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O que mais atrai neste livro de Rosa Mana dos Santos é sua capacidade nar-rativa
, aliada a uma segura técnica de utilização de planos, como se elaboras-se a mon
tagem de um filme.
Mas, a par dessa capacidade um tanto invulgar de desenvolver a estória, a partir
principalmente de cortes, a fim de alcançar uma equilibrada economia verbal, a
autora tem a seu favor a seleção dos temas, sempre, em torno dos vencidos e mal-
amados, dói que se foram com sua derrota ou permaneceram como espelhos do mundo
cruel.
Contos como Da Cor Daquele Céu, Emanuel, A Mãe de Jacó, Os Arcanos da Madrugada,
O Medo, entre outros, mostram-nos a contista preocupada com as pessoas, com os
que enfrentam diaria¬mente sua via crucis, na mesma medida em que se mantém aten
ta a um estilo simples e elaborado, simples o de pro¬fundidade poética.
No Brasil e em outros países da América Latina, por falta de condições para o re
al trabalho do escritor, alguns bons nomes têm mutilado seu talento ou por isso
mesmo, recorrem à estória curta, como “única saída.”
Acontece que o conto não pode ser visto como “saída” para ninguém. Trata-se de g
ênero que criou raízes, projetou formas especificas e, além disso, exige do ficc
ionista extraordinária capacidade de síntese.
Grandes contistas foram todos aque¬les que não apenas manejaram bem a língua mas
, paralelamente a isso, trouxe¬ram para a literatura, um pouco do mundo que inun
dou seus olhos, agitou-lhes o sangue ou envenenou-lhes a alma.
Houve um período entre nós, no início da década de 60 em que contistas pouca ou
nenhuma vivência chegaram a criar o slogan: conto é tudo que se con¬ta. Nenhum d
os defensores dessa pro¬posta vingou para confirmar sua teoria.
Quero crer que o contista, tanto quanto o roteirista de cinema, á aquele que tem
um time interior, que sabe o tempo exato de iniciar e terminar sua estória; é a
quele, ainda, que está bem perto do poeta, que convive com ele.
Rosa Maria dos Santos possui essas qualidades. Fazendo seus contos com extrema s
ingeleza, mas usando a palavra precisa, nas situações necessárias e, a par disso
, utilizando-se das elipses de narra¬ção, dos cortes cinematográficos, ela confi
rma que o conto entre nós tem uma estrutura definida, não é mera in¬venção a osc
ilar nas mãos de todo aque¬le que se julga vanguardista.
Esta escritora chega à arena literária, sem pompa ou rapapés. Ela sabe, mais do
que ninguém, que é impossível a aju¬da a um ficcionista. lnterferências exter-na
s geralmente só servem para inibí-lo.
Quando o livro é lançado, o escritor tem um compromisso único: com o pú-blico qu
e o vai ler. É a partir daí que ele existirá ou não.
Esta coletânea de contos de Rosa Ma¬ria dos Santos está pronta para o desafio. F
oi trabalhada com amor, garra e muito senso de humanidade. Os perso-nagens são s
ofridos, alegres e tristes como nós. Não são tipos de papel, não são bonecos lit
erários. Rosa os transfor¬mou em gente, o que é bastante para provar seu grande
talento de ficcionista.
José Louzeiro
Rio, 27.6.83
Temo pelo futuro deste livro — e o temeria em re¬lação a qualquer outro. Mas esp
ecialmente deste de uma autora estreante, encantada com o que existe de compacto
e denso no conto. Imagino o quanto esta nordestina armada de Clarice e Lygia F.
Telles na bolsa de artesanato encontrará de luz e treva no percurso desta barra
oitenta sem crítica literária e número suficiente de leitores, todavia encarada
por alguns escritores como um tempo digno de competições doentias. A trégua, no
entanto, logo se instala à leitura dos contos que compõem “Baião de Dois”. Vind
a do pequeno Piauí, porém grande em literatura graças a pelo menos O G. Rego de
Carvalho e Torquato Neto, a mais nova contista da terra oferece de entrada dois
mistérios: o da concepção e execução dos textos e um outro relacionado à mulher.
Habilíssimas mulheres estas companheiras da contista segura, perdida em detalhe
s e em alguns sortilégios da fabulação. Em correspondência às deci¬fradoras da s
orte (“Emanuel”), às enigmáticas fabricantes de perfume (“Mirra e Aloés”) e às m
ães místicas de Jacó, a ficcionista brinca com a expectativa do relato, fazendo-
se de adivinha. Elabora, subreptícia, um símbolo um símbolo (promessas de coraçã
o) para o desfecho dos contos. (A matemá¬tica de conto de Poe e a matemática do
desejo encontrada na prosa arfante de Jorge Mautner). Atira-se às atmosferas pro
piciadas pela ficção breve em tempo de desconfiança da enumeração narrativa. Viv
e da elipse. Em “As Mãos”, por exemplo, trabalha um texto sobre a insinuação, mo
tivo e conquista de uma mulher e de uma contista.
Com quem dançam os personagens femininos deste baião? Este não é um livro para o
s apaixonados pelo rame¬rame do proseado nordestino que vez ou outra atiça a con
tista. Tampouco pelos desregramentos da cômoda onto¬logia. Rosa Maria dos Santos
revisita alguns mestres, bons cultores, epigonos até do conto brasileiro conhec
ido des¬de o Modernismo, munida do que me parece ser sua paixão: uma indisfarçáv
el experiência da solidão. A despeito de al-guns pecados, comuns à prosa intimis
ta, a autora de “Baião de Dois”, seguindo, matemática dez amor zero, (título de
velho filme da Atlântida centrado sobre o namoro de um professor e uma aluna), a
s iluminações pedestres das mulhe¬res que se fazem sozinhas no gênero conciso e
concreto que é o conto, (de Clarice a Sônia Coutinho, a repórter perturbada por
Copacabana) não se deixa levar pelas rosas verme¬lhas do grau dez da escrita, di
z ao que veio em “Olhos Havanas”:
“Ganância de surrupiar dos outros um modo de com¬preender as causas e os fenômen
os de tanta pressa. Uma pressa que aniquila e corrompe os mais leves sentimentos
.”
Daí ser o telegráfico da prosa de Rosa um sinal pul¬sante do ir além dos escanin
hos do gênero e da elegância conceitual. Quando os contos de “Baião de Dois” não
prestam reverencia ao talhe e à contenção tradicionais da ficção curta, escavam
brechas de prazer que me fazem lembrar as inclassificáveis anotações poemáticas
de Ana Cris C.
Zero de conduta e prova de que seus escritos vão para longe do conforto literári
o, aclimatado pelos piedosos su¬plementos de fim-de-semana, são a identidade ent
re as arti¬manhas da contista e as fantasias das mulheres criadas, que jogam com
os pés e as mãos, e dão perfumes quando se uni¬formizam nas quarenta garotas da
classe. Gosto muito de uma música do The B-52’s, chamada “52 girls” na qual as
incríveis vocalistas do grupo chamam as muitas garotas da cidade pelos devidos n
omes. Rosa Maria dos Santos, pro-fessora de cursos noturnos, pode até continuar
a fazer a sua chamada, mas dou fé no que li e sei dizer o seu nome em um hipotét
ico jogo sobre a autoria de contos reunidos sem assi¬natura. Suas meninas repres
entam trezentas e cinqüenta re¬plicantes em pacto com o mais imprevisível acaso
destas cidades desavisadas, gráficos e maquetes montados contra nossas possibili
dades de passeio. Seus contos são configu¬rações das epifanias nordestinas, dirã
o alguns. Também acho. E a isto se acrescente:
“Essa pecha veio bem caracterizada desde a nascença. Tudo inútil. Subindo a ramp
a, os embrulhos debaixo do braço. Na mão esquerda uma mudinha quase desabrochand
o. Observando as coisas nascendo. A casa era limpa. Deu vontade de morar sim. Co
m um rapaz de quinze anos. Olho azul, igual uma peteca. Pela primeira vez com el
a. Impacto.”
Desejo e conto nascem juntos em Rosa Maria dos San¬tos. Como já acontecia com Má
rcia de Almeida em noites de blitz e em estados de vigília ao nascer do sol, os
contos de “Baião de Dois” instauram ficções portáteis, de dar na vista, no vídeo
e nas ruas. A escrita já afirma:
.... nossas desgraças devem se unir, não é qualquer bobozinho que tem coragem de
fazer no cinema. So¬mos uma ameaça. Nossa raça foi extinta.”
Nordestina, mulher e contista em 80, Rosa nos desa¬fia. Pelo desatino de seus te
xtos e pretextos de confissão de amor em prefácios, eu já não temo pelo futuro d
este livro.
Mauricio Salles
DA COR DAQUELE CÉU
São nove horas da noite. Três trens já partiram após sua chegada. Cansada de per
guntar as horas, passeia em volta das bancas de bolo frito. Um guarda a persegue
, pergunta se ela tem documentos. Não está vendo o tamanho de minha bolsa? Diz i
sso para afastar a presença desconfortante do homem. Guardava o silêncio da barr
iga, para preencher mais tarde de café com leite.
Procurava manter uma certa tranquilidade, Clotilde. A estação continuava ilumina
da e o vai-e-vem de pessoas distraía muito mais do que ela imaginava. Não fazia
mal. Tomou sereno, poeira no nariz, meteu o pé na areia e lembrou das tapiocas q
ue a mãe fazia — todas fminhas e trans¬parentes. Morria de tudo, menos de saudad
e.
— Aceita uma cerveja?
— Só se for no bar mais próximo.
Saiu com o desconhecido. Andando as horas passa¬vam com mais rapidez. A cerveja
choca já lhe entorpecia. A mão áspera amaciava sua cintura. Há quanto tempo não
ti¬nha um homem? Quando as plantas começassem a chorar, voltava para a estação.
A sandália se enchendo de areia. Ti¬nha que guardar alguma coisa para relembrar
enquanto esti¬vesse sentada naquele banco duro. Começou a usar um re¬curso antig
o — meteu o pé no sapato do desconhecido e subiu... tranqüilamente esfregava.
Primeiro dançaria um bolero no salão fuleiro. A tris¬teza medonha por nunca ter
desfilado num carro aberto de circo, chegava agora. A pista furada prendia seus
pés... já não existia mais cimento para ser carregado pela vassoura. Pendia de u
m lado para outro. Sentada, o fêmur latejava.
Saíram. Sentiu desejo e enfiou a cabeça no pescoço do homem. Fixava a cara rapad
a, mais tarde apostaria em sua transformação.
— Mais cerveja?
— Uma só.
A barra do dia apontando, com dificuldade divulgava os trilhos tortuosos. Junto
ao desconhecido se sentia feliz. Entraram numa casa pequena. Clotilde deita na c
ama. O homem apaga a luz.
São seis horas da manhã. A estação cresce. Passageiros correm com medo de perder
em o primeiro trem. Clotilde dobra o xale, coloca-o na bolsa. Senta numa banca d
e laran¬ja, puxa conversa com a mulher gorda...
— Vendeu muita laranja?
— Como a coisa tá, quem chupa laranja? Mas dinheiro pra cachaça não falta.
— Se quiser, posso ajudar a descascar...
Tira o gosto da cerveja amarga com duas laranjas pre¬senteadas pela banqueira, s
ilenciosamente se afasta, agrade¬cida.
Adiantava agora o pensamento, encompridava-o, olhan¬do para os trilhos. A estrad
a era comprida e fina. Longe. Pe¬lo menos isso, uma vez na vida só. Lembrar que
pulava o peitoril da janela para ver o eclipse da Lua, não adiantava. Era pequen
a, uma menina, não sabia de nada. A vida agora era aquilo ali, uma estação tumul
tuada, gente correndo, malas, sacolas, gritos, lágrimas de despedidas. Se a vida
fosse boa, as pessoas não fugiam, o bom, certamente, ficava perdido nas estrada
s, ninguém carregava. Quem sabe a coragem a empurrava para o trem que sairia à n
oite.
São treze horas. Em casa teria almoçado o quê? Só pensava em casa, como se casa
fosse vida... No baião de dois preparado pela mãe, quentinho, solto. No circo a
coisa era diferente — uma domadora de animais ou dançarina. Desfilaria com bicho
s e gente. Coroada de emoções distri¬buía sorrisos para os curiosos que a aplaud
iam. No circo, Ozir, o anão que lhe galgava as coxas e a conduzia ao prazer jama
is sentido com outro homem. Ozir minúsculo fazia dela uma escada. . . subia. . .
subia... subia. O circo era grande, bem maior que aquela estação. Dava para pas
sear, viver até como bicho, parecendo mata.
À noite partiu. Escondida para não pagar passagem. Para uma terra conhecida atra
vés do mapa.
Vontade renitente de ver matos correndo. Novidades, ansiava. Imprevistos. Temper
atura mudando. Descendo e subindo serras. A tonteira. Tudo pior que um porre de
ca¬chaça. . . mas diferente. E depois o silêncio longo. Tempo para pensar e susp
irar. Bolar planos, enrolá-los nos guarda¬napos de papel, e depois deixá-los per
didos nas estradas. Afogar a todos numa lágrima indecente. Deixando tudo pa-ra t
rás, abominando todas as penas.
Manhã distante, casa oculta por um jardim sem flores, só gramado. A janela escan
carada dava uma falsa sensação de liberdade e consciência tranqüila. A cortina d
e flores amarelas foi se pregueando aos poucos até fundir-se numa só prega. Clar
idade! Um tapa num mosquito que quis chu¬par seu sangue. Um avião que passou dei
xou fumaça no ar e ela escreveu um nome no céu. Esfregou as mãos a fim de sentir
calor. A sensação de já ter morrido, pagando pecados na Terra. Tão simples pega
r na mão de alguém e atravessar a rua correndo. Principalmente quando esse algué
m era ele.
Calafrio. Aflição incontida em seus gestos. Segurou-a pelos braços para acalmar
sua tenSãonalidade. Carregada de emo¬ções — prática e objetiva apenas para reviv
er. A preocupa¬ção passando, como uma chuva pesada.
Se culpar por quê? Fazia agora a carta que não ia mandar. Depois que ele saiu co
meçou a olhar para o chão —viu lençóis e uma barata correndo. Meteu a mão na cab
eça e decidiu: vou embora daqui nesta semana ainda. Esta será a última imagem de
sagradável que recebo de presente desta casa. Deslocou-se engatinhando e foi até
o banheiro, ficou olhando para sua última mijada. Arrependida por não ter sido
cruel. Poderia ter simulado. . . feito um jogo.. . sabe lá o quê. Vomitou. Ficou
com ódio de seu vômito porque por mais que engulhasse não conseguia cuspi-lo fo
ra, aquele gosto estava lá dentro em suas entranhas.
Desembarcou. Sem terra, sem nome. Uma rua como outra a recebeu. Não sentiu desej
o de perguntar onde esta¬va. Sabia voltar para a estação.
EMANUEL
Para Suzana Vargas
Ada sabia que ele podia vir. Era mentira dizer que não atendia o telefone às qua
tro da matina. Continuaria envol¬vendo-o com carícias apesar de todos os truques
que ele in¬ventava. Como sabia mentir aquele homem. Ainda mais o detalhe: só de
sejava-o cheirando a álcool. Se culpava e dizia que era a sina. Sóbrio não dava,
a vontade era ficar parada, olhando fixo para o teto ou traçando linhas no ar c
om os olhos arregalados.
À tarde fez gelatina, comprou chá de camomila. À noite remexeu no guarda-roupa,
encontrou uma bermuda amarela-azul de um homem da estatura de Emanuel. Vestiria
ele após a ducha que o banharia da chuva, porque certa¬mente ia chover. Andou pe
la casa à cata de um barulho, de¬detizou a cozinha e achou impossível encontrar
uma barata para espremê-la e acordar seu vizinho. Achava a casa maior, pensou na
falta que Mercedes Sosa e Fagner faziam. Tão im-portantes eram os gritos daquel
es dois. Mas naquela hora, como podia? Noite. Suas vontades eram roubadas pelo t
em¬po. Tudo se ia sorrateiramente... igual coisa emprestada que não volta nunca
mais.
Aquela era a última noite de Emanuel com ela, por isso Ada acordou às dez da man
hã, deixou para arrumar a sala na parte da tarde, quando provavelmente continuar
ia tudo limpo para o dia seguinte. Fez até um xampu para ele, viu a receita numa
revista e quis testar nos cabelos de Ema¬nuel, por serem eles menos trabalhosos
que os seus.
Ada pensa em trancar a porta do quarto para não ouvir o telefone se porventura t
ocar. Já passa de uma da manã, começa a desejar que Emanuel imagine que ela dorm
iu fora. Sabia que aquilo era pura vaidade ou coisa de ado¬lescente. Achava ótim
o não ser uma mulher madura. Pensou mais uma vez que ele podia vir cambaleante e
mentiroso.
Procurou uma toalha limpa, guardada sob ramos de capim-de-cheiro. Meticulosa, de
sdobraria fazendo suspensa porque seria ela que friccionaria as espáduas resping
adas de Emanuel. Sentada num banquinho do banheiro o inspecio¬naria através do p
lástico da cortina, no banho que mornava há horas.
Mas aquele silêncio matava. No início, o telefone toca¬va quatro vezes por dia.
Quando a hora dele chegar se apro¬ximava, corria para arrumar almofadas, encher
garrafas de água, cozinhar legumes, cerrar cortinas. A vontade de inven¬tar cois
as todos os segundos para ele, era infinita.
Gastava horas para estudo de signos, combinações as¬trais, decifração de números
. Chorava quando diziam que gêmeos era dividido. Não combinava. Tristeza. Colíri
o nos olhos. Capricórnio nascera para sofrer. “Não vem. Não virá nunca mais.”
Quatro horas da manha, Ada, de luz acesa com uma caixa de comprimidos de lado, o
telefone, o rádio e um ca¬derno massudo. Chuva forte caindo. A cara virada para
a parede. Acima de seus olhos um retrato: Emanuel seguran¬do um peixe e um anzo
l. Um rio grande... que ele atraves¬saria viajando com a mulher.
Seis horas, Ada decidiu ir para a rodoviária. Os dois já estavam. Emanuel de ócu
los escuros disfarçou com as mãos nos bolsos do casaco comprido. A mulher beijav
a-o no om¬bro sobre a roupa que alisava.
Ada sorria para ninguém, procurando um viajante que não existia. Como todos os p
aasageiros, consultava relógio, abria bolsa, fumava cigarros e, em seguida, amas
sava-os no chão.
Emanuel foi ao banheiro, Ada esperou à porta. Convi¬dou-o para beber alguma cois
a.
Emanuel pediu para Ada fingir que não o conhecia. Ada aceitou, desde que ele des
istisse da viagem e não ficasse fazendo carinho na mulher em sua presença. Emanu
el con¬cordou com a metade do pedido, cancelar a partida era im¬possível — argum
entou. Estava combinado que era a última noite, relembrou Ada. Ela pediu uma cer
veja e dois copos. Encheu-os e entregou o mais espumante a Emanuel. Ele agradece
u e disse que a mulher não sabia do seu vício. Ela sabe o quê? Perguntou Ada. Qu
e sou um homem multo bom, respondeu Emanuel consultando o relógio. E o amor com
ela, como faz, se você só consegue através do álcool? Insistiu Ada puxando um ca
derno da bolsa mapeado de as¬teriscos e símbolos indecifráveis. Sem que ele perc
ebesse, lambia os dedos e ia passando as páginas. Não faço amor com ela, complet
ou Emanuel se dirigindo para a plataforma de embarque.
Ada riu de mansinho, depois esticou a gargalhada diante do público indiferente q
ue se encontrava a seu redor. Vagarosamente se encaminhou também à plataforma de
em¬barque. Se esquivava para não dar na vista.
Passavam por ela malotes, sacolas, pessoas agitadas e chorosas. Ada brincava com
um cordão no pescoço. Olhou para o céu, viu o relógio da rodoviária... confirmo
u a hora no seu, abriu o caderno massudo. Emanuel já se encontrava dentro do ôni
bus agasalhando a mulher ao lado. O motoris¬ta verificou mais uma vez a lista do
s passageiros, sentou e esquentou o carro. Partiu.
Ada levantou as mãos não em forma de adeus. Gritou, não Emanuel, não vá, o carro
vai virar, vai virar Emanuel.
A MÃE DE JACÓ
Quando a mãe entrou no salão de jogos, o filho se es¬condeu debaixo da mesa do b
ilhar e mandou um recado dizendo que já tinha ido embora. A mãe saiu à sua procu
ra em todos os salões da cidade. Só voltou para casa quando a noite quente calma
mente findava. Sentou na rede e ficou a observar a claridade do dia que já invad
ia o chão do quarto através das frestas da porta.
Jacó dizia que quando crescesse queria ser bandoleiro. Os irmãos ficavam com inv
eja porque ele demonstrava sua vaidade pegando tainha no rio. Nas caçadas Jacó e
nchia o cinturão de rolinhas, em casa assava as bichinhas magras na brasa. Irmão
corajoso estava ali.
Não agüentando mais ficar em casa, Eulália passeava à beira do rio, conversava c
om os canoeiros, todos já sabiam o nome completo de Jacó. Chegando notícias eles
avisavam, ela podia ficar despreocupada.
Se um arco-íris riscava o céu, Eulália trocava de roupa e seguia para a beira do
no. Boas coisas viriam. Sabia que os barqueiros não tinham lá essa boa vontade
para esmiuçar seu caso. Também não compreendia por que aqueles ho¬mens riam com
sua aparição repentina.
Quantas vezes Jacó passava dias escondido no mato. Ou então viajava com sua bici
cleta cheia de bugi¬gangas. Além do gosto pelas viagens tinha descoberto o praze
r em jogos. Vivia debruçado numa mesa de bilhar, apostando dinheiro. A mãe com o
peito arrochado esperava o filho menino.
Tantos arco-íris apareceram que Eulália esqueceu de morar dentro de casa. No qui
ntal, embalada por um vento momo da mangueira, olhava o céu, esperando que a tar
de escurecesse para ela enxergar aquelas linhas multicores e se preparar para pe
rcorrer o cais.
Bênção mãe! Meu filho, como o sol lhe tostou, criou sardas, o pé cresceu. Que nú
mero você calça agora? Não é mais branco. As viagens não foi? Sol no lombo queim
a.
Jacó abraçava-a e dava-lhe uns beijos na bochecha emurchecida. Antes beijava-a n
a testa. Mas aquilo era antes, agora, homem feito, não tinha mais certos recatos
de menino.
Mamãe, a senhora está menor...
Eulália continuava a caminhada, tirava o rosário do bolso da saia e rezava uma s
alve-rainha não fazia o glória-ao-padre ali, na presença dos canoeiros. Se limit
ava a balbuciar a reza por medo de ser ouvida, mas se avistava as canoas e balsa
s descendo o rio zangado, não resistia e fazia o glória-ao-padre disfarçadamente
. Agradecia a Deus com antecipa¬ção.
Nenhuma carta Jacó! Pelo menos um bilhetinho di¬zendo que estava vivo. Não tive
tempo, mãe. Arranjei uma venda, muita miudeza, tudo no varejo, negocinho pequeno
. Pedalando a bicicleta e eu aqui, meu filho, chorando lágri¬mas de sangue.
Jacó nasceu numa noite de janeiro de um ano ímpar, o céu estava sem estrelas e e
ra sexta-feira. À tarde, antes de dar à luz, Eulália vira um arco-íris não no na
scente, mas no poente. E foi com o pensamento voltado para o nascimento de Jacó
que decidiu parar de esperar o arco-íris. Passou a esperar as barcas mesmo sem o
sinal.
Cedo arrumava a casa, os outros filhos e à tardinha ia para o cais. Numa dessas
andanças entrou numa canoa que estava ancorada e sem ninguém por perto. Desamarr
ou a corda que prendia a embarcação à terra, pegou o remo e se defrontou com o r
io cheio, gordo com seus remansos amarelos.
Seu cabelo, meu filho, está tão diferente, você não era louro? Ficou ruivo... o
sol também castigou nele. Seu pai nunca sentiu saudade, toda vez que fala é para
brigar, filho ingrato, esquece. Esquecer como, homem? Sempre res¬pondia e à noi
te acendia uma vela para as santas almas te alumiar, te cuidar. Nunca neguei uma
sede d’água a nin¬guém, sempre pensando na necessidade que você podia pas¬sar n
esse mundo sem fim.
Sabia agora que o filho era homem, nem dava mais para contar nos dedos sua idade
. O mundo tão grande para um menino de quatorze anos, magro, sem um tostão no bo
l¬so. Bandoleiro. . - sabia que dizia aquilo por inocência. Eu¬lália remava, can
sada, o rio era muito comprido.
Jacó, você já vai embora? Mas você acabou de chegar. Vamos fazer uma festa, mata
r galinha, convidar todos os vi¬zinhos, armar uma fogueira. . - tem lenha no qui
ntal.
Desceu da canoa num ponto distante. Jacó lhe acena¬va com um lenço branco que re
splandecia diante da escuridão.
Tantos janeiros, dias pares e ímpares. Arco-íris gran¬des, pequenos, com cores f
ortes ou diluídas, nasciam, cres¬ciam, desapareciam diante dos olhos apertados d
e Eulália. O tempo passando e a cabeça de Eulália foi ficando branca, a pele sec
a, os pés rachados de passear pelo cais, os olhos não enxergavam mais o arco-íri
s. Não sabia mais como se guiar.
Por que você demorou tanto Jacó? Foi matar passari¬nho do outro lado do rio e de
ixa sua mãe assim preocupada, tão pequenininho, um menino de calças curtas, não
devia fazer essas traquinagens. Não jogo mais mãe, perdi tudo... a venda, a bici
cleta. Quero morrer aqui sem um vintém no bolso, sem viajar, sem matar passarinh
o.
A última vez que Eulátia foi vista, andava com uma saia cheia de fotografias cos
turadas à mão e entrava numa canoa iluminada de velas. Sexta-feira de janeiro e
o rio se espreguiçava diante do breu da noite.
AS MÃOS
Sentiu enjôo. Teve querer e muitas coisas mais. Se arrumou cedo. Naquele dia uma
meta. Inez não sabia bem o que a levou a tanto. Aquela história teria o começo
e o final mais rápido de todas as histórias de encontros com os Ído¬los. Um gran
de amigo contava a vida dele com entusiasmo. Tinha que conhecê-lo, vê-lo lhe era
insuficiente.
Uma vida manifestada em jornais, entrevistas, cinema. Através da tela ela viu su
as mãos. Sua perseguição começou aí. Chegando ao encontro, mostrou desinteresse,
queria com perspicácia desorientá-lo. Se acautelava. . - não gostou da boca, ne
m do andar. Eram detalhes insignificantes, bem sabia. Aceitou o convite para o a
mbiente que ele dizia underground. De passagem, se encontrava numa cidade pa-rec
ida com suas maquinações. Era um espaço que de tão grande não lhe cabia.
“Com urgência eu preciso de um espelho.”
Segurou seu quadril. Deixou. Subia e descia a mão em movimentos circulares. A fi
xação crescendo. Precisava dar um jeito de ficar sozinha com ele. A xerox dele e
stava em sua cabeça — já via todos os contornos de seu corpo.
“Quero perguntar por que a moça que foge com uma túnica vermelha — tão important
e no filme — não precisou falar.”
Inez se envergonhou e se respondeu antes de puxar conversa. Só que carecia daque
las mãos para argumentar e dizer que a imagem é quase tudo no cinema. Sentaram e
m um bar à beira de uma avenida que Inez achou vagabunda. Ironizou quando falara
m que ali era o canto dos artistas.
“Sinto vontade de cambalear e cair em cima dele.”
Começou a verificar as pessoas que seguravam os copos. Alguns veteranos das arte
s tremiam pelas noites erran¬tes e descontroladas. Se admirava como batiam suas
historinhas e poemas com dedos tão trêmulos.
As mãos dele eram compridas, dedos roliços e unhas rentes. Quando as fechava, os
ossos ficavam salientes e as veias bastante azuladas, apesar da morenez. Inez p
ediu para que as abrisse e mostrasse a geografia e os caminhos de suas palmas. A
lisou vagarosamente algumas linhas enquanto suas pernas latejavam. Pensou na sol
idão sentida, quando sua mão esquerda procurava a direita sem suscitar nenhum de
¬sejo, somente apertava imagens distantes.
Conversaram e desconversaram muito. Na casa de um amigo, aportaram. Ouviram Jani
s Joplin e fumaram. Ele a acompanhou em tudo. Inventaram segredos, ela sabia que
eram segredos inventadíssimos. Queria Inez que os seus fossem revelados dali a
minutos. Olhava para as mãos dele com a mesma gula que ambicionara mudar sua vid
a. Tira¬ram sapatos e a metade das roupas. Começaram a escrever uma história jun
tos.
“Essa história será tão imoral como o país em que a gente vive.”
Enquanto escrevia, seu olhar subia e descia acompa¬nhando as metáforas desfeitas
com os gestos. Seus próximos minutos seriam usados para a obtenção de sua paixã
o.
“Não posso deixar de pensar que fico infeliz por mi¬nha audácia, que estou corro
ída até a espinha dorsal e que meu desejo era juntar os caquinhos de minha vida
e zarpar para uma terra que não sei o nome.”
Escreviam no chão. Traçaram um plano para ser de¬senvolvido a pleno vapor. Ela s
eria a repórter de seu jornal de domingo. Ele contratou-a e selou a questão do p
agamen¬to. Inez desejava enfatizar que sua vontade maior não era a escritura. Nã
o queria aquilo. Alguma coisa a desarrumava no ato de escrever. Encantava Inez s
ua palpitação para as artes, mas estava querendo mudar de assunto, selar um novo
pacto.
“Não sou a mulher vivida que você imagina. Apenas treino minhas invenções pensad
as. Pô-las em prática será sempre minha meta.”
Agarrou seu braço e chamou-o para dançar. A sala es¬tava cinzenta pela fumaça. T
entaram uma iluminação precá¬ria. Nos cantos, os grupinhos se formavam. Alguns m
ostra¬vam o céu da boca e faziam barulho numa forma desconfor¬tável de dormir. V
eio então a oportunidade de Inez segurar suas mãos. Apertou-as, estalando alguns
dedos.
“Que mãozinha gostosa, tenho vontade de gritar.”
Calou-se enquanto ele pedia licença para ir ao banhei¬ro. Pela porta entreaberta
Inez ouvia o som de sua mijada. Saiu. Ela entrou em seguida e deu descarga. Lav
ou a cara, fez umas caretas para o espelho — espremeu um tubo de pasta, com o in
dicador botou um pouco na boca. Da porta voltou, tornou a se olhar.
“Não tenho mais urgência de espelho.”
A sala transformada em albergue anunciava o clímax da reunião. Por alguns minuto
s Inez guardou a mão direita dele dentro de sua esquerda. “Você faz arte com ela
, não é?” Perguntou para que ele não notasse seu interesse des¬medido.
Foram para a cozinha. Quase dia. A claridade dava uma certa vergonha a Inez. Enq
uanto ela se debruçava no fogão para preparar dois sanduíches de legumes, ele us
ava as mãos em seu corpo.
MANHÃ DE ABRIL
Sem querer, quase que automaticamente, atravesso uma avenida que nem sei o nome.
Apenas percebo sua lar¬gura. Talvez necessite atravessá-la no prazo de uma sema
na diariamente. Caminho por uma calçada estreitinha. Já estou arrependido, exist
ia a opção de outro caminho. Instantanea¬mente paro. Em minha direção vem uma mu
lher suja, des¬grenhada, roupas esfarrapadas. Numa mão segura uma trou¬xa e na o
utra um copo de papel. Somos dois na calçada e vamos nos defrontar cara a cara.
Tenho um pressentimen¬to... Poderia retroceder, mas a pressa de chegar na hora c
erta ao meu compromisso, faz com que eu vacile. Penso em atravessar outra vez a
avenida, neste caso, seria atrope¬lado. O barulho dos pneus... os estrondos dos
veículos me perturbam mais ainda. Nos aproximamos e o que eu temia acontece. Com
um riso incontido, ela despeja todo o conteú¬do do copo em minha cabeça. Sinto
tanta raiva da mulher que começo a xingá-la de tudo quanto é nome feio. Nos atra
camos durante uns cinco minutos. Ela ri com loucura. Parece satisfeita com o que
faz. Puxa minha camisa e solta gargalhadas cada vez mais fortes. Os pingos do s
uco descem dos meus cabelos e ensopam a camisa. Tenho medo dela. Cheia de corage
m esfrega sua mão em minha cara, não fala, mas continua rindo. Como me desgrudar
dessa mulher lou¬ca? Quero empurrá-la para a avenida silenciosa porque o sinal
fechara a dois quarteirões, porém fico aturdido com seus ataques. Corro para me
livrar de outra investida. Sa¬cudo a cabeça... Seria mijo misturado com suco de
laranja ou caju? E ela bebia aquela substância. Minha camisa fica enrugada e tor
na-se impossível uma pessoa passar perto de mim sem sentir o forte odor. Ficar p
arado aqui não posso. Nesse momento o mundo podia finalizar neste pedaço de calç
ada quebrada. Permaneço uns dez minutos ao sol, es-perando que a roupa seque. Se
eu fosse outra pessoa talvez tomasse um táxi, e na entrada sorriria contando o
caso pa¬ra o motorista, veja só uma maluca me deu um banho de mijo... Certamente
ele responderia “não há de ser nada... quem perdeu juízo para maluco achar? Seu
caso é simples comparando-se com outros. Chegando em casa toma um banho, bota u
m perfume”. Olharia para trás condescenden¬te, já estava pensando numa boa gorje
ta. Só possuo dinheiro para o ônibus. Quantas pessoas eu gostaria de ver há anos
! Se elas aparecem agora sou capaz de me jogar debaixo de um carro. Minha saudad
e morre comigo. Devo correr, entre¬gar este maldito documento antes que aquele d
entuço vá almoçar “não quero nem saber, último prazo é amanhã, senão matrícula c
ancelada. Lei é lei, por que estou há dez anos no mesmo emprego?” Ando mais rápi
do, sinto vonta¬de de cuspir sem parar. Nunca senti tanto mau cheiro em minha vi
da. Meu estômago já começa a embrulhar. Entro no primeiro banheiro que encontro.
Não tem água. Me sinto a pessoa mais azarada do mundo. Corro pelo corredor da e
s¬cola. Encontro Terezinha... se aproxima, não posso fugir. “Não me beije Terezi
nha”... corro com o som da voz dela me perseguindo “o que foi que aconteceu?” De
via contar. Quem sabe ela arrumaria um ferro... Seria capaz de ir a uma loja faz
er um crediário e comprar uma roupa para mim. Por que fico assim? Por que exigem
que eu esteja cheiroso? Não quero que saibam o que aconteceu comigo. Sigo para
o ponto de ônibus, já não me agüento. Pela pri¬meira vez na vida olho a cara do
motorista com súplica. Por que os passageiros me enxergam? Através da vidraça to
dos me olham. Por sorte no momento sou o único a entrar na condução. Procuro o ú
ltimo banco, o do canto. Uma moça arrumada senta do meu lado, dentro de segundos
fala tor¬cendo o nariz: “parece que tem rato morto neste ônibus”. Não adianta q
uerer puxar conversa. O único rato vivo aqui sou eu. Finjo olhar para o céu, pai
sagem diferente, as horas não passam, o motorista acelera, quero morrer na próxi
ma curva. Aposto que não sentiriam nada diante da-quela mulher, seria respeitada
, cederiam o banco inteiro para suas trouxas, não olhariam sua sujeira, ela não
afetaria ninguém. Me encabulo à toa. Todo mundo me olha, me acusa, não estou ped
indo perdão? Não foi por acaso que sentei na última cadeira. O motorista acelera
. A moça nota que não quero papo, mas inevitavelmente nos tocamos quando o carro
roda na curva. Ela vai falar de novo. Não! Não me olha mais. Se ela estivesse n
o meu lugar sofreria assim? Isso é motivo para tanta amargura? Hoje eu seria ass
assino — iria para a cadeia por um motivo idiota. Não quero ver ninguém. Tudo po
r causa daquela louca suja, solta na rua. Desço do ônibus. Entro numa padaria. P
eço um conhaque. Estou enxuto, mas a camisa presa ao corpo não permite movimento
. Não quero ir para casa. Antonio se encontra no portão, como burlar aqueles olh
os inquisido¬res? Faço o percurso de volta. Uma pensão! Por que não pensei nisso
antes? Gente desconhecida. É disso que eu preciso. Pago depois, converso com a
dona. Ou então vou para a casa de um amigo mais íntimo. Amanhã resolvo o problem
a. Ímpeto de comprar um revólver e matar aquela mulher. Ainda não saí de minha r
ua. As horas passam, sinto fome. Agora eu vou, não tem mais ninguém conhecido po
r perto. Caminho resoluto. Que alívio! Felicidade é isso... sossego. Entro. Vint
e minutos depois tocam a campainha. Só tive tempo de tomar banho. Quem será? Ant
onio. Estava me esperando. Sinto desejo de lhe contar a história. Coço a cabeça,
fico desconfiado. Quero desabafar, Pedir um conse¬lho para o dia seguinte. Crio
coragem e inicio... sabe o que aconteceu hoje comigo? Uma maluca me pegou na ru
a e me deu um banho de água suja. E aí o que você fez? Antonio me pergunta ansio
so. Eu peguei ela, dei-lhe um empurrão, saquei meu revólver, mostrei e disse que
se ela se aproximas¬se de novo eu lhe dava um tiro. Antonio riu dizendo que nun
ca pensou que eu fosse tão corajoso. Rimos juntos.
VIAGEM
Piscando os olhos e desejando que aquele dia fosse o último de um século que dev
eria findar ali, disse:
— Você representa a loucura do meu mundo. Nunca tive coragem de te pedir sinceri
dade, também nunca queiras ser sincero. A dor virá com a franqueza.
E o pensamento inquieto... “nunca pensei em te te¬lefonar num final de semana. S
ei que você vai se divertir. Eu praguejo. Tua autonomia não coincide com a minha
. Sauda¬de daquele túnel numa madrugada. Entramos suados (fazia calor) quando sa
ímos estava chovendo. Estávamos em outro estado — o da embriaguez. Eu antecipei
a maluquice de di¬... eu estou perdida... nas matas dos teus cabelos.”
— Vamos viajar?
Sugeriu. E continuou à cata de seu último dia.
— Por que não? Sumir! Arrá! Deixar que o mundo fique atrás da gente. Todos doidi
nhos...
E partiram num trem, ainda de madrugada.
“O dia não pode amanhecer. Amanhecer o dia não pode.” Era só o que repetia.
— Te amo, bem. “Besteira. Mas que besteira! Tenho medo só em pensar que ele só q
uer meu corpo. Bobagem, devo jogar fora esse pensamento. Claro que ele quer muit
o mais: fugir e pensar. Ótimo, mas isso é ótimo para o homem que só vê o futuro
e faz somas.”
— Ninguém pensa quando vive, bem.
Quis ser direta. Ele pega em sua mão, aperta, depois joga fora. “Podia ter segur
ado um pouquinho mais. Agora veio a saudade daquele meu amor platônico. Como ser
á que ele beija?”
— Meu amor, eu quero ir pra Marte com você...
E as casas passando, de repente manhã.
— Lavar rosto, escovar dentes. Tarefas chatas...
Ela se espreguiça e ele a segura.
—Você é uma dorminhoca.
— E você só fala para reclamar. Estou cheia de praze¬res pensados e vividos...,
podia adiar nossa volta.
Dá-lhe uma mordida no queixo, provocando nele uma pergunta:
— Quando você não me amava e não me conhecia, quê que fazia na vida?
Espantada, ela responde encaixando os olhos nos dele.
— Procurava você.
Ele ficou matutando. Acreditar ou não? Fechando os olhos, ela renova seus pensam
entos... “Isso é indiferente para mim. Se pelo menos eu acreditasse em alguma co
isa... eu gosto de fragmentos. Minha vida é construída de frag¬mentos — pego um
daqui, outro dacolá e vou juntando. Sei quando gosto, isso eu sei.”
— Meu amor, já vamos voltar? Por que Marte é tão longe?
Agora, ele tão distante e Camila saboreando uma ma¬çã, com a toalha ao pescoço j
untava frações de horas que foram divididas em minutos e guardadas numa grande c
aixa do tempo:
“Eu queria saber como você vive atualmente. Nunca mais passei por aquele túnel.
E as comparações que faço, terminam caindo em frases já citadas. A toalha que us
amos na viagem, com que rodeamos conjuntamente nossos cor¬pos, eu vou guardar se
m lavar, sinto que ela ficará protegida pelo cheiro do sabonete. Só nossos corpo
s são sujos. Imagi¬no sensações que poderia ter sentido. Invento imagens, vida e
pessoas para você, dou-lhes alma, conforto e até beleza espiritual. Você fica c
om elas porque elas giram no teu mun¬do e te completam. Eu tirei parte do que vo
cê tinha. Com¬preendo isso também. Posso dizer que te afetei demais, por que não
dizer, consumi? Nesse instante a pessoa imaginada para você não é tão boa como
eu queria que fosse. Ela está contigo porque não há consumo e nem roubo da tua p
az de espírito, apenas de bens materiais... você tem prazer em dá-los. Quero que
continue bom. Meu amor se transformou, é verdade, e se guardou quieto, se for t
ocado, se rebentará em choro e quererá viver outra vez, porque esse direito lhe
foi vetado. Eu prefiro que ele viva em sono eterno. Pois da¬rei fim a todas as v
iagens fantasmagóricas que tenho vivido com relação a meu amor-tormento. Agora t
e vejo assim: atravessando o túnel cantarolando, sem cigarro aceso no canto da b
oca, seguro pela crispação dos lábios. Às vezes imagino você sentado, procurando
alguma saudade num ponto qualquer das paredes que servem de cenário ao seu olha
r. Ou então contando um caso engraçado, mas sempre com o pensamento: ela vai me
procurar um dia. Nosso sé¬culo não acabou naquele dia. Meu amor se recolheu e di
sse: queres que eu morra? Então faças por onde e procures um bom caminho.”
Camila terminou de mastigar a maçã, comeu todos os caroços, jogou o talo fora e
nem com isso o século passou.
CINZA PÉROLA
A maior parte da vida no trem. Em pé, o pacote debaixo do braço. Carregando a ro
upa dentro do quadrado de um jornal amarrado com barbante. Na curva, a barriga a
visava, necessário uma média.
O coração chocalhava, o baticum visível na camisa de mescla — a conta na cabeça
— virava e virava. Matemática mais forte que os nervos. Tomaria água com café, o
leite já não era branco; aquilo sustentava? Bom o pensamento da colher balançan
do no meio do copo, nem mexia direito, deixava para o fim o grosso do açúcar, de
pois, lambia os beiços. “Vida de Cachorro.”
Companheiros desaparecendo... “morar distante e construir bangalôs para os outro
s?” O melhor é roubar... E acrescentavam que, quem constrói casas jamais faz uma
para si.
Impossível pensar daquele jeito, filha de três anos e uma mulher arigó. Responsá
vel pela esposa furtada. Caiu na besteira de perguntar se ela deixava o marido v
alente por ele. Alzira balançou a cabeça. Pegou em sua mão, deu uma palmadinha.
Estava selado o contrato.
O trem avança mais, a barriga fazendo barulho. Os ferros dos trilhos se confunde
m com os da construção. Oito andares... construir. Erguendo todo dia um nervo do
monstro. Quase topando no céu. Ao seu lado o amigo Galdino. Subiam juntos. Gira
vam a manivela e o balancim obe¬decendo aos impulsos de suas mãos. Os moradores
vizinhos numa implicação dos diabos. Ferros tinindo. Para ele um pedaço de si. C
ontando nos dedos os meses para a entrega. O animal crescendo, se abraçando e se
fechando em um pe¬daço só seu. Não era à toa o seu formato quadrangular e ele c
omendo de olho baixo, grudado na sola do pé.
A construção na cabeça desarrumando tudo. A quem daria atenção? Ao barulho ou ao
seu corpo?
Vagou um lugar. Sentou. Faixas coloridas povoavam seu cérebro... baldes subiam.
- - cheiros de várias espécies penetravam em suas narinas - tinta fresca, barro
molhado...
Para que tanto encasquetamento? Tirava uma mosca do nariz, olhava para o mundo a
través dajanela... passava uma casa, duas e aquela lembrança ali, renitente. De
vez em quando abrindo a boca para sorrir. Encabulado olhava de um lado para outr
o. Ninguém tinha visto seu sorriso, ou viram?
O trem se agita numa corrida desordenada para com¬pensar numa parada repentina.
Entram caras enfezadas e di¬ferentes. Levanta os olhos e sente que o formato de
algumas pessoas em que havia grudado a vista, iam desaparecendo pouco a pouco; c
orre o pensamento para Alzira e enxerga ela todinha. Pensar em desemprego com aq
uela imagem de santa abandonada...
Todas as segundas coisas se repetindo. De tabuleta na mão, o patrão sempre anota
ndo tudo, querendo saber nos mínimos detalhes dos acontecimentos. Mandando empre
¬gado embora sem mais nem menos. Depois todos retoman¬do pedindo dinheiro empres
tado aos amigos e a ajuda para um novo emprego. Intranqüilidade crescendo, sabia
que a qualquer instante seu corpo poderia estar lá embaixo, como o de alguns am
igos que nem tempo tiveram de entregar a alma a Deus. Morreram na escuridão, a ú
nica claridade que vislumbravam era a da cal, acariciando seus olhos.
Desce. Vai ao mesmo bar. Pede a média tão esperada pela barriga. Desanuvia um po
uco a cabeça quando encon¬tra uma colega que vivia por ali, perambulando. Falam
de futebol. Não pode demorar, dali a pouco vai ter que tomar outra condução. Lem
bra de Galdino quando atravessa a passarela e esbarra em um sujeito possuidor de
traços fí¬sicos iguais aos do amigo. Galdino em sua mente... gostava do seu tem
peramento zangado. Planejou construir uma casa que caísse na cabeça do dono. “Ai
nda hei de fazer uma casa que cai na hora certa certa.”
Entra no segundo trem. À hora do almoço, as conver¬sas iam e voltavam. Galdino c
urioso, quem vem morar aqui? Pintava um salão bonito... colocava espelhos em um
banheiro... não se via. Ímpeto de esmigalhar vidros que só o mostravam sujo. Dep
ois do banho, corrida para não perder o trem.
Foi aí que deu com uns olhos grudados nos seus. To¬do dia com ele na condução. F
aceira. Mostrando os dentes e um pedaço da coxa. Alzira? Esquecia. Feia e santa.
A fita gravada na cabeça com a palavra trem sumiria de vez. Só queria saber uma
coisa daquela mulher. Se ela ia pro inferno com ele. A construção desabava.
DE CABEÇA PARA BAIXO
Estamos no ano de 1977. “Seu nome? Passe todos os documentos. “Renato O. Carvalh
o. Estudante, claro, porém documentado. Cur¬so: engenharia. Sonhos: mudar... mud
ar... mudar...
Por alguns instantes lembrava de umas poucas coisas e sentia vontade de rir. Olh
ou para o céu e o imaginou ornamentado de árvores verdes, plantadas de cabeça pa
ra baixo e associou tudo isso à lembrança de um copo de papel se diluindo, torto
e flexível pelo peso da bebida. Ele, dentro de um navio com uma bandeira vermel
ha no meio do Ocea¬no Índico. “Entretanto é preciso falar. Um jogo verbal, feito
de palavras escolhidas. Porém, a minha tristeza é pro¬fetizar que a linguagem g
estual ainda vai dominar o mundo. Com certeza haverá uma época em que será desne
cessário certos pronunciamentos. O homem, com seu poderoso sa¬ber, se quedará ao
s impactos desfeitos com um sopro, por suas causas há muito tempo perdidas.”
O rapaz magro, de óculos redondos e aros dourados correu. Soltou um grito e elev
ou o braço num gesto de está¬tua da liberdade, mas instantaneamente parou e come
çou a contar os passos, usando uma voz de comando. Era interes¬sante estar fazen
do aquilo. Precisava ficar bem com ele mesmo. O que não deixava de ser uma justi
ficativa bastante coerente com seu estado de aversão ao que presenciava e ao que
estava por vir. Diminuiu a caminhada e cessou a con¬tagem.
Talvez fosse fácil dizer que aquilo que estava sentindo interessava não a ele so
mente, mas a todas as pessoas que batiam em seu ombro, com um sorriso amistoso “
tudo bem” e a resposta ideal seria — não! Porque nesse momento você está sendo i
nconveniente e não é a pessoa que eu desejava ver em meu caminho. “Eu preciso. -
Eu preciso tanta coi¬sa — inclusive não responder tudo bem.” Para ele seria me¬
lhor nem sair do lugar mas aquela inquietação de ir ou ficar o cansou e a posiçã
o indefinida o impulsionou para um no¬vo rumo.
Bateria numa porta. Encontrá-la-ia mais rabugentinha depois das idéias adquirida
s pelo fracasso. Já podia sentir o seu ar de vitória quando o via infeliz. Da úl
tima vez cheirava a lavanda de bebê (perfume dava dor de cabeça) e se dizia recé
m-nascida para o mundo; sem deixar de explicar que achava o mundo um pai liberti
no, que dava todas as oportu¬nidades dos desencontros que tinha de aturar. Mas q
uando ela arregalava aquele olhão, sua vontade era chamá-la filha da. Calava com
a palavra dançando na garganta e pesquisava o canto de uma unha que nunca cresc
ia — levava-a à boca e mordia o dedo. Ela dizia que o achava bonito naquela hora
, pois era o único homem que conhecia que roía unha. Infe¬liz era o mundo, o pai
arrogante, doador de liberdades nun¬ca vivenciadas.
Continuou pensando, assim num gesto de andar ao léu, feito um vagalume — escurec
endo aqui e clareando ali. Superar. Era preciso usar essa palavra tão batida. Ma
s um jeito daria! Retomava alguns pedaços do passado e refazia cenas na cabeça,
chegou a se sacudir pelo despertar de uma sensação. Parecia uma dor gostosa, mas
nem duvidava que não precisava de felicidade naquela hora.
Cara pesada de desengano, tudo por fazer apenas na imaginação. Cadê a cabeça que
douraria o mundo? Agora o pensamento que as pessoas jamais precisariam dele. As
der¬rotas todas guardadas nos bolsos das calças que demoravam a ver água e sabã
o.
Caminhou por uma ruazinha deserta e se aproximou de um casal de mendigos que dor
miam abraçados. As coisas se tomavam reais demais. Impossível um controle. Não f
a¬laria com eles. No máximo daria um boa-noite, o que não passaria de uma tremen
da forma de ironia. Como os dois se encontravam encharcados de bebida, ele parou
a fim de observá-los melhor. O homem dormia de bruços e a mulher de cara para o
céu, tinha o corpo coberto até os quadris. E a simplicidade do movimento daquel
a barriga iluminou os olhos do rapaz. Imaginou o ventre da mulher crescido. -Ime
diatamente matou a criança. Procurou um pedaço de unha para roer.. - nem isso ex
istia mais.
Os olhos parecendo duas papocas de fogo. A capanga de lado — esverdeada no fundo
— era o resquício da cor per¬dida no sol. Decidiu encontrá-la naquela noite, es
pernear, dar socos no ar. Alguém precisava compartilhar de seus pla¬nos que já l
he causavam enjôos.
— Você gosta de mim?
— Eu hein! Que pergunta!
— Só acredito de verdade se beber no meu canudinho essa laranjada. Ela bebe tudo
. O bar brilhava. Algumas pes¬soas se balançavam, como se estivessem num show co
m pre¬sença do ídolo tocado na fita. Mosquitos atraídos pela clari¬dade dançavam
em redor das mesas. Renato procurava no ar os bichinhos para descarregar sua ir
a, e o barulho de suas palmas naquele pequeno assassinato era confundido com o d
e um pedido, disfarçadamente descia as mãos até os pés para amarrar o cordão do
sapato que se soltava a todo ins¬tante.
Depois de muita meditação pede uma cerveja ao ho¬mem entroncado e já acostumado
a tolerar suas birras; pois quando estava sem dinheiro não ficava ali, sentado,
ocupan¬do vaga? O garçom abre a geladeira, última cerveja tirada do congelador f
ormando morros de gelo.
— Vou embora.
— Desabotoa o primeiro botão desta camisa, estar bastante calor.
— Não desvia a conversa.
— A gente arruma uma solução.
— Vamos sair daqui?
Ela ficava relegada a um ponto indefinido. Abraçou-se com sua tristeza e o viu s
umindo num cargueiro. Pensou em quantas vezes e horas foram reservadas para ouvi
-lo. Quis zangar-se, fazer pelo menos uma cobrança, xingar ou dizer: você vai em
bora e eu fico dona de seus males... dona até de sua sífilis...
— Por que você pediu para eu engolir seu cuspe na hora da laranjada?
— Sacanagem minha. Exigência boba...
— Tem cigarro?
— Só Wembley, vai?
— Acende pra nós, senão fico doida de vez... Políti¬ca... Política.
O que fez a Política por você, que você tem essa ga¬nância toda de tudo fazer po
r ela?
— Escravidão minha nega. Precisamos respirar. Esse país tem uma história... uma
História que já perdeu o ca¬baço e continua virgem, percebe?
— Alguém vai com você?
— Perseguido só... sozinho vejo seu rosto molhadi¬nho e as bochechas tremilicand
o, os apelos feitos nessa sua juba por esses dedos compridos que percorrem os ca
minhos do meu corpo. Aí eu digo: foi fiel quando chorava, nessa hora quero acred
itar em você. Seus balbucios eu capto pelas ondas radioativas dos meus tímpanos
quase ensurdecidos de levar coronhadas.
— Sei que seus planos variam de cinco em cinco se¬gundos. Mantenho esperança.
— Eu queria transferir para você parte de minhas von¬tades.
Em um navio, Renato consegue uma passagem para fora do Brasil. Só alguns amigos
e a namorada ficam saben¬do. Ela arruma roupas, mala emprestada, prepara sua par
¬tida.
Davam força pela impaciência e tristeza do rapaz. Ia embora porque aqui não podi
a fazer nada. Se entregava um panfleto na rua enchiam seus olhos de gás lacrimog
êneo, se pichava um muro tinha que ter oito olhos para fugir do camburão. Gritar
em pleno pulmão numa praça atraía poli¬ciais e ficaria sem dentes. Achava que m
orria porque não colocava em prática seus direitos.
Os amigos organizaram uma despedida, numa noite de sábado, na casa de sua garota
. Renato resolveu atrasar e em cima da hora contou o dinheiro “quem pode andar d
e táxi nessa cidade?” Já era tarde, quando pensou nisso encontra¬va-se de olho d
uro na nuca do motorista.
— Por favor, devagar, tenho medo absurdo de morrer de desastre.
O motorista respondeu? Renato resolveu ficar indife¬rente, ademais ele não ia tã
o rápido assim, aquilo era mais uma invenção dele. Queria retardar a chegada. No
final, ter uma história para contar. O trânsito engarrafado, o motorista de táx
i que quis passá-lo para trás no troco, um assalto ali, á entrada da festa.
Sentou nos degraus da escada. Permaneceu atento à música até o seu final descont
rolado. Olhou as unhas, não roeu. Ficou com medo que aparecesse um convidado e d
esse de cara com ele ali, sentado à porta. Decidiu ir embo¬ra. Tomou outro táxi.
Dessa vez não falou nada para o mo¬torista até ouvir a pergunta habitual.
— Para onde?
— Urca. Foi o primeiro nome lembrado.
— Que rua?
— Praia. O senhor me deixa na praia.
Tirou um pacote de cartas da bolsa e jogou no mar. O mar trouxe de volta o pacot
e desembrulhado, o papel que crescia com a umidade e as cartas dispersas samband
o nas ondas. Imaginou se ficaria igual ao tio que um dia fora en¬contrado pendur
ado numa corda e pulou no mar.
APARECIDA
Para Aninha, minha irmã
13/10
Não abro mão de andar no bondinho de Santa Teresa e cus¬pir lá de cima nos telha
dos das casas. O sol me engolindo, tragando minha fome e só restava minha fome.
Agora nada. Te quero assim, lindo! Lindex como na moldura do quadro que coloco t
odo dia na minha frente e beijo, beijo. Digo que você é gostoso. Nem te conheço,
azar seu. Caminhar para relaxar, atravessar a avenida em busca do Tangará. Nem
enxergar sinal e mais que de repente uma carreta freiando, tô salva por hoje! Ca
rtas lembro que preciso escre¬ver umas dez; formulo as palavras da primeira. - .
por aqui tudo bem, não, esse começo já tá manjado, prefiro iniciar pelo fim. Da
rei um final inesperadamente. De repente, o meu mundo ficou caótico, ceguinho, c
om urgência neces¬sito de você, volte correndo, juro que farei um bolo com basta
nte açúcar.
14/10
Minha vida tá no fim. Perdi no concurso. Alma vazia. Von¬tade de estourar os mio
los. Com quê? Como banana ma¬chucada no leite.
20/10
Se você disser que não mais uma vez... por favor não use a palavra ocasional, el
a tem o poder de degenerar meus nervos.
25/10
O médico aconselhou repouso absoluto. Passo férias no Hai¬... - desconheço misér
ia, solidão e pingentes. Dizem que amanhã é outro dia, enquanto ele não vem eu e
spero a noite passar e digo que mais tarde você será uma doce recordação.
29/10
O apocalipse vai chegar. Arrumo malas, compro pasta de dentes e desejo aca
mpar... porém tenho que desburocrati¬zar minha carteira de identidade, assinar o
ponto no traba¬lho na hora certa, esperar numa imensa fila a abertura do banco.
Resta um talão de cheques sem fundos. Viro calo¬teira.
30/10
Vou passear por aí, com você a tiracolo. Ainda dou um ba¬nho no cachorro daquela
vizinha redonda. “Ama-me por fa¬vor” Teresa disse chorando ao cretino do Edmund
o que mascava chiclete com as mãos nos bolsos da calça importa¬da dos Steites. E
u me tomaria uma assassina passional.
31/10
E eis que chega o verão... nem te ligo. Viro uma peste quando me acordam cedo e
eu preciso de sono, de repente faço como Al Capone... ponho placa na porta “bata
depois das duas”. Não me esprema desse jeito. Meus cabelos viraram uma selva on
de eu tento me esconder. E o sonho onde fica nessa história? Vou co... não gosto
quando você me chama nega com esse ar de deboche, lave essa cara por favor, des
enferruje nossos corações emperrados. Não sou flor que se cheire, jogue-me fora
na hora agá... assim não, preste mais um pouquinho de atenção quando me chu¬tar.
De repente eu virei bolinha, um joguete a mais. Estou salva outra vez e mais ou
tra. Sinceridade anda sempre do lado dela. Joana... preciso também conversar com
você, não fuja sua bandida. Ando em cadeira de rodas.
01/11
Dou mais uma voltinha. Comi dois sanduíches de mortadela e um saco de pipoca. Me
nti descaradamcnte, como todo mundo. Não pesou a consciência, ela já está cheia.
Naufra¬guei no seco. Corra enquanto é tempo. Poesia e ar. Sofro sem os dois.
05/11
Andava de cabeça baixa. Sentada na última poltrona do ônibus. Pensando, repensan
do, ruminando Maiakovski... fa¬zendo contas, rasgando livros, desfazendo compras
e ven¬das, planejando umas sobras de uns trocados para uma peça de teatro... e
um medo repentino, pulei da cadeira. Todos olharam. Ri sozinha.
06/11
Saudade súbita. Tenho medo dessas saudades. Três horas da manhã. Telefonar. Pode
ser sexto sentido, nunca se sabe. O porteiro barra minha saída. “Pode deixar, s
ou sonâmbula não”... nenhum orelhão presta. O jeito é dormir! Não! A noite nunca
me dominou... nem sinto cansaço. Questionar é melhor. Prefiro ir, passam nuvens
no céu e eu te acordo com um soco na barriga.
10/11
Não penso em escrever diário. Isso não é diário. Estou frita. Fritinha. Força de
vontade, toma conta de mim! Isso não é nada. Será preciso tomar cachaça para po
der ter coragem de enviar aquilo tudo pelo correio? Alcova... detesto essa palav
ra com a mesma tenacidade que odeio alhures... não me faça perguntas idiotas, at
enda-me com educação, sinta no meu olhar que eu não ataco primeiro. E nem diga d
o que eu preciso. Eu sei do que não preciso.
12/11
Pensei em não mais continuar. Senti que tudo precisa de um fim. Vire-se com um s
alário mínimo... se esborrache... o patrãozinho mandou. Não entre nessa canoa fu
rada. É ine¬gável seu poder de mutações. Como você transborda infeli¬cidade. Cru
z credo! O saco encheu e eu sinto que é hora de dar o fora. Veja se ele terminou
de ler o... oh se tu-do não psssasse tão repentinamente, eu diria que o mundo v
ale o tamanho do mundo? E eu estou nele? Sou mera coin¬cidência. Um pouco de tod
os vocês, com todas as cargas de devorageú~, frangalhos e restos guardados... pa
ra o fim. Eu disse boa-noite, mas ela não respondeu. Me ilumina, sem exageros, s
em escândalos, sem essa carga incestuosa. Delirei. Nem é necessário dizer que os
bobos não sabem o que fa¬zem. E pensar que isso tinha que acabar assim. Não gos
to de começos.
Rio/1975
MEDO
Tudo esboçado na cabeça. Já os vejo até caminhando, mas alguma coisa me castra,
Quantas horas vou permanecer assim no sofá, sem a coragem de escrever.. - de pas
sar para o mundo aquilo que eu penso? Por que ficar de braços cru¬zados na nuca
se sei que posso personificar a cara linda da Lua; dar vida eterna a algumas pes
soas e assassinar outras ra¬pidamente... antes de se preocuparem com coisas que
não os levariam a nada? Sei que tudo isso é mais cômodo.
Posso dizer: meu tão fique feliz, vou deixar que o se¬nhor viva quinhentos anos,
para contar como vai ser este mundo nessa época. O mundo está podre e deteriora
do, mas o senhor ainda consegue ter alma limpa. Será privilegiado. Crio vários t
ipos, uns sadios demais para contrastarem com os loucos.
Afinal de contas, como passar a coisa adiante, se me deito no sofá e fico pensan
do que aquela velha trambiquei¬ra, quase minha vizinha vai me brecar na rua e de
dedo du¬ro, esticadinho para o meu pescoço dirá: “já que me usastes, por que nã
o fizestes um final feliz, hein?” Final feliz, dá vontade de rir. Faço como dese
jo, dou vida boa a quem quero e um fim horripilante aos que merecem. Todos me pe
rtencem, sou o subconsciente de cada um, como poderão me enganar? Há os que dize
m “por que você gosta tão pou¬co de mim?” Respondo que é mera coincidência. Para
falar a verdade, existem uns tipos bem estranhos, aí eu quero pe¬netrar neles e
peço que me contem o que estão pensando — me diga, me diga o que martela sua ca
beça para que eu pos¬sa arrumar uma fórmula mágica e acabar com esse seu sofri¬m
ento. Você só vive pensando e embalando os braços nestes gestos nervosos.
Pensei tanto que surgiu um mudo. Esse diabo nasceu e vai morrer mudo. Pois não é
que no final da estória ele me pediu para falar? Ora bolas! Faço contigo o que
quero, és um mísero mudo para assim de repente começar a falar e dizer besteiras
! Não, isso é que não. Não posso me deixar levar pelo sentimentalismo, ainda mai
s depois daquela que me pregaram. Levei um susto danado quando aquele fuxi¬queir
o botou a boca no trombone e entregou inocentes a carrascos me surpreendi e dei
um fim nele.
Tem outros casos mais incríveis, principalmente quan¬do se trata de amor que ace
lera pulsações. O personagem começa a se debater naquela fúria “quero porque te
quero” e o outro nem te ligo... se poupando à casta dos outros; deixa comigo. E
digo firmemente: deseja para ele aquele fim que enobrecerá tua alma corroída, te
u pranto inesgotável e tua corrida sepultada naquela rua cheia de lama nas noite
s de chuva, dos cansaços mentais — das migalhas de amor ra¬cionadas, como milho
para pombos de rua. Pedes a mim o fim que quiseres dar... que te atendo, criatur
a de coração e espírito calmo, só cedido aos impulsos condicionados pelo desejo
de ter uma casa e uma simples companhia para fazer amor (um antorzinho encabulad
o) medo de mostrar as ar¬timanhas ou pureza concebida? “Sede pura, alma amiga e
encontrarás os píncaros para o teu amor floreado” — dar-te¬-ei isso também.
Tem muita gente ruim, são poucos os bons. E o pior é que todos acham que são bon
s e estão sendo injustiçados.
Veremos isso — desejo fazer seleção. Em primeiro plano estão os humildes, os bes
tas são casos a serem estudados. De repente, surgiu uma velha que dizia que se c
onformava em ser pobre, porque o guia dela dissera que na outra encarna¬ção ela
tinha possuído um castelo com ama e batia em to¬das e cuspia na cara de quem lhe
desobedecesse, por isso es¬tava feliz com uma só empregada. Tudo mentira. Conhe
ço as artimanhas dessa sirigaita inteligente. Se eu escutasse mais um pouco ia t
erminar me comovendo. Deixei-a presa no banheiro e ela por descuido abriu a torn
eira do gás. Ela havia dito que a empregada tinha roubado suas roupas e vendido
na favela onde morava. Mentira e inveja, tudo por¬que a moça era bonita.
Os invejosos... como estes são trabalhosos. Imaginei um velhinho que dormia na m
arquise de uma casa de co¬mércio, Numa manhã de chuva, o dono da loja chegou e c
hutou-lhe quando este se encontrava dormindo, naquele dia ele havia perdido a ho
ra. Numa tarde quente, o chefe desta loja estava fumando o seu charuto, deixei q
ue ele caís¬se e o fogo foi passando para a papelada. De repente, a loja inteira
estava em chamas. O desgraçado perdeu tudo. O dinheiro que roubava (vendendo ca
ro) se encontrava escon¬dido no chão — ficou sem ele, botei fogo em tudo.
As pessoas têm tantas vontades, que se torna difícil decifrar os mistérios, este
s às vezes se fundem. Em muitas ocasiões a raiva se torna tão real, que o amor v
ira algo tótal¬mente abstrato. Foi isso que fez com que Ana tivesse um amor disc
iplinado... ela criou a “teoria e disciplina do amor” e andava pregando para aqu
eles que amam como tor¬cedores de futebol — fanaticamente. Cheguei a sentir medo
disso também.
Meu medo cresce com esses rostos que conheço e de¬paro com eles todos os dias. S
into a fuga de alguns. Conheço uns que desapareceram no vento, sem mágica nem na
da. Todos os meus personagens estão vivos e eu sinto medo deles.
Alguém bate em minha porta e me tira do comodismo do sofá. Uma mulher. Pergunta
se assustou. Digo que tinha pensado nela há alguns minutos. Vejo seus olhos apag
ados e o nervosismo quando acende um cigarro, para monologar. “Minha vida... se
você soubesse como está minha vida, você me ajudaria a modificá-la.” Mas eu não
sei mudar a vi¬da de ninguém, eu simplesmente faço a vida das pessoas a meu modo
. “Não digo que esteja um caos — porque essa palavra está muito batida — mas o c
aminho para o fim está chegando. Doenças, maus-tratos e, agora, para finalizar,
o desemprego.” De imediato, dou-lhe um emprego. Como ela gostaria. Secretária. N
eusa tinha nascido para ser secretária. Gostava de andar arrumada. Unhas sempre
pintadas, final de semana no cabeleireiro. . - um trabalho que ia direto com sua
personalidade. Tudo arrumado, gavetas em ordem, bus¬to empinado e o detalhe do
sandalhão de salto alto. Dei-lhe a sugestão, procurar nos classificados dos jorn
ais. Ela ficou desapontada... passou os dedos na língua, arrumou as so¬brancelha
s e mandou que eu continuasse divagando, porque lá fora estava chovendo.