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CRÔNICA

A crônica tem como estilo uma narrativa breve, sem aprofundamento da análise, com
abordagem reflexiva, subjetiva e comunicativa, que conta ou comenta histórias da vida
cotidiana.
Histórias que podem ter acontecido com você, com algum colega seu ou até mesmo com
alguém da sua família. Mas uma coisa é acontecer e outra é escrever sobre esse fato.
Na leitura de algumas crônicas, você pode notar como esse tipo de narração ganha um
interesse especial.
Seus personagens são definidos apenas quanto ao momento da ação, falando-se muito pouco
sobre eles.
O desenvolvimento da crônica está intimamente ligado ao espaço aberto, principalmente na
imprensa. Pode apresentar-se ora humoristicamente, ora dramaticamente, mas quase sempre
com sátiras, porque revela a intimidade de personalidades famosas do mundo, sobre quem o
leitor sempre quer saber mais alguma coisa, de preferência íntima, particular, secreta.
Atualmente é comum alguns jornais e revistas publicarem textos de cronistas bem
conceituados, como Luís Fernando Veríssimo, Carlos Heitor Cony, entre outros.

Tipos de crônicas

A crônica literária começou a despertar interesse no Brasil na época do Romantismo, quando se


referia à vida urbana de nossos maiores centros ou tratava de matéria política. Mas a
renovação de seu conceito se fez sentir mais modernamente. Além de ser artigo de jornal,
registra os fatos, as novidades ou até seus comentários, pela penetração em problemas
psicológicos e pelo abandono dos assuntos da vida mundana de camadas mais elevadas.

Crônica narrativa

Conta episódios cativantes cuja trama envolve muita ação, poucas personagens e um desfecho
imprevisível. Esse tipo de crônica pode apresentar teor anedótico, crítico ou lírico.

O padeiro

Levanto cedo, faço minhas abluções*, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta
do apartamento — mas não encontro o pão costumeiro.
No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais de véspera sobre a "greve
do pão dormido".
De resto, não é bem uma greve, é um lock-out*, greve dos patrões, que suspenderam o
trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido
conseguirão não sei bem o que do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim.
E enquanto tomo café vou lembrando de um homem modesto que conheci antigamente.
Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não
incomodar os moradores, avisava gritando:
— Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?
"Então você não é ninguém?"
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe
acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra
pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a
pessoa que o atendera dizer para dentro:
"não é ninguém, não senhora, é o padeiro." Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo
para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante.
Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada
que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina — e
muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda
quentinho da máquina, como pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no
jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia
uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de
cada lar; e dentro
do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos
alegre: "não é ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.

*Ablução: lavagem do corpo ou de parte dele.


*Lock-out: impedir que algo ou alguém entre em um recinto.

BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas: as melhores de Rubem Braga. 2. ed. Rio de Janeiro :
Record, 1978. p. 206-207.

Crônica lírica

Apresenta uma linguagem poética e metafórica. Nela predominam emoções, os sentimentos


(paixão, nostalgia, saudades), traduzidos numa atitude poética.

Coisas antigas

Depois de cumprir meus afazeres voltei para casa, pendurei o guarda-chuva a um canto e me
pus a contemplá-lo. Senti então uma certa simpatia por ele; meu velho rancor contra os
guarda-chuvas cedeu lugar a um estranho carinho, e eu mesmo fiquei curioso de saber qual a
origem desse carinho.
Pensando bem, ele talvez derive do fato, creio que já notado por outras pessoas, de ser o
guarda-chuva o objeto do mundo moderno mais infenso a mudanças. Sou apenas um
quarentão, e praticamente nenhum objeto de minha infância existe mais em sua forma
primitiva. De máquinas como telefone, automóvel, etc., nem é bom falar. Mil pequenos objetos
de uso
mudaram de forma, de cor, de material; em alguns casos, é verdade, para
melhor; mas mudaram.
O guarda-chuva tem resistido. Suas irmãs, as sombrinhas, já se entregaram aos piores
desregramentos* futuristas e tanto abusaram que até caíram de moda. Ele permaneceu
austero*, negro, com seu cabo e suas invariáveis varetas. De junco fino ou pinho vulgar, de
algodão ou de seda animal, pobre ou rico, ele se tem mantido digno.
Reparem que é um dos engenhos mais curiosos que o homem já inventou; tem ao mesmo
tempo algo de ridículo e algo de fúnebre, essa pequena barraca ambulante.
Já na minha infância era um objeto de ares antiquados, que parecia vindo de épocas remotas,
e uma de suas características era ser muito usado em enterros. Por outro lado, esse grande
acompanhador de defuntos sempre teve, apesar de seu feitio grave, o costume leviano de se
perder, de sumir, de mudar de dono. Ele na verdade só é fiel a seus amigos cem por cento,
que com ele saem todo dia, faça chuva ou sol, apesar dos motejos alheios; a estes, respeita. O
freguês vulgar e ocasional, este o irrita, e ele se aproveita da primeira distração para sumir.
Nada disso, entretanto, lhe tira o ar honrado. Ali está ele, meio aberto, ainda molhado,
choroso; descansa com uma espécie de humildade ou paciência humana; se tivesse liberdade
de movimentos não duvido que iria para cima do telhado quentar sol, como fazem os urubus.
Entrou calmamente pela era atômica, e olha com ironia a arquitetura e os móveis chamados
funcionais: ele já era funcional muito antes de se usar esse adjetivo; e tanto que a fantasia, a
inquietação e a ânsia de variedade do homem não conseguiram modificá-lo em coisa alguma.

*Desregramento: falta de regularidade ou de regra.


*Austero: rígido de caráter; severo, grave.
BRAGA, Rubem. Ai de ti, Copacabana. Rio de Janeiro: Record, 1993.

Crônica reflexiva

O autor tece reflexões filosóficas, isto é, analisa os mais variados assuntos do cotidiano através
de impressões e inferências.

Parábolas do poder

Ora, existia ali, acuado naquele último canto dos palácios, um homem, longilíneo, gelado e
melancólico. Todos os dias explodia em fulgores e troares, um quê por necessidade essencial
de mando — o mais por impulso visceral de alimentar o medo. Quando caminhava era a um
passo rápido do nada, olho no olho da atração do abismo, salvaguardado apenas pelo
magnetismo sem par do próprio umbigo. E esse homem, concordantemente, tinha por nome
insânia. Mas, por adulação, muitos o chamavam de critério.

SOARES, Jô; VERÍSSIMO, Luís Fernando; FERNANDES, Millôr. Humor nos tempos do
Collor. 12. ed. Porto Alegre : LPM, 1992. p. 86.

Crônica metalingüística

É a crônica que fala do próprio ato de escrever, o fazer literário, o ato da criação.

A última crônica

A caminho de casa, entro no botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na
realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar
inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco* ou do irrisório* no
cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso
conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida.
Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de
esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, torno-me simples
espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo o
meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o
meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então meu último olhar fora de
mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de
mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos
e palavras, deixa-se acentuar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na
cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa
balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres
esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da
sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso,
aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo
sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse
a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para
atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua
presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão
apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho — um bolo simples, amarelo-escuro,
apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de coca-cola e o pratinho que o garçom
deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha,
obedecem em torno à mesa a um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e
brilhante, retira
qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também,
atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E
enquanto ela serve a coca-cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto
ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas.
Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que
os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..."
Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o
bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo.
A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o
farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se
convencer intimamente do sucesso da celebração. De súbito, dá comigo a observá-lo, nossos
olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça a baixar a cabeça, mas
acaba
sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria a minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

*Pitoresco: graciosamente original.


*Irrisório: de pouco valor.

SABINO, Fernando. A companheira de viagem. 12. ed. Rio de Janeiro : Record, 1998.

Crônica humorística

São sátiras da vida em sociedade, ampliando seus problemas de forma caricatural para reduzi-
los ao humor.

A velha contrabandista

Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira
montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da alfândega — tudo
malandro velho — começou a desconfiar da velhinha.
Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da alfândega mandou ela
parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim para ela:
— Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que
diabo a senhora leva nesse saco?
A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais os outros,
que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:
— É areia!
Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a
velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e
dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou
na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.
Mas o fiscal ficou mais desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no
outro com muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na
lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava
no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês
seguido
o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.
Diz que foi aí que o fiscal se chateou:
— Olha, vovozinha, eu sou fiscal da alfândega com quarenta anos de serviço.
Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que
a senhora é contrabandista.
— Mas no saco só tem areia! — insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta,
quando o fiscal propôs:
— Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto
nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual o contrabando que a senhora está passando
aqui todos os dias?
— O senhor promete que não "espáia"? — quis saber a velhinha.
— Juro — respondeu o fiscal.
— É lambreta.

PONTE PRETA, Stanislaw. Gol de padre e outras


crônicas. São Paulo : Ática, 1997. p. 26-27.

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