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Sob os Girassóis – Roberto Menezes

Hoje de manhã saí de casa com o corpo suspenso em algum tipo de vento que não
entendi. O sopro levou-me aos campos. Deixei terno, camisa, gravata, relógio...
Disposição. Levado pela aragem, encontrei na divisa entre esse sonho que me fazia voar
e a realidade deixada para trás como cinza, minha morte. Ela, árida, saciou-se
rapidamente de mim e se foi, para as terras altas, onde nem a aragem, nem os bois ainda
haviam chegado. Para onde os pássaros voam nos derradeiros invernos.

O vento cessou e em espiral caí.

Agora me encontro despido de tudo que é corriqueiro, deitado morto sob os


girassóis. O sol se pôs ao meio do dia no alto do céu. Ele me procura. Não me vê. A
sombra das pétalas amareladas dos girassóis me abriga. O rosa de minha pele continua
intocado, não sofrerá queimaduras do sol. Onde estou, embaixo dos girassóis, na
penumbra, as formigas passam por cima do meu corpo, alheias a minha presença.
Perseguem uma folha seca, um pedaço de galho que elas possam suportar. Sou muito
pesado para elas. Se fosse mais leve, com certeza me levariam.

Dessa desventura, estou salvo.

Estou salvo também dos engarrafamentos, dos olhares de censura do patrão, que
me encontra nos cruzamentos quando tento esquecer ele. Minha salvação é uma criança
inexata, com as pernas frouxas, ainda não aprendeu a andar. Mas ela sabe que anda, que
logo em breve começará a andar. Do meu patrão, a lembrança de um bigode torto, e só.
De sua voz aguda e incompreensiva, não lembro mais, dos dias e dias sem fim, sentado
ali, sob seus pés. Ficou tudo para trás com meu terno, e meu livro de atas das reuniões,
intermináveis reuniões.

Deitado, agora, sob os girassóis, estou desfeito de todo ácido, o sangue não flui, a
cabeça não me enche de neuras. Já é de tarde, os urubus chegaram, a frota me circula no
céu, preparando o momento de proceder meu funeral. Rasgarão a carne, beberão o
sangue, sugarão o cérebro, levarão as neuras que imóveis se fazem de mortas, feito as
baratas. As eternas baratas do ralo. Há tantos ralos e não há como fechá-los. Sempre
saem baratas dos ralos. Essas neuras me enchem de neuras. Um dia, não as formigas, e
sim a neuras herdarão essa terra. Mas na terra de baratas não quero viver. Partirei desse
mundo com os urubus. Não sei de onde eles vêm, ou para onde me levarão em essência,
mas estou satisfeito com essa sina. E enquanto a viagem não vem, me contento com o
espetáculo bizarro que as baratas que saem dos meus poros me proporcionam. Devoram
as formigas, uma a uma. "Coitadas de nós", gritam as formigas, "coitadas de nós. Apenas
levamos para a casa o pão". Mas as baratas, que saem dos poros com bigodes do meu
patrão, devoram uma a uma sem perdão.

É tanta barata, meu corpo se torna um castanho escuro. Não estou mais nu, não sei
quem sou mais, se homem ou se barata. Apenas uma casca de barata. Apenas eu, um
pouco meu patrão. Sobre os girassóis, os urubus atônitos me procuram em tamanha
profusão e só enxergam baratas e os bigodes do meu patrão.

As flores se inclinam para a última pose do sol, é dia morrendo, o céu anuviando
em cores do fim. Os urubus têm que ir embora agora, seguir o sol, a oeste nova carne
morta vão encontrar. Eu, preso às baratas, lamento em não ir com eles, depois de ser
devorado. Em algum lugar, seria regurgitado, seria alimento novo, de uma nova cria. Fico
aqui com as lamentações, preso aos bigodes do meu patrão. Amanhã, tomarei coragem,
acordarei mais cedo, deitarei na grama, não sob os girassóis. Deixarei o sol grelhar a
carne, os urubus se deliciarem do sangue. Ficarei longe dos girassóis que me resguardam
do inevitável caminho que devo transpor.

Hoje, então, me levanto, me limpo das baratas. Visto minha gravata, meu terno.
Aponto meu relógio e sob a noite que radia a funesta tentativa de fim, caminho para casa.
Bebo uma canja, assisto a um filme, corto as unhas e durmo.

O dia que virá amanhã será diferente, bem diferente do de hoje. Amanhã não
voltarei mais, voarei com os urubus para a próxima casa. No caminho oposto da alma que
faz bater o coração.

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