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VO OOO LOOM, ee ctahchclctctctel, Bee arte eee Copyright © 1998 by José Rodrigues Direitos desta edigio reservados a EGUFE - Editora da Universidade Federal Fluminense - Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Iearai - CEP 24220-000 Niterai, RJ - Brasil - Tel.: (021) 620-8080 ramais 200 ¢ 353 Telefax: (021) 620-8080 ramal 356 E proibida a reprodugao total ou parcial desta obra sem autorizagdo expressa da Editora Normalizagao: Jacqueline Netto Ventura Edigao de texto e revisdo: Ricardo Borges Projeto grafico ¢ editoracao eletrénica e capa: José Luiz Stalleiken Martins Coordenagdo editorial: Damiao Nascimento Catalo; a-fonte R696 Rodrigues, José. A educacio politécnica no Brasil / Jos¢ Rodrigues. — Niteréi : EdUFF, 1998. 120 p.; 21 em. Bibliografia: p. 111 ISBN 85-228-0243-2 1, Educagio - Brasil - Ensino médio - 2, Educagao e trabalho - 3, Educa- cio teenolégica. I. Titulo. CDD 378 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor Luiz Pedro Antunes Vice-Reitor Fabiano da Costa Carvalho Diretora da EAUFE Eliana da Silva e Souza Comissio Editorial Adonia Antunes Prado Anamaria da Costa Cruz Gilda Helena Rocha Batista Heraldo Silva da Costa Mattos Ivan Ramatho de Almeida Maria Guadalupe C. Piragibe da Fonseca Roberto Kant de Lima Roberto dos Santos Almeida ‘Vera Lucia dos Reis Para Albertina e Augusto (em meméria), que me colocaram no mundo e na escola. Para Carla, companheira nessa jornada pelo espaco-tempo. Gostaria de deixar registrado meus profundos agradecimentos aqueles que, de alguma forma, contribuiram para a consecugao deste livro. Sob 0 risco de esquecer alguém, gostaria de destacar: Augusto Martins Rodrigues (em memoria), Albertina dos Santos Rodrigues, Carla Macedo Martins, Gaudéncio Frigotto, Dermeval Saviani, Joao Baptista Bastos, Valéria Barbosa Araujo, Bianca Antunes Cortes, André Malhao, Julio César Franca Lima, Neila Guimaraes Alves, Gerardo Bianchetti, Paulo César Carrano, Werner Markert, Luiz Fernando Ferreira da Silva, e toda a equipe da EdUFF. A humanidade so se propée as tarefas que pode resolver, pois, se se considera mais atentamente, se chegard a conclusao de que a propria tarefa sé aparece onde as condigées materiais de sua solu- (40 jd existem, ou, pelo menos, séo captadas no seu devir, Karl Marx SUMARIO PREFACIO (Gaudéncio Frigott0) ......esssssesreeeercesees 11 INTRODUGAO ...ssescssscsssssesescssssnseesecesannescenensneeceessnneses 19 1 APOLITECNIAEA AREA TRABALHO-EDUCAGAO ......esessecseseseeressetecsesseteaees 29 2 PROBLEMATICAS E PERSPECTIVAS DA POLITECNIA .....ccsccsesessesssnesesesneseenenestensnerseneeess 41 3 DIMENSOES DA CONCEPGAO DE EDUCAGAO POLITECNICA Dimensao infra-estrutural Dimensdo utdpica .... Dimensao pedagdgica 4 AEDUCACAO POLITECNICA NO BRASIL: COoncepgdo EM COMSTUGAO .......eeeceeteeeeeeteeseseees 97 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS.. PREFACIO Robin Blackburn ao referir-se a década de 80 numa coleta- nea por ele organizada — Depois da Queda (1992) — excla- ma: “Nunca houve tanto fim!”. A derrubada do muro de Berlim foi traduzida pelo ideario conservador dominante por um conjunto de teses marcadas pela sindrome do fim — fim do socialismo, fim da histéria, fim das classes sociais, fim das ideologias, fim das metateorias e das utopias. No Brasil, a década de 80 ficou sendo conhecida, no plano econémico, como a década perdida. No plano politico, a década de 80 demarcou uma transic¢do inconclusa, expressao de um equi- librio instavel entre as forgas conservadoras e progressis- tas. Neste contexto, viveu-se o periodo constituinte e pro- mulgou-se, paradoxalmente, uma constituigao com claros avangos no plano dos direitos sociais. E também no con- texto de uma burguesia incapaz de costurar uma clara hegemonia e do vigor dos movimentos sociais, dos parti- dos e do sindicalismo de esquerda que, no alvorecer da década de 90, produz-se um fato inédito na historia politica brasileira e latino-americana — 0 impeachmentdo Presidente Fernando Collor de Mello. No campo educacional, viveu-se nesta década uma efervescéncia tedrica, politica e sindical. A incorporagao das analises de Bourdieu, Passeron e Althusser, na pds-gradu- acao em educagao, no final da década de 70, teve um pa- pel importante na critica ao economicismo, ao tecnicismo e as posturas positivistas e funcionalistas até entao dominan- tes. E na década de 80, todavia, que a influéncia da tradi- ¢ao marxista, quer pela leitura de Marx, Engels e Gramsci, 1 quer pela leitura de diversos autores da Escola de Frank- furt, demarca um salto tedrico interpretativo na educagao. O inventario da produgao escrita daquele periodo sinaliza claramente esta tendéncia. Nos ambitos cientifico e politico, as visdes tedricas centradas numa perspectiva historica se explicitam nas CBE (Confe- réncias Brasileiras de Educagao), nas reunides da ANPEd (Associagao Nacional de Pos-Graduagao e Pesquisa em Educagao), no maior espago de participagao da area na Reuniao Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciéncia (SBPC) e nos inumeros seminarios e congres- sos organizados regionalmente. O sindicalismo docente, tanto em nivel superior quanto em nivel de primeiro e se- gundo graus, se organizou e ampliou. A criagao da ANDES (Associagao Nacional de Docentes de Ensino Superior) e da CNTE (Confederagao Nacional dos Trabalhadores da Educagao) expressa o intenso movimento de organizagao sindical em nivel regional e local. O capitulo sobre educagao na Constituinte e o novo projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educa¢ao Nacional desen- volveram-se marcadamente vincados pelo debate tedrico e politico-sindical. A area constituiu um forum de entidades e instituigses que, em seu auge, atingiu o numero de 34, com sede permanente em Brasilia, para influenciar nas decisdes constitucionais e, posteriormente, na definigao da LDB. A evidéncia mais candente desta influéncia é que o primeiro projeto de LDB, apresentado na Camara Federal pelo en- tao deputado por Minas Gerais, Otavio Elisio, teve como 12 base um texto de Dermeval Saviani, escrito para a Reuniao da ANPEd realizada em Porto Alegre-RS, em 1988, no qual apresenta subsidios para o debate para a nova LDB, to- mando como eixo de anélise a concepgao de educacao politécnica em contraposigao a tradi¢ao tecnicista e frag- mentaria de educagao. A educacao politécnica no Brasil, de José Rodrigues, apre- ende, de forma densa e sistematica, a génese, as nuances e as implicagées tedricas, ético-politicas e praticas do de- bate sobre politecnia desenvolvido no Brasil na década de 80 e inicio dos anos 90. Num estilo simples e direto, o autor explicita a base histérico-material dentro da qual esta con- cep¢ao classica de educa¢ao, assinalada por Marx e Engels trabalhada dentro da tradigao marxista, se desenvolve no Brasil. Trata-se de uma concep¢ao, como bem assinala 0 autor, em construcao e que na diversidade das andlises abarca énfases em dimens6es infra-estruturais, pedagogi- cas e utdpicas. A pertinéncia histérica deste debate plota-se na materialidade das contradigdes do modo de produgao capi- talista que, em sua ldgica interna, necessita desenvolver as forgas produtivas mas é incapaz de democratizar, no plano das relagdes humano-sociais, o produto social deste avan- ¢o. A nova base cientifico-técnica do processo produtivo e Os renovados mecanismos, hoje em nivel globalizado, de exclusdo social e sua naturalizacao pela ideologia neoliberal Sao a evidéncia candente desta contradigao. A manuten- ¢ao das relagées capitalista, em sua fase de maior desen- volvimento, tem como resultado perverso uma crescente esterilizagaéo e um atrofiamento do trabalho humano e o 13 aumento das mais diferentes formas de violéncia, exclusao e barbarie. Este livro de José Rodrigues, além do significado implicito em nivel tedrico e ético-politico no embate contra- hegeménico as perspectivas produtivistas e fragmentarias de formagao humana, cujo limite nos termos capitalistas é de educacao polivalente, ganha o sentido de ser um texto gerado num momento de avanco da democracia efetiva no Brasil e publicado numa conjuntura de claro retrocesso da democracia substantiva e de afirmacao de uma democra- cia limitada e formal. Um livro, portanto, que rema contra a maré neoconservadora do governo no plano politico, eco- némico-social e educacional. A LDB aprovada é um substitutivo do Senador Darcy Ribeiro ao projeto da Cama- ra, que, a despeito de todas as mutilagdes sofridas no pro- cesso de negociacao, tinha a marca de uma ampla partici- pacdo dos educadores através de suas entidades cientifi- cas e politico-sindicais. O projeto do Senado, que na ex- press&o de Florestan Fernandes constitui-se numa sincrese do da Camara e representou um golpe aos educadores e um servigo que o Senador Darcy Ribeiro prestou ao gover- no, incapaz que fora de fazer uma proposta propria, explicita claramente, no campo educacional, aquilo que resulta de um novo bloco de forgas conservadoras no poder hoje no Brasil. Os tempos s&o outros. Como assinala Francisco de Olivei- ra (1996), pela primeira vez a burguesia no Brasil esta-se constituindo num bloco hegeménico com um horizonte de poder de longo prazo. Trata-se de uma hegemonia conser- vadora, com um projeto econémico-social subordinado a nova ordem mundial e um projeto educacional cujo educa- dor-mor 6 0 Banco Mundial e suas agéncias regionais. Se ha alguma duvida sobre a natureza subordinada deste pro- jeto de desenvolvimento e do carater restrito produtivista da educagao, é emblematica a sintese de uma fala do atual ministro da Educagao, Paulo Renato Souza: Segundo o ministro, a énfase no ensino universitario foi uma caracteristica de um modelo de desenvolvimento auto-sustenta- do desplugado da economia internacional e hoje em estado de agonia terminal. Para manté-lo era necessério criar uma pesqui- sa e tecnologia proprias, diz Paulo Renato. Com a abertura e globalizagao, a coisa muda de figura. O acesso ao conhecimen- to fica facilitado, as associagées e joint ventures se encarregam de prover as empresas dos paises como 0 Brasil do know-how que necessitam. “Aiguns paises como a Coréia, chegaram a terceirizar a universidade”, diz Paulo Renato. “Seus melhores quadros vao estudar em escolas dos Estados Unidos e da Euro- pa. Faz mais sentido do ponto de vista econémico” (Revista Exa- me, 17 jul. 1996, p. 46). E no terreno contra-hegeménico ao projeto neoconservador desenvolvido hoje no Brasil que este livro ganha particular relevancia no plano tedrico, ético-politico e no plano da praxis, No plano teérico, a crise dos paradigmas nao signi- fica o seu fim. A crise do referencial marxista, como lembra Fredric Jameson, historicamente sempre aparece quando seu objeto — as relagdes capitalista de produgao — entram em crise. Este referencial, todavia, continua sendo o que melhor nos ajuda a compreender a forma capitalista de re- lagdes sociais, sua natureza excludente e a necessidade de Sua superagao. A persisténcia critica neste horizonte tedrico nos impée a tarefa de historiciza-lo e nao abandona- lo. Por esta via, poderemos perceber que, como varios pen- Sadores marxistas nos indicam neste fim de século — Eric Hobsbawm, Perry Anderson, Fredric Jameson, Istvan 15 Mészaros, entre outros —, ao contrario do que postulam as vis6es apologéticas, o capitalismo encontra-se na sua crise mais profunda. Esgotou sua possibilidade civilizatéria rela- tiva e para manter-se tem que destruir 0 meio ambiente, destruir e impedir de produzir, atrofiar e esterilizar o traba- Iho humano e excluir um tergo da humanidade e precarizar outro tergo do acesso a uma vida digna. Direitos sociais conquistados pelos trabalhadores estao sendo hoje dura- mente golpeados sob o nome de flexibilizagao do trabalho. A produgao tedrica, todavia, nao tem sentido em si mesma. A teoria engendra uma determinada leitura e concepgao da historia e da realidade humana. No contexto histdrico regu- lado pelas relagdes capitalistas, a funcao da teoria basea- da no materialismo historico é fornecer elementos de com- preensao desta realidade no horizonte de sua superacao. A persisténcia neste horizonte tedrico tem sua contrapartida no plano ético-politico. Ao resgatar a concepgao de politecnia, este ensaio afirma uma compreensao de forma- ¢ao humana centrada nos valores de liberdade com igual- dade, de democracia efetiva e de qualificacao, portanto, da quantidade. Opée-se frontalmente ao ideario da ideologia neoliberal, dominante hoje no Brasil e na América Latina, que afirma, para todas as dimens6es da vida social, a liber- dade e a qualidade do mercado — liberdade e qualidade para poucos — e naturaliza a exclusao. No plano educacio- nal, contrapde-se ao receituario da qualidade total, das ha- bilidades basicas, das competéncias definidas na concep- ¢ao unidimensional do mercado e da produgao. Para as forgas sociais comprometidas com a democracia e a cidadania efetivas — partidos politicos, sindicatos, movi- mentos sociais, instituigses educacionais — este texto é um convite para ir além das palavras de ordem e da leitura su- 16 perficial da realidade que vivemos — caminho que leva uns ao ativismo politico e pedagdgico esteril e outros, na pri- meira oportunidade, a engrossarem a liga dos sem-espe- ranca e sem-alternativa. Um texto que, por sua clareza teo- rica e ético-politica, pode e deve ser lido por estudantes da area de ciéncias sociais e humanas, professores dos dife- rentes niveis de ensino e por todos aqueles que buscam inscrever os processos educativos dentro de uma perspec- tiva de educagao e formagao que envolva as diferentes di- mensées do ser humano e na superacao das relacdes soci- ais capitalistas, por serem estas incapazes de viabilizar uma efetiva igualdade, liberdade e solidariedade Gaudéncio Frigotto Professor Titular de Economia Politica da Educagao Faculdade de Educagao - Universidade Federal Fluminense 17 INTRODUCAO E bastante razoavel o volume de textos em educagdo que abordam a discussao da politecnia. No entanto, nenhum deles fornece um panorama geral sobre o debate brasileiro atual sobre o tema. Era necessario, portanto, um fio que orientasse a leitura do conjunto dos textos, facilitando assim a introdug¢ao dos edu- cadores em tao rico debate. Pode-se, por conseguinte, afir- mar que um dos objetivos desse livro é mais facilitar o acesso a discuss&o do que produzir uma possivel definicao formal e irrefutavel do conceito de educa¢ao politécnica. No entanto, espera-se que possa ter sido dada relevante contribuicao para a caracterizagao do movimento de cons- trugao da concep¢ao de educacao politécnica no Brasil. No Capitulo 1, situou-se o debate da politecnia na discus- sao mais geral da area trabalho-educagao. Apontou-se para a possibilidade de a concepcao de politecnia vir a redefinir os debates e a pesquisa em educacao, caminho esse, de certa forma, ja trilhado pela area trabalho-educagao. Bus- cou-se, também, situar a discussdo da politecnia desde a Proposta original de Karl Marx, na Europa do século XIX, até sua proposig&o no projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educagao, passando pelas contribuigdes de alguns pes- quisadores contemporaneos. 19 Ainda no Capitulo, foi apresentada uma determinada com- preensao do movimento de constru¢ao da politecnia. Essa compreensdo preconiza que a construgao do conceito de politecnia nao se da apenas através da elaboracao tedrica (stricto sensu), tal como é realizada pelos autores, mas por diversos niveis e instancias da sociedade que interagem entre si. Contudo, o pesquisador entendeu que, para uma primeira abordagem da politecnia, seria necessdaria uma organizagao do debate tedrico que ocorre fortemente a par- tir da década de 80. Assim, foi eleito enquanto objeto de estudo a producao académica.' Com efeito, a pesquisa pretendeu, especificamente, siste- matizar e problematizar o debate tedrico da politecnia reali- zado entre 1984 e 1992. O Capitulo 2 buscou apontar e discutir as duas problemati- cas iniciais basicas: escolar e econdmico-social. Elas bus- cam delimitar os campos iniciais de preocupacao dos pes- quisadores sobre os quais se ergue o debate. Grosso modo, pode-se afirmar que os autores que partem de uma problematica marcada pelo mundo escolar tendem a desenvolver mais os aspectos relativos a organizagao do sistema educacional brasileiro; ja aqueles que partem de preocupagées mais estruturais acabam por desenvolver mais fortemente as tendéncias metodoldgicas da politecnia. Assim, pesquisadores que partem de uma problematica escolar tendem a desenvolver melhor a dimensao pedago- gica, enquanto a dimensao infra-estrutural é mais bem tra- mia niio & tomada aqui enquanto focny do éeio intelectual, mas sim enquanto um espago fundamental de constr mento humano. cio e organizago do conheci- 20 palhada pelos autores que tém a discussao econdmico-so- cial enquanto um ponto de partida mais forte. No Capitulo 3, buscou-se construir uma rede conceitual que expressasse 0 mais completamente possivel 0 conceito de educacdo politécnica. Essa rede foi montada a partir de tres eixos fundamentais, a saber, dimens@o infra-estrutural, uto- pica e pedagogica. A dimensao infra-estrutural se definiu a partir da identifica- co, no conjunto dos textos, de uma preocupacao bastante forte de se buscar nas relagdes que permeiam os proces- sos de trabalho as tendéncias que apontam para a propos- ta politécnica de educagao. Destaca-se nessa dimensao a discussao das mudangas qualificacionais, especialmente a partir da Terceira Revolugao Industrial; ou seja, aponta-se a emersao de um profissional de tipo novo a partir das mu- dangas que vém ocorrendo no mundo do trabalho. Um de- bate bastante importante exposto nessa dimensao é a su- peracao (ou nao) do paradigma taylorista-fordista de orga- nizagao do trabalho, que veio a contribuir para a cristaliza- ¢ao da cisao estrutural entre elaboragao e execucao. Assim, a busca por elementos materiais presentes, pelo menos em suas potencialidades, nos modernos processos de trabalho, marca a dimensAo infra-estrutural da concep- ¢ao de educagao politécnica. A dimensao utépica buscou explicitar que a concepeao po- litécnica de educagao esta firmemente alicergada em uma determinada visdo social de mundo. Tal visao contrapde radicalmente a visdo unilateral do homem a concep¢ao de homem omnilateral: reconhece, denuncia e combate as for- ¢as alienantes da sociedade capitalista exercidas principal- 21 mente — embora nao exclusivamente ~ sobre a classe tra- balhadora. Assim, a dimens&o utdpica tenta expor a necessaria ruptu- ra que a educagao politécnica busca em relagao as diver- sas formas de se produzir fragmentariamente a existéncia humana. Outro aspecto relevante é a compreensao de que, se por um lado a construgao de uma educacao pautada na politecnia deve-se dar alicercada nas mudangas ocorridas no mundo do trabalho (dimensao infra-estrutural), por ou- tro, as alteragdes no perfil qualificacional da forga de traba- lho nao engendram automaticamente a politecnia Cabe ainda apontar que a dimensao utdpica, embora sem- pre presente nos textos analisados, tem sido trabalhada de maneira timida, se comparada com as demais dimens6es. Pode-se atribuir a causa dessa timidez as mudangas ocor- ridas no chamado mundo socialista, que tornam o debate sobre propostas que rompem com a visao burguesa de mundo bastante mais complexo. No entanto, essa dificul- dade, na medida em que exige mais dos educadores, pode contribuir para uma elevagao significativa do nivel tedrico da proposta de educagao politécnica e também para a com- pleta superacdo da perspectiva fetichizante que, muitas vezes, tem envolvido esse debate. Partindo de uma apreensaéo das mudangas ocorridas no mundo do trabalho, mediatizada por uma visao social de mundo que rompe com as visdes burguesas de homem, sociedade e trabalho, a concepgao politécnica de educa- Gao acaba por desaguar em sua terceira dimensao, a peda- gdgica. A questao central que ai se coloca 6: como caminhar para uma progressiva e necessaria explicitagao do modus operandi de uma escola que se paute numa orientagao po- litécnica sem recair numa constru¢ao abstrata, a-historica? Certamente a solugao dessa contradi¢ao encontra-se em dois aspectos a serem conjugados. O primeiro é a amplia- go e a consolidagao dos elementos materiais que funda- mentam a concep¢ao politécnica de educagao, ou seja, o aprofundamento das questées arroladas na dimensao infra- estrutural. O segundo é a propria praxis educativa desen- volvida a partir do horizonte da politecnia. Embora bastante incipientes, essas duas vertentes ja estao sendo apontadas e trabalhadas. A busca dos elementos materiais da formagao humana é a preocupa¢ao que mais tem crescido dentre as dimensdes que compdem o movi- mento de construgdo da politecnia no Brasil. A instauragao € a consolidagao de praticas educativas fundamentadas no conceito de politecnia j4 comegam a dar os primeiros fru- tos, em que pesem a conjuntura politica adversa e as mul- tiplas e crescentes dificuldades encontradas pelos educa- dores em realizar um trabalho sério e continuo (seja pauta- do na politecnia ou em qualquer outra diregao). Feitas essas consideragdes gerais, pode-se ainda identifi- car algumas questées, ligadas a dimensao pedagogica que tornam-se mais estaveis no conjunto dos textos, principal- mente entre aqueles autores que partem de uma problema- tica escolar. Dentre essas, pode-se destacar a perspectiva que toma a educagao politécnica enquanto proposta privilegiadamente ligada ao ensino médio. De uma maneira geral, a concep- Gao de politecnia vem sendo entendida enquanto um mo- 23 mento especial de explicitagdo do trabalho. A escola poli- técnica situa-se, segundo alguns autores, entre a formagao fundamental e a de nivel superior. Outro aspecto (complementar ao primeiro) é a forma pela qual se dara essa explicitagaéo do trabalho. Nesse ponto, existem algumas tensées visiveis, nas quais alguns pesqui- sadores defendem uma forma¢ao basica para o trabalho moderno, sem o carater dado pelas habilitagdes profissio- nais (notdrios frutos da Lei n° 5.692/71). Ou seja, a educa- ¢ao politécnica nao teria entre seus objetivos a formacao de técnicos de nivel médio, mas sim a finalidade de prepa- rar cidadaos capazes de compreender a totalidade e os fun- damentos cientificos e tecnicos do mundo do trabalho. Ou- tros entendem que a formagao de técnicos nao 6 um obje- tivo excludente a esses aportes citados. Um terceiro grupo busca a mediacao entre essas duas vertentes, pretenden- do uma escola politécnica em dois niveis: a primeira etapa daria conta daquela formacao necessaria a uma compre- ensdo totalizante do fendmeno e do fato do trabalho, en- quanto a profissionalizagao (stricto sensu) seria concretiza- da numa segunda etapa (para uns no proprio nivel médio, para outros no chamado pés-secundario). Em que pesem essas diferencas, o que sobressai pela majoritaria concordancia entre os pesquisadores 6 a natu- reza daquela profissionalizac&o. E consensual que o con- ceito de formagao politécnica busca romper com a profissionalizagao estreita e também com uma educagao geral e propedéutica, de carater livresco e descolado do mundo do trabalho. O Capitulo 4 buscou construir uma sintese, embora preca- nia, das diversas contribuicdes. Essa sintese defende que o 24 conjunto dos aportes ultrapassa a mera repeti¢ao de um (suposto) discurso politecnicista. As trés dimensdes podem ser claramente identificadas no conjunto dos textos (publicados no periodo de 1984 a 1992) que tratam de maneira mais organica da tematica da politecnia, estabelecendo com isso uma base comum — embora nao monolitica — do debate. A identificagao coerente dessa base comum, aliada a den- sidade tedrica presente nos textos, permite, portanto, que se fale num movimento de construcao da concep¢ao poli- técnica de educagao no Brasil. Indicou-se também que 0 conjunto dos aportes vem paula- tinamente se construindo enquanto um método de forma- cao humana. Tal método nao deve ser entendido enquanto conjunto de regras ou dogmas sobre os quais sera erigido um modelo de escola, mas como rede conceitual que auxi- lia o pensar e o fazer — a praxis - de uma educagao que busca romper com as formas fragmentarias de se produzir a realidade. Por outro lado, pode-se perceber que a maioria dos pesqui- sadores esta preconizando (e efetivando) a necessaria am- pliacao de estudos que abordem as relagdes entre os pro- cessos de trabalho e a produgao/distribuicao/expropriagao do conhecimento, realizando-se assim um movimento de especializacao bastante recente e singular (se comparado com as especificidades de outros campos de conhecimen- to, tais como economia e sociologia do trabalho). Em outras palavras, esta sendo ampliada a importancia dada pelos pesquisadores em educacgao a dimensao infra-estru- tural relativamente as dimensdes uldpica e pedagdgica, 25 passe extremamente necessario e proficuo ao desenvolvi- mento da concepgao politécnica de educacao. O deslocamento da énfase da dimensao pedagégica para a infra-estrutural pode ser atribuido também a superacdo do moments de disputas entre os diversos projetos educa- cionais até entao em voga. Os textos produzidos no momento mais acirrado de deba- tes para a elaboracao da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educagao Nacional’ sao fortemente marcados pela priorizacao da dimensao pedagdgica, principalmente no que tange a organizagao de um sistema educacional (em espe- cial, 0 ensino de nivel médio) inspirado na concepgao poli- técnica de educa¢ao. Alguns autores, talvez na intencado de mostrar a viabilidade da politecnia no Brasil, chegam a um exagerado detalhamento de areas e etapas de uma estrutura que ga- rantiria 0 carater politécnico da formacao do jovem brasileiro. Assim, passada essa etapa preliminar de disputa entre vi- sdes de educagao, na qual inclusive o Forum Nacional em Defesa da Escola Publica optou por excluir do seu projeto de lei as referéncias textuais a politecnia, os pesquisadores permitem ocupar-se mais detidamente com a identificagao dos elementos materiais presentes no mundo do trabalho, que podem dar sustentagao a uma praxis pedagdgica com horizonte na concepgao politécnica de educacao. Cabe ressaltar que a ampliagdo das pesquisas no campo da dimensao infra-estrutural deve manter-se firmemente ancorada nos aportes proporcionados pela dimensao utd- Vie 1996. 0 texto da nova LDB nio havia side aprovado em definitive pelo Congiesso Nacional 26 pica. Se os estudos se realizarem de maneira objetivista, supostamente neutra (ja que liberta de uma inclinagao es querdista). pode-se concluir, por exemplo, que a politecnia ja se da através do aumento da polivaléncia implementada em aigumas piantas industriais. Ou. ainda, poder-se-1a con- cluir que, dada a enorme simplificacao cias tarefas (em si), advinda principalmente das inovagdes iecnologicas (funda- mentalmente pela automacao'!, nada mais cabe a educa- ¢ac, pelo menos no que concere a relacao trabalno-edu- cagao, a formacao profissional. De uma maneira geral, pode-se defender ~ equivocadamen te — uma educacao alheia ao mundo do trabalho, uma edu- cacao voltada para a cultura do ocio, descurando-se, as- sim, a relacao dialética que existe entre liberdade e neces- sidade. A defesa de uma educagao omnilateral, o entendimento da necessidade da apreensao dos processos de produgao do conhecimento subjacente aos processos de trabalho, e das bases cientificas, técnicas e gestiondrias comuns a esses Processos ~ formagdo politécnica -, nao se apdia numa vi- sao pragmatista e funcionalista do conhecimento. A neces- sidade da construcao de urna visao totalizante dos proces- Sos de trabalho nao é entendida enquanto condic&o neces- Saria e suficiente para a realizagao das tarefas laborais per se ou mesmo de um aumento da produtividade A busca da efetivagdo da concepgao de educacao politéc- nica relaciona-se fundameritalmente a luta pela (re)apropriacdo do trabalho por parte da classe trabalhado- fa, € pela superacio de um dos pdlos fundamentais da ali- enacao humana. Em poucas palavra: a politecnia emerge No contexto da luta pela ampliacdo da liberdade no traba- 27 Iho. Tal busca pressupée que a ampliacao da liberdade no trabalho pode contribuir para a luta pela ampliagao (para toda a humanidade) da liberdade do trabalho. 28 A POLITECNIAEA AREA TRABALHO-EDUCACAO A lantema passava pelas coisas com uma fanta- sia criativa e destrutiva que subvertia o real, Mas que 6 0 real, sendo 0 acaso da iluminagao? Apurei que as coisas nao existem por si, mas pela clari- dade que as modela e projeta em nossa percep- ¢ao visual. Carlos Drummond de Andrade A area trabalho-educagao no Brasil tem crescido muito nos ultimos 10-15 anos, principalmente considerando-se as pu- blicagdes de obras académicas, assim como participacao e a produgao cientifica do Grupo de Trabalho Trabalho-edu- cagao da Associagao Nacional de Pés-Graduagao e Pes- quisa em Educagao. Mais do que a questdo da quantidade de interessados, o que vem ficando claro é uma tendéncia de disseminagao da tematica trabalho-educacao pelos pesquisadores e alu- nos de pds-graduagao em educacao. Segundo Acacia Kuenzer (1988), a relagaio entre educagao € trabalho é abordada desde o século passado pelos “clas- sicos da economia politica”, mas reaparece com mais in- tensidade, no Brasil, a partir do final da década de 60. A autora apresenta, em duas de suas obras ~ Ensino de 2 grau: o trabalho come principic educative e Educacao e tia- balho no Brasil: o estade da questao — um panorama das diversas contribuigdes que propiciaram o avango da area trabalho-educacao, revelando assim 9 seu estagio de cons- trucao. Num recorte da bibliogratia brasileira de trabaino-educagac a equipe do projeto O vaior social da educacgao e do traba- iho em camadas populares (MATA, DAUSTER, 1996) elenca — entre teses, livros e relatorios de pesquisa ~ 601 titulos publicados no Brasil no periodo de 1970 a 1989. No entanto, tal crescimento nao se mostra isento de probie- mas. Tomaz Tadeu da Silva (1991, p. 7). outro pesquisadoi que constata o crescimento da area, alerta Falar da relagao entre educacao € trabatho vai, pouco a pouco, virando moda nos circulos educacicnais. Da buro ia educ cional aos mais fadicais criticos do sistema, das revistas especializadias as revis 1p de educacao, todos passaram a achar que mencionar a referida rela i passaporte guro para a aceit e 9 prestigi: Na mesma linha, Gaudéncio Frigotto (1987) desiaca o que denomina de “crise de aprofundamento tedrico” no interior da area trabalho-educagao. O autor assinala trés dimen- sdes articuladas que compéem a crise da area. Seriam elas a homogeneizacao na superficie do discurso critico da rela- cao trabalho-educagao: a inversao metodoldgica da apre- ens&o trabalho-educacao; e a nao-historicizagao das cate- gorias valor-trabalho e capital-trabalho A inversao metodoldgica apontada por Frigotto se refletia na antiga denominacdo da area — educacao e trabalho. Cabe ressaltar que a questao nao é meramente de uma disputa sintatico-semantica, mas refere-se, isto sim, ac percurso metodologico desenvolvido pelo pesquisador que busca a apreensao do fenédmeno educative a partir de suas rela- codes com oO trabalho. Como ratifica Acacia Kuenzer (1987, p. 92), o que distingue esta area tematica de outras no campo gerai de educagao € 0 falo de que, nesta, a dimensao trabalho constitu se como categoria centra! da gual se parte para a compree! do fenédmeno er ve e das artic tas duas dimensdes ~ educagao e trabalho Mais do que uma superespecializacgao de um setor da pes- quisa e da pratica em educacao, a area trabalho-educacado vem-se construindo enquarito um modo de se pensar a for- macao humana. Ou, como nos aponta ainda Kuenzer (1987, p. 93), a area se constituiria em uma “concepgao tedrica fundamentada em uma opcao politica”. Assim, a construgao da area trabalho-educacao nao deve ser concebida enquanto cisao ou fragmentacao do campo educacional, mas como principio metodoldgico na pesqui- sa em educacao. No bojo das analises que tomam a relacao trabalho-educa- ¢ao como fio condutor, vem-se avolumando o debate sobre a concepcao de educacao politécnica A partir da tese de doutorado de Gaudéncio Frigotto (1984). varios outros trabalhos tem abordado a questao da Politecnia. No entanto 0 conceito de politecnia nao é novo no Brasil e a no cenario internacional. Em 1955, foi publi- um livro onde Paschoal Lemme descreveu sua via aa ald Soviética, especificamente aquilo que obser- Ucagao naquele pais. Naquela obra o autor dedi- 34 ca um capitulo a educagao politécnica, onde tenta mostrar as conquistas praticas e indicar os principios fundamentais dessa perspectiva educacional. Para isso, Paschoal Lemme cita Sidney e Beatrice Webb' (LEMME, 1955, p. 74), ingle- ses que ja em 1935 escreveram sobre os objetivos da es- cola politécnica: © que a “escola politécnica” procura (...] € justamente o oposto de adestramento para determinado oficio ou profissao; de fato, visa-se um aperfeigoamento intelectual de todos os alunos [...], nao se procurando saber as determinadas profissdes que esco- herao de per si ...]. Essa ocupagao pode ser em trabalho manu- al ou numa profissao intelectual Os autores que se dedicam a tematica sao unanimes em apontar que todas essas contribui¢des a discussao educa- cional sao provenientes dos aportes estabelecidos por Karl Marx (1818-1883), embora 0 filosofo alemao jamais tenha escrito um texto sistematico dedicado especificamente a area da educagao. Fato esse que nao o impediu de produ- zir 0 embriao de uma sociologia e uma filosofia da educa- ¢ao que produzem frutos até hoje. Ou seja, como ensina Mario Alighiero Manacorda, em sua classica obra, Marx e a pedagogia moderna (1991), se por um lado as quest6es pedagégicas sao abordadas por Marx de maneira ocasional, por outro, essa discussAo “acima de tudo, esta colocada organicamente no contexto de uma cri- tica rigorosa das relacdes sociais”. Mas em que consiste a educacao politécnica para Marx? Certamente essa é uma questao bastante complexa, que foge aos objetivos desse trabalho e que, além de tudo, ja "A obra completa, onde os autores tratam da questo, fo? publicada em portu- gués em 1954 (LEMME, 1955) 32 foi objeto de outros estudos (NOGUEIRA, 1990 ; MANA- CORDA, 1991). No entanto, cabe expor uma das passagens mais conheci- das de Karl Marx, retirada das Instrucdes aos delegados do Conselho Central Provisorio da Associacao Internacional dos Trabalhadores, de 1868. Escreveu Marx (1983, p. 60): afirmamos que a sociedade nao pode permitir que pais e pa- trées empreguem, no trabalho, criangas e adolescentes, a me- nos que se combine este trabalho produtivo com a educagao. E continuando, 0 fildsofo alemao deixa claro o que entende por educa¢ao: Por educagao entendemos trés coisas: 1, Educagao intelectual. 2. Educa¢ao corporal, tal como a que se consegue com os exer- cicios de gindstica e militares. 3. Educagao tecnolégica, que recolhe os principios gerais e de carater cientifico de todo o processo de produgéo e, ao mesmo tempo, inicia as criangas e os adolescentes no manejo de ferra- mentas elementares dos diversos ramos industriais. Pode-se facilmente perceber a diregao de uma educagao multilateral preconizada por Karl Marx; seguindo, o autor aponta seus objetivos com a educagao politécnica: Esta combinagao de trabalho produtivo pago com a educacdo intelectual, os exercicios corporais e a formagao politécnica ele- vara a classe operaria acima dos niveis das classes burguesa e aristocratica. Nessas indicagdes, encontra-se o embrido fundamental do trabalho como principio educativo, que busca na estruturagao da sociedade seus aportes basicos. pundamentalmento nao é importante, para o presente tra- ©, @ concepgdo mesma de Marx a respeito da educa- 33 cao, mas sim a interpretacao e as ilagées feitas pelos diver- sos autores. De maneira alguma, essa pesquisa buscou o autor mais fie! ao pensamento marxiano ou marxista. No entanto, é inevitavel a confrontagdo entre as diversas leitu- ras feitas a partir do pensador alemao. Assim como foi encontrado o trabalho de Paschoal Lemme, da década de 50, é provavel que se encontrem outros que também abordem a politecnia. No entanto, as referéncias serao — muito provavelmente — vinculadas as experiéncias desenvolvidas nos paises do chamado socialismo real. O certo é que no Brasil a discussao em torno da educagao politécnica ficou adormecida durante algumas décadas, nao sendo capaz de se expandir e envolver nem tedricos nem educadores. Pode-se atribuir a Dermeval Saviani o papel de desencadeador do debate atual sobre a politecnia no Bra- sil, a partir de sua atuag4o no curso de doutorado em edu- cacao da Pontificia Universidade Catdlica de Sao Paulo. Através desse curso, Saviani buscava desenvolver uma cri- tica consistente ao especialismo, ao autoritarismo e ao reprodutivismo em educagao, assim como ao marxismo vulgar. A influéncia desse pesquisador nesse debate pode ser per- cebida, por exemplo, na constatacdo de que os autores mais proficuos e consistentes no debate da politecnia - Gaudéncio Frigotto, Acacia Kuenzer e Lucilia Machado — foram orientandos ou alunos de Dermeval Saviani. Outro sinal da influéncia de Saviani pode ser percebido atra- vés da caracterizagao da politecnia enquanto uma propos- ta fortemente ligada ao ensino médio. 34 O debate sobre a concepeao de educagao politécnica avan- cou tanto na década de 80 a ponto de alguns educadores se lancarem na busca de uma praxis que tivesse por hori- zonte aquela concep¢ao educacional. Com efeito, em 1988 foi iniciado 0 curso técnico de segundo grau da Escola Po- litécnica de Saude Joaquim Venancio, na perspectiva de realizar um projeto de ensino de segundo grau que se des- vie da dualidade entre a educagao geral e a formagao pro- fissional. Enfim, pensar uma educacao que tenha o ser hu- mano como centro e nao o mercado (MALHAO, 1990). Das teses de doutorado, passando pelas revistas de divul- gacao pedagogica e pela construgao de um curso técnico, o debate acerca de uma escola/educagao cujo centro seja oconceito de politecnia tem crescido rapidamente. Por di- versas vias, a palavra politecnia vem-se tornando conheci- da nos meios educacionais. Com a promulgagao da Constituigao em 1988, abriu-se o periodo dos debates acerca das chamadas leis complemen- lares, que necessariamente decorreriam da nova Carta. Com isso, a discussao em torno da Lei de Diretrizes e Bases da Educa¢ao Nacional (LDB) irrompeu no pais levando consi- go o debate da politecnia. Mais uma vez, coube ao professor Dermeval Saviani a inici- ativa de Produzir um texto que, como o proprio autor diz, é um inicio de conversa” para a formulagdo da nova LDB, onde se destacam os conceitos de desenvolvimento omnilateral e formacao politécnica. Soy eePutado, apropriando-se do esboco desenhado por tan oh een tonmoy No primeiro anteprojeto de LDB. Com de D Nto no texto Contribuicao a elaboragao da nova Lei iretrizes e Bases da Educacao: um inicio de conversa, 35 de Dermeval Saviani (1988, p. 20), quanto no anteprojeto apresentado pelo deputado Otavio Elisio (1988), pode-se ler: Art.35 - A educagao escolar de 2° grau [...] tem por objetivo geral propiciar aos adolescentes a formagao politécnica necessaria a compreensao tedrica e pratica dos fundamentos cientificos das multiplas técnicas utilizadas no processo produtivo [grifo do au- tor]. Se, por um lado, a expressao educagao politécnica vem-se tornando cada vez mais conhecida dentro e fora dos circu- los educacionais, ao ponto de inclusive ser explicitamente proposta para compor a legislagao educacional, por outro, nao se pode afirmar o mesmo acerca de seu contetdo. Afinal, em que consiste 0 conceito de politecnia? A forma- ¢ao politécnica € um modelo de educagao formal a ser im- plantado no pais ou é uma concep¢ao tedrico-metodolégica que visa (re)direcionar as politicas e praticas educativas? A no¢ao de politecnia esta restrita ao ensino de segundo grau, ou € uma concepgao que necessariamente perpassa todos os niveis do ensino? A concepcao de educagao politécnica é mais uma “moda nos circulos educacionais”? Ou a politecnia representa uma necessidade historica que se come¢a a construir no Brasil? Diante de tantas questdes, perplexidades e tensdes tedri- cas, cabe perguntar: Qual é a relacao existente entre edu- cago politécnica e o eixo trabalho como principio educativo, ou com a escola do trabalho? O que une e o que separa a concep¢ao de escola politécnica das escolas do SENAI, ou ainda, das escolas técnicas federais? Afinal, como os pes- quisadores entendem a politecnia? Melhor, que concepgao de educagao politécnica vem sendo construida no Brasil a partir da década de 80? 36 Neste livro, busca-se encontrar, delimitar e clarear as ten- goes entre as diversas contribuigdes tedricas que se tem colocado no debate da politecnia. Cabe, portanto, ressaltar a finalidade politico-didatica desta obra. Assim, 0 trabalho pretende servir de introdugao aque- les que desejam se incorporar ao debate — conseqilente- mente a construcdo — da concepgao de educa¢ao politécni- ca no Brasil. Um dos aspectos primeiros da pesquisa era determinar o que seria entendido por concepcao de educagao politécni- ca, ou melhor, onde estariam as construgdes consideradas elementos constitutivos desta concep¢ao. Com o desenrolar do trabalho, foi sendo elaborada uma visao dinamica de tal construcao. Isto é, vislumbrou-se que a concepgao de educagao politécnica esta sendo gestada num movimento combinado e interpenetrante de cinco po- los: academia, escola, mundo do trabalho, sociedade civil, e sociedade politica. Assim, delimitou-se 0 objeto de pesquisa a produgao aca- démica. De certo modo, os estudiosos do tema em foco podem ser encarados como catalisadores de movimento mais amplo de construgdo de uma concep¢ao, na medida em que buscam organizar os questionamentos tentando Ihes dar maior consisténcia e conseqiiéncia através de propos- tas ao conjunto dos educadores e a toda sociedade. A pesquisa buscou considerar — sem absolutizar — a ordem de divulgagao/publicagao das obras, principalmente no que tange aos trabalhos de um mesmo autor, pois se entende que ©ssa cronologia de alguma maneira reflete 0 itinerarium mentis do pesquisador. 37 Na busca de se construir a exegese do pensamento dos autores sobre a politecnia, pretendeu-se em especial anali- sar aqueles textos que abordassem explicitamente o deba- te sobre a educacao politécnica. No entanto, em alguns bre- ves momentos, mostrou-se necessaria a utilizagdo de ou- tros trabalnos que enfocassem alguns aspectos conexos aqueles tratados nos textos primariamente analisados. Esse tratamento do material estudado buscou apreender algumas continuidades e contradicdes que nao se manifes- taram, por si mesmas, no corpo das obras que tomam obje- tivamente o debate sobre a concepgao de educagao poli- técnica. Apesar de se buscar permanéncias, mudangas, contradi- des — a evolucdo — do pensamento de um autor, deve ficar claro que esse trabalho nao visou analisar a totalidade das concep¢gées educacionais de cada um. Em suma, 0 objeto dessa pesquisa sao os textos — e nao os autores — que abordam a politecnia. Tendo optado, dentro dos campos possiveis de analise da tematica, pelo estudo da producao académica que aborda a discussao da concep¢ao de educacao politécnica, faltava delimitar no tempo essa producao tedrica. Como ja foi dito anteriormente, o debate sobre a politecnia no é novo, nem mesmo no Brasil. Assim, seria possivel encontrar uma ou outra referéncia ao tema ao longo do sé- culo XX. No entanto, o amplo debate realmente se avoluma no pais a partir do inicio da década de 80, através de Dermeval Saviani. Com efeito, em 1983, Gaudéncio Frigotto defende sua tese, A produtividade da escola improdutiva: um (re)exame das 38 relacdes entre educagao e estrutura econémico-social ca- pitalista, na qual, no ultimo capitulo, contrapde a concep- gao pedagégica liberal, consubstanciada no pensamento de John Dewey, a proposta de educagao/escola politécnica: Tomando-se, entao as relag6es sociais de trabalho, mediante as quais os homens produzem sua existéncia, e o trabalho, enquanto tal, como principio educativo, a andlise da escola que se articula com os interesses da classe que tem seu trabalho alienado, ex- propriado, nao passa pela separacao entre escola e trabalho, mas se situa na apreensao da “escola do trabalho", como nos 6 posta dentro da evolugao da concepgao marxista de escola poll técnica (FRIGOTTO, 1984, p. 186) [Grifo do autor], Assim, escolheu-se delimitar — sem limitar — a pesquisa aos textos editados originariamente em lingua vernacula a par- tir da publicagao de Produtividade da escola improdutiva, logo, de 1984 até 1992, buscando obras e autores que as- sumissem objetivamente o debate — mas nao necessaria- mente a defesa — da educagao politécnica. 39 PROBLEMATICAS E PERSPECTIVAS DA POLITECNIA Para se compreender as nuances e especificidades das di- versas contribuigdes a concepcao de educagao politécnica, é fundamental captar a problematica inicial delineada pelo pesquisador, para a qual ele tenta, de uma maneira ou de outra, dar resposta através da discussAo da politecnia. De certa forma, pode-se afirmar que a problematica inicial é construida a partir da perspectiva utilizada pelo pesquisa- dor, e que simultaneamente esse dngulo de visdo sé pode ser definido pela problematica. Justamente nessa simbiose entre problematica e perspectiva é que o autor buscard erigir sua resposta. Assim, nesse trabalho, problematica e pers- pectiva serao encaradas enquanto um Unico elemento de analise. E claro que todos os autores que abordam a tematica da politecnia estao preocupados com o fendmeno educativo em geral e, em grande medida, com uma educagao escolar que se coloque ao lado dos interesses das classes traba- Ihadoras: 6 comum a todos a preocupacao de tratar a edu- Cag&o enquanto participe do projeto mais geral de luta con- tra-hegeménica. c . atte te ; aeati todos também se filiam a area trabalho-educacao, geral Nee mantém entre si uma unidade metodoldgica mais “NO entanto, podem-se identificar nuances na aborda- au gem do fendmeno educativo, reveladas nos aspectos e nas tematicas colocadas em relevo. Pode-se esquematicamente identificar duas problematicas iniciais: escolar e econdmico-social. Essas duas problema- ticas fundamentais definem campos iniciais de preocupa- gao do pesquisador: o primeiro mais imediatamente volta- do para a discussao da instituigao escolar, e o segundo, para questées de Ambito societario. Tal identificagao nao pretende imobilizar as relagdes entre as duas problematicas; na verdade, é impossivel conhecer completamente qualquer um dos dois aspectos isoladamen- te. No entanto, enquanto recurso de pesquisa e exposigao, € importante a captagao e a utilizagao de tais caracteristicas ou problematicas — mesmo que esquematicas — na medida em que tende a delimitar — sem limitar — um campo inicial de discussao da concep¢ao de politecnia. Como ficara cla- ro. com o decorrer do texto, a identificagao da problematica em foco ajuda na compreensdo de algumas tensdes entre os diversos discursos da politecnia. Serdo apresentadas a seguir duas problematicas fundamen- tais identificadas nas obras que abordam a politecnia, enriquecidas por nuances e perspectivas. Para tal, serao utilizadas fundamentalmente as contribuigdes de quatro pesquisadores: Dermeval Saviani, Acacia Kuenzer, Lucilia Machado e Gaudéncio Frigotto. Dermeval Saviani — provavelmente o primeiro a colocar em debate a concepgao de politecnia na atualidade — tem como problematica a constituigao de um sistema nacional de edu- "42 cagao, a partir da sua formagao ja estabelecida em trés ni- veis: ensinos fundamental, médio e superior. Na discussao do sistema de educagao, o ensino médio as- sume grande relevancia: este constitui-se, para Saviani, no grande né do ensino brasileiro. E a partir da discussao do sistema de ensino, passando pela caracterizagao do ensi- no de segundo grau, que 0 pesquisador vai resgatar, discu- tire atualizar a concepc¢ao de politecnia. O texto Perspectivas de expansdao e qualidade para o ensi- no de 2 grau torna muito clara tal perspectiva, afirmando que “uma via fecunda para se caracterizar o significado do 22 grau consiste em repensar o Sistema de Ensino em seu conjunto” (SAVIANI, 1988, p. 81). Esse texto reafirma nao so muitas das idéias inicialmente trabalhadas em O né do ensino de 2 grau (SAVIANI, 1986) e em Sobre a concep¢ao de politecnia (SAVIANI, 1989), mas principalmente a op¢ao metodoldgica de (re)construir a concepgao de ensino médio a partir da logica que moldou Os niveis fundamental e superior do sistema de ensino. Analisando os trés niveis de ensino existentes no pais, o Pesquisador conclui que o ensino de nivel médio “padece de uma indefinig&o” (SAVIANI, 1988, p. 81): em relagao ao 2°Grau, nao se trata apenas de condigées dificeis Para que se realize a fungao que Ihe caberia, mas se trata de delimitar, de definir mais claramente qual é 0 significado do 2° Grau, qual o papel que Ihe cabe desempenhar. ° Professor Dermeval Saviani, portanto, n&o vincula o né ae Segundo grau as enormes dificuldades enfrentadas pelo Die fundamental de ensino, sejam elas quantitativas (nu- ero de escolas, contingente de alunos matriculados etc.), Biase 43 sejam qualitativas (baixo rendimento escolar, objetivos nao cumpridos, professores com formagao deficiente). O pro- blema central do nivel médio de ensino estaria numa ques- t&o muito anterior 4s concretizagdes deficitarias enfrenta- das pelos outros dois niveis do sistema. Para Saviani, 0 nd do ensino de segundo grau é — antes de tudo — indefinigao conceptual. Essa indefinigéo faz o ensino médio oscilar entre dois ex- tremos: ora pende para as finalidades especificas (até mes- mo inquestionaveis) do ensino de primeiro grau, ora se apro- xima das perspectivas do terceiro grau, descrevendo assim um movimento pendular. Sob certas conjunturas sociais, politicas educacionais, edu- cadores e sociedade tendem a encarar o ensino de segun- do grau enquanto um momento (dentro do sistema de ensi- no) de consolidagdo da cidadania. Assim, para Saviani (1988), 0 ensino fundamental teria claramente o sentido de educagao geral basica que deve propi- ciar a todos os instrumentos elementares de participacao na so- ciedade. Portanto, se poderia encarar 0 segundo grau enquanto um continuador do ensino fundamental, adquirindo muitas das caracteristicas desse e sendo basicamente um ensino de caracteristicas propedéuticas, preparatorio para o nivel su- perior. Numa reagao ao movimento de aproximacao com o primei- ro grau, 0 ensino médio tenderia a se deslocar para o pdlo oposto, ou seja, assumiria algumas das caracteristicas do ensino de terceiro grau. Com isso, 0 ensino de segundo grau passaria a se pautar enquanto ensino fundamental- mente profissionalizante — caracteristica precipua do ensi- no superior. Assim sendo, 0 segundo grau assumiria carac- teristicas de terminalidade. E a partir dessa problematica — indefinicgaéo do carater do segundo grau — que Saviani pensa a politecnia. Ou melhor, através da concepcao de educac¢ao politécnica busca-se caracterizar propriamente o ensino médio. Assim, essa pro- posta de educac¢ao fica marcada pela situacao a qual tenta resolver. Com efeito, para Saviani a politecnia fica pratica- mente adstrita ao ensino médio (posicionamento, alias, com- partilhado pela maioria dos autores), fazendo-se de conti- nuidade entre o primeiro e o terceiro graus. A politecnia funcionaria como mediagao entre aqueles dois niveis de ensino, adquirindo tanto de um quanto de outro caracteristicas importantes. Contudo, Dermeval Saviani nao cai no freqtiente erro das propostas que tentam resolver dicotomias: 0 ecletismo. Ou seja, 0 autor propde que a politecnia nao seja construida a partir de uma fusao de ca- racteristicas do primeiro e do terceiro graus. Para Saviani (1989), em Sobre a concepeao de politecnia, a definigao do nivel médio de ensino se dara a partir da compreensao de que o “conceito e o fato do trabalho” sao os elementos organizadores do ensino em geral e mesmo dos curriculos. O trabalho seria uma referéncia implicita nas disciplinas que compdem o curriculo da escola fundamen- tal. J& no segundo grau, “trata-se de explicitar o modo como © trabalho se desenvolve e esta organizado na sociedade moderna”. E Seguindo, afirma: “ai que entra, entao, a questao da Politecnia”. Ou seja, para Dermeval Saviani, o ensino mé- dio € por exceléncia o locus da educagao politécnica. O itinerarium mentis desenvolvido por Dermeval Saviani ilus- tra bem a problematica escolar na qual se insere’a discus- sao da concepedo politécnica de educagao. Essa proble- matica, encarada sob a perspectiva do trabalho, de forma alguma pode ser identificada com uma visdo internalista ou de escolacentrismo em relacao ao fendmeno educativo. Em momento algum, o autor busca entender a instituigao esco- lar a partir de si mesma, o que fica muito claro através da opgao de pensa-la a partir “do conceito e do fato do traba- Iho”. Aponta-se apenas que tal problematica inicial trara, inevitavelmente, consegiléncias na conceptualizagao da politecnia. Pode-se destacar, ja nessa fase inicial, que a politecnia seria — para Saviani— uma caracteristica do ensi- no de segundo grau, e, como tal, dominante nesse nivel educacional. Na obra Educagao e divisdo social do trabalho, de 1982, Lucilia Machado delineia a “problematica do ensino técnico industrial’, estudando o desenvolvimento histérico desse tipo de ensino no Brasil com vistas a captar o surgimento de um “novo técnico industrial” e, conseqiientemente, de uma nova escola técnica. Sem duvida, essa problematica é propicia ao aparecimento do debate da concepgao de educac¢ao politécnica. No en- tanto, nesse primeiro trabalho, a autora apenas aponta a necessidade de uma “nova escola técnica”, nado enuncian- do ainda conceitos que viriam substituir esse primeiro, tais como escola unitaria do trabalho ou ensino politécnico. Lucilia Machado, com sua tese de doutoramento, publicada sob 0 titulo Politecnia, escola unitaria e trabalho, que tem por objetivo analisar a idéia de “unificagdo escolar” (MA- CHADO, 19839, p. 9), chega a discussao explicita da poli- tecnia. No fundo, 0 que esta em debate é a criagdo de um sistema de ensino que seja fundamentalmente unitario, mesma pre- ocupa¢ao de Dermeval Saviani. No entanto, Machado par- te de uma apreciagao historica da formagao — no plano das idéias pedagdégicas — dos sistemas unificados de ensino, e nao da ja existéncia concreta no Brasil de trés niveis de ensino, como faz Saviani. Pode-se ler nas obras da profes- sora Lucilia Machado uma importante preocupagao com a perspectiva historicizante da concep¢ao da politecnia. Essa importante perspectiva pode também ser observada no texto A politecnia nos debates pedagogicos soviéticos das déca- das de 20 e 30 (MACHADO, 1991). O ponto de partida da construgao da problematica da unifi- cacao escolar é a analise empreendida inicialmente por Karl Marx em O Capital (MACHADO, 1989, p. 19), acerca do desenvolvimento do processo de trabalho sob 0 modo de producao capitalista. Na leitura de Lucilia Machado, o capitalismo fragmentou e diferenciou de tal forma o processo de trabalho e com ele a formagao escolar e profissional, que sobreveio a necessi- dade de construir uma reunificac&o. A construgao de tal Teunificagao, em nivel escolar, pode-se dar a partir de duas visSes antagénicas: a burguesa, representada por Emile Durkheim, e a proletaria, enunciada primeiramente por Marx. Estudando o processo de transformacao da instituigao es- Colar — entendendo-a como parte integrante do movimento Geral de transformagao que o capitalismo empreende — a aoe abordou fundamentalmente o significado dos mo- Nos sistemas de ensino, construidos sob a perspectiva esc 47 liberal-burguesa. Fruto da pesquisa, Lucilia Machado con- cluiu que como promessa histérica [...] a proposta liberal ja se realizou @ se esgotou e, que estando em curso e em criagao, mas nao ape- nas por isso, a proposta socialista constitui o campo mais pro- migsor para as investigacdes tedricas e as inspiragdes praticas (MACHADO, 1989, p. 13). Levando a termo tal conclusao, a autora desenvolve seu estudo sobre a escola Unica do trabalho — a proposta soci- alista de unificag&o escolar. E justamente nessa problema- tica que surge a proposta de um ensino politécnico entendi- do enquanto a maneira mais adequada de se operacionalizar 0 principio educativo mais geral de “desenvolvimento multi- lateral do individuo” (MACHADO, 19839, p. 11). Cabe ainda destacar que a perspectiva desenvolvida por Machado traz, ou pelo menos reforga, uma caracteristica da proposta de educagdo politécnica: a concepgao de es- cola nica. Tal proposta vai contra as tendéncias de unifica- Ao e diferenciagao desenvolvidas pelas concep¢ées bur- guesas de educagdo. Assim, falar em escola politécnica é falar em uma escola Unica do trabalho. Acacia Kuenzer constréi sua problematica de uma maneira distinta dos autores anteriormente estudados. Se, por um lado, se aproxima da perspectiva de Dermeval Saviani — que tem por problematica a constituigao de um sistema de ensino, e mais especificamente o ensino médio — por outro lado, busca incorporar a discusséo um novo interlocutor: “operario concreto, vivendo, produzindo, educando-se, ela- borando o saber e dele sendo expropriado, nas condigdes que est4o dadas aqui e agora” (KUENZER, 1985, p. 181). Kuenzer chega a discussao da educag@o politécnica a par- tir de duas grandes pesquisas, por elas desenvolvidas numa “48 fabrica automobilistica e em escolas secundarias noturnas da periferia da regiao metropolitana de Curitiba’ (KUENZER, 1985, 1986). Analisando o cotidiano de uma fabrica, a autora entende que, se, por um lado, o trabalhador realmente produz um saber sobre o trabalho, por outro, esse conhecimento se mostra fragmentado, parcial e assistematico, dificultando-o a apreender o processo de trabalho em sua totalidade e, com isso, reduzindo seu poder dentro da fabrica (KUENZER, 1985, p. 189). Na visdéo de Acacia Kuenzer esse tipo de conhecimento, produzido pela “pedagogia da fabrica”, por si sé nao dara ao trabalhador o acesso aos instrumentos tedrico-metodoldgicos e ao saber soci- almente construido que Ihe permita compreender as relagdes sociais das quais faz parte e superar sua situagdo de classe (KUENZER, 1985). Assim, alguns operarios aspiram a escolarizagao buscando a superacao da dicotomia entre o saber tedrico — transmiti- do na escola — e o saber pratico — construido no trabalho. A escola seria o locus de democratizagao (através de sua sis- tematizacdo) daquele conhecimento que a fabrica Ihes nega, mas que também lhes proporciona, contraditoriamente. No entanto, reconhece a autora que a escola tem sido “im- Permeavel aos operarios e a seus filhos”, e que nao pode ser “corrigida através de mudangas curriculares” (KUENZER, 1985, p. 190 ; 1988, p. 97). —___ ie Muito embora nio se encontre referéncia explicita ao termo “politecnia” na obra Pedagogia da fabrica, € nas suas conclusdes que se deve buscar a preo- Cupacao inicial de Acacia Kuenzer. iar seressctnnnssapismeesccntget 49 O seguinte excerto, retirado de sua principal obra — Ensino de 2° grau (1988), — ilustra a problematica de Acacia Kuenzer: .] fica clara a ambigiiidade que se constitui na questao central da discussao da relagao entre educagao e trabalho do ponto de vista da classe trabalhadora: 0 fato de a escola se constituir, nas atuais condigdes, no Unico espaco alternativo para a classe tra- balhadora se apropriar do saber socialmente construido, a par do fato de estar esta escola impossibilitada de exercer esta fun- Gao. Na contribuig&éo de Acacia Kuenzer a discussao da politecnia, ha a preocupagao de transformar a escola, con- siderando-se a estratégia mais geral de luta contra- hegeménica (Gramsci) da classe trabalhadora: 6 preciso compreender qual o principio educativo a partir do qual se organiza a escola, se quisermos perceber em que dimensao ele se aproxima ou se afasta do processo de constituigao da hegemonia, no qual se defrontam burguesia e trabalhador. Mas, talvez, mais significative que esse método de se estu- dar educac&o — através do conceito de hegemonia de Anto- nio Gramsci — seja a importancia atribuida pela pesquisa- dora a contribuigao do trabalhador concreto, em sua ativi- dade laboral: Ao mesmo tempo, é preciso ouvir o trabalhador — o que esta na escola e 0 que ja esta inserido no processo produtivo — acerca de sua relagéo com o saber (KUENZER, 1988, p. 98). Assim, os aportes de Kuenzer estaro definitivamente mar- cados por essas duas preocupagées centrais: o ensino de segundo grau e a perspectiva do aluno-trabalhador em re- lag&o a educagao, dando singularidade ao pensamento em educagao politécnica. sovereere easnnzs 50 Se para Dermeval Saviani 0 ponto de partida de discussao da concep¢ao de educacao politécnica é a problematica do ensino médio, para Gaudéncio Frigotto a discussao tem outro ponto de partida. Frigotto busca inicialmente, em A produtividade da escola improdutiva (1984), uma concep¢ao de educacao que, se opondo aos moldes da teoria do capital humano, nao re- caia em propostas liberais burguesas, como a defendida por John Dewey. Tal busca nao partiu, no entanto, da pré- pria instituigéo escolar, nado se apoiou no dever ser. Gaudéncio Frigotto vai buscar nas relagdes econémico-so- ciais fundamentais os liames entre escola e trabalho. Partindo da discussao da relagao entre o mundo do traba- lho e aescola, que colocava, por um lado, uma liga¢ao line- are mecanica, e, por outro, uma absoluta auséncia de rela- Gao, Frigotto constrdi uma terceira tese que mostra a mediata relagao entre escola e trabalho. A primeira compreensao, segundo Frigotto, aponta que a escola é um mero reflexo das relagdes econdémico-politicas das classes dominantes sobre os trabalhadores; desta pers- pectiva deduz-se, entao, que a escola nao interessa as clas- ses dominadas, ou seja, nao é possivel a construcgao de uma alternativa pedagégica dentro da instituigdo escolar vigente. A segunda diregao, ainda na leitura de Frigotto, defende que a escola, nao interessando a burguesia (ja que essa Possui outros espagos para realizar seu projeto educacio- nal), liberta a instituiga&io escolar das relagdes sociais vigen- tes e que, portanto, pode-se esperar dela um compromisso com a /iberdade. Criam-se entéo dois pélos. De um lado, propde-se a des- truigéo da educagao escolar, de outro, a adogao de um modelo liberal. Essas duas posigdes tem em comum a ana- lise mecdnica — pelo vinculo ou desvinculo — da relagao trabalho-educag¢ao, nao captando, portanto, as possibilida- des e os limites da escola, num projeto mais amplo de soci- edade. Ao final desse percurso, Frigotto resgata as concepgoes marxistas de educacao — fundamentalmente as propostas por Marx, Lenin e Antonio Gramsci — consubstanciadas na proposta de formacéo politécnica (FRIGOTTO, 1984, p. 186). A analise desenvolvida por Gaudéncio Frigotto distingue- se das anteriores na medida em que busca dar conta da totalidade do fendmeno educativo, nao se restringindo, por- tanto, a um determinado nivel de ensino. Assim, pode-se atirmar que a proposta de formagdo politécnica, para Frigotto, ndo esta adstrita ao ensino de segundo grau. Como se péde acompanhar, distintos foram os caminhos — ou as problematicas — percorridos pelos autores até chega- rem a discussao da concep¢ao de educagao politécnica. Dermeval Saviani, preocupado fundamentalmente com a estruturagado organica de um sistema nacional de educa- ao, busca, através da concepgao de politecnia, caracteri- zar aquele nivel de ensino totalmente desprovido de finali- dades intrinsecas. A educagdo politécnica é, portanto, para o professor Saviani, uma proposta que estabelece uma con- tinuidade entre os primeiro e terceiro graus de ensino. Lucilia Machado, partindo também de uma problematica ti- picamente escolar, agrega duas caracteristicas importan- 0 SRR SST POS tes. A autora incorpora a discussdo aberta por Saviani a preocupagao com a construgao de um novo técnico indus- trial e a andlise do processo de construgao dos sistemas nacionais de ensino em duas vertentes: a burguesa e a pro- letaria (escola Unica do trabalho). A posigao de Acacia Kuenzer acompanha, de certa forma, a problematica construida por Saviani. Mas a autora incor- pora ao debate do ensino médio e da politecnia uma nova perspectiva: as demandas concretas dos trabalhadores, estejam eles nas escolas ou nas fabricas. A problematica desenvolvida por Gaudéncio Frigotto rom- pe, de certa forma, com aquelas apontadas anteriormente. Frigotto, embora esteja também buscando uma concepgao de escola e de educacdo, chega ao debate da politecnia a partir do estudo das relagées econdémico-sociais que estao na base da sociedade capitalista. Cabe ressaltar que cada uma das problematicas identificadas contribui de maneira particular e significativa para a construg&o da concep¢ao politécnica de educacao. Assim, nao se deve estabelecer uma hierarquia entre as diversas contribuigées a politecnia, a partir das problemati- cas, sejam elas de carater mais geral, sejam mais especifi- Co. Por outro lado, deve-se observar que cada problemati- ca reflete-se — em alguma medida — em cada uma das trés dimensdes que compdem o movimento de construgao da Concepgao politécnica de educagao, conforme sera discuti- do nos prdximos capitulos. e DIMENSOES DA CONCEPGAO DE EDUCAGAC ATECNICA No Brasil, a construgao tedrica de uma concep¢ao de edu- cacao sob a perspectiva da politecnia vem-se dando a par- tirda confluéncia de diversos aspectos, que podem ser agru- pados em trés eixos fundamentais: dimensao infra-estrutu- ral, dimensdo utdpica e dimensao pedagégica. Essas di- mensées compéem, na verdade, um instrumental de anali- se da totalidade do objeto dessa pesquisa. E sobre esses trés eixos que se passara a discorrer. DimensAo infra-estrutural Ou a politecnia vem da fabrica, vem das relagoes sociais ou ela nao vira da escola. Miguel Arroyo A dimensdo infra-estrutural da concepgao de educa¢gao politécnica diz respeito a aspectos relacionados ao mundo do trabalho, especificamente aos processos de trabalho sob a organizacao capitalista de produgao, e conseqiientemen- te 4 questo da qualificac&o profissional. Apesar de esses aspectos jA estarem presentes no pensamento de Marx e Engels, eles estado atualmente em destaque pela discussao dos impactos das chamadas novas tecnologias sobre os Processos de trabalho. sn eS a 55 seen Portanto, a dimensAo infra-estrutural da concepgao politéc- nica de educacao se relaciona intimamente 4s mudangas na produgao e correlatas alteragées cientificas, principal- mente tecnoldgicas. Tais mudangas estariam apoiadas, segundo Schaff (1990, p. 25-26) numa “triade revoluciona- ria”: energia nuclear, biotecnologia e microeletrénica. Es- sas mudangas estariam propiciando alteragdes qualitativa- mente distintas daquelas operadas pelas revolucdes indus- triais anteriores, tanto nos meios e instrumentos de produ- ¢ao, quanto nos servicos, inclusive borrando a tradicional classificagao dos setores da economia (primario, secunda- rio e terciario). As mudangas operadas na base técnica do trabalho huma- no simultaneamente propiciariam e demandariam uma qua- lificagao profissional de tipo novo. Pode-se afirmar que as mudangas tecnoldgicas e de processo de trabalho, colimadas na discussao de qualificacao profissional, sao 0 ponto focal — de partida e chegada — da discussAo de edu- cagao politécnica, tal como hoje vem sendo conduzida. Sobre essa intensa discussao, muitos autores apdiam-se para defender e também para criticar a idéia de politecnia. Preliminarmente, torna-se necessdario apresentar de forma suméaria algumas posigdes bastante consolidadas entre aqueles que estudam as relagdes entre produgdo e qualifi- cacao (PAIVA, 1989, p. 4-5). Um primeiro ponto ja consolidado entre os estudiosos da evolugao do processo de trabalho, mesmo entre os nao- marxistas, 6 0 chamado “esquema trifasico” elaborado por Karl Marx. O esquema consiste em identificar tres momen- tos historicos relacionados a organizagdo do processo de trabalho produtivo e a qualificagao profissional: o artesana- 56 to (Idade Média); a manufatura (séculos XVI ao XVIII) ea maquinofatura (a partir do século XIX). Pari passu a esse movimento, ocorreria a desqualificagao progressiva do trabalho, que iria do artesao (conhecedor de todo o processo de elaboragao do produto) ao operdario moderno (limitado a desempenhar tarefas muito especifi- cas e limitadas), situagao tao bem caricaturada por Charles Chaplin em Tempos modernos. Marx defendia que essa ultima etapa (maquinofatura) traria em si a possibilidade de uma formagao politécnica e a con- sequente requalificagao da forca de trabalho, superando, assim, a condigéo de alheamento do operario em relagao ao seu trabalho. Ainda segundo a leitura de Vanilda Paiva, ao esquema trifasico combinam-se, a partir das ultimas décadas, quatro teses em relacao a terceira etapa do esquema: * Tese de desqualificacao: 0 capitalismo, ao invés de propi- ciar a requalificagao profissional, estaria exacerbando as tendéncias de desqualificagdo. O processo de desqualificagao do trabalho seria tanto absoluto quanto relativo. * Tese de requalificagao: a evolugado tecnolégica ocorrida no processo de produg¢ao capitalista exigiria a elevacao da qualificagao média dos trabalhadores. * Tese de polarizagao das qualificagdes: podendo aparecer combinada com qualquer das demais teses, essa defende que o capitalismo contemporaneo necessitaria, por um lado, de uma grande massa de trabalhadores desqualifi- Cados e, por outro, de um seleto grupo de profissionais altamente qualificados. ‘Msc sun 57 * Tese da qualificacao absoluta e da desqualifica¢ao relati- va: essa tese defende que a qualificagao, em termos ab- solutos, tem crescido (isto é, 0 trabalhador médio atual é mais qualificado que o de épocas passadas); no entanto, tal qualificagao estaria decaindo, se comparada relativa- mente ao saber acumulado pela humanidade. Discute-se bastante, inclusive a partir de pesquisas de base empirica, qual seria o movimento atual da qualificagao dos trabalhadores, ou seja, qual dessas teses seria a verdadei- ra ou dominante. Em suma, busca-se uma resposta histori- ca para a antecipacao feita por Marx ha mais de 100 anos. No entanto, pouco se tem questionado sobre o conceito de qualificagao em si, sobre o qual essas teses foram construidas e sao defendidas. O sociélogo espanhol Mariano Fernandez Enguita, em seu texto Tecnologia e sociedade: a ideologia da racionalidade técnica, a organizagao do trabalho e a educa¢ao (1991), elabora um conceito de qualificagao que incorpora novas dimens6es. Primeiramente 0 pesquisador distingue a quali- ficagao do trabalho (de um posto de trabalho) da qualifica- ¢ao do trabalhador. Para este autor, a qualificagao do tra- balho esta restrita Aqueles conhecimentos e habilidades aplicados pelo trabalhador no desempenho das tarefas que compéem seu emprego, enquanto a qualificagao do traba- Ihador esta relacionada ao acervo total de saberes incorpo- tados ao ser humano que desempenha tal tarefa. Uma questao neste ponto se coloca: é possivel identificar objetiva e inequivocamente quais sao os conhecimentos, habilidades, atitudes, necessdrias ao desempenho de de- terminado trabalho? E possivel recortar-se uma tarefa, ou profissdo, de uma totalidade mais ampla na qual esta esceartenrr 5 BERETS 58 inserida a tarefa, a profissao, o trabalhador? Qual € o papel da cultura geral na formagao profissional? E possivel iden- tificar claramente onde termina 0 profissional e come¢ga o cidadao; onde esta aplicado 0 conhecimento técnico e o saber geral? Isolar e delimitar objetiva e inequivocamente o saber profissional nao seria ainda um paradigma taylorista? Buscando incorporar novas dimensées a conceituagao de qualificagao, Enguita (1991, p. 233) assim a (re)elabora (pela sua negacao): Designaremos globalmente como desqualificagao do trabalho o processo de perda de controle e autonomia por parte dos traba- Ihadores, a desqualificagao de suas tarefas ¢ a deterioragao do interesse no trabalho. Na medida em que Enguita incorpora ao conceito de quali- ficagdo as dimens6es de controle, autonomia e interesse sobre 0 trabalho, o pesquisador espanhol propicia a discus- sao sobre a importancia da construgao da liberdade no tra- balho. Dessa forma, Enguita faz coro com aqueles autores que se mantém restritos a luta pela /iberdade do trabalho: trabalho nao sera nunca reino de liberdade, de forma que se torna necessdrio comegar a falar de uma cultura do dcio e do tempo livre (ENGUITA, 1991, p. 231) Seria esse o caminho a ser seguido pela humanidade? O trabalho deve ser encarado enquanto tripalium, e nunca €nquanto poiésis? Deve-se entender mecanicamente que trabalho € sindnimo de necessidade, e tempo livre é idénti- CO a liberdade? Qual é 0 grau de liberdade que existe no lazer? Estaré o lazer liberto das determinagdes mais gerais da sociedade burguesa? head como é vista a quest&o das inovagées cientificas e Cnolégicas em sua relaco com a qualificagao do traba- Mmeennetcenieu Iho e do trabalhador, pelos pesquisadores brasileiros que abordam a discussdo da politecnia? De uma maneira geral, todos se adaptam as quatro pers- pectivas delineadas anteriormente por Paiva. Portanto, po- dem-se verificar algumas tensées, ja que tais perspectivas so, em alguns casos, conflitantes. Para Lucilia Machado, em Mudangas tecnolégicas e a edu- cacao da classe trabalhadora (1992, p. 16), a adogao das novas tecnologias e das novas formas de trabalho levariam a uma elevagdo da qualificagao média da forga de tra- balho, muito aquém, entretanto, se for considerado o patamar das conquistas obtidas pela humanidade, no campo do conheci- mento cientifico e tecnolégico Qu seja, Machado combina a tese da qualificagao absoluta e da desqualificagao relativa com a tese da polarizagao de qualificagdes, na medida em que admite que apenas um pequeno grupo de trabalhadores poderia ser encarado como qualificado, enquanto que existiria um enorme contingente de trabalhadores que seriam considerados descartaveis e desqualificados (MACHADO, 1992, p. 16). Ja Miguel Arroyo (1988, p. 24), polemizando com os educa- dores — escolacentristas ~ defende: a incorporagao da Ciéncia e da tecnologia na produgaio leva. inexoravelmente, a uma qualiicagao da produgao e do trabalho enquanto que nas nossas perspectivas de educadores sempre vemos na incorporagao da Ciéncia e da tecnologia uma inexoravel desqualificagao, Miguel Arroyo (1988) apdia-se na tese da requalificagao para criticar aquelas visdes que tendem a trocar a defesa do “tra balho como principio educativo” pela “resisténcia ao traba- see lho”,' jA que s6 admitem a positividade do trabalho em sua etapa artesanal, historicamente ultrapassada. Portanto, Arroyo ataca severamente aquelas visdes que buscam uma idade do ouro do trabalho, geralmente liberta dessa “inven- ¢4o diabdlica”, a tecnologia: Q trabalho 6 concebido como educativo na medida em que ele é uma mediagao direta do homem com a natureza natural, sem qualquer intermediacao da tecnologia (ARROYO, 1988, p. 167). Ou seja, caso fosse possivel optar sumariamente entre duas das tendéncias presentes nos modernos processos de tra- balho, poder-se-ia afirmar que Lucilia Machado optaria pela preponderancia da “desqualificagao”, enquanto Miguel Arroyo preferiria a prevaléncia da “qualificagao”. Gaudéncio Frigotto busca escapar a essa antinomia colo- cando que positividade e negatividade sao componentes inerentes e simultaneamente presentes as construgdes hu- manas. Nao se deve buscar, portanto, uma resposta simplista a pergunta: a tecnologia expressa um bem ou um mala humanidade? Afirma Frigotto em Tecnologia, relagdes sociais e educa¢ao (1991) que ciéncia, técnica e tecnologia nao s&o um “dado arbitrario”, mas refletem as relagdes so- Ciais sob as quais sao produzidas: Confundem-se os efeitos excludentes, concentradores e alienadores da ciéncia, tecnologia, progresso técnico, sob as. relagdes capitalistas, como sendo problemas “em si” da ciéncia @ da técnica. Assim, embora por caminhos distintos, ora afirmando a eotvidade, ora realgando a positividade do trabalho in- eae os pesquisadores vém buscando afirmar a Ntralidade dos modernos processos de trabalho que emer- 1 Revendo Os vinculos entre trabalho e educagiio (SILVA, T., 1991). ees gem das inovagées tecnolégicas. A medida que se percebe a contradigao enquanto.inerente a qualquer obra humana, e que é impossivel atribuir um carater unicamente positivo ou negativo a tecnologia, busca-se primeiro assumir que o trabalho humano é cada vez mais mediado pela tecnologia, sendo esse um caminho sem retorno. Portanto, nao se deve idilicamente buscar no campo, no artesanato, nas formas primitivas de trabalho, enfim, no re- trocesso da historia, as bases infra-estruturais da concep- cao de educagao politécnica. Posto isso, busca-se traba- lhar teoricamente a contradi¢ao inerente aos modernos pro- cessos de trabalho, com o fito de se identificar — dialeticamente — a virtualidade no interior da negatividade. O modo de produgao capitalista precisa revolucionar-se eter- namente sob pena de nao se perpetuar. Portanto, essa re- gra geral aplica-se também aos processos de trabalho que Ihe sao subjacentes. Essa revolugao come¢a quando 0 ca- pitalista junta sob o mesmo teto diversos produtores que cooperam, mantendo intocados, em si, os processos de tra- balho preexistentes (subsuncao formal do trabalho ao capi- tal) (MARX, 1975, p. 73). A partir dai, o capital passa a (re)estruturar os processos de trabalho, introduzindo fortemente maquinaria e divisao do trabalho (subsungao real do trabalho ao capital) (MARX, 1975, p. 78-79). A revolugao dos meios e instrumentos de produgao 6é in- cessante, 0 progresso tecnoldgico vai-se dando mais ou menos continuamente até que, em meados da década de 40, do século XX (a partir da Segunda Guerra Mundial), estabelece-se um salto qualitativo. Para Lucilia Machado (1992, p. 12), A sociedade tecnizada nao é a sociedade industrial mais desen- volvida. Trata-se de algo novo, que nao modifica a esséncia do modo de produgao capitalista, mas Ihe traz novos contormos. [...] As inovagées introduzem mudangas qualitativas que atingem os métodos de produgao. Se até ent&o o progresso tecnolégico veio Poupando e potencializando as forgas fisicas humanas, a partir de ago- ra, principalmente a partir da década de 70, a tecnologia avanga sobre as forgas intelectuais: cria-se a microeletré- nica, com gigantesca generalizacao da informatica. Nada mais € secreto a humanidade, desvenda-se 0 enigma da natureza: nasce a biotecnologia, através da tecnologia do DNA recombinante. O ingresso da microeletrénica na industria e nos servicos (automagao) sem duvida revolucionou e ainda revoluciona totalmente os processos de trabalho. Portanto, ainda nao se consegue prever exatamente o que se esta delineando a partir dai. No entanto, muito mais revolucionaria, embora ainda bas- tante incipiente, 6 a quest&o do dominio e da manipulagao do cédigo genético. Da cura de doengas até o mapeamento do genoma humano (prometido até o final da década) com todas as suas potencialidades (positivas e negativas), a biotecnologia ja esta transformando radicalmente os Processos de trabalho ligados a satide, arqueologia, crimi- Nalistica, agropecudria. As possibilidades sao inimaginaveis. auestéo é& de que forma e em que medida as inovacées Cnolégicas vém “implicando” (ou no) na politecnia? Em que medida as mudangas nos processos de trabalho esta- nam contribui ivacd = : técnioa? ribuindo para a efetivagdo de uma formagao poli- ee Para Vanilda Paiva (1989, p. 58-59), as novas tecnologias — na medida em que diluem as tarefas e qualificagdes anteri- ores, reagrupando-as, elevando o nivel de complexidade demandada do trabalhador — colocam na ordem do dia a polivaléncia, confirmando 0 esquema trifasico ja apontado por Marx ha 100 anos, bem como a especializagaéo flexivel com base na educagao geral Em outras palavras, as mudangas tecnoldgicas incorpora- das aos processos de trabalho relacionam-se intimamente com a politecnia na medida em que tais mudangas poderi- am — potencialmente — livrar os trabalhadores de tarefas Unicas e repetitivas pelo deslocamento das atividades do processo produtivo em si para aquelas tarefas de controle dos processos automatizados. Dada a simplificacao das tarefas mediadas pela maquina, pela uniformizagao dos processos de trabalho, o trabalha- dor teria a possibilidade de percorrer (isto é de atuar, de trabalhar em) todas as etapas da produgao. O desenvolvi- mento atual dos meios e instrumentos de produgao deman- daria a polivaléncia do trabalhador. As mudangas tecnolégicas contemporaneas, portanto, nao sé dispensariam 0 trabalhador formado pelo estreito padrao taylorista-fordista, como também sua manutengao traria entraves ao proprio desenvolvimento da produgao capita- lista. Uma questao fundamental nessa elaboragao 6 se a deman- da pela polivaléncia do trabalhador identifica-se com o con- ceito atualmente desenvolvido de politecnia. A polivaléncia gerada no interior da fabrica capitalista € sinénimo de politecnia? Gaudéncio Frigotto (1991, p. 268) nega a identificagao en- tre os conceitos de polivaléncia e politecnia. Para o autor, a polivaléncia demandada por certos setores da produgao estaria firmemente alicergada no conceito de homem unilateral, o homo oeconomicus. A visao de homem unilateral relaciona-se ao conceito de trabalhador polivalente, formado segundo as estreitas necessidades do mercado de trabalho. A polivaléncia estaria ligada, portanto, ao con- ceito de funcionalidade. Uma das disting¢des entre o trabalhador polivalente e a politecnia seria dada por acesso e utilizag&o do conheci- mento. Seja este o conhecimento embutido na moderna maquinaria, seja aquele relacionado a organizacao e ao desenvolvimento da sociedade e do ambiente de trabalho, Lucilia Machado (1992) endossa a posi¢ao de Frigotto, ao distinguir polivaléncia de politecnia, mas também reconhe- ce o aspecto positivo daquela: O horizonte da polivaléncia dos trabalhadores tem sido interpre- tado como 0 novo em matéria de qualificago. Ja a questo da Politecnia se inscreve na perspectiva de continuidade e ruptura com relagao a polivaléncia e se apresenta como o novissimo. Ou seja, a polivaléncia que é demandada pelos modernos Processos de trabalho seria uma das faces da positividade do desenvolvimento contraditdrio do capitalismo. No entan- to, prossegue Machado, a polivaléncia representa nada mais que uma racionalizagao formalista com fins instrumentais e pragmaticos calcada no principio positivista de soma das partes. Ou seja, entender que as mudangas no contetdo e na for- jae trabalho esto colocando em crise o modelo taylorista- rdista de produgao, demandando assim um novo tipo de ses 65 trabalhador — polivalente — nao significa necessariamente uma submissdo & logica burguesa de desenvolvimento tecnolégico. Tomar a polivaléncia, as mudancas tecnolégicas, enquanto positividade, enquanto aspecto fa- voravel & educagao politécnica, nao significa manter essa nova capacitacdo “no limite adaptativo dessas novas de- mandas”. A politecnia pretende avangar sobre a funcionali- dade representada pela polivaléncia. Para Gaudéncio Frigotto, (1991, p. 136), Ao contrario, essa contradi¢do da “virtualidade capitalista” deve ser explorada nao na ldgica da adaptabilidade, funcionalidade ou refuncionalidade, mas na légica da ruptura. Pode-se ler em Frigotto ~ “...mas na logica da ruptura” — a importancia de uma perspectiva mais global de mudangas no horizonte de organizagao da sociedade. Se, por um lado, a dimensao infra-estrutural pode ser encarada como a base material sobre a qual podera ser erguida uma concepgao contemporanea de forma¢ao humana, por outro lado, essa s6 podera ser plenamente compreendida e justificada sob o prisma daquela dimens&o que busca explicitar os objeti- vos e a perspectiva mais geral da concep¢ao politécnica de educagao.? Em sintese, os autores reconhecem que os modernos pro- cessos de trabalho demandam — através da utilizagao, cada vez maior, de processos automatizados, do reagrupamento de tarefas etc. — um novo tipo de trabalhador. Mesmo sob a légica da acumulagao privada de riquezas, vem sendo construfda uma nova qualificag4o profissional que se alicerga na polivaléncia do trabalhador. Assim, a polivaléncia repre- senta uma das faces positivas das inovagées tecnoldgicas, > Ver proxima segao. que, de certa maneira, confirma os progndsticos de Karl Marx. No entanto, os pesquisadores nao identificam polivaléncia e politecnia. A polivaléncia representaria uma dimensao, um aspecto necessario a politecnia, ainda representando, no entanto, uma demanda adstrita a lo6gica burguesa de estruturagao do trabalho. Manter-se preso aos limites da polivaléncia do trabalhador 6 conferir ao capitalismo, ou & tecnologia que o sustenta, o poder de mecanicamente ul- trapassar-se. O trabalho sob o modo de produgao capitalis- ta, mesmo que moderno, mesmo que polivalente, continua — fundamentalmente — regido pela ldgica do capital e, por- tanto, da exclusdo e da alienagao. Assim, a polivaléncia deve ser incorporada e superada dialeticamente pela concep¢ao de formacao politécnica. Contudo, pode-se ainda avangar um pouco mais na apre- ensdo da contradic¢ao expressa na demanda da polivaléncia. Asimplificagdo das tarefas e a complexa maquinaria — base material da polivaléncia ~ seria apenas aparente, ja que cada maquina seria, na verdade, a coagulacao de avangados co- nhecimentos cientificos e tecnolégicos. Para Harry Braverman, no classico e polémico Trabalho e capital Monopolista ° (1987, p. 360): 2 : 6 Cabe aqui um comentario. Braverman vem sendo bastante criticado pela sua Visio pessimista sobre 0 processo de trabalho capitalista. Sem querer retornar a0 debate em parte jA contemplado, gostarfamos de lembrar que coube a Braverman reabrir as pesquisas e os debates sobre esse aspecto — tdo caro a Marx — até entdo to esqueci 0 processo de trabalho sob 0 capitalismo. Portanto, em que pese todas asc s feitas ao seu trabalho. deve ainda Ser levado em consideragdo, quando se aborda a discussdo da qualificaga spectos correlatas. 5 on "67 Quanto mais a ciéncia é incorporada no proceso de trabalho, tanto menos 0 trabalhador compreende 0 pracesso; quanto mais um complicado produto intelectual se torne a maquina, tanto menos controle e compreensao da maquina tem 0 trabalhador. Em outras palavras, quanto mais 0 trabalhador precisa saber a fim de continuar sendo um ser humano no trabalho, menos ele ou ela conhece. Em outras palavras, o desenvolvimento contemporaneo dos meios e instrumentos de produco, através da ciéncia e da tecnologia, vem cada vez mais simplificando a sua opera- ¢&o, a partir da complexificagao do conhecimento necessa- rio & sua elaboragao. Acacia Kuenzer (1988, p. 122), concordando com Braverman, compreende que esse movimento se, por um lado, simplifica o fazer, por outro, amplia a distancia entre o trabalhador e o saber encerrado na maquina, construindo, neste processo, um tipo de opacidade: 0 trabalho simplificado ¢ fruto da complexificagao do saber cien- tifico-tecnolégico e, portanto, exige mais conhecimento do tra- balhador para poder compreendé-lo, nao obstante sua execu- Gao seja simples. As duas passagens destacadas apontam para uma mesma discussao: a politecnia se insere no contexto da luta pela liberdade no trabalho. E o que aponta Lucilia Machado (1992, p. 19): Politecnia representa o dominio da técnica em nivel intelectual e a possibilidade de um trabalho flexivel [...]. Supde a ultrapassa- gem de um conhecimento meramente empirico, ao requerer 0 recurso a formas de pensamento mais abstratas. Vai além de uma formagao simplesmente técnica ao pressupor um perfil amplo de trabalhador consciente, e capaz de atuar criticamente em ati- vidades de carater criador e de buscar com autonomia os conhe- cimentos necessarios ao seu progressivo aperfeigoamento. O desenvolvimento do processo de trabalho, caso se admi- ta 0 esquema trifasico proposto por Karl Marx, vem modifi- cando a relagao do homem com o trabalho. Essa modifica- gao, embora nao-absoluta, vem-se dando através de um estranhamento, que pode ser visto em dois aspectos com- plementares: a alienagao do processo e do produto. Por um lado, o trabalhador nao se enxerga no produto de seu trabalho, na medida em que esse é apropriado privati- vamente pelo capitalista. Por outro lado, o trabalhador nao se identifica com sua obra, ja que esta restrito & execugao de um fragmento, nao se reconhecendo, portanto, na tota- lidade da obra. Sem duvida, a superagdo desses dois aspectos do trabalho humano n4o podera se dar a partir de uma pedagogia. Nao cabe, portanto, defender que a concepgao politécnica de educagao possa superar, por si mesma, a ordem que deter- mina a apropriagao privada das riquezas produzidas social- mente; ou que, tampouco, ela pretenda superar a divisao concepgao versus execugao (ou, mais classicamente, tra- balho manual versus trabalho intelectual), pois esta se cons- titui num limite estrutural da sociedade das mercadorias. No entanto, a concepgao de educag&o politécnica, princi- palmente através de sua dimensao infra-estrutural, define- se pela luta pela liberdade no trabalho, na medida em que busca métodos de reconstrugdo da identidade do trabalha- dor ao produto de seu trabalho, através da mediagao da compreensao totalizante e também pela atuagao mais am- pla no processo de produgao da existéncia. Politecnia pres- supée, assim, dominio pratico-tedrico do processo de tra- balho. 69 Em outras palavras, a questao fundamental nao é saber qual das teses de qualificagao profissional é verdadeira; nao se trata de se decidir se a evolucao tecnolégica é (cartesianamente) positiva ou negativa. O que a concepgao politécnica de educagao propée, em sua dimensdo infra-estrutural, é identificar estratégias de formagao humana que apontem para uma reapropriagao do dominio do trabalho. E construir a liberdade no trabalho a partir das necessidades do trabalho. Dimensao utopica ...@ concepeao de ensino e formagao politécnica 6, antes de tudo, uma critica radical ao projeto excludente, elitista e diferenciador do ensino e da formagao, desenvolvido na sociedade capitalista. Gaudéncio Frigotto Os pensamentos de Karl Marx e Friedrich Engels nao po- dem ser plenamente compreendidos sem que se considere aincorporagdo do legado de pensadores como Saint-Simon (1760-1825), Fourier (1772-1837), Flora Tristan (1803-1844), Cabet (1788-1856) e Owen (1771-1858), todos identifica- dos como socialistas utdpicos (LENIN, 1983 ; MANDEL, 1987). No entanto, a palavra utopia 6 emprestada por mui- tos um sentido negativo, principalmente por alguns leitores miopes de Marx. Esquematicamente pode-se atribuir, concordando com Michael Lowy, duas acep¢ées ao conceito utopia. Um sen- tido ligado & palavra grega outopos (em parte alguma) que representaria aquele pensamento “que aspira a um estado nao-existente das relagGes sociais, o que Ihe da, ao menos potencialmente, um carater critico, subversivo, ou mesmo explosivo” (LOWY, 1987, p. 12). Um segundo sentido do conceito utopia, bastante estreito e inoperante, estaria ligado a um “sonho imaginario irrealizavel’. Inoperante, posto que é impossivel a priori de- finir-se o que é irrealizavel. Ainda nessa perspectiva pejora- tiva, criticam-se.os socialistas utdpicos por representarem um pensamento desligado da realidade social; seriam eles, além de sonhadores, filésofos descompromissados com os problemas reais da sociedade. No entanto, deve-se concordar com Ernest Mandel (1987, p. 50-51), no sentido de que os utdpicos se revelaram criticos licidos da sociedade burguesa, apreen- dendo os tragos essenciais de sua evolucao a longo prazo e suas contradig6es, antecipando de maneira clarividente as trans- formacGes necessarias para o advento de uma sociedade sem classes. Com certeza, distingdes e rupturas existem entre os cognominados socialistas utdpicos e os fundadores do marxismo, mas também existem continuidade e divida inte- lectual. Essa continuidade é perfeitamente clara em rela- ¢ao as propostas educacionais de Robert Owen e também (de maneira mais distante) 4s de Charles Fourier, como ates- tam diversos estudos, entre eles os de Mario Manacorda (1991) e Maria Alice Nogueira (1990). Em reconhecimento a importancia das propostas educaci- onais inicialmente feitas por Owen, continuadas e amplia- das por Marx e fundamentalmente pelo intenso desejo de contribuir para a humanidade alcangar uma sociedade sem classes, expresso pelos utdpicos, 6 que se adota nesse estudo a expressao dimensao utdpica para se estabelecer uma das caracteristicas — necessaria e fundamental — da concepg¢ao politécnica de educagao. A dimens&o utépica, portanto, nao visa mostrar que a politecnia seria um ideal irrealizavel, uma proposta histori- camente desenraizada; busca expor a profunda relacao entre essa concepcao de formagao humana e um projeto mais amplo de sociedade. Na verdade, é esse projeto utd- pico-revolucionario de uma nova sociedade que tem a pos- sibilidade de justificar e proporcionar uma unidade a con- cepg¢ao politécnica de educagao. Outro aspecto muito atacado pelo positivismo 6 a relagao entre conhecimento cientifico e posicionamento de classe. Para o adeptos de tal posicionamento o conhecimento no campo das ciéncias sociais deveria, e mais, precisaria es- tar livre de interpretagdes de classe. Entre os marxistas, estas posigdes também sao encontra- das, materializadas de diversas formas. A titulo de exemplificagao, pode-se lembrar a polémica oposigao en- tre o jovem e o velho Marx, colocada por determinados se- tores que reivindicam o pensamento marxista. Ao jovem Marx, corresponderiam posigées filosdficas, hegelianas, carentes de base cientifica. Assim, apenas no materialismo histérico — fruto da elaboragao cientifica do velho Marx — 6 que repousaria a chave da compreensao da realidade social e, portanto, de sua evolugao do capitalis- mo ao comunismo. Tudo muito seguro, frio, cientifico. O Marx cientista toma o lugar do Marx fildsofo. Os desejos, as utopias estariam de- finitivamente superados pelo sdlido caminho tragado pelo materialismo histérico (KONDER, 1992). £m outras palavras, diversos posicionamentos filosdficos, talvez cientes da relagao existente entre saber e poder, bus- cam identificar o saber, o conhecimento cientifico com um conhecimento da realidade asséptico, frio, objetivista e de- sapaixonado. A propria valorizagao da dimensAo infra-estrutural para a conceitualizagao da politecnia nao é fortuita. E uma opgao consciente e fundamental, apoiada nas construgdes metodoldgicas de Karl Marx, que, como se sabe, busca nas relagdes econémico-sociais (estruturais) as determinagdes “em ultima instancia” da sociedade, em geral, e da educa- ¢ao, em particular.‘ Em outras palavras, optar por uma priorizagao da andalise da base material da sociedade é uma opgao politica per- passada por uma “visdo social de mundo utdpica” (em opo- sig&o a uma visdo social de mundo ideoldgica) (LOWY, 1987, p. 12-13). Por outro lado, apds denso estudo sobre as tendéncias no mundo do trabalho, Vanilda Paiva (1989, p. 63) afirma a impossibilidade de se inferir uma “solugdo tedrica- deduti- va” para o problema da qualificagao, nem mesmo generali- Zagdes a partir de estudos empiricos, que registram movi- mentos contraditérios nas demandas qualificacionais. Essa impossibilidade de uma dedugao racional, neutra, ab- Solutamente dentro dos limites do desenvolvimento capita- lista, mostra seus limites. A dimensdo utdpica, talvez o as- Pecto menos divulgado da politecnia, revela, assim, toda a Sua forga: a concepgao de politecnia nao esta sendo —__ ‘ : : Ver, a tespeito de “fator” econdmico e “determinagao em tiltima instancia”, Kosik (1986) e Frigotto (1984). construida numa perspectiva funcional as mudangas nos processos de trabalho capitalista. Ao se dar tanta e necessaria énfase a dimensao infra-es- trutural, poder-se-ia chegar ao equivoco de naturalizar a dis- cussdo, de se entender que a formagao politécnica é 0 ca- minho natural demandado pelo sistema produtivo burgués. Ao contrario, a politecnia representa uma ruptura, a partir da continuidade, no projeto qualificacional e, fundamental- mente, no projeto de formagao humana posto pela socie- dade burguesa. Sendo os caminhos tao tortuosos, os resultados ainda bas- tante incipientes e de dificil generalizagao, como foi dito antes, a dimens&o utdpica mostra-se, na verdade, como aquela que tem a maior possibilidade de prover uma unida- de filosdfica entre as demais dimensées (infra-estrutural e pedagdgica) que estruturam o movimento de construgao da concepgao de educagao politécnica no Brasil. Como afirma Istvan Mészaros (1981, p. 261): a tarefa de transcender as relagdes sociais de produgao capita- listas, alienadas, deve ser concebida na estrutura global de uma estratégia educacional socialista. Esta ultima, porém, nao deve ser confundida com nenhuma forma de utopismo educacional. No entanto, essa superacao das relagées sociais de produ- cao capitalistas nao pode ser empreendida sem a atuagao consciente do sujeito. E o que nos reitera Konder (1988, p. 20): O presente nao engendra automaticamente o futuro através de uma dindmica fatal ou espontanea: o futuro precisa lutar p2r@ nascer [...}, precisa enfrentar criticamente o presente. A concepgao de educagao politécnica vem-se construindo enquanto um horizonte, assumida na condigaéo de utopia ~ sem se tornar um “utopismo educacional”. 74 Com o fim dos estados operarios burocratizados — 0 cha- mado socialismo real — tornou-se bastante dificil, para a maioria dos autores, a defesa ideoldgica de uma educagao de carater notoriamente socialista, como é 0 caso da con- cep¢ao de formacao politécnica. Ja em A produtividade da escola improdutiva (FRIGOTTO, 1984, p. 186), tomada aqui nessa pesquisa enquanto obra que inaugura o debate da politecnia, Gaudéncio Frigotto assume e aponta a vinculagao entre aquela concepg¢éio edu- cacional e uma determinada opgao politica: a andlise da escola que se articula com os interesses da classe que tem seu trabalho alienado, expropriado, nao passa pela se- paracéo entre escola e trabalho, mas se situa na apreensdo da “escola do trabalho", como nos é posta dentro da evolugdio da concepgao marxista de escola politécnica Para Frigotto, a escola que tem a possibilidade de dar res- posta aos interesses histdricos da classe trabalhadora 6 aquela ligada a visao social de mundo marxista, ou seja, a escola politécnica. Como ja foi dito no item Dimensdo infra-estrutural, a con- cepgao de educagao politécnica, principaimente através da- quela dimensdo, define-se também pela luta de reconstru- ¢a0 da liberdade no trabalho, na medida em que busca re- compor a identificagao do trabalhador ao produto de seu trabalho, pela mediag&o da compreensao totalizante e pela atuagao mais ampla nos processos de trabalho. Por outro lado, a politecnia também esta intimamente rela- Clonada a luta pela ampliagao do mundo da liberdade. Pois, Para Gaudéncio Frigotto (1991, p. 143), na medida em que um patamar educacional mais elevado e intimamente rela- Clonado as novas demandas tecnoldgicas se generalizar, Certamente toe 75 interferira de forma mais radical na luta dos trabalhadores pela cidadania, e da democracia efetiva, nas relagoes de trabalho e no conjunto da sociedade. Lucilia Machado (1992, p. 21-22) deixa bastante claro o carater de visao social de mundo utdpica, que insere a edu- cagao politécnica num movimento mais amplo, de continui- dade e ruptura das “potencialidades das forgas produtivas”: A formagao politécnica pressupée a plena expansdo do indivi- duo humano e se insere dentro de um projeto de desenvolvi- mento social de ampliagdo dos processos de socializagao, nZio se restringindo ao imediatismo do mercado de trabalho. Ela guar- da relagao com as potencialidades libertadoras do desenvolvi- mento das forgas produtivas, assim como a negacdo da nega- Gao destas potencialidades pelo capitalismo. Machado afirma a impossibilidade de se naturalizar a cons- trug&o da politecnia, ou seja, a inviabilidade de se trabalhar unicamente a diregdo da continuidade dos novos proces- sos de trabalho, desencadeados principalmente a partir da atual revolugao cientifica e tecnoldgica: A politecnia so tem sentido se a incluimos dentro deste contexto, pois se 0 capital desperta para a vida todos os poderes da cién- cia, da natureza, da cooperagao e do intercambio, ele o faz su- bordinando o trabalho, dispensando-o cada vez mais através da adogao cada vez maior de trabalho objetivado, sem que se crie simultaneamente uma sociedade superior e de libertagao do homem em toda sua plenitude (MACHADO, 1992, p. 22). A proposta de formagao politécnica que vem sendo construida no Brasil tenta captar uma “politecnia que vem da fabrica” sem, no entanto, desprezar a face excludente das relagdes de produgao capitalistas. Na verdade, falar em politecnia pressupde a compreensdo de que as rela- g6es capitalistas de produgao sao fundamentalmente excludentes. A contribuigao de Acacia Kuenzer, no que diz respeito a dimensao utdpica da concepgao de educagao politécnica, tem o mérito de explicitar a necessidade de apropriagao do saber socialmente produzido. Assim, Kuenzer (1988, p. 98) explicita um dos objetivos gerais da politecnia: apesar da simplificago do processo produtivo pelo avango cien- tifico e tecnolégico, o trabalhador aponta a aquisi¢ao do contet- do do trabatho como fundamental para a construcdo de seu pro- jeto hegeménico. Assim, como a autora constrdi suas contribuigdes a partir de uma problematica que incorpora o conceito de luta hegemonica e as demandas concretas (e contraditérias) dos trabalhadores, esta tem a coragem de pér a nu a relagao entre saber e poder no “chao de fabrica”: Nao € por acaso [...] que os operarios que dominam o seu pré- prio trabalho tém maior interferéncia nas decisdes e maior poder de negocia¢ao nas questdes técnicas e politicas: nao por coinci- déncia, também sao estes os profissionais mais temidos pelo patronato (KUENZER, 1985, p. 193). Embora esta citagao nao seja parte integrante de um dis- curso especifico sobre a educagao politécnica, deve-se considera-la articulada a essa perspectiva educacional. Tal afirmagao se justifica na medida em que Acacia Kuenzer coloca essa interpretagao no interior de um questionamento que busca dar conta de uma escola vinculada aos interes- Ses da classe trabalhadora — que em sua linguagem tem como conteudo a politecnia (KUENZER, 1988, p. 137-144). Entre os riscos de se assumir a concep¢ao politécnica de @ducacéo como utopia, encontra-se o de entendé-la como Proposta futuristica, inatingivel e absolutamente descone- Xa do momento histdrico atual. Nao 6 essa a acepcdo de utopia incorporada pelos autores que discutem a politecnia. Nesse ponto, é bastante elucidativa a citagao de Gaudéncio Frigotto (1985, p. 175): A escola politécnica [...] ao mesmo tempo que € posta como a escola da sociedade futura [...] indica a diregao de luta no interior da sociedade burguesa, por uma escola que atenda aos interes- ses da classe trabalhadora A citagao deixa claro dois pontos: a) aponta a necessidade de se pensar simultaneamente a escola politécnica enquanto futuro e presente, enquanto mediagao da escola que se tem e da futura escola; e b) a passagem anterior qualifica essa “sociedade futura”, ou seja, a natureza dessa utopia. Assim, a proposta de escola politécnica, para Gaudéncio Frigotto, esta intimamente ligada a uma determinada visdo social de mundo, aquela que deseja e luta por uma socie- dade onde o “trabalho se tenha convertido nao s6 em meio de vida, mas na primeira necessidade da vida”. O desenvolvimento da educa¢ao politécnica esta intimamen- te ligado ao futuro do capitalismo. Para Lucilia Machado (1992, p. 22), se a educacgao politécnica esta no horizonte historico, o proprio capital enquanto uma con- tradigao em processo € que dira, bem como a capacidade de luta dos trabalhadores pela sua emancipacao. A educagao politécnica estaria ou nao adiada para quando for instaurada definitivamente uma sociedade pds-capita- lista? A concepgao de educagdo politécnica pressupde uma vi- s&o social de mundo radicalmente distinta daquela que € colocada de forma hegeménica nas sociedades existentes. Nesse sentido, defender a politecnia é caminhar na contra- mao da conjuntura. 78 Mas isso nao quer dizer que a concepgao politécnica de educagao nao possa ser construida. S6 através de uma visao utdpico-classista 6 que se podera compreender a politecnia—e ao mesmo tempo apostar nela historicamente — enquanto um horizonte educacional, um método que busca redirecionar as praticas educativas (es- colares ou nao). Somente através dessa aposta histdérica 6 que se podera apreender o desejo de Marx, expresso em suas Instrugées aos delegados da AIT, de 1868 (MARX, ENGELS, 1983, p. 60-61): Esta combinagao de trabalho produtivo pago com a educagao intelectual, os exercicios corporais e a formagao politécnica ele- varao a classe operaria acima dos niveis das classes burguesa e aristocratica. Retirar da concepgao politécnica de educacao seu claro sentido classista (de classe trabalhadora) 6 destrui-lo, transforma-lo em outro conceito. E entender quea polivaléncia demandada pelo sistema produtivo é igual a esse horizonte educacional que vem sendo construido co- letivamente no Brasil. Como afirma Frigotto (1991, p. 270): a concepgao de ensino e formacao politécnica é, antes de tudo, uma critica radical ao projeto excludente, elitista e diferenciador do ensino e da formacao, desenvolvido na sociedade capitalista. Cada vez mais torna-se clara a necessidade de se encarar 8 politecnia enquanto um método de se pensar a formagao humana. Mas nao um método neutro e objetivo, nao uma decorréncia légico-formal de tendéncias historicas, embora Necessariamente apoiado nessas, mas um método que é Sobretudo uma aposta, um desejo. Um desejo no campo €ducacional par do desejo mais amplo de superagao total ' exploracao do homem pelo homem, onde o desenvolvi- 79 mento de um é condig&o e possibilidade do desenvolvimento de toda a humanidade. Parafraseando Michael Léwy (1987, p. 201), a compreen- sao de que o desenvolvimento das relagdes de produgao traz a possibilidade de qualificacao nova, e que essa possi- bilidade pode e deve ser potencializada pela concepgao po- litécnica de educagao, contém um nucleo irredutivel de fé, ou mais precisamente, de aposta historica. Em outras pala- vras, a dimensao infra-estrutural sé pode ser compreendi- da se vista sob 0 prisma da dimensdo utdépica, e ambas sé so plenamente admissiveis quando ja feita a op¢ao pela concepgao de educagao politécnica. Dimensao pedagogica Ou a politecnia vem da fabrica, vem das relagdes sociais ou ela nao vird da escola. Isto nao quer dizer que a escola nao tenha fungao. A fungdo da escola 6, exatamente, captar de onde esta vindo essa politecnia Miguel Arroyo Alguns pesquisadores em educagao sao criticados, pelos seus pares, por buscarem elaborar teorias educacionais a partir de uma viséo muito presa a instituigao escolar (escolacentrismo). Uma das caracteristicas dessa linha de trabalho 6 0 dever ser, a proposigao de modelos de escola erigidos a partir do que essa deveria ser, caso nao existisse uma série de mazelas impostas pelo sistema, pela condi- cao de pais terceiromundista, pela ma condugdo das politi- cas publicas, pelas deficiéncias na formagao dos professo- res, ou pelas caréncias generalizadas dos alunos etc. Em outras palavras, criticam-se aqueles que partem de abs- tragdes, de idealizagées da realidade para propor modelos a-historicos de instituigao escolar. Assim sendo, talvez fosse mais indicado, mais seguro, que os educadores parassem de propor alternativas, diregdes para (re)organizar o sistema educacional brasileiro. Com certeza seria mais seguro, menos arriscado teérica e politicamente, abster-se de teorizar sobre o cotidiano esco- lar. Certamente seria mais facil deixar a escola ptiblica en- tregue @ sua prdpria sorte, e as reformulacdes impostas pelas instancias técnico-burocraticas das secretarias de educacao e do MEC. Seria mais facil deixar os educadores, com o seu escolacentrismo, pensarem e fazerem a educa- ¢ao escolar e, sd entao, efetivar a critica demolidora atra- vés da ciéncia da educagao. A primeira posi¢ao, onipotente, atribui a si mesma o poder de rearranjar toda a educagao a partir de um dever ser. A segunda linha de pensamento propée a neutralidade e a frieza de um fisico social, como diria Augusto Comte, que observa as reagées do organismo social, cabendo ao cien- tista apenas a tarefa de coligir os dados do fendmeno. A maioria dos pesquisadores que aborda a tematica da Politecnia busca uma terceira via. Recusa-se a abster-se do debate da educagao brasileira que se da a partir do dia- a-dia das pré-escolas, das escolas de primeiro e segundo Qraus, das universidades. No entanto, também recusa-se a &rigir castelos a partir de sua propria imaginagao. Baudéncio Frigotto centra suas criticas naquelas perspec- Vas que buscam o dever ser da escola, fundadas em vi- Ses normativas e instrumentalistas das praticas educativas. tite ss 81 No entanto, nao propde como alternativa a espera de uma nova escola que vird com o futuro. Pois, como o autor afir- mou, “é possivel pensar-se formas de estruturagao e uma nova funcdo para a propria escola” (FRIGOTTO, 1991, p. 255). E necessario, no entanto, admitir as dificuldades de produ- zir estratégias educativas que déem conta de produzir o novo do interior do velho. Para Frigotto (1991, p. 255), o enigma consiste, portanto, em como instaurar, concretamente, uma pratica educativa que se coloque na dimensao da “omnilateralidade” do homem trabalha- dor, a qual requer uma formagao politécnica, no interior de relagdes sociais de trabalho que demandam a polivaléncia do trabalhador, sob uma ldgica da unilateralidade do homem? Para Frigotto, o caminho de deslinde desse enigma é aprofundar a perspectiva historico-analitica, buscando com- preender as forgas sociais que estruturam as praticas educativas. A perspectiva apontada pelo pesquisador é baseada na li- nha adotada por Karl Marx, que pode ser condensada na seguinte citagao, extraida do Prefacio a critica da economia politica (1983, p. 25): a humanidade s6 levanta os problemas que é capaz de resolver e assim, numa observacéo mais atenta, descobrir-se-4 que 0 préprio problema s6 surgiu quando as condigdes materiais para o resolvé-lo ja existiam ou estavam, pelo menos, em vias de apa- recer. Em outras palavras, 0 que se busca é captar na realidade historica as tendéncias que ja se manifestam em germe, para, entao, propor alternativas nessa continuidade. ssesaapremeco A dimenso pedagdégica da concepcao de educagao poli- técnica busca revelar aqueles aspectos que possam contri- buir na mediacao da perspectiva mais ampla de politecnia — perpassando toda a sociedade e, em particular, o mundo do trabalho — e a praxis escolar. Essa mediagao pode ser visiumbrada, por exemplo, através dos métodos de traba- lho didatico-pedagdgicos, a organizagao escolar, estratégi- as que busquem construir relagdes concretas entre 0 chao- da-escola e 0 chdo-da-fabrica. Essa dimensao explicita, portanto, uma perspectiva da politecnia, que da énfase a instituigao escolar. De certa forma, a dimensao pedagégica é 0 estudrio onde desaguam as analises agrupadas nas dimensao infra-es- trutural e utopica, apresentadas anteriormente. Assim, pode- se dizer que a dimensao pedagdgica busca revelar os ca- minhos pelo quais a concepgao de educagao politécnica busca sua organicidade no interior da pratica educacional escolar. Lidar com a face mais cotidiana de uma concep¢ao educa- cional é, sem dtvida, uma arida tarefa pratica e tedrica. Inu- meros sao os questionamentos, as duvidas que revelam o enorme grau de dificuldade da tarefa, e justamente por isso também péem em relevo a importancia de se colocar em movimento praticas educativas que se alicercem na con- cepgao de educagao politécnica e simultaneamente contri- buam para aprofunda-la. Embora com menor pretensdo de descer a aspectos mais Operacionalizaveis da pratica pedagdgica cotidiana, Gaudéncio Frigotto da diversas e importantes pistas para a Composigao da dimensdo pedagdgica da concep¢ao de €ducagao politécnica. 83 Frigotto (1985, p.189), questionando-se acerca da operacionalizagao de uma escola que esteja aliada aos in- teresses histéricos da classe trabalhadora, aponta algumas direges concretas para essa escola. Afirma o autor: Trata-se de uma escola cujo contetido se elabora tendo como. ponto de partida a propria experiéncia e realidade da classe tra- balhadora. Esse ponto de partida nao representa para Frigotto uma reificagao do senso comum sobre essa mesma realidade, nem tampouco comporta uma visao idealista que pretende realizar o ideal socialista de uniao entre o trabalho produti- vo e 0 ensino, onde aquele seja sindnimo de alienagao de vida e nao de primeira necessidade de vida. Para Gaudéncio Frigotto, apoiado nas elaboragées de An- tonio Gramsci, a escola pode e deve ser um /ocus de luta de classes, de disputa de vis6es de mundo. No entanto, 0 espaco escolar jamais devera ser idealizado, pois, embora importante, nao é o /ocus fundamental da luta de classes. A importancia da escola pode ser ampliada se cada vez mais o mundo do trabalho for trazido para dentro da institui- cao escolar sob a perspectiva proletaria, com o objetivo de apreendé-lo em todas as suas dimens6des e com isso desmistificando-o. A partir dessa realidade concreta (desnaturalizada, desmistificada) onde participa o filho do trabalhador, € possivel tomar as relagdes de trabalho historicamente circuns- tanciadas e as formas de vida que se produzem a partir destas relagdes como o material substantivo em cima do qual se ensl- ne, de forma técnica adequada, matematica, portugués, historia etc (FRIGOTTO, 1985). Com isso, Frigotto acredita que se estara introduzindo metodologicamente a dimensao ativa (nao-ativista) no pro- cesso de ensino-aprendizagem, ajudando a construir o nexo instrugao-educa¢ao. Consciente das dificuldades de realizar tal processo educa- cional, o autor aponta também a necessidade de investigar mais profundamente a evolugao da organiza¢ao do proces- so de trabalho, das relacdes de produgao da vida material. Nesse ponto se estabelece, se clarifica a conexao entre a dimensAo infra-estrutural e a dimensao pedagégica da con- cepgao de educa¢ao politécnica, mediadas pela dimensao utdpica. A dimensao pedagégica demanda a dimensaAo infra- estrutural seus fundamentos, os eixos que devem estruturar os processos de organizagao e construgao do saber escolar. Isto é, torna-se cada vez mais claro que € a partir dos diver- sos processos de trabalho, mediados por uma certa visao social de mundo, que se podera construir uma escola que tenha como perspectiva a politecnia. Outros autores, consonantes com suas problematicas inici- ais, buscam desenvolver mais detidamente a dimensao pedagégica da politecnia. Dentre esses pode-se destacar as contribuigdes de Dermeval Saviani, consubstanciadas fundamentalmente em Sobre a concepe¢ao de politecnia e Perspectivas de expansao e qualidade para o ensino de 2° grau (1989, 1988). Saviani delimita uma importantissima questao, que deter- minara, de certa forma, todo o debate explicito nessa di- Mmens&o: 0 ensino médio enquanto /ocus fundamental da educagao politécnica. Para esse autor, caberia ao segundo grau a tarefa de escla- recer como o saber acumulado pela humanidade converte- se em forca produtiva através do processo de trabalho (SAVIANI, 1989, p. 2), explicitando assim a relagao entre as dimens6es infra-estrutural e pedagdégica. Essa explicitagao seria operacionalizada através da concepgao de escola politécnica. Surge af a primeira questao: a concepgado de educacao po- litécnica esta restrita a um determinaco nivel do sistema de ensino, no caso o segundo grau? Uma das caracteristicas fundamentais da educagao que tenha como horizonte a politecnia 6 romper com a ldgica que estrutura os sistemas duais de ensino. Para os traba- Ihadores, instrugAo profissional — propria para a execugao — enquanto que, para as classes dominantes, um ensino cientifico - adequado & concepgao. Para Saviani (1989, p. 15), O que a idéia de politecnia tenta introduzir é a compreensao desse fenémeno, a captagdo da contradigao que marca a sociedade capitalista. Contradigao entre concepgaéo e execugao, entre trabalho manual e trabalho intelectual, consubstanciada na dualidade do sistema educacional. Assim, Saviani entende que a es- cola politécnica é necessariamente uma escola unica. O autor nao pretende que a escola supere contradic¢des estruturais da sociedade burguesa, pretende sim que a politecnia aponte a diregao dessa superagao a partir da re- alidade do trabalho. Saviani propde que a escola nao en- dosse essa separacdo posta na sociedade, que nao tenha como objetivo formar um educando para o trabalho manual e outro para o trabalho mental. 86 Saviani (1989, p. 17) entende, portanto, que a escola poli- técnica nao devera adestrar o trabalhador para a execugao de tarefa especifica, mas devera proporcionar um desenvolvimento multilateral, um desenvolvimento que abar- ca todos os angulos da pratica produtiva moderna [...] Dado que a produgaio moderna se baseia na Ciéncia, ha que dominar os principios cientificos sobre os quais se funda a organizagao do trabalho moderno. O pesquisador reconhece a real ciséo entre execucao e concep¢ao; no entanto, propde que a escola busque con- cretamente formas de articulagdo entre o trabalho manual e o intelectual. Para essa articulagao, Saviani propde (1989, p.18) a instauragao de oficinas, de “processo de trabalho real”; e justifica: Se o ensino de segundo grau se constitui sobre esta base, e se esses principios [cientificos] sdo absorvidos, assimilados, ¢ se 0 educando que passa por essa formacgao adquire essa compre- ensdo nao apenas tedrica, mas também pratica do modo como a Ciéncia é produzida, e do modo como a Ciéncia se incorpora a producdo dos bens, ele adquire a compreensao de como a soci- edade esta constituida, qual a natureza do trabalho nessa socie- dade e, portanto, qual o sentido das diferentes especialidades em que se divide 0 trabalho moderno. Embora longa, a passagem foi transcrita porque encerra importantes questdes sobre a politecnia na escola e tam- bém sobre a perspectiva da constituigao da concepgao de politecnia enquanto um método de formagao humana. Primeiramente o autor reafirma a necessidade de se aliar teoria e pratica, de buscar a explicitagao de como a ciéncia vem-se convertendo de poténcia espiritual em poténcia material. Alem dessa preocupacao, pode-se destacar tam- bém a importancia dada a compreensao global da estruturagdo da sociedade e em especial a organizacao do trabalho moderno. 87 Sem duvida, os aportes apresentados por Saviani sao fun- damentais para elaborar a concepgao de educagao politéc- nica. A busca da compreensao dos fundamentos cientifi- cos que estao na base dos modernos processos de traba- lho é uma diregdo partilhada por todos os autores que tra- tam da quest4o. Assim como é unanime a busca de uma compreens&o mais global dos processos nos quais 0 traba- Ihador esta inserido. Essas preocupacées podem ser grupadas sob a perspectivas de luta pela ampliagao da li- berdade no trabalho. Por outro lado, a via proposta pelo professor Saviani, para operacionalizagao desses principios na escola, é proble- matica se tomada na idéia de implantagao de oficinas nas escolas de segundo grau. Pois, como afirmou Gaudéncio Frigotto, se a busca da uniao entre trabalho manual e trabalho intelectual, e a identifica- cao das bases cientificas e técnicas dos processos produti- vos é uma perspectiva fecunda para a politecnia, “desde ja, tal perspectiva nao pode ser esmaecida mediante simula- ¢des anacrénicas de trabalho na escola” (FRIGOTTO, 1991, p. 271). Ou seja: se, de um lado, concordam os autores com a im- portancia fundamental de identificagao e assimilagao das bases cientificas dos modernos processos de trabalho, de outro discordam da forma pela qual isso possa ser realizado. Porém, tomando-se a proposta de Saviani no aspecto mais geral, ou seja, a utilizagao de “processo de trabalho real” para objetivar a proposta, ai entao havera concordancia. Pois, para Frigotto (1991, p. 272), as referidas bases cienti- ficas e técnicas nao se adquirem na tradigao academicista, genérica e desinte- ressada, mas no coragdo da ciéncia e da tecnologia mais avan- cada. A direcao entao seria a de incorporar aos processos educativos escolares — a partir do “processo de trabalho real” — a identificagao e assimilagao, por parte dos educandos, das “bases cientificas e técnicas que susten- tam os processos produtivos”. Nessa formulagao sintética, pode-se vislumbrar claramen- te a incorporagao da dimensao infra-estrutural 4 dimensao pedagdgica. E através dessa fecunda simbiose que os pes- quisadores vém buscando propor estratégias pedagdgicas concretas na diregao da concep¢ao de educagao politécnica. Por outro lado, a formulacao traz uma segunda questao que pode ser incorporada a primeira, ja enunciada mas ainda nao respondida: é possivel a realizagao plena dessa pers- pectiva numa escola de segundo grau, ou mesmo no ambi- to do sistema escolar como um todo? Utilizando-se da oposigao entre uma formacao polivalente € a politécnica, Lucilia Machado aborda a questao das mu- dangas em ambito escolar, endossando as diregdes funda- mentais apontadas anteriormente. Para a pesquisadora, embora os dois tipos de formacao (polivalente e politécni- ca) dependam da formagao escolar basica, somente a politecnia “pressupde uma total reestruturagao do ensino basico e da formacgao basica nos cursos que Profissionalizam” (MACHADO, 1992, p. 21-20). Para Machado, somente a politecnia demanda “uma gran- de revolugdo na escola”, pois na verdade o “trabalhador Polivalente se faz no trabalho”, enquanto a formagao poli- técnica pressupée a compreensio tedrico-pratica das bases das ciéncias contempo- raneas, principalmente seus conceitos, principios e leis funda- mentais e relativamente estaveis; dos principios tecnoldgicos que expressam o uso da ciéncia no emprego de materiais e métodos de trabalho e da gestao social e suas formas nas diversas esfe- ras da vida humana. Nesta passagem, Lucilia Machado incorpora uma nova pers- pectiva as diregdes ja apontadas: o “saber gestionario”. Essa perspectiva pode ser melhor apreendida na passagem de um texto pouco divulgado ~ Em defesa da politecnia — onde defende uma formagao que abarque no s6 conhecimentos tedricos e aplicados, mas também o.sa- ber gerencial, para permitir 0 desenvolvimento da capacidade de intervengao de cada um na reorganizagao da sociedade bra- sileira (MACHADO, 1990, p. 58). Pode-se notar no excerto a preocupagao que se coaduna perfeitamente com aquelas perspectivas agrupadas sob a denominagao de dimensao utdpica. Ou seja, a autora ex- pressa a preocupagado de que o educando também seja capaz de intervir mais na organizacao da sociedade, assim como contribuir para uma visdo mais organica (do ponto de vista gestionario) do proprio processo de trabalho. A grande énfase dada aos processos de trabalho, enquan- to principios norteadores da agao pedagogica, significa o abandono da chamada formagao geral? A busca da ligacao entre trabalho manual e intelectual (apontada por Saviani) estaria sendo destruida pela ultravalorizagao da apreensao dos saberes e conhecimentos embutidos nos processos de trabalho? Nao se estaria descurando a importancia das dis- ciplinas que tradicionalmente compdem o curriculo esco- lar? Ou a educagao politécnica seria apenas o resultado da férmula “formagao geral + formacao profissional”? Por ou- tro lado: 6 possivel pensar a politecnia sem uma redefinigao da formagao geral? Para Lucilia Machado (1990, p. 60) a concepgao politécni- ca de educagao pressupée também a redefinicao da chamada cultura geral, academicista, genérica e alheia aos processos fundamentais da vida social [...] Nao se trata de aumentar mecanicamente o volu- me dos conhecimentos, mas redefinir os métodos da aborda- gem, os quais demandam que 0 processo académico inteiro es- teja ordenado de forma apropriada. Dermeval Saviani (1989), abordando de maneira ainda mais especifica,® parece concordar com a diregéo apontada por Machado: Se tomo 0 trabalho como referéncia, e portanto a questao é en- tender como o trabalho esta organizado hoje, a intervengao da Historia, da Geografia, desses diferentes elementos considera- dos necessarios, teria que se dar enquanto aprofundamento da compreensao do objeto. [...] esses profissionais (do ensino] teri- am que se imbuir do sentido da politecnia, é pensar globalmente a questao do trabalho e explicar entao, historicamente, geografi- camente, e assim por diante, este mesmo fenémeno (SAVIANI, 1989, p. 20-21). A concepgao politécnica de educagao, da maneira como vem sendo construida no Brasil, de fato incorpora a educa- ¢ao geral, como alias foi proposta por Marx nas /nstrucées aos delegados da AIT. No entanto, a educagao geral deve ser reordenada a partir do objetivo mais geral de compreensdo totalizante do fené- Meno do trabalho. A politecnia se propée a ultrapassar tan- to a profissionalizagao estreita quanto a educagao geral —__- *J4 que es Satide texto é uma palestra do corpo docente da Escola Politécnica de 91 baseada nas areas que tradicionalmente compdem o saber escolar que se “explicam em si mesmas, através de suas prdprias estruturas logicas e supostamente dotadas de au- tonomia’”, de tal maneira que a matematica é ensinada pela matematica, a fisica pela fisica e, portanto, quando sao alvo de discuss&o com os professores, representam contetidos “inegociaveis” (KUENZER, 1988, p. 139 ; 1991, p. 120). Outro aspecto que cabe ser ressaltado é a otica sob a qual a tecnologia é observada. Os autores insistem que a énfa- se dada ao estudo dos processos de trabalho, a apreensao das bases cientificas e tecnicas das modernas tecnologias nao reduz a formagao com base nas chamadas ciéncias naturais e/ou exatas (fisica, quimica, matematica, engenha- ria etc.), pois a tecnologia representaria uma ligacao entre as duas grandes areas do saber cientifico: humano-sociais enaturais. A tecnologia, para Lucilia Machado (1991, p. 55), expressa a relagao do homem com a natureza e a sua producgao, enquanto um ser que se relaciona com os seus instrumentos, com suas ferramentas, com outros seres humanos na relacao de trabalho. Com certeza, é de grande importancia a dimensao infra- estrutural da concepgao de educagAo politécnica. No en- tanto, nao se descura nunca a importancia da instancia es- colar. Em outras palavras, os autores que abordam a tematica da politecnia nao defendem a desescolarizacao, nao buscam dissolver o papel da escola nas relagdes de trabalho. O que se pretende é partir do fendmeno do traba- Iho moderno (dimens&o infra-estrutural) para a reestruturacao das praticas pedagdgicas (dimensao peda- gdgica), mediada por uma perspectiva mais ampla de trans- formagao global da sociedade (dimensdo utdpica). Alias, a polémica discussao esteve presente nos debates pedagégicos ocorridos na nascente Uniao Soviética por ocasiao da construgao de uma concep¢ao que embasasse o sistema de ensino soviético. Segundo Lucilia Machado (1991, p. 153 e 168), existiam posic¢des que defendiam com excessiva veeméncia a centralidade do trabalho produtivo para a estruturagao do trabalho escolar, chegando até a proclamacao da morte da escola, diluindo a pedagogia na politica. Para Machado, essa perspectiva seria a transposigao mecanica da tese do es- vaziamento progressivo do papel do Estado no socialismo para o também esvaziamento da instituigao escolar. Voltando ao debate brasileiro, os autores entendem que, se, por um lado, é impossivel pensar em uma politecnia restrita a escola, por outro, é impensavel atribuir Unica e exclusivamente ao mundo do trabalho a tarefa de propiciar uma visao pratica e teorica da totalidade das relagdes que se desenvolvem em seu interior, sejam elas relacdes pro- dutivas, gestionarias, historicas e principalmente cognitivas. Diante dos aportes apresentados anteriormente, mais uma vez, pode-se fazer um questionamento: essas tarefas que a politecnia se coloca a indicaria enquanto uma concepcao restrita ao ensino médio? Mais: a formac¢ao politécnica inviabiliza a profissionalizagao stricto sensu? A educagao politécnica se opée a formagao de técnicos de nivel médio? Nesse ponto, a discussdo ainda esta imprecisa, apresen- tando pontos de tensao. Comecando pela obra de Gaudéncio Frigotto, que abriu o debate da politecnia, A produtividade da escola improduti- va, pode-se verificar que o autor nao explicita, em nenhum “93 momento, qual seria o nivel de ensino ao qual a proposta de politecnia estaria vinculada. Frigotto busca orientagoes bastante gerais acerca de uma concep¢ao de escola que articule os interesses historicos da classe trabalhadora. Essa perspectiva é mantida intacta no decorrer de todas as suas publicagdes, onde nao se encontra nenhuma afirma- Gao (explicita ou mesmo implicita) de que a concep¢ao de formagao politécnica esteja vinculada ao segundo grau. Ao contrario, Frigotto - Tecnologia, relagdes sociais e educa- cdo ~ acredita: para que a perspectiva avance, é necessa- rio, antes de tudo, entendé-la para construi-la, nao apenas na escola, mas no con- junto das relagdes educativas da sociedade, sem o que na esco- fa também nao ocorrerd (FRIGOTTO, 1991, p. 143). Ja para Dermeval Saviani, a concep¢ao de politecnia é uma perspectiva especifica do segundo grau, sendo a forma pela qual o principio mais geral de uniao entre trabalho manual e intelectual busca sua organicidade na escola. Para esse autor, a escola politécnica representa a busca de supera- ¢ao da dualidade presente no ensino médio entre a educa- ¢ao geral e a formacao profissional. O trabalho seria, para Saviani, 0 principio educativo e organizativo do sistema de ensino, que paulatinamente se explicita, indo do grau menos explicito — o ensino funda- mental — até seu apice de explicitagao — o ensino superior. Caberia ao ultimo estagio realizar a necessdria profissionalizagao, enquanto ao primeiro caberia a prepa- racgao para a cidadania, abstendo-se de proporcionar uma profissionalizagao. No nivel intermedidrio do sistema de ensino é que caberia 0 inicio dessa explicitagao e também do contato com a profissionalizagao, que so se daria plena- mente a partir dai. Assim, pode-se depreender da leitura de Sobre a concep- gao de politecnia, de Saviani, que a habilitagao profissional (em nivel de segundo grau) é uma “restrig¢ao de ordem mais conjuntural”, ja que a politecnia — enquanto concepgao — nao demandaria essa habilitagaéo especifica. A politecnia caberia sim “garantir aqueles fundamentos que sao a base para qualquer tipo de fungao especifica” (SAVIANI, 1989, p. 19 e 40). Essa perspectiva € assumida, com nuances, por Acacia Kuenzer (1988, p. 139) e Lucilia Machado (1991, p. 60-61). Para essas autoras, seria necessaria (dado o alto grau de diferenciagaéo das atividades de produgdo da existéncia humana) a identificagao de grandes areas de atividade eco- némica (tais como industria, construgao civil, educagao, saude, administragao etc.), onde seria possivel manter a “orientagao politécnica”. A questao, portanto, é: a politecnia pressupde a nao-espe- cializagao? E assim sendo, esta restrita ao nivel médio, ja que esse constitui uma media¢ao entre a nao-profissionali- Zagao (primeiro grau) e a profissionalizagao stricto sensu (terceiro grau)? Por tudo que foi apresentado nessa e nas dimens6es ante- tiores (infra-estrutural e utépica), essa orientacao parece contraditéria com os aportes estabelecidos pelo conjunto dos autores, cujos textos foram aqui analisados. Embora seja forgoso admitir a necessaria progressiva explicitacao do trabalho ao longo dos diversos niveis de e€nsino, nao ha por que repudiar que esse movimento pos- Sa ser realizado mediante uma “orientagdo politécnica”. Dadas as enormes tarefas que a educagao politécnica se Oe, é lucido questionar se seus objetivos nao extrapolam e muito um determinado nivel de ensino ou mesmo o prdéprio sistema escolar.’ Alias, como afirmou Kuenzer (1991, p. 118): Temos uma nova dialética no interior do processo educativo que reunifica teoria e pratica, que reunifica ciéncia e tecnologia... nao s6 da escola de 2° Grau; da escola de 12, da escola de 2°, da universidade, da pos-graduagao. Assim como formar técnicos nao é uma demanda especifi- ca da concepg¢ao de politecnia, pode-se também concluir que evitar uma formagao mais especifica nao é necessaria- mente antag6nico a concepcao politécnica de educacao. Mais organico seria propor que a concep¢ao de formagao politécnica fosse encarada enquanto perspectiva geral, de orientagao de todo o sistema educacional brasileiro (da es- cola fundamental a pds-graduacao), ja que as dimensdes e caracteristicas da politecnia aqui desenvolvidas nao se mostraram intrinsecamente contraditérias a quaisquer dos trés niveis educacionais. A dimensao pedagdgica buscou revelar alguns dos aspec- tos do movimento de construgao da concepgao politécnica de educagao, mais proximos a questao escolar. Pois, em- bora a politecnia venha sendo construida numa perspecti- va mais geral, os autores nado fogem ao debate mais imedi- ato a estruturacao da escola politécnica, isto é, de uma edu- cagao escolar que tenha por horizonte a concepgao de politecnia. Se as propostas aqui apresentadas expressam a captacao de tendéncias presentes no movimento histdri- co ou recaem no velho dever ser, so a praxis pedagdgica e a propria historia darao respostas mais conclusivas. ° Para uma leitura semelhante (SANFELICE, 1941 : ARROYO, 1988 + FRIGOTTO, 1991). A EDUC: CAO POLITECNICA NO BRASIL: concepc¢ao em construgao ..Minhas opiniées sobre o trabalho estao domina- das pela nostalgia de uma época que ainda nao existe, na qual, para o trabalhador, a satisfagdo do oficio é originada do dominio consciente e propo- sital do poder criativo da engenharia, época em que todos estarao em condi¢ées de beneticiar-se de algum modo desta combina¢ao. Harry Braverman O presente capitulo buscara dar conta de trés questées. Primeiramente destacara a importancia da construgao do conceito de politecnia em oposigao a repeticao vazia de ter- mos-chave. Depois tentara apontar elementos para uma conceitua¢ao de politecnia — através da sintese das dimen- sées infra-estrutural, ut6pica e pedagdgica, construidas no capitulo anterior. Por ultimo, sera apontado um caminho Possivel para o aprofundamento da concepg¢ao politécnica: 0 estudo dos processos de trabalho. Atualmente existe em circulagdo, no meio educacional como um todo, e nao s6 no espago universitario, um razoavel nu- mero de publicagdes que abordam a educagao politécnica. Diversas dissertagdes de mestrado e experiéncias pedagé- gicas apdiam-se na concep¢ao de politecnia. Assim, a pa- lavra politecnia esta-se tornando moeda corrente entre os educadores e, até mesmo, no interior da burocracia educa- cional. No entanto, a concep¢ao de politecnia esta sendo encara- da, por alguns, enquanto um conceito pronto e acabado, que teria sido construido por Marx, cabendo hoje sua popularizacdo e implementagao. Esses parecem acreditar na existéncia de um padrao de politecnia arquivado em al- gum banco de patentes educacionais. No entanto, recorrentes referéncias 4s mesmas palavras, por si so, nao garantem a unidade de pensamento, de pro- postas, de concep¢des educacionais. Com efeito, apesar de todas as referéncias ao pensamento marxiano e marxista, 4s perspectivas utdopico-revoluciona- rias, aos desafios escolares presentes nas elaboragdes contemporaneas aqui estudadas, alguns estudiosos insis- tem em borrar as diferengas fundamentais entre a concep- gao de educa¢ao politécnica e outras orientagdes de for- magao humana. Tal 6 a postura adotada, por exemplo, pelo erudito técnico da Organizacao Internacional do Trabalho, Claudio de Moura Castro (1989, p. 8), ao comentar os diversos modelos de sistemas nacionais de ensino existentes no mundo. Tratan- do do sistema norte-americano, afirma: Sua caracteristica mais marcante é manter até o fim do segundo grau todos os estudantes sob 0 mesmo teto. [...] Tudo que é para acontecer antes do ensino superior é feito ali mesmo. Latim, sol- da, meditagao transcendental [...] compartiham 0 mesmo pré- dio. Castro, desenhando 0 perfil do sistema, afirma que o mes- mo tem a capacidade de seduzir da direita 4 esquerda pela beleza de nao efetuar triagens progressivas, onde alguns sao desviados para as for- macées profissionais e outros mantidos nas avenidas que con- duzem 4 universidade. Para esse autor, uma escola que oferece num mesmo pré- dio disciplinas bastante diversificadas, do latim a medita- ¢o transcendental, passando pelo mundo do trabalho, numa amalgama criada pelo proprio educando, ¢ denominada de escola politécnica. O uso da denominagao escola politécnica, veiculada em jornal de grande circulagao, designando o sistema de ensi- no secundario norte-americano, 6 um enorme equivoco te- 6rico, conceptual e politico. Igualar a concepgao de comprehensive school com os aportes de pesquisadores como D. Saviani, G. Frigotto, L. Machado, A. Kuenzer re- presenta mais instaurar duvidas, esvaziar 0 conceito de politecnia, que ajudar a avangar teoricamente o debate so- bre os rumos da educagao brasileira. Um dos aspectos importantes sobre a discusséo da politecnia 6 a necessidade de se preservar a utilizagao de determinadas categorias. E processo comum 0 esvaziamen- to de conceitos, buscando sua esterilizagao, desligando-os de sua base critica e, portanto, destruindo sua potencialidade transformadora. Diversos sao os exemplos no campo edu- cacional de conceitos que foram glorificados, reificados, imobilizados e tiveram assim sua potencialidade explicativa € transformadora esvaziada. Isso teria ocorrido com os con- Ceitos de reprodugao, trabalho como principio educativo, Construtivismo. Assim, a concepgao de educagao politécni- 99 ca nao esta imune a tal processo (SILVA, 1990 ; FRIGOTTO, 1985, 1991). No entanto, preservar o conceito de politecnia, as categori- as que Ihe so préprias, nao significa aprisiona-lo no pas- sado, nao é repetir inadvertidamente algumas palavras-cha- ve. Preservar a concepgao politécnica de educagao 6, fun- damentalmente, buscar apreender seu movimento de cons- trugdo, é torna-lo um conceito para si, enunciando-o critica- mente. A identificagao simultanea e coerente das trés dimensdes (infra-estrutural, utépica e pedagdgica) nos discursos cien- tificos que assumem o debate da politecnia revela uma im- portante unidade entre os pesquisadores, superando a mera utilizagao da mesma terminologia. Assim, é permitido afirmar a existéncia de um movimento de construgao de uma concepgao politécnica de educagao. Tal fato nao implica dizer que nao existam tens6es, pois unidade e multiplicidade nao sao conceitos antagénicos. Alias, as tensdes tedricas presentes no debate, com certe- za, vém contribuindo para a enunciagao critica da concep- Gao de educagao politécnica. Apos esse estudo sobre as proposigdes tedricas dos auto- res aqui abordados, p6de-se comprovar que a convergén- cia das elaboragées nao é meramente formal. De fato, atra- vés da decomposi¢ao/recomposigao do objeto, espelhado nas trés dimensdes, revelou-se essa convergéncia, embo- ra algumas distingdes possam ter sido feitas. Apesar de toda a dificuldade de se enunciar mais ou menos sinteticamente um conceito de formagao politécnica numa 100 conjuntura de grande adversidade — haja vista que tal con- ceito esta intimamente ligado a uma sociedade onde 0 tra- balho seja a primeira necessidade de vida —, os autores nao tém fugido a tal tarefa e vém assumindo todos os ris- cos decorrentes. Gaudéncio Frigotto, um dos autores mais preocupados com a apropriagao anacrénica e formal do conceito de politecnia, também assume a tarefa. No texto Trabalho-educagao e tecnologia: treinamento polivalente ou formag¢ao politécni- ca? (1991), o autor consegue estabelecer uma das mais sucintas e ricas enunciagdes. Para o pesquisador, os elementos basicos e indissociaveis do conceito de politecnia, basicamente, sao: (a) a concepgao de homem omnilateral; (b) 0 trabalho produtivo e a articulagao entre trabalho manual e intelectual; (0) as bases cientifico-técnicas comuns da produgao industrial. A perspectiva de Frigotto é perfeitamente condizente com outras enunciagées de politecnia, embora comportem algu- mas nuances proporcionadas por cada pesquisador, a par- tir de suas problematicas e perspectivas iniciais. O capitulo anterior buscou identificar trés movimentos si- multaneos, trés caracteristicas presentes nos aportes con- temporaneos da politecnia no Brasil. Foram abordadas em separado para que pudessem ser mais bem entendidas em sua unidade. E nesse movimento de decomposigao e re- composigao, do todo para as partes e das partes para o todo, que se podera construir uma visao mais totalizante do objeto em questao. Sinteticamente, pode-se dizer que a concep¢ao de forma- Gao politécnica apdia-se na andlise das transformagées dos

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