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Funcionalismo: Fundagao e Evolugao Fvolucdo do Fildsofo Neurético Ele foi um dos homens mais famosos do mundo; contudo, frequentemente andava pelas ruas de Londres usando protetores de orelha para proteger seus pensamentos de interferéncias externas. Sempre que sons 0 perturbavam, seu dia estava arruinado. Charles Darwin o chamava de “nosso filésofo”, e, frequentemente, era possivel ve-lo va- gando sem rumo “sem conseguir se concentrar, escrever ‘ou mesmo ler” (Coser, 1977, p. 104-105). No verdio de 1882 ele chegou aos Estados Unidos, onde foi recebido e homenageado como celebridade internacio- nal. Foi recebido em Nova York por Andrew Carnegie, 0 multimilionério patriarca da indastria siderdrgica, que considerou como um messias. E, aos olhos de varios lideres da economia, ciéncia, politica ¢ religido, esse estranho fil6- sofo inglés realmente era um salvador. Diversos jantares € festas foram promovidos em sua homenagem. Ainda assim, ele continuou sendo um “semi-invalido e psicstico durante todo o resto de sua vida. Sofria de insnia aguda, que as vezes tentava superar com uma dose bastante pesada de 6pium; portanto, nunca conseguia trabalhar mais do que algumas horas por dia. Trabalhar mais horas 0 levava a um nervosismo inadequado e, portanto, a insOnia” (Coser, 1977, p. 104-105). Entretanto, antes de se tornar tao incapacitado, ele havia sido um dos escritores mais prolificos do século XIX. Havia produzido um grande ntimero de livros, muitos dos Evolucao do Filésofo Neurético A Evolucao Chega aos Estados Unidos: Herbert Spencer (1820-1903) © Darwinismo Social {A Filosofia Simtética A Evolucao Continua das Maquinas Henry Hollerith ¢ os Carties Perfurados| William James (1842-1910): 0 Precursor da Psicologia Funcional ‘A Biogratia de James Os Principios da Psicologia (© Objeto de Estudo da Psicologia: a Nova Visto sobre a Conscigncia Texto Original: Trecho sobre a Consciéncla, Extraido de Psychology (Briefer Course) (1802), de William James 0s Métodos da Psicologia © Pragmatismo A Teoria das Emogoes © Eu de Trés Partes 0 Habito A Desigualdade Funcional das Mulheres Mary Whiton Calkins (1863-1930) Helen Bradford Thompson. Woolley (1874-1947) Leta Stetter Hollingworth (1886-1939) Granville Stanley Hall (1844-1924) ‘A Biografia de Fall 151 152 Historia DA PsiCOLOGIA MoDERNA, Evolusao e Recapitulagao a Teoria do Desenvolvimento Comentarios A Fundacao do Funcionalismo A Escola de Chicago John Dewey (1859-1952) © arco Reflex Comentarios James Rowland Angell (1869-1949) A Blografia de Angell A.Esfera de Acdo da Psicologia Funcional Comentarios Harvey A, Carr (1873-1954) Funcionalismo: o Formato Final Funcionalismo na Columbia University Robert Sessions Woodworth (1869-1962) A Biografia de Woodworth A Psicologia Dinamica Criticas ao Funcionalismo Contribuigdes do Funcionalismo quais haviam sido ditados a uma secretéria tao rapidamente quanto ela conseguia registrar as palavras, as vezes enquanto ele estava entre sets de ténis ou passeando em um barcoa remo. Seus trabalhos foram publicados em revistas popu- lares, milhares de c6pias de seus livros foram vendidas seu sistema de filosofia foi adotado como parte do curriculo padrao em praticamente todas as universidades. Sem diivida ele teria publicado ainda mais livros é artigos se nio tivesse desenvolvido sintomas intensos de neurose que limitaram seu trabalho a algumas horas ao dia. Aos 35 anos, em uma situacao que nos lembra a de Darwin, nosso filésofo desenvolveu palpitacées no coracio, insOnia e problemas digestivos sempre que o mundo lhe importunava. Assim como Darwin, seus males fisicos coin. cidiram com o desenvolvimento do sistema de pensamento a0 qual devotou sua vida, o sistema que exerceria profunda influéncia em direcao da nova psicologia americana. Seu nome era Herbert Spencer. A Evolucdo Chega aos Estados Unidos: Herbert Spencer (1820-1903) A filosofia que rendeu a Herbert Spencer o reconhecimento © aclamagao foi o darwinismo — a nogao da evolucao e da sobrevivéncia do mais apto. Spencer estendeu a teoria para muito além do préprio trabalho de Darwin. Nos Estados Unidos, o interesse pela teoria da evolugao de Darwin era muito grande, e suas ideias haviam sido muito bem-aceitas. © evolucionismo foi abarcado nao apenas pelas univers, dades ¢ sociedades cientificas, mas também por revistas Populares ¢ até mesmo algumas publicacées religiosas. 0 Darwinismo Social Spencer alegava que o desenvolvimento de todos 0s aspectos do universo é evolucionério, incluindo o carater humano e as institui¢6es sociais, em conformidade com o principio da ‘sobrevivencia do mais apto” (expresséo cunhada por ele). Essa énfase no chamado darwinismo social - aplicacao da teoria da evolucdo da natureza humana e da sociedade — foi recebida com muito entusiasmo nos Estados Unidos. Na visdo utopica de Spencer, se o principio da sobre- vivéncia do mais apto operasse com liberdade, apenas os Cariuto 7 FUNCIONALISMO: FUNDACAO E EvoLUGAO 153 melhores sobreviveriam. Portanto, a perfeicao humana seria inevitavel, desde que nenhuma acdo interferisse na ordem natural das coisas. © individualismo e 0 sistema econdmico do laissez-faire exam vitais, enquanto 0s aspectos governamentais para regulamentar negécios « industria e a assisténcia social (por meio de subsidios a educacao, moradia e pobreza) eram opostos. {A populacdo ¢ as organizagoes deveriam ter liberdade para se desenvolver por contra propria, utilizando-se de meios proprios, do mesmo modo que as demais espécies vivas er desenvolviam e adaptavam-se livremente ao ambiente natural. Qualquer auxilio do Estado interfere no processo evolutivo natural [As pessoas, 0s programas, a economia ou as instituigdes que ndo se adaptassem eram considerados inaptos para sobreviver e deviam perecer (tornarem-se “extintos") para a melhoria de toda a sociedade, Se o Estado continuasse a sustentar empresas due nao fun- Gionassem bem, elas conseguiriam sobreviver, mas acabariam enfraquecendo a socieda- de, violando a lei bésica natural de que apenas 0 mais forte ¢ mais apto deve sobreviver. Mais uma vez, a ideia de Spencer era que somente com a sobrevivencia dos melhores a sociedade atingiria a perfeicio. Essa mensagem era compativel com 0 espirito individualista americano € as expressdes ssobrevivencia do mais apto” e "a luta pela existéncia” rapidamente passaram a fazer parte da consciéncia nacional. James J. Hill, o magnata da industria ferrovidtia, relterou a mensagem® de Spencer: “O éxito das companhias ferrovidrias € determinado pela lei da sobrevivéncia do mais apto”, E John D. Rockfeller declarou: “O crescimento das grandes empresas é apenas © resultado da sobrevivencia do mais apto” (Hill e Rockefeller apud Hofstadter, 1992, p. 45). ‘as frases refletiam claramente a sociedade norte-americana do final do século XIX, ou seja, 9s Estados Unidos consistiam um exemplo vivo das ideias de Spencer. Essa nagio pioneira estava sendo formada por sérios trabalhadores que acreditavam na livre iniciativa, na autossuficiéncia e na independéncia da interferéncia do Estado. E ‘les conheciam bem de perto a lei da sobrevivencia do mais apto no seu dia-a-dia. Aterra estava disponivel para os dotados de coragem, sagacidade e habilidade para tomé-la ¢ trans- formé-la no seu meio de vida. Os principios da selecao natural eram claramente demons- trados nas experiéncias didrias, principalmente na fronteiza oeste dos Estados Unidos, onde a sobrevivéncia e 0 sucesso dependiam da capacidade de adaptacéo do homem as Gificeis condigoes ¢ exigéncias do ambiente; quem nao se adaptou nao sobreviveu. ‘© historiador americano Frederick Jackson Turner descreveu assim os sobreviventes: Aquela rudeza e forga combinadas com a agudeza e curiosidade; aquela mentalidade prati- ca engenhosa e astuta para encontrar recursos; aquele habil domfnio das coisas materiais (.) poderoso para realizar grandes feitos; aquela energia incansavel ¢ agitada; aquele individualismo dominante, (Turner, 1947, p. 235) Os americanos eram voltados ao pratico,ttil e funcional. Os estégios iniciais da psicologia americana refletiram essas qualidades. Por essa razao, a teoria evolucionista fol mais bem-acei- ta nos Estados Unidos do que em outras nagdes. A psicologia americana transformou-se m ‘uma psicologia funcional porque a evolugao eo espirito funcional eram compativeis com esse temperamento basico, assim como a compatibilidade entre a visdo de Spencer ¢ 0 ethos ame- ricano permitiu que set sistema filosofico influenciasse todos os campos do conhecimento. © famoso pastor americano Henry Ward Beecher escreveu a Spencer, dizendo: "As condigées peculiares da sociedade americana permitiram que seus esctitos produzissem efeitos mais répidos aqui do que na Europa” (Beecher, apud Hofstaciter, 1992, p. 31) 154 Historia Da PsICOLOGIA MODERNA A Filosofia Sintética Spencer formulou um sistema denominado filosofia sintética (ele usou a palavra “sintéti- ca” no sentido de sintetizacao ou combinagao e nao com o significado de algo artificial ou nao natural). Ele baseou esse sistema amplamente abrangente na aplicacdo dos principios evolucionistas ao conhecimento e a experiéncia humana, Suas ideias foram publicadas em uma série de 10 livros, entre 1860 e 1897. Os volumes foram considerados pelos prin- cipais intelectuais da época um trabalho de génio. Conwy Lloyd Morgan escreveu a ele, dizendo: “A nenhum outro mestre intelectual devo tanta gratidao quanto ao senhor”, Alfred Russel Wallace batizou seu primeiro filho com o nome de Spencer. Darwin disse, apés ler um dos livros de Spencer, que ele “era uma diizia de vezes superior a mim” (apud Richards, 1987, p, 245). Hilosofia sintética: ideia de Spencer que o conhecimento ¢ a experiéncia podem ser aplica- dos em termos evolutivos Dois volumes da filosofia sintética constituiram a obra The principles of psychology, Publicada inicialmente em 1855, mais tarde adotada por William James com> livro-base Para 0 primeiro curso de psicologia que lecionou em Harvard. Nesse livto, Spencer discute 3 nose de-quea forma atual-da mente € testiltads dos esfisicos passadose continues na adaptacao a diversos ambientes. Ele enfatizava a natureza adaptavel dos Processos nervosos © mentais ¢ afirmava que uma complexidade crescente de experiéncia - ¢ assim de com- Portamento ~ faz parte do processo normal de evolucao. O organismo precisa se adaptar ao ambiente se desejar sobreviver. A Evolugao Continua das Mdquinas Fol mencionado no Capitulo 2 que as maquinas (chamadas de rob6s), haviam sido criadas para duplicar 0 movimento humano bem como o pensamento humano (como as ma- quinas de calcular de Babbage). Seria possivel que as maquinas evoluissem para formas mais avancadas tal como era dito a respeito dos homens e animais? Na €poca em que o darwinismo foi publicado em 1859, a metéfora mecanica para a vida humana havia se fomnado tao aceita nos circulos intelectuais e sociais que a questo parecia inevitavel. ‘A pessoa que fez a pergunta e expandiu o evolucionismo para as méaquinas foi Sa- muel Butler (1835-1902), um escritor, pintor e muisico que em 1859 emigrou para a Nova Zelandia para criar ovelhas. Butler e Darwin se corresponderam longamente. Em um ensaio intitulado “Darwin entre as Maquinas’, Butler escreveu que a evolugao das méquinas jé havia ocorrido. $6 tinhamos que comparar os itens primordiais, rudi- mentares como as alavanicas, cunhas e roldanas com o complexo maquinatio das fabricas € as grandes locomotivas e navios a vapor. Butler propds que a evolugao mecanica estava ocorrendo por meio dos mesmos Processos que guiaram a evolucdo humana: selecdo natural e luta pela existéncia, Os inventores estao constantemente criando maquinas novas para obter alguma vantagem competitiva. Essas novas méquinas eliminam as antigas, que, inferiores, nao conseguem CAPITULO 7 FUNCIONALISMO: FUNDAGAO E EVOLUCAO 155 is se adaptar ou competir na luta pela sobrevivéncia ~ um lugar no mercado. Como sesultado, as maquinas obsoletas desaparecem, assim como os dinossauros. Com 0 rapido desenvolvimento tecnolégico ficou claro a Butler que as maquinas saviam evolufdo muito mais do que os animais, e previu que as maquinas um dia se sornariam capazes de simular processos mentais humanos — um tipo de inteligéncia. Isso se tornou realidade enquanto Butler vivia, pelo menos no que diz respeito ao processo mental para célculos. Por volta do final do século XIX, 0 tipo de maquina calculadora de Babbage nao era snais adequado. Os cAlculos realizados por dispositivos mecanicos ou por meios humanos exigiam maquinas cada vez mais adequadas. Um fato que exemplificou essa necessidade Si 0 censo populacional norte-americano de 1890. © censo realizado 10 anos antes fora tao complexo que levou sete anos para ser con- Guido. Cerca de 1.500 funcionarios computaram a mao dados referentes a idade, sexo, etnia, residéncia e outras caracteristicas (que esperavam obter) de cada cidadao americano. Os resultados foram compilados em um relatério de mais de 21 mil paginas. Nesse inter- valo, a populacao cresceu to rapidamente que era dbvia a necessidade de uma mudanca ‘nos procedimentos ou, do contrario, o censo de 1890 nao seria concluido antes de 1900, <4 no inicio do censo seguinte. Havia a necessidade de uma nova e avancada maquina processadora de informacoes. Henry Hollerith e os Cartées Perfurados Henry Hollerith (1859-1929) foi o engenheiro que desenvolveu a nova e avangada forma Ge processar as informacées. Dois historiadores, sobre a origem dos computadores, des- creveram a inovadora criagao de Hollerith dizendo que seu método registrava as respostas dos questiondrios de cada cidadao em uma fita de papel com um. padirao de perfuracéo ou em um conjunto de cartdes perfurados, parecidos com os utilizados para a gravagiio de mtisicas dos pequenos érgaos de exposicao [como os pianos] daquela época. Desse modo, era possivel utilizar uma maquina para contar automaticamente os orificios ¢ tabular os resultados. (Campbell-Kelly e Aspray, 1996. p. 22) Hollerith utilizou 56 milhoes de cartdes para computar os resultados obtidos de 62 milhoes de pessoas. Cada cartdo tinha capacidade para armazenar 0 equivalente a até 36 bytes de 8 bits de informagoes. Assim, o censo norte-americano de 1890 produziu mais informacdes do que se havia acumulado até entao e, em apenas dois anos, rendeu uma economia de 5 milhdes de délares em comparacao com 0 método de tabula¢ao manual. O sistema de cartdo perfurado de Hollerith alterou radicalmente 0 processamento desse tipo de informacao e renovou as esperancas (¢ os temores) de que as maquinas, com 0 tempo, seriam capazes de reproduzir o funcionamento cognitive humano. Um artigo na revista Scientific American foi publicado com o seguinte titulo “How strips of paper can endow inanimate machines with brains of their own” (“Como tiras de papel podem dotar as mdquinas inanimadas de mentes proprias”) (Dyson, 1997) Em 1896, Hollerith estabeleceu a propria empresa, a Tabulating Machine Company, que foi vendida em 1911. A nova corporacao, a Computing-Tabulating-Recording Com- pany, foi rebatizada em 1924, sendo hoje a famosa IBM. 156 HIsTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA William James (1842-1910): 0 Precursor da Psicologia Funcional Tanto o proprio William James como o seu papel na psicologia americana sao muito para- doxais. Seu trabalho foi o principal precursor americano da psicologia funcional ¢ ele foi 0 pioneixo da nova psicologia cientifica desenvolvida nos Estados Unidos. Uma pesquisa realizada pelos historiadores da psicologia, 80 anos ap6s a morte de James, revelou que ele era considerado a segunda figura mais importante da psicologia, perdendo apenas para Wilhelm Wundt, além de ser apontado como 0 principal psicélogo americano (Korn et al., 1991). O eminente fildsofo e psicélogo John Dewey considerou James como “de longe, o maior dos psicélogos dos Estados Unidos(...) de qualquer pais(...) talvez de todos os tem- pos.” John B. Watson, 0 fundador do behaviorismo, referiu-se a James como “o psic6logo mais brilhante que 0 mundo ja conheceu” (ambos citados em Leary, 2003, p. 19-20). No entanto, alguns colegas de James o consideravam uma forca contraria ao desenvol- vimento da psicologia cientifica. Ele mantinha um notorio interesse em assuntos como telepatia, clarividéncia, espiritismo, comunicacao com os mortos em sess6es espiritas € outros fatos misticos. Os psicélogos americanos, como Titchener e Cattell, criticavam a sua entusidstica exposicao a esses fendmenos psiquicos ¢ mentalisticos que eles, como psic6logos experimentais, estavam tentando banir do campo. James nao fundou nenhum sistema formal de psicologia ou sequer teve algum disci- pulo; nao houve uma escola de pensamento “jamesiana”. Embora a forma de psicologia a ele associada fosse uma tentativa de ser cientifica e experimental, a propria atitude e as realizagdes de James nao eram experimentalistas. A psicologia, que um dia ele chama- ra de “pequena ciéncia detestavel”, ndo era a sua paixdo eterna, como era para Wundt e Titchener. James trabalhou com a psicologia durante algum tempo e depois mudou sua area de interesse. Nos ultimos anos da vida, esse homem complexo e fascinante, que tanto contribuira para a psicologia, acabou deixando-a de lado (em uma ocasiao, quando ia realizar uma palestra na Princeton University, pediu para que nao fosse apresentado como psicdlogo). Ele até insistia em afirmar que a psicologia nao passava de “uma elaboracao do 6bvio”. Mesmo que com a sua auséncia a psicologia nao deixasse de seguir adiante, e as vezes cambaleante, James ocupou o seu lugar ¢ teve a sua importancia garantida na historia da psicologia. James nao fundou a psicologia funcional, mas apresentou de forma clara e eficaz as suas ideias dentro da atmosfera funcionalista impregnada na psicologia americana. Dessa forma, influenciou 0 movimento funcionalista, inspirando as geracées posteriores de psicélogos. A Biografia de James William James nasceu no Astor House, um hotel da cidade de Nova York, em uma familia destacada e rica. Seu pai (naquela época, o segundo homem mais rico dos Estados Unidos) dedicou-se com entusiasmo, embora de forma inconsistente, a educacao dos filhos, que alternava entre a Europa e os Estados Unidos. Assim, os anos escolares iniciais de James foram passados na Inglaterra, Franga, Alemanha, Itdlia, Suica e nos Estados Unidos. Essas experiéncias estimulantes expuseram James as vantagens culturais e intelectuais da In- glaterra e do restante da Europa. CapiruLo 7 FUNCIONALISMO: Funpacao € EvoLucao 157 Durante toda asua vida, James viajou muitas vezes para o exterior. O método favorito go pai para tratar das pessoas Gentes da familia era mandé-las pars # Europa, endo pata o hospital. E a sua mae dispensava atencdo e carinho aos filhos somente quando estavam doentes. Talvez nao fosse surpresa 0 fato de James dificilmente apresentar ‘boa satide. ‘Embora o velho James nao esperass? que nenhum dos fillios se preocupasse em ganhar a vida, incentivou interesse precoce de William pela ciéncia. Dew-Ihe um jogo Ge quimica contendo um “bico de Bunsen e pequenas amostras de liquiidos estranhos que, para desgosto do pai, misturava, aquecia e transfundia, ‘manchando os dedos € as roupas, Chegando até a provocar perigosas explosdes” (Allen, 1967, p. 47). ‘Com 18 anos, James decidiu tornars® artista, ¢ seis meses no atelié do PIntor William Hunt em Newport, Rhode Island, convencerameno de que, apesar da ‘boa técnica, nao era dotado de talento suficiente pare tornarse um grande artista. Desistiy da carreira € acabou matriculando-se na Lawrence Scientific School, em Harvard. Nessa época estoura- va a guerra civil americana e, mais rarde, James confessou que desejara servis © exército, mas o pai o proibira, alegando no existiy nenhum governo ou qualquer Oulia causa que alesse a vida como sacrificio.! Pouco tempo depois de chegar Harvard, comecou a perder 2 autoconfianga € @ satide, transformando-se em uma pessou ‘extremamente neurotica para o Testo da vida. ‘Abandonou © interesse pela quimica, aparentemente em fungio da precisdo exigida no trabalho laboratorial, ¢ tentou prosseguir com a medicina que; no entanto, nao Ihe des- pertava muito interesse, tal como comentou: a muito farsante nesse melo (..) Exeeto H&S cirurgias, em que as vezes € possivel obter algum resultado positive, o medico faz mais pelo efeito moral da sua presen diante do paciente da sua familia do que Por qualquer outro motivo, além de poder extrair “Ihe © Maheiro, Games apuid Allen, 1967, p- 98) James abandonow a medicina para auailiar 0 zodlogo Louis Agassiz em ume expedigio a bacia do tio Amazonas, para colley espécies de animais marinhos. ‘A viagem deu-lhe a oportunidade de ter uma amostis da carreira na biologia, mas logo percebeu que nao conseguiria supottar a preciso das coletas da classificagao das especies, bem como as texigencias fisicas do trabalho de came ‘Em uma carta que escreveu para a familia, disse: “Minha vinda foi um erro. Estou definitivamente convencido de que sou talhado para a elaboracao teérica endo para 0 trabalho de campo” (apud Simon, 1998, p- 93). Essa reagao ag trabalho cientifico na quimica ¢ né Diologia professava a sua posterior aversao pela experimentacao no campo 4a psicologia. Embora a viagem ao Brasil, em 1865, nao conseguisse tornar a medicina de alguma forma atraente para James, ele telutou mus jgcabou retomiando os estudos médicos por nao haver nenhuma outra 4rea que The despertasse 0 interesse. Estava frequentemente HHoente, queixando-se de depressdo, problemas digestivos, insonia, dificuldades visuais Cores ams oxeras. “win Styria. qussele ete sofrendo de América; a Europa era @ aanica cara’ (Miller e Buckhout, 1973, p. 84). James recuperou-se em um ‘alnedrio na Alemanha, dedicando-se literatura e escre- vendo longas cartas aos amigos, masa depressao persistia. Frequentou aulas de psicologia To exertor Henry, mo de William, também nao seri adr durante a gue, ras sus ds macs mais noNo® serviram. 158 HistoRIA DA PSICOLOGIA MODERNA na University of Berlin que o levaram a refletir que talvez fosse chegada a hora de a “psi- cologia comegar a se tornar ciéncia” (apud Allen, 1967, p. 140). Também afirmou que, se sobrevivesse a doenga e conseguisse suportar 0 inverno, desejava aprofundar os estudos de psicologia com 0 grande Helmholtz e, usando exatamente estas palavras, com um homem chamado Wundt. Sobreviveu ao inverno, mas nao conheceu Wundt naquela época. No entanto, 0 fato de ter ouvido falar de Wundt mostra a consciéncia que ele tinha das tendén- cias cientfficas e intelectuais, mesmo 10 anos antes de Wundt fundar seu laborat6rio. James conseguiu formar-se em medicina em Harvard em 1869, mas sua inseguranca € depressio pioravam. Acometido de males indeterminados e medos terriveis, chegou a pensar em suicidio. Seu pavor era tao imenso que nao conseguia sair de casa sozinho a noite, Internou-se em uma clinica de repouso em Somerville, Massachusetts, mas nenhum tratamento era capaz de aliviar seu sofrimento (Townsend, 1996). James no era a tnica pessoa a sofrer desse mal naquela época. Uma epidemia de neurastenia. O neurologista americano George Beard cunhou 0 termo “neurastenia” para referir-se a um estado nervoso peculiar do americano. Listou uma variedade de sintomas como ins6nia, hipocondria, dor de cabeca, erupg6es cutaneas, cansago nervoso e um estado que chamou de colapso cerebral (Lutz, 1991). James chamou a sindrome de “americanite” (Ross, 1991) Durante a segunda metade do século XIX, aquilo que muitos observadores chamaram de “epidemia de neurastenia” varria as classes mais altas. (...) Neurastenia era, literalmente, a falta de forca nervosa, ou seja, depressao paralisante e perda de animo. Os mais educa- dos e conscientes eram os que tinham mais chances de sucumbirem. © adiamento na escolha da carreira tornou-se uma experiéncia comum entre esses filhos problematicos da burguesia. (Lears, 1987, p. 87) Muitos amigos, parentes e colegas de James sofriam desses sintomas debilitantes. Um amigo escreveu-Ihe, dizendo: “Fico imaginando se alguém na Nova Inglaterra tenha conse- guido chegar aos 35 anos sem pensar em suicidio”. E James respondeu: “Creio nao haver nenhum intelectual que nao haja flertado com a ideia do suicidio” (apud Townsend, 1996, p. 32-33). A condicao estava tao disseminada entre o segmento mais rico e intelectual da sociedade americana que uma revista foi langada com o titulo de Anybody Who Was Anybody Was Neurasthenic (Miller, 1991). Obviamente, William James estava bem acom- panhado. A industria farmacéutica Rexall tirou proveito da oportunidade criada por essa doenga, introduzindo um remédio patenteado com o nome de Americanitis Elixir (Elixir para Americanitis), recomendado para disttirbios nervosos, fadiga e todos os problemas causados pela americanite (Marcus, 1998). As mulheres que sofriam desse mal, claramente as intelectuais e feministas, eram aconselhadas a “passar seis semanas ou mais de cama, sem executarem qualquer trabalho, leitura ou atividade social e ganhar muito peso por meio de uma dieta a base de muita gordura’”, Os homens nao precisavam se submeter a um tratamento tao rigido assim. O conselho para eles inclufa “viagens, aventuras [e] muito exercicio fisico” (Showalter, 1997, p. 50, 66). Descobrindo a psicologia. No periodo de depressaio em 1869, James comegou a desenvolver uma filosofia de vida incentivado nao tanto pela curiosidade intelectual, mas pelo desespero. Leu muita filosofia, inclusive os ensaios de Charles Renouvier sobre © livre-arbitrio, 0 que o convenceu da sua existéncia. Decidiu que seu primeiro ato de Capitulo 7 FUNCIONALISMO: FUNDAGAO E EVOLUGAO 159 vontade propria seria a crenga no livre-arbitrio. Em seguida, passou a crer que conseguiria curar a depressao apenas acreditando na forca de vontade. Aparentemente obteve certo éxito, pois, em 1872, aceitou lecionar fisiologia em Harvard, comentando ser “nobre para © espirito de uma pessoa ter um trabalho responsavel para realizar” (James, 1902, p. 167). No entanto, apenas um ano depois, teve de tirar licenga para visitar a Italia, mas retornou pouco tempo depois e continuou lecionando. Mais ou menos nessa mesma €poca, James interessou-se pelos efeitos de alguns ele- mentos quimicos na alteragdo da mente. Leu a respeito das experiéncias por que passaram pessoas sob a influéncia do 6xido nitroso (0 “gas hilariante") ¢ do nitrato de amila, que Sfetam a oxigenagao do cérebro, causando assim movimentos bruscos. Decidiu experimen- tar essas substancias. Como escreveu um biégrafo, essa fora “a primeira entre as varias experiéncias {de James] com estados conscientes alteracos, que 0 fascinaram devido a forma como as alteragées fisicas influenciavam a consciéncia” (Croce, 1999, p. 7). No ano letivo de 1875-76, James lecionou seu primeiro curso de psicologia, que cha- mou de The relations between physiology and psychology [As relagoes entre a fisiologia ¢ a psicologial. Por isso, Harvard fol a primeira universidade dos Estados Unidos a oferecer 0 curso de psicologia experimental. James nunca frequentara cursos formais de psicologia ~ 6 primeiro foi o seu. Pediu dinheiro a faculdade para adquirir um laboratorio e equipa- mentos de demonstra¢ao para suas aulas e recebeu 300 délares. Em 1878, dois acontecimentos importantes marcaram a vida de James: 0 casamento com Alice Howe Gibbens, a mulher escolhida por seu pai, ¢ a assinatura de um contrato com o editor Henry Holt, que resultou em um dos livros cléssicos da psicologia. Ele levou 12. anos para escrever © livro, que comecara durante a lua-de-mel. Uma das raz6es de tanta demora pata James escrevé-lo € que ele era um viajante com- pulsivo. Quando nao estava na Europa, podia ser facilmente encontrado nas montanhas de Nova York ou New Hampshire. suas cartas dao a entender que suas relagées familiares eram muito desgastantes ¢ que frequentemente sentia necessidade de ficar sozinho. As viagens eram a unica forma de conseguir lidar com essa situagao. Ele arranjava uma viagem apés 0 nascimento de cada tum dos seus filhos e, obviamente, sentia-se culpado. Frequentemente se ausentava das comemoracées de Natal, Ano Novo ¢ aniversarios, mesmo nao estando muito distante, como, por exemplo, em Newport. (..) As viagens de James eram fugas das confusoes fami- liares para a natureza, a solidao ¢ © alivio mistico. (Myers, 1986, p. 36-37) Os nascimentos dos filhos foram muito perturbadores para o temperamento sensi- vel de James. Nao conseguia trabalhar direito ¢ ressentia-se da aten¢ao dispensada pela esposa aos recém-nascidos. Depois do nascimento do segundo filho, passou um ano no exterior, viajando de uma cidade a outra. Escreveu de Veneza para sua esposa, dizendo-se apaixonado por uma italiana. Ele disse: “Vocé vai acabar se acostumando com esses meus cntusiasmos e acabara gostando” (apud Lewis, 1991, p. 344). Mas Alice ficava contrariada com 0 que ela mesma descrevia como a “tendéncia [do meu marido] de flertar casualmen- te com conhecidas ¢ até mesmo com as empregadas da familia”, Ficara furiosa quando ele Ihe contara haver betjado uma delas. James, no entanto, achava que essa sua natureza afetiva devia deixd-la feliz. Conforme explicava, muitas vezes tinha o “desejo de beljar as pessoas” (apud Simon, 1998, p. 215-216). James continuava a lecionar em Harvard quando se encontrava na cidade e, em 1885, foi promovido a professor de filosofia. Quatro anos mais tarde, passou a ter 0 titulo de 160 HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA professor de psicologia. Nessa época ja havia conhecido varios psicélogos europeus, dentre eles Wundt, que “causou-me uma agradavel impressio pessoal, com a sua voz agradavel ¢ 0 eterno sorriso franco nos labios”. No entanto, alguns anos depois, James percebeu que Wundt “nao é um génio, ele é um professor, um ser cuja tarefa é conhecer tudo e ter opi- nigo propria sobre qualquer assunto” (James apud Allen, 1967, p. 251, 304). © livro de James, The principles of psychology, foi finalmente publicado em 1890, em dois volumes. Foi um tremendo sucesso e uma importante contribuig&o para a drea. Quase 80 anos apés a sua publicacao, um psicdlogo declarou: “O livro Principles de James é sem sombra de davida a obra mais culta e provocante e, a0 mesmo tempo, o livro de psicologia mais compreensivel escrito até hoje em inglés e em qualquer outro idioma” (MacLeod, 1969, p. iii). Essa obra foi o livro de referéncia mais importante para varias geracdes de estudantes de psicologia e até hoje é lida por varias pessoas que nao tém a obrigatoriedade de lé-la. A reacao favoravel ao livro nao foi unanime. Wundt e Titchener, criticados na obra, nao reagiram bem. Wundt declarou: “Trata-se de uma literatura dotada de beleza, mas nao € psicologia” (Wundt, apud Bjork, 1983, p. 12). Wundt continuou criticando severamente 0 trabalho de James na psicologia. De acordo com C. H. Judd, um estudante americano do laboratério de Wundt em Leipzig, havia tido muito pouco respeito pelos lideres da psicologia americana que houvessem estuda- do em outro lugar que nao em Leipzig. Havia especial antipatia por James. Ele fez algo considerado totalmente insensato, nao somente criticou Wundt (...) como 0 fez de forma sarcastica, Isso era demais. (...) James nao era considerado um pensador de primeira linha (1930/1961, p. 215). O préprio James nao reagiu favoravelmente ao seu livro. Escreveu uma carta ao editor e descreveu o manuscrito como uma “massa repugnante, distendida, intumescida, inflada e hidrépica que certifica nada além de dois fatos: primeiro, nao existe uma ciéncia da psico- logia; segundo, que [William James] é um incapaz” (James apud Allen, 1967, p. 314-315). Com a publicacao do livro The principles, James decidiu que nao tinha nada mais a dizer a respeito da psicologia. Além disso, nao se interessava mais na supervisao do labo» ratério de psicologia em Harvard. Conseguiu que Hugo Munsterberg, naquela época na University of Freiburg, Alemanha, se tornasse diretor do laboratério e lecionasse os cursos de psicologia, ficando livre para trabalhar com a filosofia. Miinsterberg nunca chegou a desempenhar 0 papel que James esperava dele: tornar-se uma lideranca na pesquisa expe- rimental em Harvard. Ao contrario, Miinsterberg procurava estudat uma variedade de problemas do mundo real e dedicava pouca atencao ao laboratério. Ele foi importante por ter ajudado a popularizar a psicologia ¢ transforma-la em uma disciplina mais aplicada (veja no Capitulo 8). Embora James houvesse instalado e equipado 0 laboratério de psicologia de Harvard, ele nao era experimentalista. Nunca se convencera do valor do trabalho laboratorial ¢ pessoalmente nao gostava de realizar essa tarefa. Dizia que as universidades americanas tinham laboratérios demais e, no livro The principles, destacou que os resultados do tra- balho de laboratério nao eram proporcionais aos enormes esforcos exigidos. Portanto, nao causa estranheza o fato de sua contribuigdo a psicologia constituir-se de tao pouco trabalho experimental James passou os tiltimos 20 anos da vida refinando seu sistema filos6fico e, por volta da década de 1890, foi reconhecido como 0 principal filésofo americano. Entre es principais trabalbos de 97902). A sua obra Talks to gevulgou as ideias de James sobre aplicagao da psic ee aprendizagem. Os Principios da Psicologia Por que tantos estudiosos considera filosofia m Jai Carirulo 7 FUNCIONALISMO: FUNDAGRO E EVOLUGAO 161 publicados esta The varieties of religions experience teachers (1899) marcou 0 inicio da psicologia educacional e ologia na sala de aula em situacoes mes 0 maior psicélogo americano? Tres hipoteses homem nao consegue mais escapar, assim como sdo inevitaveis as marcas deixadas pelo tempo. No final, € melhor que ele nao escape ¢ que, para o bem da humanidade, a maio- ra de n6s, aos 30 anos, ja tenha o cardter solidificado e que nunca mals volte a amolecer. (James, 1890, v. 1, p. 121) ‘A obra The principles exerceu grande influéncia na psicologia americana e, mest pas- sado um século, a sua publicagio foi alvo de elogios (Donnelly, 19925 Johnson e Henley, 1990). Ela alterou a visdo de milhares de alunos ¢ inspirou psicélogos a transferirem © enfoque da nova ciéncia da psicologia da perspectiva estruturalista para a fundagao for- mal da escola de pensamento funcionalista. A Desigualdade Funcional das Mulheres Mary Whiton Calkins ( 1863-1930) James foi o grande responsével pelos estudos de pos-graduacao de Mary Whiton Calkins, ajudando-a a vencer as barreiras do preconceito e da discriminac&o. Calkins acabou desen- Volvendo a técnica da associacao de pares usada no estudo da memoria, além de haver vontribuido de forma significativa e duradoura para a psicologia (Madigan © O'Hara, 1992). Foi a primeira mulher a tornar-se presidente da APA e, em 1906, ocupava a 12" colocacéo entre os 50 psicélogos mais importantes dos Estados Unidos, reconheci mento muito sig- nificativo por parte dos colegas a uma pessoa a quem havia sido recusada a concessao do titulo de Ph.D. (Furumoto, 1990). ‘A Harvard University nunca aceitou sua matricula formal, mas William James a recebia de racos abertos nos seus seminarios e pressionava a universidade a conceder-Ihe a graduacao. Quando a diregao recusou-se a fazé-lo, James escreveu a cla, dizendo que bastava “produzir explosivos juntando voce e todas as mulheres. Tenho esperancas ¢ acredito que a sua dedicacao acabard explodindo a barreira" (James, apud Benjamin, 1993, p. 72) Apesar dos esforcos de James, Harvard recusava-se a conceder 0 doutorado a uma mulher, embora o teste de Calkins (ministrado informalmente por James € outros docentes) fosse considerado “o mais brilhante ceame de Ph.D. até entio realizado em Harvard” (James, apud Simon, 1998, p. 244). Sete anos depois, quando Calkins estava lecionando na Wellesley ¢ realizando a sua pesquisa a respeito da meméria, Harvard ofereceu-lhe @ graduacao da Radcliffe College, criada pela Harvard para oferecer cursos de graduacio para as mutheres. Ela recusou, pois havia completado as exigéncias de graduacao na Harvard e nao na Radcliffe. A Harvard a discriminava apenas por ser mulher e ignorou varias solicitagGes suas de graduagao para a qual havia completado todos os requisites. Acabou obtendo uma gradua¢ao honoraria da Columbia University (Denmark e Fernandez, 1992). Harvard nao concedeu diplomas de doutorado a mulheres antes de 1963. 168 HISTORIA 0A PSICOLOGIA MODERNA A experiéncia de Calkin é um exemplo da discriminacao sofrida pelas mulheres que almejavam a educagio superior, condicao que persistiu até o século XX. Ainda assim, Calkin considerava-se privilegiada, quando se comparava as mulheres das geracdes ante- tores, que jamais foram admitidas nas universidades. As mulheres foram tradicionalmen- te exclufdas da maioria das 4reas académicas das faculdades e universidades europeias € americanas, Quando Harvard foi fundada, em 1636, nao aceitava alunas. Somente depois da década de 1830 algumas faculdades americanas relaxaram a sua proibicao e admitiram mulheres para 0 curso de graduacao. A primeira razdo alegada para essa restrigdo era a crenea generalizada na chamada superioridade intelectual masculina, Como afirmava esse argumento, embora certas mulhe- res recebessem as mesmas oportunidades educacionais dadas aos homens, as deficiéncias intelectuais femininas inatas nao permitiam que tirassem proveito dos beneficios. Muitos cientistas importantes do século XIX, como Darwin, ea maioria dos psicdlogos da época concordavam com essa visio. Hoje, a maioria dos estudantes formados e que obtiveram Ph.D. em psicologia so mulheres, assim como a maioria dos estudantes de graduacao e de pés-graduacao na area No entanto, vimos que o homem dominou a historia da psicologia. Apenas para relem- brat, Margaret Washburn nao péde matricular-se na Columbia University porque era mulher, Somente depois de 1892 as universidades de Yale e de Chicago ¢ mais algumas outras instituicdes aceitaram a matricula de mulheres nos cursos de graduacao. Por cerca de 20 anos apés a fundacao formal da psicologia como disciplina cientifica, as mulheres enfrentaram barreiras para tornarem-se psicdlogas e para contribuirem de forma signifi- cativa para 0 desenvolvimento do campo. Grande parte do mito da superioridade intelectual do homem surgiu da chamada hipétese da variabilidade, bascada nas ideias de Darwin a respeito da variabilidade mas- culina (Shields, 1982). Darwin descobriu que em diversas espécies o macho demonstrava uma variedade mais ampla de desenvolvimento das caracteristicas fisicas e das habilidades do que as fémeas. As caracteristicas ¢ habilidades femininas encontravam-se concentradas em torno de um valor médio. Acreditava-se que essa tendéncia mediana feminina fazia com que a mulher se beneficiasse menos da educacao formal e tivesse menos possibilida-" des de éxito no trabalho intelectual ou de pesquisa. Faltava apenas um passo para supor que 0 cérebro masculino fosse mais evoluido do que © feminino. Em virtude da grande yariedade de talentos demonstrada pelo homem, acreditava-se estar ele mais apto a se adaptar e tirar proveito dos diversos ambientes desafiadores. Dessa forma, a mulher era considerada inferior ao homem, tanto nas qualidades mentais como nas fisicas necessarias para se obter éxito na adaptacao as exigéncias do ambiente. Como consequeéncia, a ideia da desigualdade funcional entre os sexos foi amplamente aceita. Hipétese da variabilidade: nocéo de que o homem demonstra maior gama de variacéo no desenvolvimento fisico e mental do que a mulher; as habilidades da mulher sdo consideradas mais medianas. ‘Uma teoria popular a esse respeito afirmava que a mulher exposta & educacao supe- rior além da formagao bdsica sofreria de danos fisicos e emocionais. Alguns psicologos alegavam que a mulher com nivel de educacao superior colocava em risco as condigdes piolégicas necessarias para a maternidade, interrompendo o ciclo menstrual ¢ enfraque- Cartruo 7 FUNCIONALISMO: FUNDAGRO E EVOLUGKO 169 cendo 0 instinto maternal. Um psicdlogo chegou & afirmar que, se a mulher desejasse sigum tipo de educacao, “que fosse sGureada para a maternidade” (G. S. Ball, apud Diehl, 1986, p. 872) ‘bm professor da escola de medicina de Harvard declarou que a educagio produzia nna mulher “cérebtos monstruosos ¢ corpos Tanzines, atividade cerebral anormal ¢ diges- tao extremamente deficiente; raciocinios dispersos & mal funcionamento do intestino” resposta) dever ser vistos como uma unidade endo como uma composicao de sensac6es ¢ respostas individuais ‘Assim, Dewey argumentava nao ser possivel a reducao do comportamento envolvido na resposta reflexiva a elementos sens6rio-motores basicos, assim como €ra impossivel anali- var de forma adequada a consciéncia, dividindo-a partes componentes elementares Esse tipo de andlise e teducao artificiais faz com que 0 comportamento perca todo co sentido, deixando apenas abstracdes na men's do psicdlogo que est4 realizando 0 exer cielo, Dewey observou que o comportamento nao deve ser tratado como um constructo cientifico artificial, mas em termos do seu significado para 0 organismo, na adaptacao go ambiente. Ele concluiu que o objeto de ‘estudo mais adequado para a pstcologia seria andlise do organismo Inteiro € 0 seu funcionamento no ambiente. Comentarios © evolucionismo exerceu grande influéncia sobre a8 ideias de Dewey. Na luta pela sobre- vivéncia, tanto a consciéncia como 0 Comportamento trabalham para o organism; vonsciencia gera comportamento adequado que permite ao organismo sobreviver, Como consequéncia, a psicologia funcional Gedicou-se ao estudo do organismo em fun- cionamento. £ interessante observar que Dewey jamais chamou a sua psicologia de funcionalismo. Aparentemente, nao acreditava que a estrutura ea funcao tivessem sentido separadamen- te, apesar do seu ataque contra a premissa pasiea do estruturalismo. Angell e outros psi- célogos ficaram encarregados de declarar que © funcionalismo e © estruturalismo eram formas contrarias de psicologia. ‘A importancia de Dewey para a psicologia estd na sua influéncia sobre 0s psicdlogos e outros estudiosos e no desenvolvimento da estrutirt filos6fica da nova escola de pensa- mento, Quando ele deixou a University of Chicago ‘em 1904, Angell passou a ser 0 lider do movimento funcionalista. | James Rowland Angell (1869-1949) James Rowland Angell moldou 0 movimento funcionalista, transformando-o em nee escola de pensamento utilitaria. Gragas a0 sc trabalho, o departamento de psicologia da University of Chicago foi o mais importante da sua época e a principal base de orientaca0 para os psicdlogos funcionalistas. 180 HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA, A Biogratia de Angell Angell nasceu em uma familia de académicos, em Vermont, Seu av6 fora reitor da Brown University, em Providence, Rhode Island, e seu pai, reitor da Vermont University e depois da University of Michigan, onde Angell se formou e teve aulas com Dewey. Leu também The principles of psychology, de James, e afirmou ter sido 0 livro que mais influenciou seu pensamento. Angell trabalhou um ano com James, em Harvard, e obteve o mestrado em 1892. Seguiu para a Europa para continuar seus estudos de pés-graduacao nas universi- dades de Halle e Berlim, na Alemanha. Em Berlim, assistiu as aulas de Ebbinghaus e Helmholtz. Desejava seguir para Leipzig, mas Wundt nao estava mais aceitando alunos naquele ano. Angell nao conseguiu completar seu trabalho de doutorado. Sua tese fora aceita mediante a condi¢ao de que a redacao em alemao fosse melhorada, mas para isso teria de permanecer em Halle sem qualquer fonte de renda. Decidiu aceitar a indicagao para lecionar na University of Minnesota, cujo saldrio, embora baixo, era razoavel para quem desejava casar-se depois de um noivado de quatro anos, Apesar de jamais ter con- clufdo © doutorado, orientou diversos doutorandas e, no curso da sua carreira, recebeu 23 titulos honorarios. Depois de um ano em Minnesota, Angell aceitou trabalhar na University of Chicago, onde permaneceu por 25 anos. Seguindo a tradi¢ao familiar, foi reitor da Yale University e ajudou a desenvolver o Instituto de Relagdes Humanas. Em 1906, foi eleito 15° presi- dente da APA e, depois de se aposentar da vida académica, foi conselheiro da National Broadcasting Company (NBC) A revista Time, e outras pessoas que o conheciam bem, descreveu Angell como “um homem alegre e saltitante” e “a alegria da festa." Seu apelido na University of Chicago era “Jim, o Radiante”. Também se comentava que nao era aconselhvel andar a pé ou de carro com ele, pois “ele tinha 0 habito inacreditavel de atravessar a rua sem prestar atenc&o ao transito. Sinais de transito nao significam nada para ele. (...) Com a mesma seguranca descuidada ¢ habilidade incrivel, ele dirige seu carro” (apud Dewsbury, 2003, p. 66-69) A Esfera de Acao da Psicologia Funcional O livro de Angell, Psychology (1904), incorpora a abordagem funcionalista e obteve tanto sucesso que foram publicadas quatro edigdes em quatro anos, sinalizando o apelo da posicao funcionalista. Nele, Angell afirmava ser fungao da consciéncia a melhoria da capacidade de adaptacao do organismo. O objetivo da psicologia era estudar de que modo a mente auxilia o organismo a se adaptar ao seu ambiente. No discurso de posse como presidente da APA, em 1906, publicado na Psychological Review, Angell descreveu 0 que chamou de “esfera de atuacao” da psicologia funcional Até aqui observamos que os novos movimentos ganharam impulso somente quando se referiram ou se opuseram a posicao popular naquele momento. Angell tragou as linhas da batalha com avidez, mas concluiu com modéstia: “Renuncio formalmente a qualquer intengao de tracar novos planos; estou comprometido com o que se propée ser um suma- rio imparcial das condigoes reais” (Angell, 1907, p. 61). A psicologia funcional, afirmou Angell, nao consiste, de todo, em uma novidade e sim em uma parte significativa da psicologia desde o seu inicio, Foi a psicologia estrutural que CAPITULO 7 FUNCIONALISMO: FUNDAGAO E EVOLUGAO 181 se colocou a parte da forma de psicologia funcional mais antiga e verdadeiramente mais Gifusa. Assim Angell descreveu os trés principais temas do movimento funcionalista: 1, Apsicologia funcional é a psicologia da operagao mental, ao contrario do estrutura- lismo, que é a psicologia dos elementos mentais. O aspecto elementar da psicologia de Titchener ainda contava com defensores ¢ Angell promovia o funcionalismo em oposigio direta a ele. A tarefa do funcionalismo € descobrir 0 modus operandi do processo mental, as suas realizacdes ¢ as condig6es sob as quais ele ocorre. 2. A psicologia funcional é a psicologia das utilidades fundamentais da conscién- cia. Desse modo, a consciéncia ¢ vista como um instrumento utilitario, j4 que faz a mediacio entre as necessidades do organismo e as condi¢des do ambiente. As estruturas e as func6es organicas existem a fim de permitir que o organismo se adapte ao ambiente para, assim, sobreviver. Angell sugeria que a consciéncia sobrevivia para executar alguma funcao essencial para 0 organismo. Os psicdlo- gos funcionalistas precisavam descobrir exatamente qual era essa fungao, ndo apenas da consciéncia como também dos processos mentais mais especificos, como 0 julgamento e a vontade. A psicologia funcional é a psicologia das relagGes psicofisicas (as relacoes mente- corpo) ¢ dedica-se ao estudo de todas as relac6es entre o organismo e seu ambien- te. O funcionalismo abrange todas as fungdes mente-corpo e nao faz qualquer distingao entre a mente € 0 corpo. Ele os considera pertencentes a mesma classe e admite a facilidade de transferéncia entre eles. Comentarios O discurso de posse de Angell na APA foi realizado em uma época em que 0 espirito do funcionalismo ja era amplamente aceito. Angell moldou esse espirito em uma empreita- da ativa ¢ destacada, tendo como instrumentos um laboratrio, um corpo de dados de pesquisa, um grupo de professores entusiasmados e um nticleo de dedicados estudantes de pés-graduacao. Ao dirigir o funcionalismo para ocupar o status de escola formal, atri- buiu-lhe o enfoque ea importancia para efetiva-lo. Todavia, continuou a afirmar que o fun- cionalismo nao constituia na verdade uma escola de pensamento separada nem devia ser relacionado exclusivamente com a University of Chicago. Apesar das objegdes de Angell, 0 funcionalismo prosperou e frequentemente referiam-se a ele como a “escola de Chicago”, sendo permanentemente associado com 0 tipo de psicologia ensinado e praticado ali. Harvey A. Carr (1873-1954) Harvey Carr fez especializacao em matematica na DePauw University, Indiana, e na Uni- versity of Colorado. Passou a se interessar pela psicologia aparentemente por admirar 0 professor. “Decidi tornar-me psic6logo”, declarou, “embora conhe¢a muito pouco a respeito da natureza da matéria” (Carr, 1930/1961. p. 71). Nao existia laborat6rio de psicologia em Colorado, entdo, Carr transferiu-se para a University of Chicago, na qual seu primeiro profes- sor de psicologia experimental foi o jovem professor-assistente, James Rowland Angell. 182 HisTORIA DA PSICOLOGIA Moperna No seu segundo ano em Chicago, Carr trabalhou como assistente de laboratério de John B. Watson que, na época, era instrutor e mais tarde viria a fundar a escola de pensa- mento behaviorista. Watson apresentou a Carr a psicologia animal. Depois de obter o doutorado em 1905, Carr lecionou em uma escola de ensino médio no Texas €, em Michigan, em uma faculdade para professores estaduais, Em 1908, retor- Feu a Chicago para substituir Watson que havia aceitado uma posigéo na Johns Hopkins University. Por fim, Carr sucedeu Angell como chefe do departamento de psicologia da University of Chicago. Durante o mandato de Cart (1 919-1938), o departamento de psico- logia concedeu 150 titulos de doutorado. Funcionalismo: o Formato Final cologia funcional a psicologia americana. Afirmava que as demais vers6es de psicologias Bropostas naquela época, como o behaviorismo, a psicologia da Gestalt ¢ 2 psicanilise, dedicavam-se apenas a alguns aspectos limitados do campo. Acreditava que essas visées ‘ndo tinham muito a acrescentar na tao abrangente psicologia funcionalina O livro basico de Carr, Psychology (1925), apresenta a forma mais refinada de funcio- nalismo, do qual se destacam dois pontos principais: * Carr definiu a atividade mental como objeto de estudo da psicologia — os processos mentais, como a meméria, a percepg4o, o sentimento, a imaginacao, 0 julgamento € a vontade. * A funcio da atividade mental ¢ a aquisicao, fixacdo, retengao, organizacdo e aya- Hagao das experiéncias e a sua utilizacao para determinar a acao de uma pessoa. Carr chamou a forma especifica de agao, na qual aparece a atividade mental, de compertamento de “adaptacao” ou “ajuste”. E possivel perceber, nas ideias de Carr, a énfase familiar da psicologia funcional nos pro- cessos mentais endo nos elementos nem no contetido da consciéncia. E, ainda, observa-se uma descri¢ao da atividade mental em termos das realizacoes que permitem a adaptacao do organismo a seu ambiente. £ importante ressaltar que, em 1925, essas questoes j4 eram aceitas como fatos € ndo mais como objeto de debate. Nesse periodo, 0 funcionalismo ja era considerado psicologia geral. Como muitos psicélogos se consideravam, de alguma forma, funcionalistas, essa deno- resto comesou a perder 0 significado, Os profissionais da érea denominavam.se sim- Plesmente psicdlogos e nao era necessdrio afirmar que a atitude funcional fazia parte do comportamento do psic6logo. (Wagner e Owens, 1992, p. 10) Carr aceitava os dados obtidos por meio dos métodos experimental ¢ introspectivo. Assim como Wundt, acreditava que as criac6es artisticas e literdrias de uma cultura dariam Indicacdes sobre as atividades mentais que a produziram. Embora funcionalismo nao Cantruto 7 FUNCIONALISMO: FUNDAGAO E EOLUCAO 183 adotasse uma metodologia tinica, como fazia 0 estruturalismo, na pratica, a énfase estava na objetividade. Quando se empregava @ introspeccao, ela era limitada ao maximo Por soatroles objetivos. Além disso, ¢ importante ‘observar que o funcionalismo empregava nas pesquisas tanto animais como seres humanos. F escola funcionalista de Chicago promoveu 4 transferéncia do estudo exclusivo da mente e da consciéncia subjetiva para o estudo do comportamento objetivo e patente. © funcionalismo ajudou a redefinir a psicologia americana, que acabou concentrando © foco no comportamento € eliminando © cetuddo da mente como um todo. Nesse sentido, os funcionalistas criaram uma ponte entre 4 psicologia estruturalista ¢ a psicologia com: portamental dle Watson, que vitia a ser a subsequente proposta revolucionaria. Funcionalismo na Columbia University Como observamos até agora, nao existiu uma forma {anica de psicologia funcional nos mesmos moldes da psicologia estrutural exclusiva de Titchener. Embora a evolucao inicial e a fundacdo ta escola de pensamento funcionalista houvessent ocorrido na University of Chicago, outro ponto de vista vinha sendo formado por Robert Woodworth na Columbia University. Essa pniversidade também foi a base académica de outros dois psicdlogos de orientagao funcionalis- ta. Um fol James McKeen Cattell, cujo trabalho sobre os testes mentais incorporou o espirito fancionalista americano (veja no Capitulo 8), ¢ © oute foi E. L. Thorndike, cuja pesquisa a respeito dos problemas da aprendizagem snitnal reforcou a tendéncia funcionalista @ maior objetividade (veja no Capitulo 9). Robert Sessions Woodworth (1869-1962) Robert Woodworth nao pertencia formalment® escola de pensamento funcionalista como pertenciam tradicionaimente Carr € "Angell. Ele nao apreciava as restrigdes Impossas por tnembros de qualquer escola de pensamento- Entretanto, grande parte do trabalho que eccreveut sobre a psicologia seguia © espirito fancionalista da escola de Chicago, além de haver introduzido um importante ponto de vista, ABiografia de Woodworth Woodworth trabalhou ativamente na psicologia com? pesquisador por mais de 60 anos ¢ fol um amado professor, escritor € editor. Depois de obter o bacharelado na Amherst Col- Jege, em Massachusetts, lecionou ciéncias em cum colégio e matematica em uma modesta faculdade. Nesse perfodo, duas experiéncias mudaram a sua vida: a primeira, a palestra a que assistin do famoso psicdlogo C Stanley Hall ea segunda, a leitura do livro The princi- ples of psychology, de William James. Decidiu que deveria tornar-se um psicologo- Matziculou-se na Harvard University, onde obteve © mestrado e, em 1899, na Columbia, recebeu o titulo de Ph.D., de James McKeen Cattell, Woodworth deu aulas de fisiologia em hnospitais da cidade de Nova York por trés anos © durante um ano trabalhou na Inglaterra 184 HistORia DA PsICOLOGIA MODERNA com 0 fisiologista Charles Scott Sherrington. Em 1903, retornow 4 Columbia, onde lecio- nou até a sua primeira aposentadoria, em 1945. Sua popularidade entre os alunos era tao grande que continuou a dar aulas a classes enormes até aposentar-se pela segunda vez, com 89 anos. Gardner Murphy, um ex-aluno, recorda-se de Woodworth como o melhor professor que tivera no curso de psicologia, descrevendo-o assim: ele entrava “na sala de aula ves- tindo um velho terno folgado e amassado € calgando coturnos do exército”. Dirigia-se até 0 quadro-negro e “pronunciava alguma palavra inimitavel pela extravagancia e perspica- cia e que anotavamos no caderno para nos lembrarmos dela por muitos anos seguintes” (Murphy, 1963, p. 132). Woodworth descreveu sua visio de psicologia em diversos artigos de revistas e em dois livros, Dynamic psychology (1918) e Dynamics of behavior (1958). Escreveu um texto introdu- torio, Psychology (1921), que foi langado em cinco edic¢Ses, em 25 anos, ¢ que superou em vendagem os demais textos relativos a psicologia na época. A obra Experimental psychology (Psicologia experimental) (1938, 1954) também tornou-se um livro de referéncia classico. Em 1956, recebeu a primeira medalha de ouro concedida pela American Psychological Foundation [Fundagao Americana de Psicologia] devido a sua “inigualavel contribuigao na formacao de destino da psicologia cientifica” e por ser “integrador e organizador do conhecimento psicolégico”. A Psicologia Dinémica Woodworth dizia que sua abordagem nao consistia em nenhuma novidade e que era a mesma seguida pelos melhores psicdlogos, mesmo antes de a psicologia tornar-se cién- cia. O conhecimento psicolégico deve comegar com uma investiga¢ao sobre a natureza do estimulo e da resposta, que sao, com objetividade, os fatos externos. Mas, quando os psicdlogos consideram somente o estimulo e a resposta para explicar 0 comportamento, perdem o que pode ser a parte mais importante do estudo, o organismo vivo propria; mente dito. O estimulo nao é a tinica causa de determinada resposta. O organismo, com seus niveis de energia variaveis e as experiéncias passadas e presentes, também atua para determinar a resposta. A psicologia precisa considerar 0 organismo interposto entre o estimulo ea resposta. Portanto, Woodworth sugeria que 0 objeto de estudo da psicologia fosse tanto a conscién- cia como 0 comportamento (essa posi¢ao foi adotada posteriormente pelos psicdlogos humanistas e pelos tedricos da aprendizagem social). E possivel estudar 0 organismo de forma objetiva, analisando o estimulo externo tanto como a resposta, mas 0 que ocorre dentro do organismo s6 pode ser conhecido pela introspeccao. Sendo assim, Woodworth aceitava a introspeccao como uma ferramenta itil para a psicologia, juntamente com os métodos experimental e de observacao. Woodworth introduziu no funcionalismo a psicologia dinamica, que desenvolveu com base nos ensinamentos de John Dewey e William James (Dewey usara a palavra “dina- mico” nesse contexto ja em 1884, e James, em 1908). A psicologia dinamica diz respeito ao estudo da motivacao e a intengo de Woodworth era desenvolver o que chamava de “motivatologia” (0 estudo da motivagao). Carituto 7 FUNCIONALISMO: FUNDAGAO E EvOLUCAO 185 Paicologia dindmica: sistema de psicologia de Woodworth, que se dedica 205 fatores causals @ 2 mmotivacoes que infiuenciam os sentimentos e © comportament Embora se observem semelhangas entre a visdo de Woodworth e a dos funcionalistas de Chicago, ele enfatizava os fatos psicolégicos que estdo Pot tras do comportamento. sua psicologia dindmica concentrava-se nas relacoes causa-efeito e principalmente nas forcas que direcionam ou motivam os seres humanos ‘Acreditava que a psicologia devia dedicar-se a identificar por que as pessoas se comportam de determinado modo. Woodworth nao adotou um sistema tinico nem desejava estabelecer a propria escola de pensamento. Seu ponto de vista nao foi construido com base em um protesto, mas cstendendo, elaborando e sintetizando as caracterfsticas apropriadas de outras abordagens que selecionava. Criticas ao Funcionalismo 0s ataques contra 0 movimento funcionalista surgiram rpida e veementemente por parte dos estruturalistas. Pela primeira vez, pelo menos nos Estados Unidos, a nova psicologia dividia-se em faccdes rivais: 0 laboratorio de Titchener na Cornell University como quar tel-general do estruturalismo ¢ o departamento de psicologia da Chicago University, para os funcionalistas. As acusacOes, as investidas ¢ os contra-ataquies partiam de um lado a cutro entre os inimigos que se consideravam no direito de se denominarem, cada um, © dono da verdade. Uma das criticas contra o funcionalismo era que o proprio termo nao era muito bem definido, Um aluno de Titchener, C. A. Ruckmick, examinow 15 livros de introdugao a psicologia para identificar como cada autor definia o termo fungao. As duas definigoes vrais comuns eram no sentido de atividade ou processo ¢ No sentido de servir a outros processos ou ao organismo como um todo (Ruckmick, 1913). Na primeira definigao, funcao é sindnimo de atividade, por exemplo, as ages de lem- prar e perceber sao funcdes. Na segunda, a funicao definida com relacao a utilidade de alguma atividade para 0 organismo, como as funcdes digestivas ou respiratorias. Rackmick acusava os funcionalistas de inconsisténcla e ambiguidade, ja que as vezes empregavam a palavra fung#o para descrever uma atividade ¢ outras referindo-se a sua utilidade. Durante 17 anos nao houve resposta da escola funcionalista para es: acusaciio, até que Harvey Carr alegou nao haver inconsisténcia nas duas definigdes, j4 que ambas se teferiam aos mesmos processos (Cart, 1930). Os psicologos funcionalistas estavam interes- sados em uma atividade especifica em beneficio proprio (a primeira definicao) e também has suas relagbes com outras condicdes ou atividades (a segunda definicio). Observou que os bidlogos geralmente seguiam uma pratica semelhante. No entanto, “primeiro © fancionalismo empregava 0 conceito para depois defini-lo ¢ essa sequéncia é caracteristica do movimento” (Heidbreder, 1933, p. 288). Oatra critica de Titchener e seus seguidores estd relacionada adefinigdo da psicologia. Os estruturalistas afirmavam que o funcionalismo ndo era psicologia. Por qué? Porque alegavam que o funcionalismo nao adotava os métodos e 0 objeto de estudo do estrutura- listo! Assim, na visdo de Titchener, qualquer abordagem da psicologia que se desviasse da andlise introspectiva da mente com base nos elementos componentes nao podia ser 186 HisTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA chamada de psicologia. E, é Sbvio que era exatamente essa defini¢do de psicologia que os funcionalistas estavam questionando. Os criticos também consideravam equivocado o interesse dos funcionalistas pelas ques- tes praticas, reacendendo, assim, a interminavel polémica entre a ciéncia pura ea aplicada. Os estruturalistas ignoravam qualquer aplicagao do conhecimento psicolgico aos proble- mas do mundo teal, enquanto os funcionalistas nao viam a menor utilidade em manter a psicologia como uma ciéncia pura € jamais abriram mao do seu interesse pratico. Carr acreditava na possibilidade de adogao do procedimento cientifico rigoroso tanto na psicologia pura como na aplicada e também na realizacaio de pesquisas validas nas fabricas, escritérios, salas de aulas, bem como nos laboratérios universitdrios. Eo método e nao 0 objeto de estudo que determina a validade cientifica de qualquer campo de inves- tigacdo. Essa incessante disputa entre a ciéncia pura e a aplicada nao é mais tao acirrada na psicologia americana como foi um dia, principalmente por causa do grande poder de penetracao da psicologia aplicada. A aplicagdo pratica da psicologia nos problemas reais esta entre as principais e mais duradouras contribuigdes do funcionalismo. Contribuicées do Funcionalismo A forte oposi¢ao do funcionalismo ao estruturalismo teve enorme impacto na evolugao da psicologia nos Estados Unidos. A amplitude das consequéncias da transferéncia da énfa- se da estrutura para a funcao também foi bastante significativa. Um dos resultados foi a incorporagao da pesquisa do comportamento animal, que nao fazia parte do tratamento estruturalista como drea de estudo da psicologia. A ampla base da psicologia funcionalista também incorporava os estudos sobre bebés, criangas e adultas com dificuldades mentais. Os funcionalistas complementavam o método introspectivo com dados obtidos por meio de outros métodos, como a pesquisa fisiolégi- ca, os testes mentais, os questiondrios e as descrigdes objetivas do comportamento. Essas abordagens, rejeitadas pelos estruturalistas, transformaram-se em fontes respeitaveis de informagao para a psicologia. Na €poca da morte de Wundt, em 1920, e de Titchener, em 1927, suas abordagens j4 estavam obscuras nos Estados Unidos. Por volta de 1930, consolidava-se a vitoria do fun- cionalismo. Como veremos no Capitulo 8, 0 funcionalismo deixou a sua marca na psico- logia americana contemporanea mais significativamente devido a énfase na aplicacao dos métodos e das descobertas da psicologia para a solucao dos problemas praticos. Temas para Discussao 1. Descreva a nogao de Spencer a respeito do darwinismo social. 2. Por que os Estados Unidos receberam tao bem as ideias de Spencer a respeito do darwinismo social? 3. Quem ampliou as ideias de Darwin sobre a evolugao das maquinas? Descreva a posigao dessa pessoa em relagao a evolugao mecanica. 4. Por que o tipo de calculadora criada por Babbage em meados do século XIX nao era mais adequado no final do mesmo periodo? Caritulo 7 FUNCIONALISMO: FUNDAGAO E EvOLUCAO 187 5. Descreva a abordagem de Hollerith quanto ao processamento de informacoes com a utilizagao da maquina. 6. O que é neurastenia? Qual segmento da sociedade norte-americana do século XIX teve maior probabilidade de apresentar neurastenia? 7, Qual a diferenga entre o tratamento prescrito para homens ¢ mulheres para tratar neurastenia? 8. Por que James foi considerado o principal psicologo americano? Descreva a sua atitude em relacao ao trabalho laboratorial. 9. Qual a diferenga entre a visdo de James e a de Wundt a respeito da conscién- cia? Para James, qual era 0 propésito da consciéncia? 10, Quais os métodos considerados adequados por James para estudo da cons- ciéncia? Qual foi o valor do pragmatismo na nova psicologia? 11, ‘Segundo James, quais s40 0s componentes da percepsao do eu de uma pessoa? Também segundo James, que papel tem 0 vestudrio na nossa percepgao do eu? 12. Descreva a hipétese da variabilidade ¢ sua influéncia na ideia da superiori- dade masculina. Como as pesquisas de Woolley Hollingworth refutaram essas ideias? 13. Como o trabalho de G. Stanley Hall foi influenciado pela teoria evolutiva de Darwin? Descreva a teoria de Hall sobre a recapitulacdo do desenvolvimento. 14, O que, na psicologia americana, pode ser atribuido a Hall como realizagdes inéditas? Por que ele era chamado de psicdlogo genético? 15, De que forma Titchener e Dewey contribufram para a fundacao da psicologia funuional? Por que 0 funcionalismo nao era dotaco de uma forma ‘inica, assim como 0 estruturalismo? 16. Para Angell, quais eram os trés principais temas do funcionalismo? Que métodos de pesquisa Carr considerava adequados para a psicologia funcional? 17. Descreva a psicologia dinamica de Woodworth e a sua visio sobre a intros- peccao. O proprio Woodworth considerava-se um psicélogo funcionalista? Por que sim ou nao? 18, Faca uma comparacio entre as contribuigoes do funcionalismo e do estrutu- ralismo na psicologia. 19. Por que a psicologia aplicada desenvolveu-se no funcionalismo e nao no estruturalismo? Sugestoes de Leitura Campbell-Kelley, M.; Aspray, W. Computer: A history of the information machine. Nova York: asic Books, 1996, Traca 0 desenvolvimento do computador a partir do trabalho de Hollerith e o seu tabulador de cartées perfurados utilizado no censo de 1890. 188 HistOria DA PSICOLOGIA MODERNA Cart, H. A. Autobiography. In Murchison, C. (Ed.). A history of psychology in autobiography. Nova York: Russell & Russell, 1961, v. 3, p. 69-82. (Trabalho original publicado em 1930.) As lembrancas de Harvey Carr sobre a sua carreira. Furumoto, L. From “paired associates” to a psychology of self: the intellectual odyssey of Mary Whiton Calkins. in Kimble, G. A.; Wertheimer, M.; White, C. (Eds.). Portraits of pioneers in psychology. Washington, DC: American Psychological Association, 1991, p. 57-72, Descreve a abordagem de Callin sobre a pesquisa experimental em psico- logia dentro do contexto académico de uma faculdade para mulheres (Wellesley, 1887-1930). Klein, A. A forgotten voice: A biography of Leta Stetter Hollingworth. Scottsdale, AZ: Great Potential Press, 2002. Descreve sua extraordindria vida, sua luta para tirar proveito das oportunidades abertas as mulheres daquele tempo e suas contribui¢oes para a psicologia e educacao, especialmente para criangas superdotadas. Lewis, R. W. B. The Jameses: A family narrative. Nova York: Farrar, Straus and Giroux. Um relato da familia de James, incluindo William (psic6logo), Henry (romancista) e Alice (ativista politica) Lutz, T. American nervousness, 1903: An anecdotal history. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1991. Discute a neurastenia, doenca cultural prevalecente nos Estados Unidos no inicio do século XX, e especula sobre seus efeitos provocados em William James, entre outros. Martin, J. The education of John Dewey: A biography. Nova York: Columbia University Press, 2002. Uma historia muito interessante sobre a vida pessoal de Dewey ¢ a implemen- tacdo de suas ideias na educacao progressista. McKinney, F. Functionalism at Chicago ~ memories of a graduate student: 1929-1931. Journal of the History of the Behavioral Sciences, n. 14, p. 142-148, 1978. Descreve 0 corpo docente, 0 corpo discente, o programa do curso e o clima intelectual do departamento de psicologia da University of Chicago. Richardson, R. D. William James: In the maelstrom of American modernism. Boston: Houghton Mifflin, 2006. Uma biografia excelente da vida pessoal ¢ intelectual de William James. Simon, L. William James remembered. Lincoln: University of Nebraska Press, 1996. Cole- tanea de lembrancas de membros da familia, amigos ¢ lideres intelectuais daquela época, a respeito de James. ‘Thorne, F. C. Reflections on the Golden Age of Columbia's psychology. Journal of the History of the Behavioral Sciences, n. 12, p. 159-165, 1976. Descreve 0 corpo docente e 08 interesses em pesquisas do departamento de psicologia da Columbia University (1920-1940). White, S. H. Child study at Clark University: 1894-1904. journal of the History of the Behavioral Sciences, n. 26, 131-150, 1990. Descreve os questionrios para estudar 0 desenvolvimento infantil, iniciados por Hall.

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