Você está na página 1de 3

Cap.

2 - parte 02
Maluquices do Imperator
II
A aclamação de D. João VI foi um deslumbramento. A mais soberba festa que a Colô
nia vira até então. Aquele rei burguês, aquele homem bonacheirão e gordo, empenh
ara-se com alma, rasgadamente, para que seu grande dia tivesse um brilho único,
estonteante, Não houve poupança. Targini. o tesoureiro de el-Rei, abriu os cofre
s atulhados de barras de ouro E foi um gastar profuso, um enfeitar, um cobrir de
luxos desmedidos aquele pobre Rio de 1816.
São três horas da tarde. A Varanda Real cintila. É um pavilhão imenso, suntuosís
simo, que João da Silva Muniz, arquiteto do Paço, sob o olhar vigilante do Barão
do Rio Seco, construíra exclusivamente para o ato supremo. Faiscam dentro dele
atavios régios. Toda a aristocracia da corte, a mais alta, a de sangue mais limp
o, borborinha por entre os capitéis dourados. Nas tribunas, de onde jorra uma cr
ua faiscação de jóias, papagueiam risonhamente as damas, os decotes branquejando
entre rendas e gazes, os altos trepa-moleques de ouro cravados nos cabelos em c
oque. Lá está na tribuna de honra, que é de seda rosa, toda broslada de arminhos
, a Senhora D. Carlota Joaquina, muito empoada, pêlos ruivos na cara áspera, sen
tada triunfalmente entre as quatro princesinhas.
De repente, pelo ar festivo, rompem as charamelas. A corte inteira, ao toque ele
trizante, ergue-se com ânsia. Os olhares todos cravam-se ávidos na entrada. O Po
rteiro Real escancara as portas. E o cortejo magnífico surge. Que belo! À frente
, com as grossas maças de prata ao ombro, vêm os Porteiros da Cana. Depois, o Re
i-d'Armas, com o seu vistoso capacete empenachado. Seguem-se os dois Arautos, co
m as longas trompas de ouro. Finalmente os Passavantes cobertos de ferro, as cou
raças de escamas refulgindo. O Alferes-Mor empunha a Bandeira Real enrolada na h
aste. E o séquito passa. São os Moços da Câmara, são os Moços Fidalgos, são os G
randes do Reino, são os Bispos, é Tomás Antônio Vila nova Portugal, Monistro e S
ecretário de Estado.
Enfim, o Rei.
Sua Majestade tem à direita o Príncipe D. Pedro, herdeiro do trono, descoberto,
um largo fitão a tira-colo. À esquerda, servindo de condestável, o Infante D. Mi
guel trazendo na mão um estoque desembainhado. E D. João VI entra. A Varanda Rea
l freme, sacudida. Lá fora, uivando, O povo delira. E é uma atroada louca, ribom
bos de canhão, morteiros, sinos bimbalhantes, charangas enchendo os ares de marc
has estrepitosas. O Rei está soberbo. É a primeira vez que os vassalos o vêem co
m todas as galas da realeza. Faiscam-lhe ao peito as insígnias de suas ordens. P
ende-lhe do pescoço o colar do Tosão de Ouro. Tomba-lhe dos ombros, com a mais g
randiosa magnificência, o manto real. É riquíssimo, de veludo carmezim, bordado
a fios de ouro, semeado de castelos e quilhas, apresilhado por dois imensos broc
hes de diamantes que fuzilam, fulgurantissimos. O Conde de Parati, no oficio de
camareiro-mor, carrega a cauda do manto. Sua Majestade avança rutilando até a um
alto estrado. Ai, sob largo dossel de damasco, está armado o trono real.
O Marquês de Castelo Melhor, reposteiro-mor, retira o damasco que o cobre. O Con
de de Parati entrega a Sua Majestade o cetro. D. João senta-se. Os cortesãos, de
acordo com seus cargos, espraiam-se pela Varanda. Ao lado do trono, atendendo o
Rei, ficam o Marquês de Torres Novas e D. Nuno José de Sousa Manuel, gentis-hom
ens honorários. Em frente, hirto e solene, o Ministro do Reino. Depois, o Marquê
s de Anjeja, que serve de mordomo-mor. Vêm após os seis Bispos. Depois, os Grand
es do Reino. Depois, os Titulares. Depois, o Senado da Câmara. Depois, a Mesa do
Desembargo do Paço. Depois, a Casa da Suplicação. Depois...
Há um instante de silêncio. O Ministro de Estado faz um sinal ao Rei-d'Armas. O
Rei~d'Armas avança até ao meio do Salão. Curva-se diante de Luís José de Carvalh
o e Melo, ilustríssimo Desembargador do Paço. O Desembargador levanta-se, atrave
ssa a Varanda, posta-se em frente ao Monarca. O Rei-d'Armas brada com retumbânci
a:
- Ouvide! Ouvide! Ouvide! Estai atentos...
E Carvalho de Meio, diante do trono, sob um silêncio grave, declama a fala do pr
otocolo. É rápida. Meia dúzia de frases rituais. E logo, terminada a arenga, o M
arquês de Castelo Melhor coloca diante de Sua Majestade uma pequena mesa recober
ta de veludo verde. É a hora do "Juramento Real". Momento supremo. D. José Caeta
no, o Bispo-Capelão, recebe do mestre de cerimônias o missal e o crucifixo. Depo
sita-os sobre a mesa. Ajoelha-se. O Bispo de Azoto, Prelado de Goiás, e o Bispo
de Leontópolis, Prelado de Moçambique, testemunhas do grande ato, ajoelham-se ta
mbém. O ministro do Reino, nesse momento, curva-se diante do trono: Sua Excelênc
ia suplica a el-Rei que jure. D. João levanta-se. Passa o cetro para a mão esque
rda. Ajoelha-se numa vasta almofada acairelada de ouro. Estende a mão direita so
bre o missal e o crucifixo. E solene, com uma lentidão majestosa, debaixo do olh
ar sôfrego da corte, el-Rei presta o juramento sagrado:
- Eu, João, Rei de Portugal, do Brasil, dos Algarves, juro...
E repete, palavra por palavra, a fórmula sacramental que o Ministro do Reino vai
lendo em alta voz. Está acabado o juramento. D. João torna a sentar-se no trono
: está definitivamente Rei.
Principia, então, com as mais severas etiquetas, uma outra cerimônia. Cerimônia
das mais sérias e significativas: é o juramento de "Preito e Vassalagem a el-Rei
". O primeiro que jura é o Príncipe Herdeiro. Em seguida, o Infante D. Miguel. D
epois, segundo as suas hierarquias, o Ministro do Reino, os Bispos, os Desembarg
adores, os Grandes, os Titulares, a Nobreza. D. João, do alto do trono, recebe c
om um sorriso o juramento dos cortesãos. Quando o desfile finda, cessado aquele
burburinhar de gente, o Alferes-Mor desenrola a bandeira real. E festivamente, e
m altas vozes:
- Real, Real, Real, pelo muito Alto e muito Poderoso Senhor D. João VI, Nosso Se
nhor!
Toda a corte prorrompe num brado só, entusiasticamente:
- Real, Real, Real!
E estrugem as músicas, largo vozerio, Há uma alegria desordenada pela Varanda. O
Alferes-Mor, com a bandeira desenrolada, grIta em meio do tumulto:
- Alas! Alas!
Todos abrem alas. O Alferes-Mor embarafusta-se por entre as alas abertas. Vão-lh
e à frente os Porteiros da Cana, o Rei-d'Armas, os Arautos, os Passavantes. E o
préstito a passo lento, aproxima-se do balcão que dá para o Terreiro do Paço. Al
i, na sacada, diante de todo o povo, o Rei-d'Armas brada retumbante:
- Ouvide! Ouvide! Ouvide! Estai atentos.,. Há um relâmpago de silêncio. O Alfere
s-Mor lança a bandeira real ao vento. E com ufania, a pulmões plenos, berra para
a massa:
- Real, Real, Real, pelo muito Alto e muito Poderoso Rei D. João VI, Nosso Senho
r!
Que delírio! O povo desanda em gritos. Atroa o Terreiro do Paço uma algazarra br
avia, Repiques de sinos sacodem o ar As fortalezas estrondam. Fogos de artifício
japonizam o céu.
Debaixo da baruheira, rindo-se, o ar de glória e festa, D. J0ão ergue-se E todo
aquele bando suntuoso ondeia. Lá vai a caminho da Real Capela. Aí, sobre um tron
eto, rutilando de luzes, há. uma relíquia do Santo-Lenho. El-Rei ajoelha-se. A c
orte inteira ajoelha-se. Sua Majestade beija a relíquia. Levanta-se. E enfim, ma
jestosamente, senta-se no trono real, armado ao lado do altar. Rompe, no coro, a
música de Marcos Portugal. Começa o 'Te-Deum"...

Você também pode gostar