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UM HOMEM DE CALÇAS RASGADAS

Joaquim Eduardo Oliveira


Outubro 2010

Um homem de calças rasgadas acontece a qualquer hora. Num


táxi oportuno em plena chuva, num jogo de bisca tardia dentro do
naipe de copas, numa bandeira a meia haste. Bebe vinho de pacote,
come sopa de uma tigela de esmalte e faz o uso possível de um velho
talher de alumínio. O inox não é para aqui chamado. Entrega-se com
espanto e prazer à quinta sinfonia de Beethoven, que lhe galga os
ouvidos assim como a um cão agrada o som de um afago verbal
quase cantado. A qualquer hora acontece um qualquer homem altivo,
caro, rancoroso, avaro. Silencioso. Raro.

Um homem de calças rasgadas aplaina o cabelo ao caminhar. É


fim de tarde. O vulto que assim se move acorda o sono de um
pássaro mortiço e deixa-se cumprimentar pelo merceeiro fecha a
porta da loja. Rasgada, ela também, pela erosão de misérias que não
deixa que para ali acorram clientes em barda. Hoje foi escassa a
procura por um pacote de leite ou por duzentos gramas de toucinho.
Escasso é também já o cabelo do aplainador de cabelo. Tão raro
como a alegria de saber que nada tem que diga seu.

Um homem de calças rasgadas estende o corpo sobre o chão de


lama de um beco. Deixa-se ungir por fios intermináveis de uma súbita
e pestilenta chuva de Outubro. Cresce-lhe ferrugem nos ossos. Um
cão andrajoso passa-lhe ao largo, desconfiando do que será que ali
descansa, assim, na humidade daquele fio de artéria e de cidade. O
homem ladra em direcção ao animal. O cão acelera o passo
multiplicado por quatro e desaparece na dobra da esquina.

Um homem de calças rasgadas sobressai na paisagem. Em passos


largos, cansados, avança por veredas de saibro, fuligem e cascalho.
Fede. O mineiro, que a terra arrotou faz um instante, vem de um
fundo ventre de tripas de volfrâmio, cobre, zinco. Fede no caminho à
contraluz. Aquele corpo caminha rumo a Este. Segue o destino de
ontem, de anteontem, o mesmo ainda do último natal. Sempre aquela
rota que nunca quis. Num bar de prostitutas encontrará cerveja
morna ou um cigarro. Nenhuma pedra.

Um homem de calças rasgadas corre em direcção ao rio. Atrás de


si, a sombra do seu vulto quase desiste da viagem. Salivam por ela
trinta e dois cães, que galgam sem remorso o empedrado, famintos,
sedentos, assombrados. Enquanto alarga a já antes rápida passada, o
fugitivo agarra-se às memórias e à mala de mão que segura em
fôlegos de uma quase inconsciência. Chegam-se os cães à beirinha da
desgraça, sentem-lhe o sal, o sangue, a morte perto. Os cães
conquistam então o seu lugar. Trinta e dois pares de mandíbulas dão
enfim vida à sombra da noite. O homem, esse, apanha o último barco.
Já navega. Sem sombra, mas já navega. ###

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