepito, situa-se, perante todo o conhecimento natural, numa dimensao nova, € a esta nova dimensio, por mais que tenha — como ja transparece no modo figurativo de falar— conexdes essenciais com as antigas dimens6es, corresponde um método novo novo desde o seu fundamento —, que se / contra~ /2 poe ao «natural, Quem isto negar nada compreen- deu do genufno estrato de problemas da critica do conhecimento e, por conseguinte, também nfo enten- deu o que a filosofia realmente quer e deve ser, nem © que The confere a especificidade ¢ a sua propria Justificag%0, perante todo o conhecimento e a cién- cia naturais (1), (1) Cf no Apéndice 2,¢ Qa | SEGUNDA LICAO © comego da critica do conhecimento: o por-em-questio de todo o saber [p. 29] — Obtengao do solo absolutamente seguro, em ligag¢Zo com a meditag&o cartesiana sobre a divida [p. 30] —A esfera dos dados absolutos [p. 31] — Repeti- gio e complemento; refutagio do argumento contra a pos- sibilidade de uma critica do conhecimento [p. 32]-O enigma do conhecimento natural: a transcendéncia [p. 34] —Demarcacio de dois conceitos de imanéncia e de trans- cendéncia [p. 35] © primeiro problema da critica do conhecimento: a possibilidade do conhecimento transcen- dente [p. 36] — O principio da redugo gnoseolégica [p. 39]- | Ao encetar a critica do conhecimento, importa, /2< pois, adjudicar © indice da questionabilidade a todo o mundo, 4 natureza fisica ¢ psfquica e, por fim, também ao prdprio eu humano, juntamente com todas as ciéncias que se referem a estas objectalidades. A sua existéncia, a sua validade ficam por decidir. A questSo agora é: como se pode estabelecer a critica do conhecimento? Enquanto autocompreensSo cienti- fica do conhecimento, quer determinar — conhe- cendo cientificamente e, portanto, objectivando— o que ¢ em esséncia o ‘conhecimento, © que reside no sentido da referéncia a uma objectalidade que lhe é atribufda e no da validade objectiva ou apre- ensibilidade, quando deve ser conhecimento na ver- dadeira acepg3o. A émoyp, que a critica de conhe- cimento deve exercitar, nio pode ter o sentido de que ela no sé comece por, mas também persista em impugnar todos os conhecimentos— ergo, tam- bém os seus préprios—, nfo deixando ales dado algum, portanto, também nao aqueles que ela pré- pria estabelece. Se nada lhe € permitido pressupor como previamente dado, deve entio comegar por algum conhecimento, que ela no toma sem mais de outro lado, mas antes a.si mesma o dé, que ela pré- pria pde-como conhecimento primeiro. : 33 a ~ wo [30] lt A este primeiro conhecimento nfo é permitido conter absolatamente nada da obscuridade e incerteza que normalmente conferem aos conhecimentos o cardcter do enigmiatico, do problemético, o qual nos langa por fim em tal perplexidade que somos induzi- dos a dizer que 0 conhecimento em geral ¢ um pro- blema, uma coisa incompreensfvel, carente de eluci- dagio, duvidosa quanto 4 sua pretensio. Em termos correlativos: se nio nos é licito aceitar ser algum como previamente dado, porque a obscuridade cri- tico-cognoscitiva faz com que nio compreendamos que sentido pode ter um ser que seja em sie que, no entanto, seja conhecido no conhecimento, entio deve poder mostrar-se um ser que devemos reconhecer como absolutamente dado e indubitdvel, / na medida em que est4 dado justamente de um modo tal que nele existe plena claridade, a partir da qual toda a pergunta encontre e deva encontrar a sua resposta imediata. E, agora, recordemos a meditagao cartesiana sobre a divida. Ao considerar as miltiplas possibilidades de erro e de ilusdo, posso enredar-me num tal desespero céptico que acabe por dizer: ‘nada de seguro hé para mim, tudo é duvidoso’. Mas, logo se torna evidente que, para mim, nem tudo pode ser duvidoso, pois, ao julgar que tudo é duvidoso, ¢ indubitavel que eu assim julgo e, por conseguinte, seria absurdo querer manter uma diivida universal. E em cada caso de uma dtvida determinada é indubitavelmente certo que eu assim duvido, E o mesmo se passa em toda a cogitatio. Sempre que percepciono, represento, julgo, raciocino, seja qual for a certeza ou incerteza, a objec- talidade ou a inexisténcia de objecto destes actos, é absolutamente claro e certo, em relac%o 4 percepgio, que percepciono isto ¢ aquilo e, relativamente ao juizo, que julgo isto e aquilo, etc. Descartes fez esta consideragio em vista de outros fins; podemos, porém, utiliz4-la aqui,. conveniente- mente modificada, of ET) in Se perguntamos pela esséncia do conhecimento, inicialmente o préprio conhecimento — seja qual for a situaco da dévida quanto sua apreensibilidade e seja qual for a condicZo desta — ¢ um titulo de uma multiforme esfera do ser, que nos pode estar absoluta- mente dada e que, por vezes, pode dar-se absoluta~ mente em formas singulares. De facto, as configura- cGes intelectuais, que realmente levo a cabo, sio-me dadas, contanto que eu reflicta sobre elas, as receba e ponha tal como puramente as vejo. Posso falar de um modo vago de conhecimento, de percepcao, repre- sentagio, experiéncia, juizo, raciocinio, etc.; entao, quando reflicto, esté certamente s6 dado, se bem que absolutamente dado, este fenémeno do vago «falar e€ opinar acerca do conhecimento, da experiéncia, do juizo, etc» J este fendmeno da vaguidade ¢ um dos que caem sob 0 rétulo de conhecimento, no mais amplo sentido. Mas posso também efectuar concreta- mente uma percepgao e olhar para ela; posso, além disso, representar-me na fantasia ou na tecordacio uma petcepcio e para ela dirigir o olhar neste dar-se na fantasia. Entio, j4 nfo tenho / um dis- curso vazio ou uma vaga opinido, representagao da percepcio, mas a percep¢ao est4, por assim dizer, diante dos meus olhos como um dado actual, ou como dado da fantasia, E assim para toda a vivéncia intelectiva, para toda a configuragio intelectual ¢ cognitiva. ‘Acabei aqui de comparar a percepgio reflexa intui- tiva ea fantasia reflexa intuitiva. Segundo a medita- ¢&o cartesiana, haveria primeiro que salientar a per- cepsao: percepgdo que, em certa medida, corresponde a chamada percepgio interna da teoria do conheci- mento tradicional —a qual é, sem davida, um con- ceito ambiguo. Toda a vivéncia intelectiva e toda a vivéncia em geral, Zo ser levada a cabo, pode fazer-se objecto de um puro ver e captar e, neste ver; é um dado absoluto. Est4 dada 55 [34 como um ente, como um isto-aqui (Dies-da), de cuja existéncia nfo tem sentido algum duvidar. Posso, certamente, reflectir sobre que ser ser4 esse e como este modo de ser se comporta relativamente a outros; posso, ademais, considerar que significa aqui ‘dado’ € posso, se prosseguir na reflexlo, incluir no meu ver o préprio ver, em que aquele dado, ou este modo de,ser, se constitui. Mas, em tudo isso é sobre um fundamento que constantemente me movo: esta percepcio ¢ € permanece, enquanto dura, um absoluto, um isto-aqui, algo que é em si o que é, algo com que posso medir, como se fora uma medida definitiva, o que podem querer dizer, e aqui devem dizer, «existim e ‘estar dado’, pelo menos, natural- mente, no tocante 4 espécie de existéncia e de dado que mediante o «isto-aqui», se exemplifica. E é para todas as configuracdes intelectuais especificas que isto vale, onde quer que estejam dadas. Todas elas podem também ser dados na fantasia, podem estar «por assim dizer» diante dos olhos e, no entanto, no estar af como presengas actuais, como percepgdes, juizos, etc., actualmente levados a cabo. Também entao s¥o, num certo sentido, dados; estio af intuiti- vamente; falamos delas niio apenas com uma vaga alusio, numa mengio vazia; vemo-las e, vendo-as, podemos destacar intuitivamente a sua esséncia, a sua constitui¢do, o seu cardcter imanente, e podemos, em pura propor¢ao, adaptar o nosso discurso A ple- nitude de claridade intufda. Isto, porém, / imediata- cias. "Ss ovisoriamente, sustentamos que se pode, de antemAo, assinalar uma esfera de dados absolutos; e é a esfera de que justamente precisamos, se € que deve ser possivel a nossa aspirac3o a uma teoria do conheci- mento. De facto, a obscuridade acerca do conheci- mento no tocante ao seu sentido ou A sua esséncia 56 exige uma ciéncia do conhecimento, uma ciéncia que nada mais pretende do que trazer o conhecimento 4 claridade essencial. Nao quer explicar o conhecimento como facto psicolégico, nem investigar as condigSes naturais segundo as quais vém e vio os conhecimentos, nem as leis naturais, a que esto ligados no seu devir e€ na sua mudanga: investigar isso ¢ a tarefa que se prop6e uma ciéncia natural, a ciéncia natural dos factos psiquicos, das vivéncias de individuos psiquicos que vivem. A critica do conhecimento quer antes elucidar, ) ¢ clarificar, Tusttar a esséncia do-conhecimento © a |

Você também pode gostar