Sente-se primeiro um aperto ligeiro, fraco, e o baque do murro no
estômago em seguida. Respira-se a dúvida e um frágil rancor. Fazem-se contas à justeza do castigo. Mastiga-se o sangue que a língua entretanto recolheu. O corpo dá já sinais de perda de identidade quando um outro baque interrompe a pausa, acorda nova dor e desfaz de vez a esperança que já se alimentava do rápido fim do martírio. O sobrolho de Karl acorda para uma nova realidade, boleado à força, manobrado a soco, solidário com o duro aperto que o estômago já conhecera à primeira investida. — Não penses mais nisso, atira-lhe o algoz, entremostrando um sorriso irónico. O punho direito mantém-se eficaz e competente. — Huuuummm… reage Karl, a esforço, contando costelas, calculando estragos, antevendo prejuízos, saldando dívidas. À espera do mal que um futuro próximo possa ainda guardar, agora e se possível para o lado esquerdo da face. — Sabes muito bem o valor deste castigo, esclarece Heind, possesso como um leão marinho pronto para novo embate em época de disputa de territórios. Karl tenta manter os cálculos, da dor presente e da futura, à flor da consciência. Melhor seria que o não fizesse. Sofre a dobrar. Cai sobre as pernas, num desamparo quase infantil que Heind traduz por cobardia. — De que te vale? De pé ou miseravelmente sentado no chão, terás de saldar as tuas contas. Se não sai murro, sai pontapé. Tanto pior, sabes? Ordens são ordens. Dívidas são dívidas. — Queres dar-me lições de etiqueta sobre o bem agir numa sala de tortura? Cumpre a tua parte, que eu farei pela minha. Sentes-te algoz e único dono da justiça? Já calculaste o valor do que fazes, à luz de um simples critério da utilidade? Vale nada! Karl cumprimenta-se interiormente depois de se ouvir pronunciar estas palavras. E fica surpreendido com a fluidez aplicada ao seu próprio verbo e até com o silêncio atento que Heind lhe credita, ouvindo-o imóvel, de pés fincados no chão de terra da cave, mas ainda de punho cerrado. — Neste preciso momento, não sou eu o saco de pancada, meu amigo, ironiza Heind — O que à consciência compete acordar em mim de pouco te vale, ou mesmo nada. Sei apenas uma coisa: aqui o réu és tu. Não me sinto algoz nem juiz do que seja e qualquer das emoções, a existir e para que saibas, nunca correria a teu favor. Apenas te tento acordar a dignidade, se é que alguma por aí ainda se pode encontrar. Agora levanta- te!, rugiu. Karl é agora um animal ao qual se dão ordens, que obedece e vai buscar, que se resigna à sua condição de criatura menor sem se rebelar ou, sequer, exprimir uma qualquer vontade ou desejo. Sem suplicar. Num só salto obedece, ignorando agora a dor que o mina na carne e o ácido moral que lhe corrói uma já longínqua noção de integridade. O segundo soco deixa-lhe um eco de sangue na fronte e turva-lhe a visão, como se um nevoeiro espesso fosse agora a sua única paisagem. Dançam-lhe agora na mente luzes indefinidas, caem-lhe a tensão e a alma. Karl sustém agora as sobras de dignidade com uma mão encostada à parede húmida daquele buraco de si há muito conhecido. Ali cresceu, afinal, para se fazer o homem que já não é. Ainda ali, aparentemente, está prestes a tomar corpo a larga sombra de um futuro que começa já a definhar. Este Karl supliciado tenta aguentar-se o mais possível, agarrando-se à memória que cada objecto ainda visível lhe traz. Gira a cabeça com esforço, num literal exercício de masoquismo, face à intensa dor e à extensão dos estragos que o punho direito de Heind lhe acordou. O algoz descansa agora os olhos na penumbra, esconde uma súbita vergonha e ao mesmo tempo revela uma estranha retracção. Tosse. E ali mesmo se contorce, tomado de estranhas convulsões, como um pano de bandeira ao vento, perante a estupefacção do condenado. Karl vê na deixa uma milagrosa oportunidade de virar o jogo a seu favor. Ignorando o sangue, as costelas, recupera a consciência e a dignidade. Levanta o punho direito. Não pára de o baixar.