Um homem de calças rasgadas acontece a qualquer hora. Num
táxi oportuno em plena chuva, num jogo de bisca tardia dentro do naipe de copas, numa bandeira a meia haste. Bebe vinho de pacote, come sopa de uma tigela de esmalte e faz o uso possível de um velho talher de alumínio. O inox não é para aqui chamado. Entrega-se com espanto e prazer à quinta sinfonia de Beethoven, que lhe galga os ouvidos assim como a um cão agrada o som de um afago verbal quase cantado. A qualquer hora acontece um qualquer homem altivo, caro, rancoroso, avaro. Silencioso. Raro.
Um homem de calças rasgadas aplaina o cabelo ao caminhar. É
fim de tarde. O vulto que assim se move acorda o sono de um pássaro mortiço e deixa-se cumprimentar pelo merceeiro fecha a porta da loja. Rasgada, ela também, pela erosão de misérias que não deixa que para ali acorram clientes em barda. Hoje foi escassa a procura por um pacote de leite ou por duzentos gramas de toucinho. Escasso é também já o cabelo do aplainador de cabelo. Tão raro como a alegria de saber que nada tem que diga seu.
Um homem de calças rasgadas estende o corpo sobre o chão de
lama de um beco. Deixa-se ungir por fios intermináveis de uma súbita e pestilenta chuva de Outubro. Cresce-lhe ferrugem nos ossos. Um cão andrajoso passa-lhe ao largo, desconfiando do que será que ali descansa, assim, na humidade daquele fio de artéria e de cidade. O homem ladra em direcção ao animal. O cão acelera o passo multiplicado por quatro e desaparece na dobra da esquina.
Um homem de calças rasgadas sobressai na paisagem. Em passos
largos, cansados, avança por veredas de saibro, fuligem e cascalho. Fede. O mineiro, que a terra arrotou faz um instante, vem de um fundo ventre de tripas de volfrâmio, cobre, zinco. Fede no caminho à contraluz. Aquele corpo caminha rumo a Este. Segue o destino de ontem, de anteontem, o mesmo ainda do último natal. Sempre aquela rota que nunca quis. Num bar de prostitutas encontrará cerveja morna ou um cigarro. Nenhuma pedra.
Um homem de calças rasgadas corre em direcção ao rio. Atrás de
si, a sombra do seu vulto quase desiste da viagem. Salivam por ela trinta e dois cães, que galgam sem remorso o empedrado, famintos, sedentos, assombrados. Enquanto alarga a já antes rápida passada, o fugitivo agarra-se às memórias e à mala de mão que segura em fôlegos de uma quase inconsciência. Chegam-se os cães à beirinha da desgraça, sentem-lhe o sal, o sangue, a morte perto. Os cães conquistam então o seu lugar. Trinta e dois pares de mandíbulas dão enfim vida à sombra da noite. O homem, esse, apanha o último barco. Já navega. Sem sombra, mas já navega. ###