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A FRAUDE PROMOVIDA PELO CONFLITO DE INTERESSES ENTRE A ADMINISTRACAO E OS ACIONISTAS Reynaldo José Canabarro Aluno do Programa de Mestrado em Ciéncias Contdbeis na UERI OBIETIVO fem sempre os objetivos da Administragao de uma companhia” esto em consonincia com os de seus acionistas. Esse breve artigo pretende apenas despertar 0 imteresse do leitor pelo tema e convidé-lo a pensar, num —primeiro momento, nas possibilidades de fraudes que poderiam resultar desse problema, para depois imaginar como seria essa realidade nas empresas aqui em nosso Pais. 1 INTRODUCAO A missio precipua do administrador & maximizar a riqueza do acionista, Esta talvez seja a unanimidade dos compéndios de administragdo financeira. Resta saber se 0 transcorrer dessa incumbéncia enseja contlitos de imteresses entre as partes © em que intensidade. A teoria de agency’ estuda a relagio entre proprietério e administrador (0 agent) no que concerne 30 estabelecimento nitido das atribuigdes de ambas as partes na gestio do negécio. O administrador € ungido, LHENDRIKSEN, Eldon S. VAN BREDA, Michael F Teoria da contalilidade. Rio de Janie: Atlas, 1999, p39. pelos acionistas, de poderes para implementar determinadas pobiticas, que. estes entendem razosveis ao aleance do objetivo maior, que € 0 dda maximizagio da tiqueza. A contabilidade & 0 instrumento vital para essa relago, na medida em que fornece, 40s propritiris, material informative 8 andlise retrospectiva do ddesempenho e, também, base & prospeccio. Eo feedback. informagao. é componente ‘importntissimo para a sade dessa relagdo. E preciso que ela seja completa e objetiva, consubstanciando a simetriainformacional Quesides quanto ao perfil de isco ¢ preferéncias de investimentos de ambas as artes precisam estar muito claros. Proprietério tem que ser competente para acompanhar constantemente 0 desempenho do ‘agent ¢ identificar se as ages deste refletem suas preferéncias. Esse acompanhar resulta nos chamados custos de agency que, em linhas gerais, podem significar a contratagio de auditores, para fisealizar 0s atos da administragio, ou dispendios com programas que a incentive a buscar sempre atender as preferéncias do proprietitio - em tiltima anilise, é a maximizagZo da riqueza, Para Gitman', na prética, muitos administradores esto preocupados também com suas riquezas pessoais proporcionadas pelos tais incentivos de que falamos a pouco ¢ = GITMAN. Lawrence J. Prncipios de administraco Financeira. Sao Paulo: Habe 1997, p19, isso pode afasté-los de operagdes de isco, ‘optando por atuagées mais moderadas, fugindo de sua verdadeira missio. Trata-se de uma fnversio de valores. A riqueza pessoal — incluindo o emprego, os carros, o escritério, as viagens, as gratificagies e participagdes custeadas pela empresa ~ acaba preterindo a riqueza do proprietiro. esse cenério, a possibilidade de propagacdo de atos desonestos € algo que precisa ser considerado. Prejuizos ou insucessos de uma forma geral podem ser encobertos por aificios fraudulentos © — espelhados nas ddemonstracdes contabeis como um desempenho Imeritério. Quando descobertas, essas priticas podem até por fim ao empreendimento. Ainda, segundo Gitman, os proprictirios, além das chamadas despesas com auditoria para acompanhar 0 desempenho. dos administradores, incorrem também em custos com seguro, objetivando protegerem-se contra 4s perdas impostas por atitudes desonestas. da administracio, 2 AEXPERIENCIA NORTE-AMERICANA, ‘Como se desenvolvem, na pritica, essas atitudes desonestas? No Brasil essa matéria niio tem tido uma divulgacdo forte, a no ser nos casos que, por mao poderem mais ser represados, chegam & imprensa, o que de certo nfo significa que estejamos imunes a0 problema, Com isso, resta-nos buscar a informagio em outras cercanias, como nos E.U.A, por exemplo, A pressio por resultados positivos tem levado a pritica da maguiagem — das demonstragies contabeis de forma intensa nos, E.U.A,, pais em que a pujanga do mercado de capitais € por demais conhecida e que conta com um Grgio regulador poderoso como Securities and Exchange Commission (SEC), além de possuir grandes © renomados centros de estudo da Ciéncia Contébil, Em artigo assinado por Carol J. Loomis na revista Fortune’, tem-se conhecimento de diversos escindalos, envolvendo grandes empresas norte-americanas que fraudaram os livros contibeis, objetivando —satisfazer. as, expectativas do Mercado, e/ou dos proprictatios, apresentando resultados estaveis, Algumas das técnicas de managing earnings (administragio de lucros) utilizadas pelos administradores desconsideram —prineipios de contabilidade, como se isso fosse uma atitude ‘muito natural, Alguns diretores de companhias proeminentes daquele pats, ainda consoante a matéria de Loomis, quando instados a comentar cesses alos, procuram passar a idéia de que nao se trata de um delito, mas de uma prerrogativa que @ administragdo tem com relagio & forma de apuragao do lucro da companhia. O sentido ‘que pretendem dar ao caso é o da subjetividade, esquecendo-se de que as regras contabeis. vém, exatamente, dar um cariter objetivo que permite a validagao de todo o sistema contébil como instrumento stil de informagao aos tomadores de decisio. 0 fato € que se nos surpreendemos com © volume de imegularidades nas demonstragdes contabeis de companhias norte-americanas, ‘exatamente por toda a exceléncia e magnitude de seu mercado de capitais € da informagio contibil, hi, entretanto, que se registrar o rigor com que essas fraudes slo tratadas. A SEC e os Grgios da justica americana sio implacéveis. Multas de valor muito significativo sto aplicadas s empresas € aos auditores que no tomaram os cuidados devidos nas anilises, e muitos presidentes e diretores de empresas foram condenados e encontram-se presos. Na luta contra a fraude a SEC tem voltado sua preocupagio para as demonstracées, contabeis de muitas empresas, dando énfase & andlise de operagdes. que envolvem 0 reconhecimento iregular de receitas; gastos com reestruturagao da companhia, gastos com pesquisa e desenvolvimento, ¢ contingéncias. Curioso observar que estes _sinais captados pela SEC como indicadores (red flags) de possivels irregularidades nas demonstragdes LOOMIS, Carol J. The Crackdown is here, Fortune agosto de 1990, contibeis das companhias slo, praticamente, os ‘mesmos idemtificados no relat6rio de outubro de 1987 da National Commission on Fraudulent Financial Reporting’ - grupo de trabalho, com seis membros, criado na década passada pelo American Institute of Certified Public Accountants (AICPA), American Accounting Association (AAA), Financial Executives Institute (FED, Institute of Internal Auditors (IIA) e National Association of Accountants (NAA) ~ com © objetivo de identificar as causas e recomendar medidas para reduzir a incidéncia de fraudes nas demonstragdes contibeis, Ji na ocasiio em que funcionou o grupo de trabalho (outubro de 1985 a setembro de 1987) 0 volume de imegularidades era substancial e as red flags ‘mais significativas, consoante um dos estudos dda Comissio’, concentravam-se no impairmant (perda de valor) de ativos, na baixa (ou subavaliagio) de investimentos ou goodwill ¢ nos gastos com reestruturacio. Nao obstante a delasagem entre a data do relatério da Comissio ¢ a das medidas adotadas pela SEC, vorifica-se uma similitude, preocupante, no que diz respeito a reniténcia da fraude e dos meios para atingf-la. Resta saber se os problemas estio localizados no controle, na dosagem das Penas ou na pressdo que o préprio mercado poe nas Administragdes. 3 RECONHECIMENTO IRREGULAR DE RECEITAS © reconhecimento indevido de receita, lalvez seja uma das modalidades de fraude contibil mais freqiientes. Ainda, segundo Loomis um estudo, com 200 empresas, feito pelo Committee of Sponsoring Organizations of the Treadway Commission (COSO), mostra “NATIONAL COMMISSION ON FRAUDULENT FINANCIAL REPORTING USA outubro de 7. “FRIED. Dov, SCHIFF. Michel, SONDIL ‘Ashvsinpaul Surprises Writes ~ Financial Reporting, Disclosure and Analysis = Abstract do Relatério da National Commission on Fraudulent ancial Reporting, 1987 p. 105, que $0% das frudes estavam calcadas em Nendas fas. “A SEC tem centrado seus esforgos na andlise das chamadas operages ll dnd hold” (ho faturumento, mas os produtos ‘oso entregues, ficam sob a. guarda, do wendedor), qe,” registtese, no necessariamenieinegulaes, desde que possuam as segumtes cracteitcas 8) 08 Fscos corridos pelos bens objetos do. negéeio,armazenados "no vendeder, sejam exelusivamente do comprador, b) essa modalidade de nego tenha Sido solicitada pelo comprador Com a expliitagao do propésito do nepécio, © vendedor precisa te um compromisso formal com o cliente de que a compra vai oconer 6) deve haver uma data de entrega fxa aque sea razotvele consstente com © propdsito de negécio do comprador: 4) 08 bens devem estar completos © prontos para a enttega e no podem ser desvindos para outas ordens de compra; 6) nfo deve exitr nenhuma obrigagio do vendedor em ajudar ov pareipar de revenda em nome do comprar A explicitagio dessas carcteristicas objetiva mitigar operasdesfraudolentas como © faturamento de operagdesinexistentes, ou de tum mesmo prelto. para mas eum cliente. A matéia de Carol Loomis nos di conta de que a SEC comprovou que muitas empresas adotaram foperagdes bill and hold “com 0 objetivo de, imegularmente, aumentar nivel do. lvcro. Administradores tém_ sido” processados em 4 GASTOS COM REESTRUTURAGAO ‘Trata-se da constituigdo de uma reserva com o objetivo de reestruturar a propria "CARMICHAEL, Douglas R,— Hocus-Pocus ‘Accounting. Joumal of Accountancy outubro de 1999, empresa, ou uma outra adquirida, Na verdade, os recursos da reserva destinar-se-iam cobertura de custos, com a extingao de Fabrica ou divisio deficitéria; conclusio de plantas de novos projetos, ou saneamento de dividas. Esses custos estariam, em tese, voltados para garantir bons resultados operacionais no futuro, © 0 sacrificio do luero no presente para a comstituigio dessa reserva uma atitude sempre bem recebida pelo mercado. Os analistas entendem que a administracdo estaria arrumando sua estrutura para obter_ bons resultados no futuro. Ocorre, entretanto, que a reestruturagio pode, na verdade, constituir-se no que os americanos chamam de big bath, ou seja, uma superestimago no valor da reserva com 0 objetivo de carrear 0 excesso de volta aos lucros no futuro, caso estes nao estejam nos niveis esperados pelo mercado. E um caso tipico de administrago de lucros. A SEC, consoante a matéria da Fortune jd citada, tem esmiugado os planos de reestruturago das empresas. e descoberto muitas iregularidades, como gastos a serem incorridos no futuro, com —advogados, contadores, gratificagdes especiais para empregados © despesas para teinamento de pessoas ainda no contratadas. A Comissio americana tem exigido das Companhias a remessa de informagdes detalhadas. sobre 0 comportamento da reserva de reestruturagao, chegando a pormenores como o cotejo entre 0 niimero de funcionérios desligados e o previsto no plano, ¢ 0 volume de indenizagées pagas e a pagar. Toda a estratégia esté voltada para a aferigao de que a reserva de reestruturagio no se destine & administracao de lucros 5 DESPESAS COM DESENVOLVIMENTO PESQUISA E. Normalmente, empresas que adquizem otras companhias que possuam em suas demonstragdes.contibeis ativos oriundos de ‘gastos com pesquisa e desenvolvimento em processo, levam esse valor de uma sé vez a resultado, evitando que influenciem o lucro a 31 set apurado no futuro, Segundo a SEC os compradotes tém feito o possivel para atribuir, a esses ativos, a maior parte do prego de compra, para que possam se livrar dele imediatamente Cerca de 60 companhias americanas do setor tecnol6gico, ainda segundo a Fortune, foram forgadas pela SEC a alterar suas demonstragdes contibeis. Uma delas foi multada, na importincia exata do montante de custos com pesquisa e desenvolvimento, em proceso que havia baixado de uma s6 vez, cevitando o diferimento, 6 RESERVA PARA “USO FUTURO" (COOKIE-JAR RESERVES) Mais um subterfiigio utilizado pela administragdo fraudulenta para se proteger do futuro incerto e garantir, na frente, a bonanga em tempos dificeis. Através de manipulagio de nndimeros 0 lucto € subestimado, e a diferenca constitui uma espécie de reserva para ccontingéncias. Segundo o artigo que estamos comentando, a Microsoft admitiu ter formado reserva desse tipo. A idéia basica, como jé explanamos, € a de garantir Iucros no futuro que atendam as expectativas do mercado, A ‘matéria retrata a sitwagdo vivenciada por uma grande empresa que, em trés anos, criow a cookie-jar reserve, ajustando o resultado antes dos impostos em $500 milhdes que serviram para, durante algum tempo, manter as aparéncias, inclusive conseguindo ludibriar as alengdes dos auditores independentes. 7 CONCLUSAO Como podemos —observar, 0 desempenho da administrag20. precisa ser acompanhado de perto. £ evidente que a fraude ngo € a tnica ferramenta utilizada pelo Administrador. Hi 0 talento, a seriedade, a técnica, 0 profissionalismo. Nao cabe, portanto, ‘generalizar 0 comportamento fraudulento, Mas hijo se pode deixar de registrar que, quando os interesses da Administragao nao convergem para os dos proprietérios, num cendtio competitive © exigente como 0 existente na chamada Economia de Mercado, esti formado um ambiente propicio as fraudes. Se em um Pais como os Estados Unidos, detentor de um mercado acionério que € um dos mais importantes sustemtéculos de sua economia; que possui uma agéncia reguladora com poderes (e atuagio) para coibir inregularidades de forma severa; que dispensa a ciéncia contébil um tratamento importante, com —_ fortes investimentos em pesquisa, a cultura da fraude € muito forte, preocupa-nos a situagio brasileira da qual pouco se tem noticia a esse respeito. BIBLIOGRAFIA, CARMICHAEL Douglas R. Hocus-Pocus Accounting. Joumal of Accountancy outrubro de 1999, FRIED. Dov, SCHIFF, Michael, SONDHL. Ashwinpaul Surprises Writeoff’s ~ Financial Reporting, Disclosure and Analysis ~ Abstract do Relatério da National ‘Commission on Fraudulent Financial Reporting. 1987. GITMAN Lawrence J. Principios de ‘administragao financeira, Sio Paulo: Ed Harbra, 1997, HENDRIKSEN Eldon S. VAN BREDA. Michael F. Teoria da contabilidade. Sio Paulo: Atlas, 1999. LOOMIS, Carol J. The Crackdown is here Fortune agosto de 1999. NATIONAL COMMISSION ON FRAUDULENT. FINANCIAL REPORTING USA - outubro de 1987, ROSS Stephen A., WESTERFIELD Randolph, JAFFE Jeffrey. Administragdo Financeira Sao Paulo: Atlas, 1995.

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