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SOCIOLOGIA - PROBLEMAS E PRATICAS. N24, 1997, pp. 45-69 A mobilidade social revisitada Sérgio Gracio Resumo: Neste artigo pretende-se demonstrar até que ponto a legitimidade cientifica de um objecto como a mobilidade social, ¢ a forma de a conceber, estiveram sempre imbricados. de modo por vezes surpreendente, na discus- so sobre as classes sociais e a estratificagto social. Seguidamente analisa- =s¢ 0 debate sobre a mobilidade, nomeadamente aquele que se desenvolve em torno da distingfio entre uma mobilidade estrutural e uma “verdadeira” mobilidade, e 0 seu contributo para um progresso muito significative no estudo deste conceito. Desta forma foi possfvel obter resultados empiricas acerca dos fenmenos de mobilidade social em larga medida inesperados. muito televantes para caracterizar determinados aspectos da mudanga cultu- ral social nas nossas sociedades Palavras-chave: Mobilidade social; Estratificagao social; Mudanga social Introdugao Os estudos sobre a mobilidade social, que haviam florescido sobretu- do na sociologia americana durante os anos 50 e 60, e ainda pela primeira metade dos anos 70, tornaram-se de ent&o para c4 um dominio residual da investigagdo. Sucedeu o mesmo, de modo porventura ainda mais acen- tuado, com os estudos sobre as classes sociais e a estratificagao social, que tinham alimentado um largo debate de natureza essencialmente ted- rica, no qual estava alids em jogo uma parte extremamente importante do debate tedrico sociolégico mais genérico. A controvérsia sobre as classes e a estratificagdo tinha dado a estas nogées 0 estatuto de objectos em si mesmos, centrais para a definigao da natureza das nossas sociedades e do perfil dominante das suas estruturas sociais. As préprias sociologias especializadas, sobretudo no caso da sociologia europeia, eram amplamente atravessadas por toda esta refle- 46 Sérgio Gricio xa@o, que por vezes tinha um papel estratégico na construgado dos seus dominios de investigagao. Mas também aqui se evoluia rapidamente para dar Aquelas nogdes um outro estatuto, 0 de meros conceitos auxiliares, com um papel mais ou menos relevante nas constelagdes conceptuais de objectos diversos. Isso nao implicou necessariamente a sua utilizagfo acritica, sem qualquer preocupagao de fundamentar devidamente as escolhas realizadas no tra- balho empirico, fazendo tdbua rasa do amplo e rico debate anterior. Contudo nao hé dtivida de que a trilogia classes-estratificag4o-mobilidade social havia definitivamente perdido a centralidade na discussio e inves- tigagdo socioldgicas. Deve necessariamente deixar-se aqui como nota que a sociologia portuguesa constitui muito provavelmente e até um certo ponto um caso a parte neste panorama. A sua histéria relativamente recente, e relativa- mente 4 margem dos principais centros de produgao internacionais, im- primiram-lhe tragos especfficos, como assinaloy José Madureira Pinto (1993). Trabalhos como os de Joao Ferreira de Almeida (1986), Anténio Firmino da Costa (1985, 1987) ou Maria Manuel Vieira (1993) sao tes- temunho da plena validade da construgiio de objectos empiricos centrados nos conceitos de classe e de mobilidade social. Mostram também como & possivel renovar o debate tedrico sobre as classes através de uma dis- cussao actualizada e de alcance genérico, mobilizando algumas das mais importantes questdes e alternativas da andlise sociolégica. Nos desenvolvimentos seguintes procuramos mostrar como a legiti- midade cientifica de um objecto como a mobilidade social, e a maneira de a conceber e abordar, estiveram desde sempre estreitamente entrelagadas, de modo por vezes surpreendente, com o debate sobre as classes sociais e a estratificagao social. Em seguida da-se conta de como 0 debate sobre a mobilidade, em especial 0 debate 4 volta da distingao entre uma mobilidade estrutural e uma «verdadeira» mobilidade, acabou por conduzir a importantes progressos metodoldgicos no seu estudo. Trata-se de progressos que permitiram obter resultados empiricos acerca dos fenémenos de mobilidade social em larga medida inesperados, e muito relevantes para caracterjzar determinados aspectos da mudanga cultural € social nas nossas sociedades. E isso acontece nao obstante algumas tentativas orientadas para essa caracterizagao ignorarem aqueles resultados, pelo que, sustenta-se, 0 seu teor amplamente tedrico e mesmo ensafstico poderia ser proveitosamente transformado em programas de investigagdo empirica. A mobilidade social revisitada 47 O estudo da mobilidade social: um panorama multifacetado O conceito de uma estrutura social essencialmente estratificada, e nao marcada por uma divisdo classista, incitava e dava plena legitimidade aos estudos sobre a mobilidade social. Quando a distribuigio das posigées tem lugar quase num continuum, é favorecida a circulagao dos individuos de umas posigGes para as outras (Cuin, 1993: 88-91). Circulagao que tem alids um cardcter eminentemente necessdrio ¢, logo, funcional, uma vez que realiza o ajustamento das caracterfsticas individuais aos requisitos ligados as posigdes, 0 mesmo é dizer, do conjunto da oferta individual A procura societal. A teoria bem conhecida de Kingsley Davies e Wilbert Moore sobre a estratificaco social (Almeida, 1986: 55-7) foi amplamente discutida nos anos cinquenta e no principio dos anos sessenta. Postulava o duplo ajustamento entre a diversidade e desigualdade das condigdes as necessi- dades do conjunto e entre a diversidade e desigualdade dos talentos e capacidades individuais e as posigées, ¢ pode ser vista como um dos simbolos da afinidade entre a problematica da estratificagio e da mobi- lidade, Esta tendéncia desenha-se evidentemente sobretudo na sociologia americana, com nomes cimeiros como Seymour M. Lipset e Reinhard Bendix, bem como Peter M. Blau e Otis D. Duncan. Isto nao significa gue a dita tendéncia se desenvolva na linha estrita da ortodoxia funcionalista, e de entre estes dois pares de autores 0 primeiro até pode considerar-se como menos préximo dela que 0 segundo. Contudo, existe aqui sem dtivida um fundo problemético comum. Aspectos essenciais - ¢ susceptiveis de validagdo empirica - do que era mais ou menos peremp- toriamente afirmado pelos tedricos do funcionalismo s&o retomados sob a forma de programas de investigagae pelos socidlogos da mobilidade social, movidos por uma vontade de construir dispositivos de investiga- go empfrica orientados para dar uma base sdlida & apreciagio e discus- so das propostas teGricas Entre estas nfo se pode deixar de referir como segundo simbolo da afinidade entre as duas problematicas as de Talcott Parsons (1964: 95- 112, 182-91) sobre a natureza e as bases culturais das nossas sociedades, erescentemente orientadas para padrdes universalistas de realizacdo pes- soal. A possibilidade de os actores escolherem entre um leque plural de fins é em si mesma valorizada, o que elimina a tradi¢’o nas suas esco- Ihas. Em vez de estarem & partida adstritos a estatutos e papeis determi- nados, os actores est4o orientados para modalidades diversas da sua realizagao pessoal e os resultados das suas acgdes sfo apreciados de acordo 48 Sérgio Gracio com critérios universais, independentes de este ou outro contexto particu- lar. Existe uma forte inibigio em imputar uma superioridade genérica, de principio (ou uma inferioridade de princfpio) a uma classe, um papel, um individuo. Isso constitui um importante factor simbélico de abertura das sociedades, favorecendo a circulagio dos indivfduos entre as posigdes. Num sistema social deste tipo ganham enorme relevo os papeis profissi- onais, como sector onde estdo mais institucionalizados os valores domi- nantes, Compreende-se deste modo que o interesse pela mobilidade social estivesse muito motivado pela preocupagao em verificar até que ponto a pintura tedrica era ou nao confirmada. E, para isso, que melhor instru- mento de validag%o empirica do que a tabela de mobilidade intergeracional? Qs actores esto orientados para a realizagao profissional, as sangdes que recaem sobre as suas acgées sao de cardcter equitativo e néo comandadas pelo arbitrario particularista. Vejamos ent&o qual o grau de dependéncia entre os estatutos de origem e os estatutos adquiridos. Se hd nagées, como parece ser 9 caso dos EUA, onde os novos valores esto mais difundidos, so de esperar af fluxos de mobilidade social mais importan- tes. No seu vasto estudo empfrico sobre a mobilidade nos EUA, Blau e Duncan (1978: 430-1) afirmaram que as sociedades industriais sdo ja dominadas por valores universalistas. Os critérios objectivos de avaliagdo aceites por todos minaram os padrées particularistas € os juizos intuitivos nao susceptiveis de verificagéo empirica. A crescente interdependéncia entre os individuos e os grupos gerada pela extensdo da divisdo do tra- balho tornou-se a fonte da sua solidariedade organica, enfraquecendo os valores particularistas dos grupos que uniam os individuos em formas de solidariedade mecanica. O facto de haver nos EUA uma orientagao ma- terialista e altos padrées de vida favorece a redugio das distingdes esta- tutdrias, 0 que constitui um importante incentive & formagao de aspiragdes de mobilidade ascendente. As relagdes de deferéncia s4o orientadas uni- camente por consideragées utilitaristas, por exemplo as que se estabele- cem entre o perito profissional e os seus clientes. A interacg’o entre os membros dos estratos altos e baixos nos EUA tem um cariz menos discriminatério do que em outras sociedades industriais, nao obstante as diferengas em bem estar e em poder no serem menores nos EUA. Uma discussio importante em Blau e Duncan (/dem: 432-7) respeita a certas conclusdes de trabalhos de Lipset ¢ Zetterberg (1966: 567-70), elaboradas a partir da comparagao entre estudos empiricos existentes & data sobre fluxos de mobilidade nos EUA e em 8 pafses europeus. A comparagio nao mostrou diferengas assinaldveis nas taxas de mobilidade A mobilidade social revisitada 49 ascendente entre os EUA e a Europa. Isto apesar de ser plausfvel, segun- do Lipset e Zetterberg, que os valores predominantes nos EUA incitem mais os americanos a fazer planos de longo prazo para adquirir as qua- lificagGes necessarias & ascensd0. Blau e Duncan argumentam que a pre- ocupacdo em assegurar a comparabilidade levou os dois autores a nao utilizar categorias suficientemente desagregadas. Reduzindo o numero de paises mas utilizando categorias mais adequadas veritica-se que relativa- mente a outros paises industriais os EUA estao a frente para os ingressos na classe alta provenientes quer do operariado quer da classe média. A vantagem manter-se-ia mesmo depois de uma tentativa (rudimentar) de levar em conta o volume relativo das categorias. Num outro conjunto de autores encontramos um interesse pelo estudo e pela reflexdo sobre a mobilidade social muito menos dependente da concepedo funcionalista da estrutura social ¢ das preocupagées e interro- gagGes que Ihe estavam associadas, No caso de Joseph Shumpeter isso ndo seria alids possfvel, dada a anterioridade histérica das suas propostas relativamente as dos funcionalistas, Dois subconjuntos devem aqui ser distinguidos. Num primeiro, onde inclufmos Shumpeter, Ralph Dahrendorf e, numa versio mais fraca, Anthony Giddens, a reflexdo sobre 0 conceito de classe social deve ne- cessariamente incluir como elemento estratégico os fendmenos de mobi- lidade social. Combinando uma perspectiva accionalista com uma atengio sistemdtica & dimensdo temporal dos fendémenos sociais, Shumpeter (1984) concebe de manéira indissocidvel os processos de estruturagao em classes e de mobilidade social. O verdadeiro membro da classe social nao é 0 individuo mas a familia, no sentido de linhagem, uma vez que a pertenga do individuo & classe depende da famflia. Utilizando abundante informa- gio histérica, sobretudo sobre as classes altas, e valendo-se da extensio temporal, 0 autor procura mostrar como a aquisigao de uma posigdo por uma famflia raramente se deve ao acaso. As familias desenvolvem estra- 1égias para adquirir e gerir posigdes, sendo aqui crucial a mobilizagao de capacidades e de talentos determinados. Consoante 0 perfodo de tempo em andlise, as caracterfsticas dos diversos contextos que af encontramos eas condutas das familias, estas «passam» pelas classes mais ou menos demoradamente. E aqui o autor enuncia a metdfora célebre: «uma classe pode ser comparada, enquanto dura a sua vida colectiva ( ... ) a um hotel ou um autocarro sempre cheio, mas sempre cheio com gente diferente» ( Idem: 183). Mas a distingdo, inerente & metéfora, entre actores e estruturas, é um exercicio meramente provisério e destina-se a melhor destacar um os em jogo - o da circulagao dos individuos pelas 2 Sérgio Gracio posigdes. Na realidade Shumpeter concebe as estruturas sempre como resultado da acgio humana, de tal modo que a prdpria estrutura de classes corresponde «em tiltima andlise» a diferengas de aptidio. As posigdes relativamente cristalizadas que em dado momento constituem a estrutura de classes foram criadas ¢ conquistadas por condutas sociais implicando aptidées diferentes, naturajs ov adquiridas. Neste iltimo caso, por exem- plo, a partir da heranga familiar. Nenhum outro autor propde uma tio estreita imbricagdo entre os processos de estruturagéo em classes e de mobilidade social. Embora Shumpeter nao tenha apontado todas as consequéncias da sua proposta, podemos seguramente afirmar de acordo com ele que 0 processo de con- junto é duplo: implica simuftaneamente a criagiio (e a destruigado) de posigdes ¢ a circulacio entre as posigdes. E implica também a interacgao entre essa criagio e essa circulagiio, uma vez que a mobilidade social € constitutiva das classes € estas por sua vez, em virtude do seu volume € dos recursos dos seus membros, condicionam a mobilidade. A mobilidade social € constitutiva das classes porque pode estar associada a criagdo de posigGes (0 negdcio bem sucedido) e porque tem a ver com o recrutamen- to social das classes, logo com a maior ou menor homogeneidade cultural e ideoldgica no interior de cada uma delas A perspectiva assim desenhada parece-nos particularmente interes- sante. Abre caminho para superar algumas limitagdes inerentes quer ao estudo das classes quer ao da mobilidade e que resultam no essencial da concepgao, tendencialmente reificante, da estrutura social como um dado de partida da andlise (a distribuigio estatfstica produzida por uma corte sinerdnico, ou por uma sucesso de cortes sincr6nicos), nao como o re- sultado de um conjunto de processos, e que por vezes, numa espécie de efeito da técnica utilizada sobre a teoria, pode conduzir a investigagao pelos caminhos de um estruturalismo involuntario ¢ nao controlado. Basta pensar, por exemplo, que os processos de criagiio de posigées podem ter lugar em quadros institucionais definidos (empresas e organizagdes de tipo diverso) e como a concepgdo e implementagao de um «posto de trabalho» implicam de imediato a concep¢ao das caracterfsticas dos agen- tes destinados a ocupd-lo, logo das condigées de acessa & posigio. O préprio desempenho do papel profissional em questo poder diferir con- soante Os recursos e outras caracteristicas do actor, gue contribuird assi para a definigfo da posig&e (incluindo a sua dimensdo estatutdria), Sustentémos em outro local (Grécio, 1996) que a divisao entre disci- plinas (sociologia, economia do trabalho e do emprego, histéria ...) e no interior das disciplinas (sociologia das classes e da mobilidade social, sociologia da familia, sociologia das organizagées ...) desfavorece uma A mobilidade social revisitada St concepgao articulada do conjunto dos processos aqui em jogo e, daf, uma maior inovagao problemitica e nos programas de pesquisa (exemplar- mente presente na colectfinea organizada por Ronald L. Breiger 1990). Também para Dahrendorf (1976) e Giddens (1974) 0 conhecimento dos fenémenos de mobilidade ¢ de estruturagfo em classes s6 tem a ganhar se os pensarmos nas suas articulag6es reciprocas. Mas 0 dngulo sob o qual € encarada a articulacdo é aqui diferente. Segundo Dahrendorf (1976: 68-9, 108-9, 315) os valores de realizag&o correspondem hoje a virtude cardeal dos cidaddos das sociedades industriais. Os critérios de adscrigdo estatutdria haviam sido um obstéculo a exploragao sistematica dos recursos, materiais e humanos. A partir da empresa a valorizacio e a recompensa do achievement difundiram-se por toda a sociedade. «Por isso a sociedade industrial necessita de um minimo - senéo de um maxi- mo - de mobilidade social» (Idem: 69). Mas nao € esta a nica razdo pela qual a mobilidade é funcional: ‘ela torna as classes mais heterogéneas € isso por sua vez torna-as menos coesas e aguerridas, reduzindo o conflito de classe. O aumento da mobilidade social desenvolve 0 egoismo dos pequenos grupos e das familias, desvia da luta colectiva e incita 4 com- peticZio individual por um lugar a0 sol, 0 que contraria a formacdo da se. A esperanca de que os filhos possam atingir as posigGes que se foi incapaz de alcangar é dos sentimentos mais difundi- dos nas sociedades pds-industriais. Embora Giddens dé a mobilidade muito menos importincia do que Dahrendorf, concede sem qualquer dificuldade que ela deve ser levada em conta na reflexdo sobre as classes sociais, num sentido bastante pré- ximo do de Dahrendorf. Para Giddens (1974: 107) a auséncia ou fraqueza da mobilidade reforga a identidade da experiéncia social de geragio para geragio, o que, ao lado da proximidade da condicdo econémica dos membros das classes sociais, contribui para a estruturagdo em classes. Outros autores apresentam como tragos comuns o facto de os seus contributos serem posteriores 4s propostas daqueles que poderfamos de- signar como a primeira geragdo - aps a segunda guerra mundial - de estudiosos da mobilidade (Lipset, Bendix, Zetterberg, Blau e Duncan). Caracterizam-se também pelo seu interesse genuino pela mobilidade so- cial, a importincia dos investimentos que realizaram na sua anélise, a utilizagao criteriosa do conceito de classe nos estudos empiricos que dedicaram & mobilidade ¢ a sua desafeicdo por certos aspectos da proble- matica tecida 4 volta das nogdes do universalism/achievement dos seu predecessores. John H. Goldthorpe (1987) é o nome cimeiro deste conjunto, enquan- to Robert Hauser e David Featherman (1977), que inovaram decisivamen- consciéncia de 52 Sérgio Gracio te no tratamento da informagao dos inquéritos de mobilidade, represen- tam de certo modo, quer na sucesso temporal dos trabalhos, quer na orientagiio, a ponte entre a primeira e a segunda geracio, Goldthorpe (dem: 27-31}, no seu trabalho sobre a mobilidade social na Gra-Bretanha, de dimens&o semelhante ao de Blau e Duncan sobre os EUA, distancia- se destes autores assim como de Lipset, Bendix e Zetterberg, discutindo os tipos de motivagao, incluindo a dele préprio, na origem dos estudos de mobilidade, No seu entender estes aspectos devem ser claramente assu- midos pelos cientistas sociais. O seu interesse pela igualdade de oportu- nidades, esclarece, nada tem a ver com preocupagées de estabilidade ou de legitimidade da ordem social, Trata-se antes de ver como certas carac- terfsticas da estrutura social impedem muitos indivfduos de realizar ple- namente as suas potencialidades como cidadaos e seres humanos, Admitem que a desigualdade de oportunidades e a desigualdade de condigdes ape- Nas possam ser substancialmente reduzidas em simuitaneo, mas rejeitam que em matéria de justiga social apenas conte a igualdade de condigées. Troshi Ishida (1993), autor de um dos raros estudos recentes sobre mobi- lidade social, comparando os casos do Japao com o da Gra-Bretanha e o dos EUA, partilha integralmente esta orientagdo. Daniel Bertaux, Pierre Bourdieu e Nicos Poulantzas sfio autores pou- co propensos a dar aos estudos sobre mobilidade social plena legitimida- de cientifica, além de partilharem uma concepgio classista da estrutura social. Mas apesar desta proximidade, Poulantzas distingue-se de Bertaux. e de Bourdieu pela sua rejeico liminar da problematica da mobilidade, que praticamente n&o ocupa lugar nos seus trabalhos (embora niio tio completamente como o prdprio teria desejado, como veremos a seguir). Com efeito Bertaux acaba por discutir amplamente o significado dos inquéritos de mobilidade, enquanto Bourdieu serve-se da informagdo re- colhida por esses inquéritos para a caracterizacdo das classes. Este ultimo autor (1979: 124-38) utiliza abundantemente a nogio de trajectéria social (unindo a origem social & posigao ocupada em um momento determinado), na caracterizagao das disposigdes e praticas dos membros da classe social, A relagdo entre uma prética e a origem social resulta da socializago familiar e das condig6es origindrias de existéncia e também da trajectéria social. O efeito da traject6ria obscurece em larga medida a relagio entre a classe social e, por exemplo, as opinides poli- ticas e ideolégicas, sobretudo nas classes médias, onde coexistem indivi- duos de trajectérias muito diferenciadas. Este ponto de vista inscreve-se na concep¢ao do autor da estrutura social, um espaco ‘4 trés dimensdes, o volume e a estrutura dos capitais dos indivéduos (econdmico e cultural, sobretudo) e a evolugéo no tempo destas duas propriedades, expressa A mobilidade social revisitada 353 pelas traject6rias passadas e potenciais no espago social. Isto constitui uma indispensdvel ruptura com a concepgdo unidimensional da estrutura social - presente, por exemplo, diz Bourdieu, nos estudos de mobilidade social - e reduzindo tudo a um continuum de estratos em abstracto. Mas apesar da proposta e da critica de Bourdieu, o certo é que para o autor os fluxos de mobilidade sao claramente constitutivos das classes sociais, @ sob este aspecto ele estd extremamente préximo de Shumpeter. Ao contrdrio dos autores de inspiragao funcionalista , que enfatizavam a amplitude dos movimentos de mobilidade nas nossas sociedades, para Daniel Bertaux (1978) a mobilidade é sobretudo uma miragem - a regra é a heranca social. Mas a semelhanga desses autores, interessa-se igual- mente pela mobilidade em termos da sua inscrigdo numa légica de neces- sidade estrutural de conjunto. Pode até dizer-se que em Bertaux essa légica é tio ou mais imperativa do que em aqueles autores. Para Bertaux a mobilidade integra um processo mais largo, dito antroponémico, de distribuigdo e consumo dos seres humanos pela estrutura social das for- magées capitalistas, no qual os individuos so produzidos pelo consumo das mercadorias e consumidos pela produgao das mercadorias. Nao admi- ra pois que o autor utilize os dados dos inquéritos realizados em Franca & mobilidade para desvalorizar a suposta importancia dos seus fluxos (dem: 236-41). Destaca as fracas oportunidades de ascensio social dos filhos de operdrios ou a ainda mais diminuta probabilidade de os descen- dentes das categorias favorecidas se tornarem operdrios. Contudo, na medida em que Bertaux procura, a partir de esses mesmos resultados, estabelecer fronteiras entre as classes (a categoria dos quadros médios revela-se uma auténtica barreira de classe), deve necessariamente con- cluir-se: também para ele a mobilidade social desempenha um importante papel na estruturagio das classes sociais Para Poulantzas (1974: 291) nao hd tempo a perder com «(...) a inanidade da problematica burguesa da mobilidade social». O importante é a reprodu- cao da estrutura de classes, isto é, dos lugares de classe. Mesmo perante uma permuta generalizada entre as classes através das geragdes, em que os bur- gueses se tornassem proletdrios e estes burgueses, os burgueses pequeno- burgueses e vice-versa, os pequeno burgueses proletdrios e vice-versa, «nada mudaria no essencial, porque haveria sempre og lugares do capital, da classe operdria, da pequena burguesia, etc.». Como Bertaux, desvaloriza os fluxos de mobilidade na base dos inquéritos franceses. Por exemplo, a mobilidade intrageracional dos operdrios (mesmo a dos operarios qualificados) em di- receao a posigdes de técnicos e de engenheiros é exfgua, embora admita que em termos de mobilidade intergeracional as coisas ja sejam diferentes (Idem: 251-2). Nao obstante, 0 autor, na mesma obra (285-8), dé grande relevo as 34 Sérgio Gricio diferengas entre os fluxos de mobilidade social para caracterizar ideologica- mente os membros das classes sociais, Os inquéritos mostram com efeito que a mobilidade intrageracional ascendente na pequena burguesia é muito maior que no operariado, Ora isso tem importantes consequéncias no plano da formacdo de uma ideologia de promogao social entre os pequeno burgue- ses e da afeicao destes individuos pelas relagdes de autoridade e-de segredo do saber. Raymond Boudon (1973) tem um lugar & parte no conjunto destes autores: o seu interesse esté inteiramente centrado na mobilidade social e 6 alheio & problematica das classes. A classe é para ele uma nogado meramente operativa e auxiliar e nfo ha igualmente da sua parte qualquer preocupacao em justificar as escolhas que fez na sua andlise para a categorizacio em classes. A nogao é mobilizada porque, é Sbvio, nao se pode pensar e estudar a mobilidade sem uma qualquer definigao da estru- tura social. No enfoque de Boudon a mobilidade nao tem qualquer papel na estruturagdo em classes, A andlise do autor esta sobretudo voltada para OS processos a jusante da estrutura social. Trata-se de tentar esclarecer como tem lugar ao longo do tempo a aquisigdo de recursos para 0 acesso As posigGes, e o proprio acesso as posigdes, embora, claro, os individuos em competi¢ao tenham origens sociais diversas - que influenciam as suas oportunidades. Como veremos mais adiante, o facto de Boudon ter ana- lisado um segmento dos processos em jogo nao o impediu de ter chegado a resultados importantes, e mesmo decisivos. A procura da verdadeira mobilidade social Nao foram Dahrendorf nem tio pouco os neo-funcionalistas os pri- meiros a referir 0 efeito destruturador da mobilidade ascendente nas clas- ses sociais, especialmente 0 scu efeito negativo sobre as condigdes favordveis 4 acg4o colectiva dos dominados. Entre os classicos a intuigio ja estava presente. Alexis de Tocqueville (1968: 285-6) observa que nas nagdes demo- crdticas ja nfo existe uma categoria de ricos de contornos firmes e estd- veis: eles «saem cada dia da multidao e af voltam sem parar». Daf que © povo, ligado «por mil lagos sectetos 4 massa dos seus concidadios, nao os pode atingir sem se atingir a si préprio». Se a afirmagio de Tocqueville poderé nao surpreender, jf 0 mesmo nao sucede talvez com o ponte de vista, de igual sentido, de Karl Marx (1969: 26). Marx comentou a dificuldade da luta politica nos EUA, «onde, embora ja existam classes, estas nao se fixaram, trocando ou permutando A mobilidade social revisitada 55 continuamente os elementos que as constituem em um fluxo continuo» o que, a par do «febril movimento da produgao material, que tem um novo mundo para conquistar, néo deixa nem tempo nem oportunidade de abolir a velha ordem das coisas». Acrescente-se alids que este «novo mundo para conquistar» remete para a época da colonizacao americana, na qual foram frequentes as passagens da condigao proletaria para a da pequena e média propriedade da terra, num movimento contrario ao que se registava e continuou a registar por muito mais de um século na Eu- ropa, e tem lugar ainda de forma acentuada entre nds. Isso prende-se seguramente com o facto de o estatuto social dos agricultores ser mais elevado nos EUA do que em outros pafses industriais. Christopher Jencks (1990) chama a atencdo para a experiéncia subjectiva da mobilidade, mostrando como um mesmo trajecto pode ser diferentemente interpretado em pases com uma historia diferente das suas estruturas sociais. Naquela passagem Marx deixou igualmente sugerido que os fluxos entre as classes dependem largamente do proprio processo de formato das classes e da sua contiguracao de conjunto. Este aspecto ocupou desde cedo os socidlogos da mobilidade social, que se aperceberam das suas causas estruturais. Max Weber (1966: 27) havia ja referido implicitamen- te aquelas causas, relacionando as suas consequéncias com a sua distin- co entre a estratificacdo por classes e a estratificag&o por status. Quando ha estabilidade na aquisic&o e distribuigdo dos bens a estratificacao por status é favorecida, ao passo que a transformagao tecnoldgica e econémi- ca ameaga Os grupos de estatuto e atira para o primeiro plano o processo de estratificagéo em classes. Lipset e Zetterberg (1966: 565-6) formalizaram com clareza a influéncia da estrutura social sobre a mobilidade, numa proposta tornada piiblica em 1956. Segundo eles muita da discuss acerca do grau de abertura das so- ciedades torna-se confusa por carecer da distingdo entre dois processos. O primeiro respeita 4s mudancas na estrutura de classes. Por exemplo, 0 au- mento da proporgao das posigdes de quadros e protissdes técnicas ¢ liberais, e em geral das profissdes de «colarinhos brancos», favorece a mobilidade ascendente. A fecundidade reduzida de uma classe também favorece a mobilidade ascendente da respectiva descendéncia. Podemos aqui acrescen- tar & proposta dos autores um outro tipo de factor demografico, relativo & amplitude dos movimentos de safda ou entrada nas categorias, que nao tem a ver com a propria mobilidade. Esses movimentos so uma funcio da estrutura etdria das categorias, como no caso das passagens a reforma, e dependem igualmente das migragGes internacionais. O segundo processo abarca toda a mobilidade que nao é induzida pela deformagio da estrutura de classes e pelos factores demograficos. Essa 56 Sérgio Gré mobilidade sera necessariamente uma mobilidade de troca, de permuta entre as categorias, na qual, para cada movimento ascendente, teré de haver um movimento descendente. Por outras palavras, acrescentarfamos também aqui, ou a mobilidade ou tem por origem qualquer transformagio na relagéo quantitativa entre oferta e procura de posicdes, e corresponde ao primeiro tipo, ou nfo tem essa origem, ¢ corresponde entao ao segundo tipo, Deste modo, o primei- ro tipo identifica as causas estruturais da mobilidade social. Blau e Duncan (1978: 269-71, 43¢-1) também se referem Jargamente a essas causas, associando-as aos movimentos migratéries internos, & concebem alids a sua emergéncia e a sua acco de acordo com um mo- delo parsoniano de sociedade, uma vez que no seu ponto de vista a pre- dominancia dos valores universalistas € aqui decisiva. Com efeito, a importancia dos critérios de eficiéncia na avaliagdo social é um incentivo de grande peso para mobilizar muitas energias na inovacdo tecnolégica, a qual promove mobilidade ascendendente das posigdes baixas e declinantes em direcg’io a& posigdes elevadas ¢ em expansao. A redugdo dos lagos particularistas de parentesco e vizinhanga encoraja a emigragio para lugares com mais oportunidades, 0 que faverece a mobilidade ocupacional. Os que nao conseguem ascender tém em geral uma prole numerosa junto 4 qual podem exercer a autoridade que lhes da o suporte estatultdrio e as gratificagdes negadas na esfera protissional. E a fecundidade diferencia! daf resultante influencia por sua vez o processo de conjunto. Repare-se como para Blau e Duncan a prole numerosa é uma conse- quéncia do insucesso na ascensao social, 0 que pressupGe uma discutivel difusio maciga ¢ indiscriminada do universalismo, e nao simplesmente ¢ muito mais plausivelmente a expressdo de uma outra ‘acionalidade, isto é, de uma orientagdo de vida céptica quanto as oportunidades que & par- tida se oferecem a quem dispde de poucos recursos. Mau grado a sua reserva de principio para com as questdes de mobi- lidade, Pierre Bourdieu (1979: 145-6) acaba por fornecer um contributo perfeitamente original para o conhecimento do modo como as causas estruturais da mobilidade se tornam eficazes. A sua andlise articula entre si as transformagées da estrutura social, e as pressdes que exercem sobre os individuos, as suas respostas estratégicas a essas pressdes e ao valor que recebem os seus recursos nas diversas regides de espaco social, sem esquecer as instituigdes (lei sucessoral, mervado de emprego, sistema de ensino ...) de suporte aquelas estratégias. A estrutura do espago social permite dois tipos de deslocamentos, que «os estudos tradicionais de mobilidade social confundem», afirma Bourdieu. Os deslocamentos verticais, ascendentes ou descendentes, tm A mobilidade social revisitada 57 lugar no mesmo sector vertical do espago - no mesmo campo - como 0 do professor primério que se torna professor do secunddrio, ou o do pequeno patrao que ascende a grande patrao. Os deslocamentos transver- sais sio menos frequentes e implicam a passagem de um campo a outro. Podem dar-se no mesmo plano horizontal (0 professor primério, ou o seu filho, abre um pequeno comércio), ou em planos diferentes ( professor primdrio, ou o seu filho, torna-se industrial). Este segundo tipo de deslo- camento, na medida em que implica a passagem a um outro campo, corresponde & reconversiio de uma espécie de capital em outra, ou de uma subespécie de capital econdémico ou cultural em outra (da pequena pro- priedade fundiaria ao capital industrial, da cultura historica ou literdria A cultura econdmica). Dessa reconversio pode depender a salvaguarda do volume global de capital, isto é, da posigio na dimensao vertical do espaco social, O problema de uma mobilidade estrutural tinha sido abordado ja na primeira metade dos anos cinquenta por Natalie R. Ramsoy (Mizruchi 1976: 259-75). Mas a distingio entre uma mobilidade estrutural e uma mobilidade dita de troca, que nao teria essa origem, deve-se como vimos a Lipset e Zetterberg. A ideia de que a amplitude da mobilidade social observada nao devia verdadeiramente ser considerada como um indicador da efectiva acgdo de complexo de valores universalistas ¢ de realizagZo pessoal jd se impusera rapidamente. Com efeito, se os dados empiricos disponiveis sugeriam fortemente a importancia das causas estruturais da mobilidade, esta perdia de certa maneira o seu cardcter de genufna ex- pressfo de uma nova era social em acentuada ruptura com os valores € as orientagdes de outrora. Por exemplo, um estudo publicado na primeira metade dos anos 60 (citado por Mizruchi 1976: 335-7) comparou o recrutamento social de mil funciondrios chineses (meados do séc. XIX) com 0 de 2500 engenheiros americanos. © ingresso em amb: categorias requer diplomas escola- res elevados. Quase 3/4 dos funciondrios provinham da classe alta, contra 40% dos engenheiros, o que aparentemente remete para a oposi¢do entre uma sociedade tradicional «rigida» ¢ uma sociedade moderna «aberta». Ora, segundo o autor, a diferenca deve-se quase inteiramente & expansao da classe alta no caso dos engenheiros, expansdo ausente no segundo caso. Para perceber como no espirito dos socidlogos germinou a ideia da inautenticidade da mobilidade estrutural basta pensar que esta tem em parte, de certa maneira, um cardcter «forgado». Com efeito, se num pe- rfodo determinado aumentar a proporgio das posigdes elevadas de uma estrutura social, uma parte dos ocupantes (ou da sua descendéncia) das posigdes situadas abaixo das primeiras teré necessariamente de aceder a 58 Sérgio Gricio estas. Isto mesmo que no estivessem orientados para a ascensio social: basta terem desejado manter uma ocupagao profissional. Nao admira deste modo que, por contraste, a existéncia de uma mobilidade de troca pudes- se aparecer como o representante da ascensio e realizagio dos novos valores. Desenvolveu-se entio todo um conjunto de trabalhos voltados para as técnicas estatisticas de tratamento das tabelas de mobilidade intergeracional, no sentido de poder isolar e dar alguma expresso quan- titativa a ambos os tipos de mobilidade. A mobilidade de troca era ver- dadeiramente aquela cujo peso e contornos se procurava apreender, mesmo quando a solugio técnica encontrada era rudimentar ¢ meramente aproxi- mativa. A multiplicagao das designagdes que Ihe foram atribufdas - além de mobilidade de troca: mobilidade liquida, voluntaria, verdadeira, indi- vidual, pura, fluidez social, etc. - € um testemunho indirecto do cardcter quase mitico que chegou a ter e da subjacente esperan¢a em poder final- mente, através de métodos que procuravam ser rigorosos, determinar a importincia central que teria nas nossas sociedades. Depois de Natalie Ramsoy houve, nesta direcgao, a tentativa de Saburo Yasuda (Cuin, 1993: 126-8), publicada em 1964. A ideia de Yasuda era simples. Pode determinar-se a partir das distribuigdes marginais das tabe- las de mobilidade intergeracional uma mobilidade minima, de cardcter estrutural, necessatiamente provocada pela deformacio da estrutura soci- al da geracdo dos pais para a geracdo dos filhos. A diferenga entre a mobilidade observada e a mobilidade minima sera entéo a mobilidade pura. Houve igualmente a proposta de Bertaux (1969) e a de Boudon (1973: 23-9). Este tltimo critica Yasuda, entre outras razdes porque o fndice que ele propde nao tem um intervalo de variagio adequado, o que dificulta as comparagGes. Mas a solucdo de Boudon é de inspiragio muito semelhan- te. Consiste em definir melhor os parémetros da mobilidade estrutural, acrescentando & mobilidade minima uma mobilidade maxima, tal como a primeira autorizada pela deformagio da estrutura social e cujo valor é igualmente obtido pela adequada manipulagio dos dados da tabela. A mobilidade observada é em seguida situada entre estes dois extremos, de modo a obter um indice que tem a vantagem de variar entre zero e um Os seus valores estarao tanto mais perto de um quanto mais a mobilidade observada for independente de causas estruturais. O método de Claude Thélot (1982; 74-9) é um pouco diferente. Dis- pde-se dos dados de pelo menos dois inquéritos realizados num mesmo pafs em momentos suficientemente espacados. A distribuigdo da tabela de mobilidade intergeracional do primeiro inquérito é «vertida» na tabela do A mobilidade social revisitada 59 segundo inquérito, sob a condi¢do de respeitar as margens desta dltima. A distribuico ficticia assim obtida tem algo da mobilidade registada pelo primeiro inquérito e, ao mesmo tempo, é afectada pela evolugao da trutura social de pais para filhos registada pelo segundo inquérito. Procu- ra assim formalizar a hip6tese segundo a qual entre o primciro e o segundo inquérito as alteragdes na mobilidade intergeracional se terem ficado a dever unicamente a causas estruturais. A distribuigdo ficticia € em segui- da confrontada com as distribuigdes observadas. Isso permite nao s6 ficar com uma ideia de conjunto e quantificada do peso das causas estruturais como ainda ventilar este aspecto categoria por categoria. De uma maneira geral as estruturas socioprotissionais dos diversos paises desenvolvidos e de desenvolvimento intermédio evolufram no sen- tido do aumento da proporcdo das posigdes mais desejéveis (Blau e Duncan 1978: 86-8; Sarre 1989: 79-84; Briand 1985: 110-3; para Portugal Grdcio, 1994: 72-3). Isso tem contribufdo para o aumento da mobilidade social, sobretudo da mobilidade ascendente. Blau e Duncan (/dem: 103-4) veri- ticaram que houve um aumento regular da mobilidade nos EUA, atestado pelos inquéritos de 1947, 1952, 1957 e 1962. O mesmo mostrou Thélot (4982: 44-53) para a Franca com base nos inguéritos de 1953, 1964, 1970 e 1977. O conjunto das transformagées sociais e institucionais que tém acom- panhado os progressos da mobilidade, por exemplo as que permitiram uma elevagio e alteragdo dos padrées de vida, juntamente com a propria mobilidade, contribuiram sem dtivida, como queriam os socidlogos, para a difusdo dos critérios universalistas e dos valores de realizag&o pessoal. O problema era de facto o de saber até que ponto isso tivera uma tradugao em termos de uma mobilidade genufna. Lipset e Zetterberg haviam asso- ciado tal possibilidade 4 educagao escolar, uma vez que, argumentavam, ela estava ao alcance de todos. Ainda em meados dos anos 60 € reiterada esta crenga na educagio como um importante factor institucional do in- eremento da fluidez social (Havighurst, 1965: 107-20). Na sua discussado do confronto de Lipset e Zetterberg entre a mobilidade na Europa e nos BUA, Blau e Duncan (1966: 432) sustentaram que uma das raz6es da yantagem dos EUA estava nos seus mais elevados niveis de educacao. Atento ao desenvolvimento dos estudos na matéria, Raymond Boudon (1973) ir apresentar a sua prépria perspectiva sobre a mobilidade social nas nossas sociedades. O seu ponto de vista é em particular construfdo contra a metodologia de Blau e Duncan, que critica por estar centrada nos itinerérios individuais e ser indiferente a sucesso das oportunidades e constrangimentos que os balizam. Na proposta de Boudon a nogio de processo é essencial. Ela permite articular no tempo o modo como se 60 Sérgio Gracio formam as orientagdes ¢ os recursos dos individuos com as oportunidades que se lhes oferecem, e como estas oportunidades se vao alterando em fungdo das suas préprias orientagdes. Mas a sua metodologia € porventu- ra ainda mais original do que a sua teoria. Consiste em tirar pleno partido dos resultados da investigag&o empfrica existente 4 data e de lhes dar, quando necessdrio, maior aleance, elaborando para isso teorias adequa- das. A partir daf trata-se de construir modelos simulados de processos sociais, de acordo com os conhecimentos existentes, de modo a procurar esclarecer aspectos ainda nao conhecidos dos processos. A simulacao de processos em Boudon corresponde alias a uma nogao de modelo e sobre~ tudo a uma nogao da sua utilizagiio nas ciéncias sociais que ¢ precisamen- te a mesma que a defendida por René Thom (1985; 159-61) para fazer avangar as ciéncias naturais. O niicleo central do trabalho de Boudon (/dem: 143-88) tem directa- mente a ver com a interrogag&o que entretanto havia ganho uma tao grande importancia nos estudos da mobilidade. A interrogagao poderia resumir-se da seguinte maneira: a mudanga social tem ou nfo levado a uma institucionalizacdo dos novos valores com reais consequéncias no destino social dos individuos? Na altura sabia-se j4 que a expansiio escolar nas sociedades industri- alizadas, espelhando a difusao e a institucionalizagao dos novos valores, era acompanhada de alguma redugao das desigualdades de oportunidades escolares segundo as origens sociais. Nao s6 em cada geracdo se perma- necia mais tempo na escola, como as distancias entre os niveis de esco-” laridade das descendéncias das diversas classes sociais se reduzia um pouco. Embora, é certo, a hierarquia das diferengas tendesse a permane- cer estével. A partir daqui o nosso autor procura saber quais as conse- quéncias destas mudangas em termos de mobilidade social intergeracional, e constréi um modelo de simulagdo com esse fim. O modelo gera processos repartidos ao longo do tempo em que indi- viduos de diversas origens sociais obtém niveis de escolaridade diversos, com os quais competem por posigées sociais. Origens e posigdes sociais sao categorizadas da mesma maneira, o que ird permitir a construgio de tabelas de mobilidade intergeracional em diferentes momentos do proces- so de conjunto, Uma condigao de funcionamento do modelo corresponde & modelizagao, fundada na pesquisa empjrica, das decisdes tomadas pelos individuos e famflias quanto & sua escolaridade. Este axioma do modelo imprime uma determinada progressao as oportunidades escolares segundo as origens sociais concordante com os processos reais. Outra condigio do modelo é particularmente relevante: a estrutura social mantém-se inalterada. Isso equivale, juntamente com a invariabilidade das condigées A mobilidade social revisitada 61 demogrdficas do modelo, & anulagao das causas estruturais da mobilidade social. Se esta mostrar portanto alteragdes ao longo do tempo estaremos perante um aumento da fluidez social, um progresso da «verdadeira» mobilidade, cuja responsabilidade deverd entéa necessariamente caber & expansio escolar. Boudon nao sugere nem utiliza em nenhum momento esta nogao de fluidez social, mas ela est4 implicitamente presente na sua proposta, Foram efectuados pelo autor quatro cortes sincrénicos no funciona- mento do modelo ao longo do tempo, do ponto de vista da mobilidade intergeracional, 0 que permitiu construir as correspondentes tabelas. A comparagao destas mostrou nao haver diferencas de relevo: se é possivel falar de alguma evolucao da mobilidade, ela foi de fraqufssima amplitude e, além disso, sem direcgio definida. Repare-se que este resultado é tanto mais significativo quanto 0 autor nao incluiu no modelo uma influéncia directa da origem social sobre o destino social, que tem recebido prova empirica universal. No modelo essa influéncia é inteiramente mediada pela educagdo, Por outras palavras, apesar da realidade simulada pelo autor estar mais préxima dos ideais universalistas do que a realidade, a simulagéo mostra que isso nao tem influéncia no destino dos individuos. Um pouco depois da publicagdo do trabalho de Boudon ocorreu uma importante inovagio metodolégica no estudo da mobilidade social. Ela consistiu na utilizagdo de modelos estatfsticos /og-lineares na analise dos dados dos inquéritos. Estes modelos destinam-se a varidveis nominais, e sao por isso particularmente apropriados para as tabelas de mobilidade intergeracional. Sobretudo possuem uma surpreendente propriedade: ge- ram padr6es de associagio (devidamente quantificados) entre as vérias categorias das varidveis de uma tabela de contingéncia que sao indepen- dentes dos totais marginais, Para 0 perceber melhor refira-se o seguinte: se multiplicarmos uma linha ou uma coluna de uma tabela por um mesmo n&mero positivo (o que altera os totais marginais) os valores daqueles padrées nao se alteram. Isto permite neutralizar a acco das causas estru- turais da mobilidade. Numa tabela de mobilidade os totais marginais correspondem as distribuigdes das estruturas sociais de pais e filhos. Logo, os padres de associagiio obtidos por um modelo log-linear nao repercu- tem a deformagao da estrutura social de uma geraciio para a outra. Hauser e Featherman (1977: 143-67) foram os primeiros a utilizar esta metodologia. A partir dos dados do inquérito americano & mobilida- de de 1962 (amostra nacional, n = 17 200, 12 categorias de origem e de destino) dividiram a amostra em cinco coortes sucessivas e para cada uma delas construfram as tabelas com a posi¢&o dos pais e a primeira posig%io dos filhos, Estamos assim em presenga de trés varidveis: a ori- 62 Sérgio Gricio gem e 0 destino social ¢ o tempo, representado pelas coortes. O modelo testado postulava que ao longo do tempo havia transformagao nas estru- turas sociais de origem e de destino mas que, € independentemente dess: transformagées, nao se registavam alteragdes nos padres de associagdo entre origens € destinos. O teste mostrou que o modelo se ajustava aos dados. O procedimento foi repetido, com idéntico resultado, a partir dos inquéritos americanos de 1947, 1952, 1957, 1962 e 1972, embora utili- zando apenas 3 categorias de origem e de destino (e sendo aqui o tempo representado pelos dados dos inquéritos, em vez dos dados das coortes do mesmo inquérito). No seu estudo sobre a mobilidade social na Gra- Bretanha Goldthorpe (1987: 78-85) aplicou 0 mesmo modelo aos dados dos inquéritos nacionais de 1972 e 1983 e uma vez mais foram confirma- das as condigdes do modelo. Mesmo procedimento ainda para o inquérito de 1975 sobre 0 Japiio (Ishida, 1993: 195-200), mas desta vez o teste revela uma diferenca estatisticamente significativa entre os dados obser- vados ¢ os dados gerados pelo modelo, Todavia, é uma diferenca peque- na, revelando uma flutuagdo moderada da fluidez social A proximidade entre estes resultados e a predigio do modelo de Boudon parece-nos evidente. A importancia crescente da educagao esco- lar pode com efeito considerar-se um factor de primeira plano, serio mesmo 0 principal factor, que poderia gerar mais fluidez socia] nas nos- sas sociedades. Ora em qualquer arco temporal abarcado pelos inquéritos acabados de referir esto inclufdos fendmenos de expansio escolar que, tal como em Boudon, nao tém as consequéncias esperadas. O que ndo deixa de causar surpresa é o facto de nada disto ser referido pelos pré- prios autores, a comegar por Raymond Boudon, de todos certamente o mais interessado em fazé-lo. No prefacio a uma das reediges francesas do seu trabalho (Boudon 1984) e no corpo da obra nada é dito sobre o procedimento e os resultados de Hauser e Featherman - a primeira con- firmagao empirica do que Boudon previra a partir da simulagio de pro- cessos. Individualismo, individualismos: entre a mudanca social e a mudanga cultural O facto de a educacio escolar ter afinal um papel reduzido ou insig- nificante na alteragdo dos fluxos de mobilidade € de considerdvel impor- tAncia para a caracterizagéo da mudanga social nas nossas sociedades. Os valores de realizagio difundiram-se e, com eles, 0 jogo da competigao social, que tem nomeadamente exercido uma formidavel pressio sobre as A mobilidade social revisitada 63 instituigdes educativas - instituigGes universalistas por exceléncia - ex- pandindo-as a uma escala impensdvel a uma dist&ncia de poucas décadas. Isto significa que o espago da competigao se alargou enormemente, reu- nindo hoje instituigdes econdémicas e instituigdes educativas, e nao estan- do j4, como outrora, sobretudo polarizado nas primeiras. As instituigdes educativas sao por isso hoje um factor crucial de regulagao integradora e o Ministério da Educagao é seguramente dos mais politicos, senao mesmo © mais politico dos ministérios. Tocqueville (1968: 357-8) j4 percebera que a difusio das ideologias igualitdrias, correlativa da emergéncia de importantes segmentos da es- trutura social onde «as condigGes se tornam mais iguais» tornavam impe- rioso o desenvolvimento de instituigdes reguladoras da competi¢io, que para ele, eram antes de mais as instituigdes judiciarias. A prescrigdo de Tocqueville tem obviamente a ver com caracteristicas da época, mas, no seu princfpio, a intuigio do autor revela-se plenamente certeira e actual, porque convida a reflectir sobre o tipo de regulagdo mais adequado a cada contexto, Num estudo empirico metodologicamente inovador (Shapiro e Dawson 1972: 179-82) mostrou-se por exemplo como o cardcter ilegitimo aos olhos dos burgueses das instituigdes francesas de enobrecimento foi uma das causas da sua radicalizacao politica. Quando os valores da constela- cio universalism/achievement se implantaram definitivamente e em larga escala nfo hd dtivida que as instituigdes educativas sio altamente integradoras. Esto abertas a todos (veja-se aqui o papel da gratuidade do ensino e da densificacdo territorial das redes escolares) e, por outro lado, as suas sangOes possuem um teor de legitimidade bastante elevado. Isto porque sao no essencial experienciadas como tendo por objecto proprie- dades dos actores irredutiveis a heranga social, incluindo as propriedades inatas. Talcott Parsons (1965) viu muito bem como poderiam ser larga- mente positivas, numa perspectiva de regulacdo e integrag’o, as conse- quéncias da educagio junto aos perdedores da corrida, quando a corrida tende a generalizar-se. Perdedores da corrida que, por definig&o, so os que em algum seg- mento dos seus itinerdrios nela «investiram». E aqui coloca-se o proble- ma da relagio que se estabelece entre as oportunidades oferecidas objectivamente e o ntimero dos que se empenham no jogo competitivo. E inevitavel referir entio a andlise de Tocqueville (1967: 278) sobre os efeitos da prosperidade na formagao das aspiragSes sociais: um povo que outrora suportou pacientemente uma condigdo opressiva, passa a rejeitd- la violentamente a partir do momento em que ela regride: «(...) € certo que o mal se torna menor, mas a sensibilidade também se tornou mais 64 Sérgio Gricio viva». O aumento da mobilidade ascendente tem um oefeito de demonstra- cao que contribui para elevar as aspiragGes sociais. A questio esté em saber até que ponto o suplemento de aspiragGes podera ser satisfeito. Cerca de um século depois de Tocqueville vemos os socidlogos dis- cutir um resultado surpreendente do inquérito realizado ao exército dos EUA durante a ultima guerra mundial: na polfcia militar, onde as promo- des siio raras, existe uma razodvel satisfagao com o sistema das promo- ces, enquanto na aviagdo, onde as promogGes so mais frequentes, a insatisfagdo € a regra, Assim, s¢ as oportunidades de mabilidade ascen- dente sao maiores cada qual tende a estar mais descontente com o seu destino social. Raymond Boudon (1977: 133-55) tentou explicar 0 paradoxo desen- volvendo um modelo baseado na teoria dos jogos. De acordo com o modelo os actores tm a percepgfo das oportunidades que se lhes ofere- cem e, em funcdo destas ¢ da relagdo entre os custes e os beneficios esperados da aposta, investem (apastam) ou ndo na sua promogao. A medida que as oportunidades se elevam cada qual revé as suas estimati- vas de custos/benficios, Eleva-se deste modo igualmente o nimero de apostadores - mas a um ritmo mais elevado do que as oportunidades - € assim cresce inevitavelmente a propor¢ao de insatisfeitos. A partir de um certo limiar das oportunidades ha uma reversio da tendéncia, ou seja, um declfnio da taxa de insatisfeitos. No entanto o limiar em questao é bas- tante elevado e a partir dele o declinio da insatisfagao tem lugar menos rapidamente do que 0 seu aumento anterior. O modelo sugere que se exceptuarmos as raras situagdes, apds os meados dos anos 70, de muito répida deformagio da estrutura social (com aumento da proporcao das posigdes desejaveis), a relagdo entre as espe- rangas e as oportunidades de mobilidade ascendente deve aproximar-se da imagem fornecida por Tocqueville e pelos resultados do trabalho sobre 0 American Soldier. Isto significa que provavelmente nunca foi tao ele- vado como agora o volume das energias mobilizadas e da insatisfagdo produzidas nos diversos jogos da competigao social. Veja~se como a massificagéo escolar é acompanhada de um considerével alongamento dos investimentos educativos orientados para as posicdes medianas da estrutura social, ao mesmo tempo que se intensifica a competigao pelos estabelecimentos e cursos mais vantajosos no ensino superior. Pierre Bourdieu e Patrick Champagne (1993) deram-nos uma sugestiva imagem da escola de massas do nosso tempo, que multiplica os espacos de exclu- so no interior de si propria, a imagem do que se passa nos diversos campos sociais, Tudo isto vai a par de uma crescente precarizagiio das situagdes de emprege, incitando em muitos casos a investimentos profis- A mobilidade social revisitada 65 sionais agora largamente orientados para a redugiio do risco, mas que ha nao muito tempo teriam uma natureza promocional. Apés o trabalho pioneiro de Pitirim A. Sorokin sobre a mobilidade, publicado em 1927, sera necessdrio esperar pelo pds-guerra par mobilizar os socidlogos em volta do tema. A crise dos anos 30 tinha sido desalentadora, gerando a convicgao de que se tinha evolufdo de novo para © avango da adscrigao estatutdria (Cuin, 1993: 52-4). Foram as transformagées dos anos 50 e 60 que trouxeram consigo as motivag6es e 0 entusiasmo pelo estudo da mobilidade. Uma tao pronun- ciada sensibilidade dos socidlogos ao ambiente social da sua época, ao air du temps, leva inevitavelmente a pensar que o campo cientifico da sociologia tem uma autonomia mais reduzida da que os socidlogos espon- taneamente admitiriam. O actual desinteresse pela mobilidade e pelas classes sociais tem certamente muito a ver com 0 pouco risonho estadio actual das relagGes entre as esperangas e as oportunidades de mobilidade ascendente que, por outro lado, se tem revelado destruturador das classes, como 0 testemunha por exemplo o recuo, embora desigual, do sindicalismo (Agache, 1993; Lima, 1992). Realiza-se deste modo, mas pela negativa, © que alguns tinham esperado de um teor elevado de satisfagio daquelas esperangas. A tendéncia em direcgao ao individualismo é um movimento de lon- go termo na civilizagéo ocidental, frequentemente pautado pela ambiguidade e pela contradig4o, como mostrou Louis Dumont (1983) numa perspectiva de antropologia histérica. Mas a intensidade e a ampli- tude das lutas de competigao, a relagiio entre as energias dispendidas e os seus resultados nos itinerdrios e nos balangos de vida individuais, cons- tituem certamente um dos factores recentes que Ihe deram um novo e poderoso impulso. Para Gilles Lipovetsky (1988) um passo anterior fora dado pelo apa- recimento do consumo de massas nos EUA pelos anos 20, a partir do qual se assiste A difusdo do hedonismo, até af confinado a minorias, Todavia, os valores individualistas ainda permanecem por um largo periodo de certo modo tutelados, limitados por enquadramentos e valores institucionais (incluindo os contestatérios) transcendendo a esfera da plena afirmagao individual. Mais recentemente, no espago de uma ou duas décadas, as teferéncias transcendentes recuaram, ou rufram, dando lugar a formas hedonistas e narcfsicas, particularmente acabadas, de individualismo, Doravante cada qual se vira para si proprio, nao no sentido solipsista, mas no de uma soberana, consciente e informada administragéo da sua idiossincrasia, de descoberta da propria verdade, constryindo-a num ambiente cultural em que o pluralismo de modelos ¢ de opgées ganha 66 Sérgio Gricio crescente legitimidade. Isso é bem espelhado por exemplo pelas formas recentes de consumo de massas, centradas numa extrema diversidade que, longe de reduzir 4 passividade, permitem a cada um fabricar e compor 0 sev préprio estilo. Como Louis Dumont, Norbert Elias (1993) traga uma larga pintura dos progressos do individualismo, marcantes desde 0 Renascimento, a partir do qual os equilibrios entre as identidades do Nés e do Eu se desiocam a favor do Eu, em detrimento das diversas formas (local, tribal, familiar ...) de preponderancia do Nés. Elias apoia-se largamente na ideia de que é em virtude da regulagao psfquica do comportamento humano que existem as estruturas sociais, e que, por conseguinte, 4 mudanga nas estruturas sociais acarreta uma mudanga na auto-regulagao psiquica dos actores. Também para ele os individuos s&o actualmente confrontados com um crescente ntimero de alternativas, que devem gerir, e muito mais entregues a si do que pelo passado. Ao contrério de Dumont e Lipovetsky, que 0 ignoram totalmente, Elias insiste na realidade de um quadro de competic&o social marcado pela discrepancia entre as oportunidades e as aspiragGes, entre as formas de socializagdo (como a escolar) que alargam os horizontes, apelam a miltiplas facetas das personalidades, incitando a realizagaio de idiossincrasias, e que depois permanecem irrealizadas em larga escala, e, em larga medida para cada um. Por outro lado, muitas das formas de relacionamento interpessoal, incluindo as familiares, tém hoje um cardc- ter facultativo e revogdvel e sao objecto de uma permanente e prudente gest, impondo quadros de interac¢do com «uma diminuigao da espon- taneidade no agir e no falar» (Idem: 228). Para Anthony Giddens (1993;1995), com 0 recuo dos contextos pré- modernos em que se construfa a confianga nas relagdes interpessoais, essa confianga deixa de ter um forte enguadramento institucional e passa a ser um projecto, comum as partes envolvidas, que exige grande abertura de parte a parte. Isto vai a par de uma descoberta de si que se torna ela mesma um projecto. O self € hoje um projecto reflexivo, uma interroga- ao permanente sobre a auto-identidade, muito investida em particular nas relagées eréticas, definitivamente libertas das suas ligagdes ancestrais com a reprodugiio, Segundo Giddens, as transformagées da intimidade aqui implicadas, ao colocar no primeito plano os afectos e a realizagio emocional no quadro de relagdes interpessoais igualitarias, encerram gran- des virtualidades de transformacio, num sentido democratizante, do con- junto das instituigdes. A referéncia a estes autores sugere a actualidade que pode ter uma vertente do estudo das classes e da mobilidade social ligando de maneira A mobilidade social revisitada 67 eventualmente fecunda transformagdes como as que tém ocorrido mais recentemente em termos de mobilidade social com as suas consequéncias culturais @ até, como o quer Giddens, 0 impacto duradouro que estas uiltimas podem ter por sua vez nas estruturas sociais. Nao € sé a competigdo social que constitui um dos factores da individualizagio, pelo trabalho sobre si préprio que implica, de transfor- mag&o e de acumulacio de recursos. A rentincia ou a desisténcia da competicao, ou a rélativa indiferenga face a ela, também podem ser em certos casos eventualmente estruturantes e individualizantes, através de atitudes e praticas positivas de composigao de estilos pessoais, 4 volta de valores alternativos aos do mundo econémico, nomeadamente. As ima- gens tracadas por Elias e por Giddens das relagdes interpessoais tém em comum uma dindmica de permanente invencio, mas contrastam drastica- mente na sua tonalidade, sombria no primeiro caso, esperangosa no se- gundo. Nenhum destes autores faz qualquer referéncia aos trabalhos dos socidlogos da mobilidade social dos anos 50 e 60, Isso compreende-se em Lipovetsky, dada a sua cultura filosdfica e a natureza francamente ensafsta da sua proposta, mas admite-se menos facilmente nos outros, sobretudo em Giddens ¢ Elias. A ideia que se desprendia do ascenso dos valores universalistas e de realizagio pessoal era a do reforgo da importincia de uma actor indivi- dualista, voltado para a ascensio social, capaz de diferir as satisfagdes imediatas ¢ de sacrificar assim talvez uma parte de si, mas a0 mesmo tempo ofensivo e optimista, aberto ao futuro. Jé a nova economia psico- Iégica ligada a um novo estddio ( que procurémos caracterizar) da com- petigdio social aponta para um actor descrente e desencantado, orientado para investimentos nos quais as componentes ofensiva e defensiva se apresentam com fronteiras muito mais indistintas, um actor pouco dispo- nivel para o lado afectivo da existéncia. Mas poderia apontar igualmente para 0 actor de Giddens e de Lipovetsky, cultor e em busca de si préprio e da sua afectividade, voltado para os novos valores da vida pessoal ¢ relacional. Trés perfis do actor empirico, portanto, esbogados sem grande preo- cupagao de sistematicidade, mas em relagdo aos quais ndo existe a partida nenhuma razdo para crer que 140 possam coexistir lado a lado, uma vez que tudo indica a sua correspondéncia com tipas amplos e consistentes de experiéncia social presentes nas nossas sociedades. Mas s6 9s resultados da pesquisa empirica 0 poderdo decidir, se cla for devidamente informada por este ¢ outros enfoques semelhantes e complementares. 68 Sérgio Gracio Bibliografia AGACHE, Christine (1993), Les Identités Professionnelles et Leur Transformation. Le Cas de la Sidérurgie, Paris, L’Harmattan; ALMEIDA, Jodo Ferreira (1986), Classes Sociais nos Campos. Camponeses Parciais Numa Regidio do Noroeste, Lisboa, ICS; BERTAUX, Daniel (1969), “Sur I’analyse des tables de mobilité sociale”, Revue Francaise de Sociologie, X, n° 4; BERTAUX, Daniel (1978), Destinos Pessoais ¢ Estrutura de Classe, Lisboa, Morais; BLAD, Peter M. © DUNCAN, Otis D. (1978 ), The American Occupational Structure, N lorque, ‘The Free Press (1* ed. 1967): BOUDON, Raymond (1973 a), L’Inégalité des Chances, La Mobilité Sociale dans les Sociétés Industrielles, Paris, A. 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