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Algumas pessoas têm tudo planejado - Andrea Nash não é uma dessas
pessoas.
Capítulo 1
Baque!
Minha cabeça bateu na calçada. Candy me puxou pelo meu cabelo e bateu
meu rosto no asfalto.
Baque!
— Bata nela de novo! —Michelle gritou, sua voz adolescente estridente.
Eu sabia que era um sonho, porque não doeu. O medo ainda estava lá,
aquele terror afiado e vivo, misturado com raiva impotente, o tipo de medo
que transforma um ser humano em um animal. As coisas se tornam destiladas
para conceitos simples: eu era pequena, elas eram grandes. Eu era fraca, elas
eram fortes. Elas me machucaram e eu suportei.
Baque!
Meu crânio ricocheteou na calçada. O sangue manchou meu cabelo loiro.
Com o canto do olho, vi Sarah começar a correr como um chutador antes de
um gol no campo. A carne em seu corpo ferveu. Os ossos cresciam, os
músculos se enrolavam ao redor deles como algodão doce sobre um graveto,
os cabelos brotaram, embainhando o novo corpo, meio humano, meio animal,
em uma camada de pêlo arenoso pálido manchado com pontos reveladores de
hiena. A bouda sorriu para mim, sua boca malformada cheia de presas. Eu me
encolhi, enrolando meu eu de dez anos em uma bola. O pé com garras bateu
nas minhas costelas. As garras de oito centímetro acertaram um osso que
rangeu dentro de mim como como um pauzinho quebrado. Ela continuou me
chutando.
Baque! Baque! Baque!
Isso era um sonho. Um sonho cultivado a partir das minhas memórias,
mas ainda apenas um sonho. Eu sabia disso, porque dez anos depois que
minha mãe levou a mim de onze anos na e fugiu para o outro lado do país,
voltei e coloquei duas balas no meio dos olhos de Sarah. Eu tinha esvaziado
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um cartucho na orelha esquerda de Candy. Ainda me lembrava do modo
como o crânio dela florescia de vermelho quando as balas atingiram o outro
lado. Eu tinha matado todo o clã de metamorfos Hiena. Eu limpei aquelas
cadelas bouda da face do planeta, porque o mundo era um lugar melhor sem
elas. Michelle foi a única que escapou.
Eu sentei e sorri para elas. — Estou acordando, senhoras. Vão se foder.
Meus olhos se abriram. Eu estava em meu armário, enrolada em um
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cobertor e segurando uma faca de açougueiro . A porta do armário estava
entreaberta e a luz cinzenta do início da manhã escorregava pela abertura
estreita.
Fantástico. Andrea Nash, veterana condecorada da Ordem, escondida em
seu armário com sua faca e um cobertorzinho. Eu deveria ter segurado o
sonho por tempo suficiente para transformá-las em poças de sangue. Pelo
menos não me sentiria tão patética.
Inalei, provando o ar. Os aromas normais do meu apartamento flutuavam
ao meu redor, o toque de maçã artificial do sabonete no banheiro, a fragrância
de baunilha da vela ao lado da minha cama e o mais forte de todos, o fedor de
pêlo de cachorro, rastros de quando meu amigo, o poodle de Kate, Grendel,
me fizera companhia. Aquela aberração da natureza tinha dormido ao pé da
minha cama, e seu cheiro característico estava permanentemente grudado no
meu tapete.
Nenhum intruso.
Os aromas estavam enfraquecidos, o que significava que a magia estava
baixa.
Toc-toc-toc!
Mas essa agora?
Toc!
Alguém estava batendo na minha porta.
Chutei meu cobertor, fiquei de pé e corri para fora do armário. Meu
quarto me recebeu: minha cama grande, livre de intrusos, a bagunça
amassada do cobertor no tapete, meus jeans e sutiã, descartados ontem à
noite ao lado da cama, do lado de um livro de Lorna Sterling com um pirata
seminu na capa, estante recheada de outros livros até a borda, cortinas azuis
pálidas na janela gradeada, nada fora do lugar.
Larguei a faca de açougueiro na minha mesa lateral, vesti minhas calças
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de pijama, peguei minha Sig-Sauer P226 debaixo do travesseiro e corri para
a porta. Acordar com uma arma na minha mão faria muito mais sentido, mas
não, eu acordei segurando uma faca. Isso significava que eu deveria ter me
levantado no meio da noite, corrido para a cozinha, peguei uma faca no
açougue, corri de volta para o quarto, peguei um cobertor e me escondi no
armário. Tudo sem perceber onde eu estava ou o que estava fazendo. Se isso
não fosse louco, eu não sabia o que era.
Não dormia com uma faca desde que eu era adolescente. Essa explosão
do passado não era bem-vinda e precisava ir embora bem rápido.
Toc-toc!
Cheguei à porta e fiquei na ponta dos pés para olhar pelo olho mágico.
Uma mulher negra alta de cinquenta e poucos anos estava do outro lado. Seus
cabelos grisalhos saíam da cabeça em uma bagunça, ela estava vestindo uma
camisola, e seu rosto estava tão torcido pela preocupação que eu mal a
reconheci. Sra. Haffey. Ela e o marido moravam em um apartamento logo
abaixo de mim.
Normalmente, a Sra. Haffey via sua aparência como um assunto sério.
Em termos de estar sempre arrumada a qualquer hora, ela era minha heroína
—eu nunca a vi sem a maquiagem e o cabelo perfeitamente feitos. Algo
estava realmente errado.
Abri a porta.
— Andrea! —A Sra. Haffey ofegou. Atrás dela, longos fios brancos
cobriam o patamar e a escada. Eu tinha cem por cento de certeza de que eles
não estavam lá quando me arrastei no meu apartamento na noite passada.
— O que aconteceu?
— Darin está desaparecido!
Eu a puxei para o meu apartamento e fechei a porta. — Preciso que você
me diga desde o começo, devagar e claramente: o que aconteceu?
A Sra. Haffey respirou fundo. Ela tinha sido esposa de um policial por
vinte e cinco anos e sua experiência de lidar com uma vida inteira de
emergências facilitou que se acalmasse suficiente para me contar. Sua voz
estava quase firme. — Acordei e fiz café. Darin levantou-se para levar o
Chief para passear. Eu tomei banho. Quando saí, Darin ainda não tinha
voltado. Saí na varanda, mas ele não estava em seu lugar de costume.
Eu sabia exatamente onde ficava o local de costume: dois andares sob a
janela do meu quarto, onde o cão dos Haffey, o Chief, preferia marcar seu
território com o seu xixi. Eu sentia o cheiro no meu caminho para o trabalho
todas as manhãs. Claro, o Chief sentia o cheiro do meu perfume e isso só o
fazia mais determinado a fazer xixi em todo o seu caminho pela a supremacia
territorial.
— Liguei várias vezes para Darin e nada. Eu tentei descer. Há sangue em
todo o patamar e uma substância branca nas escadas que está bloqueando o
caminho.
— O Senhor Haffey levou sua arma com ele?
O Sr. Haffey havia se aposentado da Divisão de Atividade Paranormal do
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Departamento de Polícia de Atlanta. Policiais do PAD levavam suas armas a
sério. Tanto quanto eu sabia, Darin Haffey nunca saia de casa sem seu
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revólver Smith & Wesson M & P340 .
— Ele sempre leva sua arma com ele, —disse a Sra. Haffey.
E ele não havia disparado também, porque seu revólver tinha o calibre
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357 Magnum . Quando ele puxasse o gatilho, o tiro soaria como um pequeno
canhão explodindo. Eu teria ouvido o tiro e reconhecido, mesmo durante o
sonho. O que aconteceu, aconteceu rápido.
A misteriosa "substância branca" deve ter aparecido como resultado da
onda mágica na noite passada. Kate, minha melhor amiga, havia resguardado
meu apartamento meses atrás. Feitiços invisíveis protegiam meu apartamento
em uma barreira protetora. Ela cobriu as paredes em todo o perímetro, do teto
até o chão. Qualquer coisa mágica teria dificuldade em entrar, o que
provavelmente explicava por que eu tinha dormido a salvo durante toda a
noite.
— Você sabe que Darin é cego como um morcego. —Sra. Haffey torceu
as mãos. — Ele nem consegue ver mais em quem está atirando. No outro dia
saiu correndo do banheiro, gritando e espumando pela boca. Ele escovou os
dentes com creme de barbear em vez de pasta de dentes ...
Uma nota de histeria escorregou em sua voz. Com seu um metro e
cinquenta e cinco, ela ainda tinha oito centímetros de altura a mais do que eu
e estava inclinando-se sobre mim. — Eu liguei para a polícia, mas eles
disseram que demorariam vinte minutos ou mais. Eu pensei que desde que
você trabalhava com a Ordem ...
Eu costumava trabalhar com a Ordem. Quando era um Cavaleiro da
Ordem Misericordiosa, meu trabalho era ajudar as pessoas quando os
policiais não queriam ou não podiam ajudá-las com os casos mágicos
perigosos. Eu tinha condecorações e um registro de serviço estelar, mas nada
disso importou quando a Ordem descobriu que eu era um metamorfo. Eles
me julgaram mentalmente perturbada e inadequada para o trabalho e me
‘aposentaram’.
Mas eles não haviam tirado meu treinamento ou minhas habilidades.
Pressionei um botão na minha parede. Um painel deslizou para o lado,
revelando um pequeno nicho que costumava ser um armário de corredor e
que eu havia convertido em meu próprio arsenal pessoal. Uma fileira de
canos de armas brilhava à luz da manhã.
A Sra. Haffey fechou a boca.
Vamos ver. Eu estaria levando minhas Sigs, mas precisava de algo com
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mais poder. O AA-12 , uma espingarda calibre 12 automática com cartucho
de 32 balas sempre era uma boa escolha. Ela disparava 300 tiros por minuto
com recuo mínimo. Eu enchi a minha com balas de aço. Aperte o gatilho uma
vez e com um único tiro perfure a porta de um carro. Aperte e segure o
gatilho, e qualquer coisa do outro lado, não importa o quanto a armadura
fosse boa, se tornaria uma pilha de carne em seis segundos e meio. Paguei
uma fortuna por isso e valeu cada dólar.
Peguei o AA-12 e coloquei um coldre de quadril, no qual enfiei as minha
Sig e seu gêmeo. — Sra. Haffey, eu preciso que você fique aqui. —Dei a ela
um grande sorriso. — Tranque a porta atrás de mim e não abra até eu voltar.
Você entendeu?
A Sra. Haffey assentiu.
— Obrigada, senhora.
Eu pisei no patamar e ouvi a trava fechar atrás de mim.
A "substância branca" se estendia em longas e pálidas mechas sobre as
paredes. Assemelhava-se a uma teia de aranha, se a aranha fosse do tamanho
de uma bola de boliche e, em vez de trabalhar em uma espiral, ela decidisse
tecer apenas na direção vertical. Cruzei o patamar e inalei. Geralmente havia
uma corrente de ar passando por aqui, vinda da entrada da frente para o topo
do prédio. Hoje, nenhuma brisa subia a escada, mas mesmo assim, senti o
forte cheiro metálico de sangue fresco. Meus pêlos da nuca se levantaram. A
predadora em mim, a outra eu que dormia profundamente, abriu os olhos.
Desci as escadas, movendo-me silenciosamente nos degraus de concreto,
minha espingarda pronta. Mesmo que a magia tenha tornado minha existência
possível, isso não significava que eu manipulava a magia. Meu negócio era
armas. Me dê armas no lugar de feitiços a qualquer hora.
A teia ficou mais abundante. No andar do apartamento dos Haffey, ela
cobria as paredes e o corrimão da escada de madeira. Eu me virei, descendo.
O fedor de sangue atacou minhas narinas e provei na minha língua. Todos os
meus sentidos entraram em ação. Meu coração bateu mais rápido. Minhas
pupilas se dilataram, melhorando minha visão. Minha respiração acelerou.
Minha audição se aguçou e eu percebi um ruído distante, abafado, mas
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inconfundível: o latido profundo e gutural de um buldogue .
Dei mais alguns passos para baixo. O sangue manchava as escadas em
uma grande quantidade, pelo menos um par de litros, possivelmente mais,
tudo em grandes poças redondas. Ou alguém sangrou e caminhou, ou alguém
sangrou e foi carregado. Por favor, não seja Darin. Gosto de Darin e gosto
da esposa dele. A Sra. Haffey sempre foi gentil comigo.
No primeiro andar a teia formava um túnel estreito. A porta do
apartamento 1A estava intacta, mas coberta de fios brancos. As paredes que
seguia para o andar mais abaixo cobertas com a mesma teia branca, mas
nenhum sinal de destruição nela.
Nenhum sinal de Darin indo por esse caminho também. A porta do
apartamento 1B estava destroçada. Marcas ensanguentadas se estendiam
através do limiar, apontando para o apartamento. Alguém foi arrastado para
dentro.
Pisei no corredor. Um novo cheiro me puxou, um odor ligeiramente
amargo e espinhoso que disparou alarmes instintivos em minha cabeça. Isso
não é bom.
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O apartamento tinha exatamente o mesmo layout que o meu: um
corredor estreito, abrindo para a cozinha à direita, a sala de estar à
esquerda, depois o primeiro quarto e depois um pequeno corredor
perpendicular que levava à despensa e banheiro de hóspedes, e finalmente a
suíte.
Caminhei mais um pouco, delicadamente, observando todos os detalhes e
me movimentando muito cuidadosamente e devagar: começando na parede,
me movendo a um ângulo de noventa graus, inclinei um pouco para longe da
parede me preparando para ver qualquer ameaça ao virar da esquina antes
que ela me visse. Pulando em torno dos cantos de forma muito dramática,
mas pelo menos eu teria sua cabeça explodida.
Cozinha: nada aqui.
Eu me mudei para a sala de estar.
À esquerda, junto a uma mesa de café, havia uma grande cesta de vime
cheia de fios. Duas longas agulhas de madeira presas em um ângulo. Ao lado
da cesta havia um braço humano decepado. O sangue jorrou dele,
encharcando o tapete bege de parede a parede em uma mancha vermelha
escura.
Pele clara. Não era Darin Haffey. Não, era provável que a Senhora
Truman morasse nesse apartamento com seus dois gatos. Ela gostava de
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brincar de bridge no seu clube de tricô e colecionava fios para projetos
‘especiais’, com os quais nunca fazia nada. Agora seu braço rasgado estava
ao lado da cesta com seu estoque de tricô. Não havia tempo para absorver e
lidar com isso agora. Eu ainda tinha que encontrar Darin.
Segui em frente. O odor azedo espinhoso ficou mais forte.
Quarto: nada aqui. Banheiro: nada aqui.
Um enorme buraco aberto no chão da despensa. Alguma coisa havia se
espatifado no chão e destruído o azulejo de baixo.
Circulei o buraco, espingarda apontando para baixo.
Nenhum movimento. Parecia que não havia nada aqui também.
Um ruído abafado cortou o silêncio.
Meus ouvidos se contraíram.
Au! Au!
Chief ainda estava vivo em algum lugar lá dentro. Pulei no buraco,
aterrissei no piso de concreto do porão e me afastei da luz que entrava pelo
buraco. Não há necessidade de, seja lá o que for, me ter como um alvo fácil.
Trevas enchia o porão, os fios de teia pingando em cantos escuros. As
paredes não existiam mais.
Havia apenas teia, branca e sem fim.
Meus olhos se ajustaram à escuridão. A visão metamorfa garantia que,
enquanto houvesse alguma luz, eu não esbarraria em nada.
Manchas escuras e molhadas danificavam o concreto. Sangue. Eu segui
isso.
Em frente concreto rachado, uma longa fissura percorria o chão, com pelo
menos um metro de largura. O prédio de apartamentos já não era muito
robusto. A magia odiava edifícios altos e roía-os, pulverizando tijolos e
argamassa até a estrutura desabar. Quanto maior o prédio, mais rápido ele
caia. O nosso era muito baixo e muito pequeno e até agora escapamos ilesos,
mas buracos gigantes no porão não inspiravam confiança.
Um barulho de bufo veio de dentro do buraco. Eu me inclinei sobre isso.
Um cheiro de fedor de pêlo de cachorro tomou conta de mim.
Chief, seu bobo idiota.
Eu me agachei na frente do buraco. O buldogue se contorcia abaixo,
bufando fazendo uma tempestade. Ele deve ter caído na fissura, e a queda foi
muito alta para pular para fora.
Coloquei minha espingarda no chão e me inclinei, agarrando Chief pela
nuca. O buldogue pesava quarenta quilos pelo menos. Com o que diabos os
Haffey alimentava-o, comida de pequenos elefantes? Eu o puxei para fora e
fiquei de pé, com a espingarda nas mãos. A coisa toda levou meio segundo.
Chief pressionou contra a minha perna. Ele era um Olde English
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Bulldogge , um regresso aos tempos em que o Bulldog Inglês era usado para
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Bull-baiting . Um cão poderoso e ágil, Chief não temia nem caminhões de
lixo, nem cães e cavalos vadios. No entanto, aqui estava ele, esfregando-se
contra a minha panturrilha, apavorado.
Levei um segundo para abaixar e acariciar sua grande cabeça. Tudo bem,
garoto. Você está comigo agora.
Nós começamos a avançar, movendo-nos lentamente da primeira sala
estreita para um espaço mais largo. A teia cobria as paredes, criando
esconderijos nos cantos. Assustador como o inferno.
Cuidadosamente dobrei a esquina. Na parede oposta à minha direita, dois
fornos ficavam lado a lado: o elétrico para os tempos em que a tecnologia
tinha a supremacia e a antiquada monstruosidade que queimava carvão para
uso durante as ondas mágicas, quando a magia nos roubava a corrente
elétrica. À direita do forno de carvão, havia uma grande lixeira de carvão,
uma caixa de madeira de mais de um metro de altura, cheia de carvão. No
carvão, meio enterrado, estava o Sr. Haffey.
Duas criaturas rastejavam no concreto em frente à lixeira. Com cerca de
trinta centímetros de altura e pelo menos um metro e meio de comprimento,
eles se pareciam com enormes vespas sem asas, com um largo tórax no peito
afinando em uma cintura antes de se dilatar no abdome espesso. Cerdas
castanhas duras cobriam seus corpos bege quase translúcidos. Suas cabeças,
maiores que o crânio maciço do Chief, tinham mandíbulas do tamanho de
tesouras de jardinagem. Suas garras raspavam o concreto enquanto se
moviam, um som estranho e desagradável.
A criatura esquerda parou e plantou suas seis pernas cobertas de
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quitina . Seu rabo se inclinou para cima e uma corrente de líquido viscoso
saiu, aderindo à parede. A criatura esfregou a bunda no chão, acumulando a
substância em uma poça e afastou-se quando as secreções se endureceram em
teia pálida.
Ai credo. Eca. Eca. Eca.
O Sr. Haffey levantou a cabeça.
As criaturas pararam, fixadas no movimento.
Eu disparei.
A espingarda rugiu, cuspindo trovão. A primeira bala de aço atingiu
certeiro a criatura, cortando a quitina como se fosse uma madeira
compensada fina como papel. O inseto se partiu ao meio. Seu traseiro, cheio
de líquidos, caindo no chão como um monte de boias de natação amarradas
juntas. Sem uma pausa, me virei e coloquei um segundo tiro no seu
companheiro.
O Chief latiu ao meu lado, estalando suas mandíbulas. As criaturas se
sacudiram e se agitaram, arrastando seus pedaços de corpo.
O odor azedo de cravo encheu o ar.
Darin Haffey sentou-se no lixo. — Aposto que Kayla te arrastou para
isso.
Eu sorri para ele. — Não, senhor, eu é que fui pedir uma xícara de açúcar.
— Hummm, sei.
A teia que obscurecia o resto da sala à minha esquerda rasgou.
— Mais deles, —o Sr. Haffey gritou, levantando sua arma de fogo.
O primeiro inseto explodiu a céu aberto. Eu atirei. Bam!
Mais dois. Boom, boom!
Bam!
Boom-Boom-Boom!
Os corpos destruídos de quitina se colidiram, formando uma pilha de
pernas repuxadas e entranhas que induziam vômitos.
Boom. Boom. Boom! Bam!
Um inseto saltou sobre a pilha, mirando em mim. Balancei a espingarda.
O impacto explodiu o intestino da criatura, espalhando líquido sujo sobre
mim. Suco de insetos queimava meus lábios. Ecaaa.
Um inseto menor correu em minha direção. Mandíbulas afiadas cortaram
a minha perna. Seu desgraçado! Chief bateu na criatura, rasgando a coisa
antes que eu pudesse jogar uma bala nela.
Bam! Bam!
Continuei atirando. Finalmente a invasão repugnante parou. Esperei,
ouvindo, mas não apareceu mais nenhum movimento. Minha panturrilha
queimava. A dor não me incomodava muito, mas eu estaria deixando uma
trilha de sangue, o que me faria ridiculamente fácil de rastrear. Eu tinha cinco
tiros sobrando ainda no AA-12. Não há como saber se tinha matado todos
eles ou se esta era a calma antes da segunda onda de insetos. Tinha que tirar o
Sr. Haffey daqui.
Ele estava sentado na lata de carvão, olhando para a pilha de partes de
insetos. — Droga. Isso sim é saber atirar.
— Nosso objetivo é agradar, —eu disse a ele.
— Você aponta como se gostasse desse negócio.
Coisa engraçada, elogio. Eu sabia que era uma ótima profissional, mas
ouvi-la do veterano do PAD me deixou toda aquecida e sem graça. — Você
viu a Sra. Truman?
— Eu vi o corpo dela. Eles a rasgaram em pedaços, esses idiotas.
Pobre Sra. Truman. — Você pode andar?
— Os filhos da puta machucaram minha perna. Estou sangrando como
um porco preso.
É por isso que ele se escondeu no carvão. Ele enterrou a perna no pó de
carvão para camuflar o cheiro. Inteligente.
— Hora de ir, então.
— Me escute. —O Sr. Haffey colocou um pouco de dureza de policial em
sua voz rouca. — Não tem como você me tirar daqui. Mesmo se eu me apoiar
em você, tenho quase cem quilos e meu peso só vai te derrubar comigo.
Deixe-me uma arma e saia daqui. Kayla deve ter ligado para a polícia. Eu vou
segurá-los até que ...
Balancei a espingarda e a coloquei sobre o meu ombro, tirei o Sr. Haffey
para fora do carvão. Eu não era tão forte quanto um metamorfo normal,
embora eu fosse mais rápida e mais ágil, mas um homem de cem quilos ainda
não era um desafio.
Acelerei os passos para o buraco, Chief nos meus calcanhares. O
buldogue agarrava estoicamente uma perna quitinosa. Ele tinha que inclinar a
cabeça para trás para carregá-lo, mas o olhar em seus olhos dizia que nenhum
exército do mundo poderia tirar isso dele.
— Isso é embaraçoso, —o Sr. Haffey me informou.
Eu pisquei para ele. — O que? A Sra. Haffey não levou você acima pela
porta em sua noite de núpcias?
Seus olhos se arregalaram. — Isso é ridículo. O que você é?
Eu passei a maior parte da minha vida fingindo ser humana. Mas agora a
hiena estava fora do saco e, mais cedo ou mais tarde, tinha que começar a
aceita-la. — Uma metamorfo.
— Lobo?
— Bouda. —Bem, não exatamente. A verdade era mais complicada, mas
eu não estava pronta para essas explicações ainda.
Chegamos ao buraco. Se eu fosse uma bouda normal, poderia ter pulado
do buraco com o Sr. Haffey em meus braços. Mas sabia dos meus limites e
isso eu não conseguiria. Jogá-lo para cima feriria sua dignidade além do
reparo. — Eu vou levantar você. Pode ficar em pé?
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— O papa é católico ?
Eu o coloquei de pé, agarrei-o pelos quadris e o levantei. O Sr. Haffey
puxou-se para a borda, aproveitei e dei uma boa olhada no seu ferimento. Era
um corte de mais de dez centímetro em sua perna e tocar sua calça de
moletom deixou minha palma sangrenta. Ele precisava de uma ambulância
para ontem.
Joguei Chief e seu prêmio em forma de pata de inseto para fora do
buraco, pulei, peguei a borda e me puxei para cima.
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— Você vai pelo menos me levar ao estilo bombeiro ? —Indagou o Sr.
Haffey.
— Não posso, senhor. Estou tentando evitar que o seu sangue escorra
mais ainda da sua perna.
Ele rosnou profundamente em voz baixa.
Eu o peguei e caminhei. — Tudo vai acabar em breve.
Ele gargalhou.
Escutei um som familiar atrás de mim, vindo do quarto principal.
— Pensei que a Ordem não permitia metamorfos.
— Eles não permitem. Quando me descobriram, me demitiram.
Aumentei a velocidade dos passos. Algo nos perseguia.
— Isso aí é besteira. —O Sr. Haffey balançou a cabeça. — E
discriminação. Você falou com seu representante sindical?
— Sim eu fiz. Lutei o quanto pude. De qualquer forma, eles me
aposentaram com pensão completa. Eu não posso apelar.
O Sr. Haffey me deu um olhar avaliador. — Você aceitou?
— Não. Disselhes para enfiá-lo ...
Eu o deixei cair no chão o mais gentilmente que pude e me virei, com a
espingarda pronta.
Um enorme inseto pálido nos atacou. Atirei duas balas e ele se debateu no
chão. Peguei o Sr. Haffey novamente e andei o mais rápido que podia para a
porta.
— Ouça, a maioria dos meus contatos se aposentou, mas alguns de nós
temos filhos no departamento. Se você precisar de um emprego,
provavelmente posso te arrumar alguma coisa. O PAD ficará feliz em ter
você. Você é um inferno de uma atiradora. Não deveria deixar isso
desperdiçar.
— Muito apreciado. —Eu sorri. — Mas já tenho um emprego. Trabalho
no negócio de minha melhor amiga, ela é a dona. —Comecei a subir as
escadas.
— Que tipo de negócio?
— Remoção de materiais mágicos. Proteção. Investigação. Esse tipo de
coisa.
O Sr. Haffey abriu os olhos. — Investigadora particular? Segurança
particular?
— Isso é a mentalidade de policial em você. Eu digo a eles que sou uma
metamorfo e eles não piscam. Mas se eu disser segurança particular, a não,
isso não dá certo.
— Então, como estão os negócios? —Haffey olhou para mim.
— Os negócios estão bem. —Se bem, significava péssimo. Entre Kate
Daniels e eu, tínhamos uma riqueza de habilidades, um pequeno mar de
experiência e manchas suficientes em nossa reputação para matar uma dúzia
de carreiras. Todos os nossos clientes, quando chegavam a nós, é porque
estavam desesperados, ou os outros profissionais já haviam os recusados.
— O que o seu homem pensa sobre isso?
Raphael Medrano. A lembrança dele era tão crua que eu poderia evocar
seu perfume apenas pensando nele.
O forte cheiro masculino saudável que me deixava louca ...
— Não deu certo, —eu disse.
O Sr. Haffey se mexeu desconfortável. — Você precisa abandonar essa
tolice de trabalho que faz agora e voltar ao uniforme. Estamos falando de
aposentadoria, benefícios, avançar na classificação e pagar ...
Eu corri até a minha porta. — Sra. Haffey!
A porta se abriu. O rosto da Sra. Haffey relaxou. — Oh meu Deus, Darin.
Oh Deus.
À distância, as sirenes familiares soaram.
A cavalaria chegou com um grande número de armas. Eles carregaram o
Sr. Haffey em uma ambulância, agradeceram minha ajuda e me disseram que
desde que eu era um civil, precisava me manter fora do caminho deles. Eu
não me importei. Matei a maior parte do que estava lá embaixo e eles se
vestiram e se deram ao trabalho de trazer lança-chamas. Era justo deixá-los se
divertir um pouco.
Cuidei do corte na minha perna. Não havia muito a fazer sobre isso. O
Lyc-V, o vírus responsável pela existência dos metamorfos, repararia os
ferimentos a um ritmo acelerado, quando cheguei ao meu apartamento, o
corte já estava se fechando. Em alguns dias, a perna estaria nova como folha,
sem cicatrizes. Alguns ‘presentes’ do Lyc-V eram úteis. Alguns, como a
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raiva de um berserker , eu poderia viver sem.
Estava esfregando os fluídos de insetos do meu rosto com uma toalhinha
de maquiagem, quando o telefone tocou. Limpei o sabão do meu rosto e corri
para a cozinha para atendê-lo.
— Olá?
— Nash? —Uma voz suave disse ao telefone.
A voz suave pertencia a Jim, um metamorfo jaguar e o chefe de
segurança do bando. Ele geralmente se nomeava por Jim Black, se você não o
conhecesse bem. Eu vasculhei seu passado durante o meu mandato com a
Ordem. Seu nome verdadeiro era James Damael Shrapshire, um fato que eu
mantinha para mim, já que ele não anunciava isso.
O bando de metamorfos de Atlanta era o mais forte do país e meu
relacionamento com ele era complicado. Mas o bando apoiava a Cutting
Edge, o negócio que Kate possuía e para o qual eu agora trabalhava.
Eles haviam fornecido o capital inicial e eram nosso primeiro cliente
prioritário.
— Ei, Jim. O que posso fazer por você? —Jim não era um cara mau.
Paranoico e secreto, mas os gatos eram criaturas estranhas.
— Uma de nossas empresas foi atacada ontem à noite, —disse Jim. —
Quatro pessoas estão mortas.
Alguém obviamente tinha um desejo de morte e esse alguém não era
muito inteligente, porque havia maneiras muito mais fáceis de cometer
suicídio. O bando cuidava de si mesmo e, se você machucava um deles, eles
faziam questão de ir atrás de você. — Alguém que eu conheço?
— Não. Dois chacais, um bouda e uma raposa do Clã Ágil. Eu preciso
que você vá lá e confira.
Eu fui para o quarto. — Sem problemas. Mas porque eu?
Jim suspirou no telefone. — Andrea, quantos anos você passou como um
cavaleiro?
— Oito. —Comecei a jogar minhas roupas para a cama: meias, botas de
trabalho, jeans ...
— Quantos desses você gastou em casos ativos?
— Sete. —Adicionei uma caixa de munição para a pilha de roupas na
cama.
— É por isso. Você é a investigadora mais experiente que eu tenho que
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não está comprometida em algo, e eu não posso pedir a Consorte para
investigar isso, porque A) ela e Curran estão trabalhando em outra coisa e
B) quando a Consorte se envolve metade do mundo explode.
Kate, a consorte. O título ainda me fazia rir. Toda vez que alguém usava,
ela tinha um olhar martirizado em seu rosto.
— Essa bagunça parece complicada e os policiais estão envolvidos até os
cotovelos. Eu preciso que você vá até lá e resolva.
Finalmente. Algo em que eu poderia realmente afundar meus dentes.
Segurei o telefone entre o ombro e a orelha e tirei um lápis e um bloco de
notas da mesa de cabeceira.
— Você tem um endereço?
— Mil quatrocentos e doze na Griffin.
18
A rua Griffin percorria a SoNo , um dos antigos distritos financeiros,
entre Midtown e Downtown. O nome veio de ‘Avenida South e North’. Era
uma área ruim e instável, com prédios de escritórios antigos caindo para a
esquerda e para a direita.
— O que os metamorfos estavam fazendo lá?
— Trabalhando, —disse Jim. — É um local de extração.
Extração. Ah não. Não. Ele não faria isso comigo. Mantive minha voz
neutra. — Quem está no comando do local?
Por favor, não seja Raphael, por favor, não seja Rafael, por favor, não ...
— Extrações Medrano, —disse Jim.
Droga.
— Raphael está sendo questionado por alguns policiais, mas eu mandei
alguns advogados para ter certeza de que eles não irão segura-lo. Ele se
juntará a você assim que a polícia for embora. Olha, eu sei que as coisas não
estão boas entre você e Raphael, mas todos nós temos que fazer coisas que
não queremos fazer.
— Jim, —eu o interrompi. — Vou fazer. Sou uma profissional.
Estou trabalhando nisso.
Capítulo 2
Levei quarenta e cinco minutos para percorrer os destroços da cidade até
SoNo. A magia realmente destruiu Atlanta. O centro da cidade tinha sofrido
19
mais, mas Midtown e Buckhead haviam levado uma surra. Arranha-céus
outrora imponentes estavam em ruínas, lembrando lápides de esperanças
humanas, tombadas de lado. Os viadutos desmoronavam e novas pontes de
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madeira cobriam os cânions do asfalto.
Detritos sufocavam as ruas. Atlanta ainda estava viva e pulsando e a
cidade estava se reconstruindo pouco a pouco, mas o peso e o volume do
concreto caído tornaram-se um problema. Eu tive que fazer um grande
contorno ao norte em torno dos destroços.
No cruzamento da rua Monroe com a rua dez, algo fluorescente explodiu,
encharcando as paredes das novas casas em laranja vibrante que cheirava a
21
vômito velho. A equipe de Riscos Biológicos da cidade reduziu o tráfego
para uma única pista fiscalizada por dois caras com placas de trânsito PARE,
que deixavam os veículos e cavaleiros passarem pouco a pouco, enquanto o
restante da equipe de Riscos Biológicos lavava o pus laranja com mangueiras
de incêndio.
Ao meu redor, o tráfego da manhã relinchava, zurrava e defecava na rua.
Veículos a gasolina falhavam durante a magia. Meu jipe tinha dois motores,
um a gás e outro de água encantada, por isso, mesmo quando a tecnologia
estava inoperante meu carro ainda me levava para onde eu precisava de forma
confiável, mas não muito rápida. Comprar um carro adaptado como o meu
era caro, então a maioria das pessoas optava por cavalos, camelos e mulas.
Tanto faz o mundo está na onda tecnológica ou mágica, eles trabalhavam
sempre.
O problema era que também não cheiravam muito bem. Era meados de
maio, e um dia quente desse jeito, juntamente com o fedor que subia do chão
na rua fazia qualquer um querer correr daqui.
À minha esquerda, um homem em cima de um cavalo branco apontou
22
uma besta para a placa de PARE. A corda vibrou e uma flecha perfurou o
metal, bem no meio da letra R. No alvo.
O sujeito do Risco Biológico empurrou a placa furada contra o caminhão
de serviço, tirou uma espingarda do banco do caminhão e apontou-a para o
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besteiro .
— Faça o meu dia, seu filho da puta! Faça o meu dia!
— Foda-se você e sua placa!
— Ei, —uma mulher gritou. — Há crianças aqui!
— Cai fora! —O cavaleiro disse a ela e apontou a besta para o cara do
Risco Biológico. — Deixe-me passar.
— Não. Espere sua vez como todo mundo.
Eu poderia dizer pelas caras dos dois que nenhum deles atiraria. Só
estavam falando merda um para o outro e desperdiçado o tempo de todo
mundo, porque enquanto o cara do Risco Biológico brigava com o idiota do
cavalo, o trânsito permanecia parado. Nesse ritmo, eu nunca chegaria à minha
cena de crime.
— Ei, idiota! —Um dos outros motoristas gritou. — Saia da estrada!
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— Está aqui é uma Falcon 7 , o cavaleiro disse a ele. — Posso colocar
um raio através do seu para-brisa e prendê-lo ao seu banco como um inseto.
Uma ameaça direta, hum? Certo.
Abaixei meus óculos de sol um pouco para que o cavaleiro pudesse ver
meus olhos. — Isso é uma boa besta.
Ele olhou em minha direção. Viu uma garota loira amigável com um
grande sorriso e um leve sotaque texano e não se assustou.
— Ela tem o que? Uns trinta e quatro quilos? Leva cerca de quatro
segundos para recarregar?
— Três, —disse ele.
Dei-lhe meu sorriso da Ordem: um sorriso doce, olhos neutros, estendi a
mão para o banco do passageiro e tirei minha metralhadora. Com cerca de
setenta centímetros de comprimento, a HK era meu brinquedo favorito para
combates de curta distância. Os olhos do cavaleiro se arregalaram.
25
— Esta é uma metralhadora HK UMP . Reconhecida por seu poder de
equilíbrio e confiabilidade. Ciclo de taxa de fogo: oitocentas voltas por
minuto. Isso significa que eu posso esvaziar este cartucho de trinta balas em
você em menos de três segundos. Nesse intervalo, vou cortar você pela
metade. —Não era estritamente verdade, mas soava bonito. — Você
consegue ver o que está escrito no cano?
No cano da arma, lindas letras brancas soletravam INÍCIO DA FESTA.
— Você abre a boca novamente, e eu vou começar a festa.
O cavaleiro fechou as mandíbulas.
Olhei para o cara do Risco Biológico. — Aprecio o trabalho que você
está fazendo pela cidade, senhor. Por favor, continue.
Dez segundos depois, atravessei o bloqueio da estrada, conduzi o jipe
pela rua Monroe e virei à direita na Avenida North. Fiz dois quarteirões antes
que a rua terminasse em uma montanha de vidro amassado. Esta intrépida
aventura teria que continuar a pé. Estacionei, verifiquei minhas armas, tirei
meu kit de cena do crime do porta-malas e corri pela rua.
Talvez Raphael não estivesse lá.
Mais cedo ou mais tarde eu teria que entrevistá-lo. Meu ritmo cardíaco
acelerou com o pensamento. Respirei fundo até diminuir a velocidade. Eu
tinha um trabalho a fazer. A Ordem poderia não ter dado muito valor a ele,
mas pelo Bando obviamente valia a pena. Eu seria profissional nesse caso.
Profissionalismo. Apenas os fatos, senhora. Siga em frente, não há nada
para se preocupar aqui. Não precisa entrar em pânico.
Este não era o meu primeiro caso e este não era o meu primeiro
assassinato. Era a oportunidade de trabalho que importava e eu não iria
estraga-lo fazendo uma grande tempestade por causa dos meus problemas
particulares.
O mil quatrocentos e doze na Griffin parecia uma pequena colina de
metal retorcido, decorada com pedaços de concreto, misturada com mármore
sujo, pilhas de vidro azulado quebrado e poeira cinzenta fina, o resultado das
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presas da magia mastigando os materiais do prédio. Uma retroescavadeira
e algum outro veículo pesado de construção cujo nome eu não conhecia
estava do outro lado da rua, ao lado de uma tenda.
Um túnel reforçado conduzia para dentro da colina, com dois metamorfos
em guarda. O da esquerda, de jeans escuros e camiseta preta, era um bouda
masculino de trinta e tantos anos, magro, moreno, com um sorriso fácil. Eu já
o conhecia, o nome dele era Stefan e nós não tínhamos nenhum problema um
com o outro. Como a maioria das boudas, ele era bom com uma faca e,
ocasionalmente, se seus oponentes realmente o irritassem, ele as continuava
usando depois de matá-los.
O outro metamorfo, à direita, era maior, mais jovem e de olhos escuros,
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com cabelos castanhos curtos. Inalei o cheiro dele. Um metamorfo chacal .
Eu parei antes do túnel. Os olhos de Stefan se arregalaram. — Ei você.
— Ei para você também.
O chacal me deu uma longa olhada. Eu usava uma camisa branca de
mangas compridas, calça marrom e um casaco de couro por cima. A principal
vantagem do casaco era seus milhões de bolsos. Minha duas Sigs
descansavam em coldres de ombro duplos. O nariz do chacal enrugou. Isso
mesmo, eu não cheiro como uma bouda normal.
— Jim me enviou, —eu disse a Stefan.
Stefan levantou as sobrancelhas. — O Jim do Bando?
— Sim. Raphael conseguiu voltar da polícia? —Meu interior apertou.
— Não.
Graças a Deus. Eu era uma covarde. Uma terrível e triste covarde. —
Preciso examinar a cena.
O chacal finalmente identificou o cheiro. — Você é …
Stefan se esquivou, batendo casualmente no pé do chacal com sua bota de
trabalho com bico de aço. — Ela é importante nesse caso. Venha, Andrea,
vou mostrar a você as coisas por aqui.
Ele mergulhou no túnel. Tirei meus óculos, enfiei-os no bolso do casaco e
segui-o. Um odor de pedra seca nos cumprimentou, misturado com outra
coisa. O perfume secundário revestiu minha língua e eu o reconheci: era o
cheiro fraco e quase imperceptível da decomposição precoce.
Quando a magia atacava um prédio alto, ela roía o concreto primeiro,
atacando-o em lugares aleatórios até se transformar em poeira.
Eventualmente, o edifício caía como uma árvore podre. Concretos e materiais
quebráveis pereciam, mas o metal e outros valiosos materiais resistiam. As
empresas de extração entravam nos prédios caídos e recuperavam o metal e
qualquer outra coisa que pudesse ser vendida.
Naufrágios caídos como este eram instáveis. Era preciso um tipo especial
de insanidade para entrar em um prédio que poderia cair em sua cabeça a
qualquer momento. Os metamorfos revelaram-se adequados: todos, para
começar, éramos loucos, a força aumentada permitia que trabalhássemos com
rapidez, e a regeneração alimentada com Lyc-V consertava ossos quebrados
em tempo recorde.
Raphael poderia ter quaisquer outros defeitos, mas se certificar que os
ossos de seus trabalhadores fossem quebrados o mínimo possível, era uma
prioridade dele. A passagem tinha seis pés de largura. Vigas de aço grossas e
pilares de pedra sustentavam o telhado e a malha de metal segurava as
paredes. Eu tinha um metro e sessenta, mas Stefan tinha quinze centímetros a
mais do que eu e ele também não precisava se abaixar. Uma série de luzes
elétricas corria pelo teto, piscando vagamente. Muito vagamente. Fizemos
uma pausa, deixando nossos olhos se ajustarem à escuridão, e seguimos em
frente.
O túnel se inclinou para baixo.
— Conte-me sobre o edifício, —eu pedi.
— Caiu cerca de sete anos após a mudança, juntamente com o prédio da
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Georgia Power e logo depois o prédio da Civic Center . Antes de cair, era
uma torre de trinta andares de vidro azul em forma de V. Propriedade de
Jamar Groves, que também foi o responsável pela construção. Jamar era um
promotor imobiliário e este bebê era seu orgulho e alegria. Ele chamava o
30
edifício Blue Heron . No dia do desabamento as pessoas disseram a ele para
sair do prédio, mas ele colocou na cabeça que o prédio não cairia. Ele ainda
está aqui em algum lugar. —Stefan assentiu para o teto. — Ou pelo menos
seus ossos estão.
— Naufragou com o seu navio? —O fedor de decomposição estava
ficando mais forte, agarrando-se às paredes do túnel como uma pintura suja.
— Sim. Jamar era um cara estranho, aparentemente.
— Somente os pobres são estranhos. As pessoas ricas são excêntricas.
Stefan deu um sorriso. — Bem, Jamar possuía uma enorme coleção de
arte e tinha algumas ideias interessantes. Por outro lado, ele tinha uma casa
de banho de mármore em estilo romano no segundo andar.
— Então vocês estão atrás do mármore? —Perguntei.
— Dane-se o mármore. Estamos atrás do encanamento de cobre. Toda a
estrutura tinha canos de cobre antigo. Os preços do cobre estão no teto agora.
Até mesmo a fiação de cobre é cara. É claro que, se você sentir o cheiro de
plástico, vale o dobro, mas não faremos isso. A fumaça é tóxica como o
inferno, mesmo para nós. Há aço também, mas o cobre é o verdadeiro
prêmio. É por isso que Raphael comprou o prédio.
— Ele comprou o prédio? —Há alguns meses, quando Raphael e eu
estávamos juntos, ele trabalhava principalmente com contrato de aluguel de
serviço: os proprietários de vários prédios o empregavam para recuperar os
objetos de valor por uma porcentagem de qualquer coisa que ele
recuperasse.
Stefan sorriu. — Nós agora podemos fazer isso. Estamos brincando com
os meninos grandes.
O túnel continuava indo cada vez mais para baixo, escavando.
— Por que cavar tão fundo debaixo do prédio? Por que não usar as
laterais?
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— O Heron é um toppler , —disse Stefan. — Tinha mais de seis andares
e não pegou fogo.
Magia derrubava edifícios de diferentes maneiras. Às vezes, toda a
estrutura interna entrava em colapso e o prédio implodia em uma fonte de
poeira. Mais frequentemente, a magia enfraquecia partes do edifício,
causando um colapso parcial até que a coisa toda caísse, tombando de lado.
Os topplers eram valiosos, especialmente se não pegassem fogo, porque
qualquer coisa no subsolo tinha uma boa chance de sobreviver.
— Nós estávamos tentando entrar no porão, —Stefan confirmou. — Há
sistemas de aquecimento e supressão de incêndio lá embaixo, geradores,
acesso a elevadores de carga e elevadores comuns, tem muito metal lá. E
você nunca sabe, às vezes pode até encontrar servidores de computador.
Coisas mais estranhas sobreviveram a um prédio caído. Chegamos.
Adiante, a passagem se alargou. Stefan ligou o interruptor e as lâmpadas
duplas no teto se acenderam. Nós entramos em uma câmara redonda, com
cerca de oito metros largura. Quatro corpos jaziam no chão de terra, dois
homens e duas mulheres. Na parede oposta, um disco de metal de um metro e
oitenta de altura se projetava, revelando um túnel redondo cheio de escuridão,
uma porta do cofre deixada entreaberta.
— Um cofre?
Stefan fez uma careta. — Em nenhuma das plantas e nenhum dos
documentos relacionadas ao edifício que tivemos acesso foi mencionado a
existência desse cofre. Nós estávamos cavando alegremente o nosso túnel e
nos deparamos com ele ontem à noite. Ficamos tentando abrir a porta por
cerca de uma hora, mas não tínhamos as ferramentas certas para isso, então
Raphael colocou dois guardas aqui e dois na entrada, e fomos embora. Um
serralheiro deveria vir esta manhã e abrir o cofre. Em vez disso, encontramos
isso.
Quatro pessoas mortas, esparramadas na terra. Ontem à noite eles haviam
abraçado seus entes queridos antes de ir para o turno. Eles fizeram planos.
Esta manhã eram minha responsabilidade. A vida era uma cadela viciosa.
— Ok, deixe-me começar a fazer o registro.
— O quê?
— O registro da cena do crime? O registro de quem esteve aqui e a que
horas?
Stefan me deu um olhar vazio.
— Eh …
Deus, caramba. Peguei um caderno pequeno e uma caneta do bolso do
casaco e mantive minha voz amigável. — Eu te ensino. Vou fazer primeiro
para você ver. Observe.
Marquei a data no topo da página e escrevi:
Capítulo 4
A Extrações Bell estava sediada em um robusto prédio de tijolos à beira
de um grande pátio industrial no lado sudoeste de Atlanta, todas as ruínas
feias rodeadas por uma vegetação viva. A natureza travou um ataque
implacável à cidade. As pessoas a queimava e a cortava, e ainda assim ela
voltava, alimentada por magia e crescendo mais rápido do que nunca.
Ascanio estacionou e não se incomodou em desligar o motor. Seria
preciso muita cantoria para religá-lo e considerando a pata, símbolo do
Bando, estampada na porta do carro e o fato de que eu saí dele mostrando
minhas garras e dentes, não haveria ninguém burro o suficiente para tentar
roubá-lo.
Ascanio e eu marchamos pelas portas da frente.
Uma recepcionista apressada levantou a cabeça dos papéis em sua mesa e
pulou um pouco em seu assento. Ela era de meia-idade e seu cabelo tinha
sido tingido de uma cor estranhamente vermelha.
— Bom dia, —eu disse, sorrindo.
Ela empurrou a cadeira para trás o máximo possível.
— Estamos aqui em nome do Bando para conversar com Kyle Bell.
— Ele está em um local de extração, —disse a recepcionista. Seus olhos
me disseram que ela iria responder qualquer pergunta apenas para nos tirar do
seu escritório.
— Onde é esse local?
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Ela engoliu em seco. — O extremo leste do Inman Yard .
Não ouvir isso. — Você quis dizer no Zoológico de Vidro?
A recepcionista assentiu. — Sim.
— Obrigada pela sua cooperação, senhora.
Voltamos para o nosso jipe.
— Kyle Bell é corajoso ou realmente muito estúpido. Provavelmente
ambos.
— Por quê? —Perguntou Ascanio.
— Porque fazer qualquer tipo de extração no zoológico de Vidro é
suicida. Especialmente com a magia. Também é ilegal. E agora temos que
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passar pelo Burnout para chegar lá. Eu odeio o Burnout. É deprimente.
Voltamos ao nosso jipe.
— Pegue a direita, depois entre a direita novamente. Precisamos entrar na
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Hollowell Parkway e virar à esquerda.
— Qual o problema do Zoológico de Vidro? —Perguntou Ascanio,
dirigindo o jipe para fora do estacionamento.
Até onde eu sabia, o Zoológico de Vidro estava fora dos limites para
pessoas aventureiras com menos de dezoito anos. Por um bom motivo
também. — Você verá.
Quando a estrada subiu para o norte, a paisagem mudou. As ruínas de
armazéns e a vegetação ficaram para trás. Em torno de nós, velhas cascas de
casas queimadas se curvavam, acentuadas por pontos ocasionais de
vegetação.
Ficar presa no escritório da Ordem me deixou com muito tempo livre,
então li guias e me familiarizei com os mapas da cidade. No meu tempo livre,
corria por bairros aleatórios de Atlanta, na possibilidade de ter que visitá-los
em uma necessidade profissional. Meus guias mencionavam que anos atrás
um incêndio devastador varreu a parte oeste de Atlanta, removendo os bairros
50
residenciais mais antigos ao norte da 402 . O fogo laranja intenso queimou
de forma não natural durante quase uma semana apesar das fortes chuvas e de
muitas tentativas para apagar. Quando finalmente terminou, a terra havia
perdido sua capacidade de sustentar a vida das plantas. Em outras partes de
Atlanta, qualquer ponto de terreno fértil era imediatamente reivindicada pela
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vegetação que crescia como se estivesse tomado esteroides . O Burnout
permaneceu livre de ervas daninhas por uma década. As plantas finalmente
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voltaram, kudzu cobria uma parede em ruínas aqui e ali, e dentes-de-leão
amarelos brilhantes e dândis cor de sangue, os primos alterados pela magia
do dente-de-leão, apareciam entre os tijolos caídos.
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Alguns meses atrás, durante o verão indiano , Raphael e eu fizemos um
piquenique sob um carvalho gigante em um campo fora da cidade. Eu sempre
quis fazer um desses piqueniques de cinema com um pano xadrez vermelho e
branco e uma cesta de vime. Comemos frango frito, tomamos cerveja preta e
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Cream Soda e colocamos na nossa toalha de mesa. Eu havia colhido um
monte de dentes-de-leão e dândis cor de sangue e fiz dois arranjos de flores.
Isso parecia tão idiota agora. Por que diabos fiz isso? Como um idiota
boba de dez anos.
— Por que você não lutou com Rebecca? —Perguntou Ascanio. — Você
ganharia.
— Claro que eu venceria. Mesmo que ela cuspisse granadas e suasse
balas, eu venceria. Ela é humana. Eu sou uma metamorfo com dez anos de
experiência em combate e tenho um pouco do melhor treinamento de artes
marciais que alguém pode ter.
— Na natureza você tem que lutar contra a concorrência.
Na natureza, né? Eu já ouvi isso antes. — Na natureza, os filhotes de
hiena nascem com os olhos abertos e um conjunto completo de dentes. Eles
começam a lutar desde o momento em que saem da mãe. Eles cavam túneis
no covil, pequenos demais para os adultos passarem, e eles lutam lá. Cerca de
um a cada quatro deles não chegam a idade adulta. Então, se assim fosse
como a natureza e você tivesse um irmão gêmeo, teria que matar seu irmão
recém-nascido. Devemos jogar todos os bebês bouda em um cercadinho e
deixá-los morrer de fome até começarem a matar uns aos outros?
Ascanio franziu a testa. — Bem, não …
— Por que não? É a seleção natural. Assim como é na natureza. —Eu
enruguei meu nariz. — Boudas ama este argumento, porque lhes dá uma
desculpa para fazer todas as coisas erradas. ‘Sinto muito ter fodido sua irmã e
ter prendido meu pênis no seu pastor alemão. É da minha natureza. Eu
simplesmente não pude evitar’.
Ascanio bufou.
— Não seja assim, —eu disse a ele. — É raciocínio besta. Nós não somos
animais. Somos pessoas. E isso é uma coisa boa também, porque não foram
as hienas que conquistaram o mundo. E sim, eu sei que é irônico como o
inferno, já que estou toda pêlo e garras nesse momento, mas a parte humana
de mim ainda está no comando. Todos nós sabemos o que acontece quando o
animal começa a dirigir o show.
— Nós nos transformamos em loup, —disse Ascanio.
— Exatamente.
O lupismo era uma ameaça constante. Ela reivindicava quinze por cento
dos filhos de metamorfos, alguns ao nascer, alguns na adolescência, forçando
a matilha a exterminá-los de forma mais humana possível. Para as boudas, o
número era ainda maior, quase um quarto. Ambos os irmãos de Raphael
tinham ido a loup e Tia B teve que matá-los. É por isso que qualquer
adolescente sobrevivente no clã bouda era tratado como um tesouro.
Se eu tivesse bebês com Ra ... o pensamento se retorceu em mim como
uma faca na ferida. Não haveria pequenos bebês bouda. Nenhum Raphael.
Essa porta se fechou e eu precisava tirar ele da cabeça. Nesta vida você tem
sorte se tiver uma chance de felicidade e eu falhei com a minha. O fato de
que foi uma falha dos dois doía mais.
Esses sentimentos tinham que passar, como água de baixo da ponte.
— Mas ela é burra, —disse Ascanio. — Insultou a Tia B!
— E por isso devemos arrancar sua garganta? —Eu olhei para ele.
— Bem, não.
— Supondo que eu batesse nela. O que eu iria conseguir? Na natureza, os
animais lutam para demonstrar superioridade. Quanto mais poderoso você é,
melhor é o seu material genético. Animais mais fortes, bebês mais fortes,
uma melhor chance de sobrevivência. Raphael já sabe que eu sou uma
lutadora melhor que ela, mas ele a escolheu ao invés de mim, de qualquer
maneira. Isso é uma lição para você, quando você tiver a chance de ser feliz,
você aceita e trata a outra pessoa da maneira que ela merece ser tratada, não
tome as coisas como garantidas.
Dar conselhos era fácil. Viver os praticando era muito mais difícil.
Nós entramos a direita na bifurcação, indo mais para o norte. As casas
carbonizadas continuavam. À direita, um grande cartaz pregado a um posto
de telefone antigo gritava PERIGO em enormes letras vermelhas. Embaixo,
em letras pretas nítidas, estava escrito: IM-1: Área Mágica Infecciosa.
Não Entre!
Apenas Pessoal Autorizado.
Um segundo sinal menor sob o primeiro, escrito em um pedaço de
plástico com marcador permanente, lia:
Mantenha-se longe, seu idiota.
— Nós não vamos embora, não é? —Perguntou Ascanio.
— Não.
— Maravilha.
Passamos por outra casa queimada. À esquerda, um grande fragmento
azul-esverdeado projetava-se do chão em um ângulo. À direita, junto à
carcaça de metal de um caminhão, uma outra tira, azul-claro, aguardava o
tornozelo de alguém desavisado. Os primeiros sinais do zoológico.
Aqui e ali, mais fragmentos perfuravam o solo e, à distância, muito à
direita, um iceberg irregular erguia-se em um ângulo íngreme de seis metros
de altura, brilhando de verde e azul translúcido ao sol da manhã.
Ascanio apertou os olhos. — O que é isso?
— Vidro, —eu respondi.
— Mesmo?
— Sim.
— De onde veio?
Mais adiante icebergs se aglomeravam, formando uma geleira. — Alguns
são da área da Estação Hollowell. Antes da Mudança, Inman Yard costumava
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ser de responsabilidade da Norfolk Southern . Era enorme. Mais de sessenta
e cinco linhas ferroviárias, exclusivamente deles. Não só isso, mas as linhas
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da Tilford da CSX trabalhavam em conjunto. Juntos eles lidavam com mais
de cem linhas de trem por dia. Então eles construíram a Estação Hollowell.
Era para ser um terminal novo e supermoderno e a maior parte era de vidro.
Adivinhe o que aconteceu quando as ondas mágicas começaram a aparecer?
Ascanio sorriu. — Foi destruído.
— Sim, exatamente. Havia colinas de vidro por toda parte. As ondas
mágicas continuaram causando acidentes, mas a ferrovia continuava
funcionando. Nos meses seguintes, alguns funcionários da ferrovia
começaram a entender que as colinas de vidro estavam se multiplicando. Mas
os responsáveis pela ferrovia não deram muita atenção a isso. Então, durante
o segundo surto, criaturas saíram do vidro e mataram metade dos
trabalhadores da estrada de ferro.
— Que tipo de criaturas? —Ascanio perguntou.
— Ninguém sabe.
Os Flares, terríveis ondas mágicas, vinham uma vez a cada sete anos.
Coisas que eram impossíveis durante ondas mágicas normais tornavam-se
realidade durante um surto. A magia do Flare manteve-se por três dias
seguidos e depois desaparecia por um longo tempo, mas suas consequências
eram muitas vezes mortais.
— Eventualmente, os militares voltaram para recuperar o pátio. Havia
cerca de duzentos trens lá, e alguns deles estavam cheios de mercadorias. Os
soldados descobriram que o vidro havia se expandido e encapsulado os trens.
Quando eles tentaram quebrar os vidros, foram atacados por criaturas.
Ninguém nunca descobriu que tipos de criaturas eram, mas elas causaram
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várias vítimas. Finalmente, a MSDU desistiu e isolou o Inman Yard com
arame farpado. O vidro nunca parou de crescer. Os helicópteros ainda
voavam de vez em quando naquela época, um dos repórteres olhou para o
lugar de cima e o apelidou de Zoológico de Vidro.
À frente, dois icebergs se encontravam acima da estrada, fundidos em um
arco maciço. Passamos por baixo entrando em um labirinto de vidro. Picos de
verde, azul e branco se elevavam acima de nós, alguns conectados, alguns
separados, alguns turvos, outros perfeitamente transparentes. A luz ficou
azul-turquesa, como se estivéssemos debaixo d'água. Os penhascos de vidro
enchiam a estrada em ruínas, pintando o chão com sombras coloridas.
A parte de trás da minha cabeça coçava, os nervos formigavam, como se
algum atirador invisível tivesse me visto do alcance de seu rifle. Alguém
estava nos observando das profundezas geladas. Ascanio ficou em silêncio,
concentrado e tenso.
Ele sentiu também.
A estrada à nossa frente brilhava.
— Pare, —eu disse.
O jipe parou.
A montanha de vidro cruzava a estrada. Alguns metros antes de chegar ao
asfalto, ela se quebrou em um monte de cacos. Uma pilha idêntica do outro
lado. Extrações Bell deve ter explodido esses. Kyle Bell estava tentando
recuperar os trens. Só o metal valeria uma fortuna, para não mencionar o
conteúdo deles. Uma vez recuperado, ele teria que transportar o metal e
precisaria de uma estrada viável. O problema agora é que havia vidro
quebrado para todo lado.
Saí do veículo e fui para a frente, com cuidado para não pisar em nada
muito afiado. Meus pezinhos de besta eram resistentes e o Lyc-V fecharia
qualquer corte no momento em que fossem feitos, mas ainda assim doeria.
Ascanio me seguiu.
As lascas cobriam o asfalto, grandes lascas de vidro nas bordas e pó de
vidro esmagado no centro. Eu me agachei para ter uma visão melhor. O vidro
esmagado corria em duas linhas paralelas.
— Entre no carro, —eu disse. — Eles estão usando um trator ou uma
retroescavadeira. —O vidro iria cortar nossos pneus em pedaços. —
Estacione o jipe. Vamos a pé.
Escondemos o jipe atrás da montanha de vidro e desligamos o motor. O
silêncio repentino fez meus ouvidos zunirem.
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Peguei uma besta e um arco longo do veículo.
— Por que dois arcos, senhora? —Perguntou Ascanio, colocando um
súbito sotaque inglês em suas palavras.
— A besta tem mais poder, mas demora mais para recarregar. —Eu
amarrei o arco longo. — Às vezes você tem que atirar rápido. E você pode
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ficar dez minutos sem dar um de espertinho? —Peguei a aljava .
— Eu não sei, nunca tentei, senhora.
Sacudi a cabeça, tentando não rir das palhaçadas de Ascanio.
— Essas flechas vão fazer cocegas nos monstros, —Ascanio disse.
— Estas não vão. —Eu tirei uma e mostrei a ele o encantamento escrito
na ponta da flecha. Um dos magos da Unidade Militar de Defesa
Sobrenatural não era avesso ao trabalho clandestino. Ele era caro, mas valia a
pena. — Mas se você tiver dúvidas, por que não vai até ali? Vou atirar em
você e vamos descobrir se dói.
— Não, obrigado.
Peguei flechas de reposição e uma segunda aljava, entreguei a ele. —
Então cale a boca e leve isto.
Comecei a avançar em uma corrida fácil, contornando a estrada. Ascanio
seguiu alguns passos atrás. O vidro engolia todos os passos e nós deslizamos
como duas sombras.
Um lampejo de movimento apareceu no canto do meu olho. Algo se
agachou em cima da montanha de vidro à esquerda. Algo com uma longa
cauda que se escondia nas sombras. Continuei correndo, fingindo que não vi.
Não nos seguiu. Um rugido abafado anunciava que os motores de água
estavam sendo bem utilizados. Passamos por baixo de outra saliência de
vidro, paralela à estrada. À frente, a faixa de asfalto fez uma curva, rolando
através da abertura entre os reflexos da luz do sol no vidro. Reduzi a
velocidade e caminhei em pés silenciosos até a borda mais próxima do
iceberg, a cerca de quatro metros e meio do chão. Muito liso para escalar. Eu
me agachei, dobrei os joelhos e pulei. Minhas mãos pegaram a borda de
vidro, e eu me levantei. Ascanio saltou ao meu lado. Nós nos arrastamos ao
longo da borda até ao centro.
Uma grande área à nossa frente, cerca de meio campo de futebol. À
direita, o chão subia ligeiramente, a encosta cravejada de pedregulhos de
vidro verde-claro. Um grande abrigo de construção empoleirado no topo do
chão elevado, o tecido resistente esticado sobre uma moldura de alumínio. À
esquerda, uma confusão de cacos de vidro que se erguia e se curvava, mais
fundo no labirinto de vidro. O final de um vagão de cabeça para baixo no
meio dos cacos.
Um motor de água encantado estava próximo, ligando uma enorme
britadeira que dois trabalhadores da construção civil com capacetes de
segurança e escudos faciais completos apontavam para o vidro incrustado no
vagão do trem. Oito outros trabalhadores, envoltos em equipamentos de
proteção similares, golpeavam o vidro com martelos e picaretas de
mineração.
Três guardas se amontoavam ao redor do perímetro, cada um armado com
um facão. O mais próximo de nós, um homem alto, de ombros largos, de
trinta e poucos anos, parecia que não hesitaria em usar o dele. Com a magia,
as armas não disparariam, mas a segurança parecia muito fraca para uma
reivindicação no Zoológico de Vidro. Eles devem ter algum outro tipo de
segurança escondido.
— Você vê o que eles estão fazendo? —Murmurei para Ascanio.
— Eles estão tentando recuperar esse vagão, —disse ele. — Por que isso
é ilegal?
É o que eu quero saber.
— Não pertence a eles? —Continuou Ascanio.
— Tecnicamente a ferrovia abriu mão desse negócio, então esta é
propriedade abandonada. Tente novamente, o que eles estão fazendo?
— Eu não sei.
— Em que estamos pisando?
Ele olhou para a superfície turquesa sob nossos pés. — Vidro mágico.
— O que sabemos sobre isso?
— Nada, —ele disse.
— Exatamente. Nós não sabemos o que faz esse vidro crescer e não
sabemos o que o faria parar.
— Assim, qualquer coisa que eles tirarem daquele vagão poderia produzir
vidro, —disse Ascanio.
— Precisamente. Eles vão vender o que quer que consigam tirar daqui e
não dirão ao comprador onde o conseguiram. E quando outro Zoológico de
Vidro brotar em algum lugar, será tarde demais.
— Não deveríamos fazer alguma coisa sobre isso?
Eu levantei minha mão vazia. — Sem distintivo. Podemos denunciá-lo
quando saímos daqui e ver se o PAD quer fazer algo a respeito. —Além
disso, não era nosso trabalho denunciá-los e eu estava definitivamente me
livrando de qualquer sentimento de responsabilidade cívica. Não era
problema meu.
— Eles devem saber que o que estão fazendo é ilegal, —eu disse. — E
esta área é perigosa, então devem ter mais do que três brutamontes com facas
enormes. Devem ter alguma outra segurança que não estamos vendo. Esteja
pronto para qualquer surpresa.
Os olhos de Ascanio se iluminaram com um estranho brilho de rubi. —
Posso me transformar agora?
— Ainda não. —A mudança levava muita energia. Mude sua forma duas
vezes em rápida sucessão, e você teria que ter algum tempo de inatividade.
Eu precisava de Ascanio descansado e cheio de energia, o que significava que
se ele não iria mudar, me olhei rapidamente, eu teria que ficar desse jeito.
Nós saltamos da borda e descemos a estrada direto para o guarda. Ele viu
meu rosto e recuou — O que diabos você é?
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— Andrea Nash, —eu disse. — Este é meu sócio, Robin de Loxley .
Ascanio saudou fazendo uma reverência exagerada. Felizmente não
colocou para fora suas frases em Latim.
— Estou investigando um assassinato em nome do Bando. Preciso falar
com Kyle.
O homem olhou para mim. Isto estava claramente fora de seus deveres
normais.
— Você tem algum tipo de identificação?
Entreguei a ele minha identidade, uma cópia em miniatura da minha
licença de Investigadora Particular endossada pela secretária de Estado da
Geórgia com minha foto nela.
— Como eu sei que é você? —Ele perguntou.
— Porque eu mentiria?
Ele refletiu sobre isso. — Certo, você tem algo que diz que pertence ao
Bando?
Ascanio tossiu um pouco.
Eu varri a mão da minha testa para o meu queixo, indicando o meu rosto.
— Parece que preciso provar que sou do Bando?
O guarda me avaliou. — Certo, tudo bem. Venha comigo.
Nós o seguimos até a tenda. Parecia maior de perto, quase doze metros de
altura. Dentro, um homem de meia-idade examinava alguns gráficos ao lado
de uma oficina, um homem mais magro com cicatrizes de acne em um rosto
estreito. Ambos usavam capacetes.
O homem de meia idade olhou para cima. Baixo, bem musculoso, ele
poderia ter sido rápido em algum momento de sua juventude, mas agora
provavelmente não era. Parecia um daqueles homens da linha de defesa que
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ficam em frente ao quarterback no futebol americano, exceto que agora
estava um pouco acima do peso e a maioria de seus músculos agora se
escondia atrás de uma camada de gordura. Seu cabelo era cinza e curto, mas
seus olhos escuros eram afiados. Ele não parecia amigável. Tive a impressão
que ele parecia o tipo de cara que poderia ordenar a morte de metamorfos.
Kyle me deu uma olhada e se concentrou no guarda. — O que diabos é
isso?
— Algumas pessoas do Bando querem falar com você, —disse o guarda.
— Sobre um assassinato.
Kyle se inclinou para trás, seu rosto azedo. — Tony, você se lembra do
que disse da última vez? Eu te disse para deixar entrar qualquer idiota aqui?
O guarda estremeceu. — Não.
— Sim, eu não lembro disso também. Felipe, você se lembra disso?
— Não, —o homem mais alto disse.
— Isso foi o que eu pensei.
Tony fez uma pausa, obviamente confuso. — Então o que eu faço?
— Coloque-os para fora. Se eu quiser falar com qualquer vadia feia ou
criança idiota, eu vou te falar. —Kyle olhou de volta para seus documentos.
Tony colocou a mão no meu antebraço. — Vamos.
— Tire sua mão de mim, senhor.
O guarda me puxou. — Não faça isso difícil.
— Última chance. Tire sua mão de mim.
Kyle olhou para cima. Tony tentou me puxar de volta. Levantei meu
braço fortemente e lhe dei uma cotovelada no rosto. O golpe o derrubou.
Tony deixou cair o facão. Ele beijou o chão e se levantou. O sangue jorrou de
seu nariz, o cheiro perfurou-me como um tiro de adrenalina.
— Sente-se nele, —eu disse a Ascanio.
Ascanio aproximou-se de Tony, empurrou-o de volta para o chão, de
bruços e apoiou um joelho nas costas. — Não se mova, senhor.
Aprendeu direitinho. Eu me senti tão orgulhosa.
Tony tentou se levantar. — Saia de cima de mim!
— Não lute, ou serei forçado a quebrar o seu braço.
Cala a boca Tony.
Kyle olhou para mim. Atrás dele, Felipe cuidadosamente deu alguns
passos para trás.
— Nós podemos falar sobre os assassinatos agora. —Eu sorri.
— E se eu não estiver com vontade de falar?
— Eu vou fazer com que você fique com vontade, —disse. — Tive um
dia desagradável e quatro dos nossos estão mortos. Tenho sentido uma
imensa vontade de me divertir.
— Vocês metamorfos estão ficando ousados, —disse Kyle. — Vocês
acham que pode comer em qualquer lugar e se divertir como pessoas
decentes normais.
— De fato, eu posso. —Eu olhei para ele.
— Os garotos do PAD vão adorar, —disse Felipe, o homem mais alto
atrás de Kyle.
Há sim! Ele estava me ameaçando com policiais. — Os garotos do PAD
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não vão dar a mínima. Esta área é designada como IM-1 . Vocês estão
violando no mínimo duas leis municipais, uma estadual e duas do Estatuto
Federal. Qualquer coisa que vocês recuperar aqui estará contaminada com
magia de origem desconhecida. Tirá-lo daqui é punível com uma multa de
não mais do que duzentos mil dólares ou prisão por mais de dez anos, ou
ambos. Vender isso lhe dará mais algumas multas e um tempo na
penitenciária.
Kyle cruzou os braços. — Sério?
— A ganância é uma coisa terrível, —eu disse. — Quando você extrair
seu metal e o vender para um construtor, uma nova escola ou hospital na
cidade começará a brotar vidros para todo lado, eles virão atrás de vocês. Mas
nesse momento, isso não é problema meu. Estou aqui para fazer perguntas.
Responda-as e eu vou agradecer e ir embora. Tenham em mente que se vocês
me irritarem, eu vou massacrar todos vocês e ninguém vai dar a mínima.
E eu podia. Poderia apenas quebrar seus pescoços e ninguém nunca
saberia. Este era o Zoológico de Vidro e se alguém morresse aqui os policiais
pensariam que foram atacados por algum desconhecido. Agora isso sim é que
era um pensamento interessante.
Uma criatura entrou na tenda, andando de quatro. Costumava ser humano,
mas toda a gordura tinha sido sugada, substituída por um músculo duro e
nodoso, a pele esticada, parecia pintada. Sua cabeça era careca, como o resto
de sua estrutura repulsiva e os dois olhos vermelhos e febris de sede, me
observava como duas brasas ardentes. Suas mandíbulas enormes se
projetaram e, quando abriu a boca, vislumbrei duas presas curvadas.
Um vampiro. O fedor revoltante de mortos-vivos girou em torno de mim,
levantando meus pêlos em arrepios de desgosto instintivo.
Eca. Bem, isso explicava quem estava fazendo a segurança por aqui. Eles
tinham um morto-vivo protegendo-os. E onde havia um vampiro, havia um
navegador.
A infecção pelo patógeno Immortuus destruía a mente de um humano.
Nenhum conhecimento permanecia. Vampiros eram governados apenas por
instinto e esse instinto gritava: ‘Alimente-se!’ Eles não se reproduziam, não
raciocinavam, só caçavam. Qualquer coisa com pulso virava comida para
eles. Suas mentes em branco eram veículos perfeitos para necromantes.
Chamados de navegadores, ou Mestres dos Mortos, se tivessem talento e
educação, os necromantes pilotavam vampiros, conduzindo-os
telepaticamente, como carros controlados remotamente. Eles viam através
dos olhos do vampiro, eles ouviam através de seus ouvidos, e quando mortos-
vivos abriam sua boca, eram as palavras do navegador que saíram.
A maioria dos navegadores trabalhava para a Nação. A Nação e o Bando
existiam em um estado de trégua desconfortável, pairando à beira de uma
guerra total. Se a Nação estava executando a segurança deste local, minha
vida ficaria muito mais complicada.
Um homem seguia o vampiro. Ele usava jeans rasgados, uma camiseta
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preta que dizia MAKE MY DAY em letras vermelhas e ostentava dezenas
de anéis enfiados em várias partes do seu rosto. Ele poderia ser um dos
funcionários da Nação, mas era altamente improvável. Primeiro, diferente dos
Navegadores da Nação, ele seguiu seu vampiro em vez de ficar em algum
lugar do lado de fora, sendo discreto, puxando as cordas do morto-vivo com
sua mente. Segundo, os Navegadores da Nação se vestiam como se estivesse
participando de uma audiência perante a Suprema Corte. Eles usavam ternos
bem cortados, bons sapatos e estavam impecavelmente arrumados. Não, esse
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idiota tinha que ser um freelancer , o que significava que eu poderia matá-lo
sem consequências diplomáticas, se ele não me matasse primeiro.
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— Onde diabos você esteve, Envy ? —Kyle disse.
Eu olhei para ele. — Envy?
Ascanio deu uma gargalhada.
— É por aí, —disse Envy.
— Quero que eles desapareçam daqui, —disse Kyle. — Faça o seu
maldito trabalho.
O vampiro assobiou. Envy sorriu, mostrando dentes estragados.
Ascanio se preparou. — Posso mudar agora?
— Não. —Eu me virei, aproximando-me do facão.
Tony ainda preso ao chão, olhou para o navegador. — Você tem a chance
de ir embora. Aproveite.
— Posso matá-los? — Envy perguntou.
— Você pode fazer o que quiser, —Kyle disse a ele.
Eu tinha que fazer isso rápido. Entrar em uma briga mano-a-mano com
um vampiro podia acabar mal. Preferiria lutar com os músculos enfurecidos
de um urso. — Vá embora. Última chance.
Envy sorriu. — Reze, vadia.
— Você tem alguma ligação com a Nação?
— Porra, não.
— Resposta errada.
Lá fora, o vidro se despedaçou. Um grito rasgou o silêncio, um grito
doloroso de um homem experimentando o puro terror. Mais dois seguidos.
— Que diabos está acontecendo agora? —Kyle rosnou.
Nós saímos da tenda.
O vagão se abriu no topo, como uma lata de feijões podres, e criaturas
saíram, subindo em seu teto. Uma pele grossa de couro cinza-pálida cobria os
corpos largos e achatados, apoiados por seis musculosas pernas de urso. No
lugar de mãos, patas inclinavam em cada membro, e os dedos longos e hábeis
deles carregavam garras de marfim curtas, mas grossas. Uma carapaça
estreita corria ao longo de suas costas e, quando uma das criaturas se ergueu,
vi um escudo ósseo idêntico protegendo seu estômago e peito. A carapaça
terminava em uma cauda longa e segmentada como um ferrão de escorpião.
Eles tinham grandes cabeças redondas com mandíbulas felinas e fileiras
duplas de olhos minúsculos, colocados profundamente em suas órbitas. Os
olhos olhavam para a frente, não para o lado. Isso geralmente significava um
predador.
As bestas correram pela superfície lisa, aderindo ao vidro como se
tivessem cola nas palmas das patas. O maior deles tinha cerca de um metro e
oitenta de comprimento e parecia pesar uns cento e quarenta quilos. O menor
era do tamanho de um cachorro grande. Isso significava que alguns deles
eram bebês. Bebês famintos e furiosos.
Os trabalhadores recuaram, sacudindo suas ferramentas. Apenas uma rota
de fuga na plataforma de vidro e ficava do lado oposto, quase diretamente
atrás do vagão e das criaturas.
A horda de monstros se concentrava nas pessoas, observando-as com a
intensa atenção de predadores famintos que tentavam decidir se algo era
comida. A maior das criaturas levantou a cabeça. Suas mandíbulas largas se
abriram, revelando um pequeno conjunto de presas tortas. Comedores de
carne. Claro.
Os trabalhadores pararam de se mexer.
A maior besta olhava para as pessoas abaixo, virando para a esquerda,
para a direita, para a esquerda... Músculos agrupados em seus ombros
— Afastem-se, —Kyle gritou. — Não provoquem essas coisas. Envy, vá
lá.
— Em um minuto, —disse o navegador.
As feras saltaram, apontando para o centro da multidão. As pessoas se
espalharam, dividindo-se em dois grupos: oito pessoas mais próximas a nós
correram em direção à tenda, enquanto o dobro correram na direção oposta,
em direção à parede de vidro.
As feras perseguiram o grupo maior e mais distante. Um dos guardas, um
homem de pele muito escura, atacou. Uma das feras gritou, como uma
enorme coruja, e estalou os dentes. O guarda se esquivou, girou e cortou o
pescoço da fera. O facão cortou o osso e a cartilagem como um cutelo de
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carne .
A cabeça da fera caiu para o lado, meio cortada. O cheiro de sangue me
atingiu, amargo e revoltante. Meus instintos predatórios recuaram, o que quer
que fosse aquilo, não era bom comer.
A criatura cambaleou e caiu. Sangue escuro, grosso e marrom-ferrugem,
derramado sobre o vidro.
A horda de feras explodiu em assovios alarmados.
— Não são tão difíceis de matar, —Felipe disse a Kyle, o alívio em sua
voz.
O chão tremeu. As paredes do vagão explodiram. Um gigante se
espalhou, enorme, grotescamente musculoso, seus membros anteriores
pareciam troncos de árvores. Eu já vi um cachorro tão grande quanto uma
casa. Isso era maior. Era maior que a tenda onde estávamos. Como diabos
essa coisa se encaixou ali embaixo?
Kyle xingou.
A fera avistou o filhote morto, abriu a boca e berrou. Ela parecia
exatamente com seus bebês, exceto pela carapaça óssea que embainhava a
maior parte de sua face superior como se alguém tivesse puxado seu crânio
para fora e colocado sobre sua cara feia. Seus quatro olhos mal eram do
tamanho de bolas de pingue-pongue. Tentar atirar neles com uma flecha seria
muito difícil.
— Tudo bem, —disse Envy. — Estou fora.
Os olhos de Kyle se arregalaram. — Eu paguei a você, seu verme!
— Não o suficiente para isso, —disse Envy.
O vampiro agarrou-o, balançando o navegador sobre as costas e correu
para longe, saltando sobre as pessoas e evitando os animais e rapidamente
desapareceram na floresta de vidro.
O rosto de Kyle ficou roxo em um ataque de raiva súbita. Eu tentei
duramente não dizer nada.
Ignorando o rugido da fera mais velha, as criaturas se lançaram em
direção ao grupo maior.
Felipe agarrou meu braço. — Ajude-nos!
— Por quê? —Não sou mais funcionária pública. Não era mais meu
trabalho salvar todo idiota das consequências de sua própria estupidez. Eles
entraram no Zoológico de Vidro sozinhos, sabendo dos riscos. Por que eu
deveria colocar minha vida em perigo para as pessoas que tentaram me
atacar com um vampiro? Eu não devia nada a eles. Só tinha que pegar as
informações que eu precisava de Kyle e me certificar de que Ascanio e eu
saíssemos inteiros daqui.
As feras circulavam o grupo maior. Os trabalhadores abraçaram a parede
de vidro. Não demoraria muito até que uma das criaturas fosse corajosa o
suficiente e atacasse.
— Por favor! —Os olhos de Felipe estavam desesperados. — Meu filho
está lá embaixo.
E daí? Todo mundo era marido de alguém, esposa, filho de alguém,
alguém de Rory ...
Ah, merda.
Olhei para o rosto de Felipe e vi Nick estampado lá. Suas feições não
eram nada parecidas, mas foi exatamente assim que Nick deve ter parecido
quando soube que sua esposa estava morta. Felipe olhou para mim com os
olhos arregalados, desesperado e aterrorizado, o rosto afiado, como se
estivesse prestes a estremecer de dor e gritar. Cada ruga afundou em sua pele
como uma cicatriz. Todas as regras que a sociedade impunha aos homens,
todas as obrigações de ser corajoso, nunca entrar em pânico, lidar com a
dignidade obstinada, todas foram embora, porque ele estava prestes a perder
o filho. Estava desamparado. Ele me implorou pela vida de seu filho e eu
sabia que ele trocaria de lugar com o rapaz sem um momento de hesitação.
Eu não podia ficar parada lá e observá-lo enquanto ser morto. Isso não
fazia parte de mim. A pessoa que não socorreria aquele homem não era quem
eu era ou queria ser.
Tirei a aljava do meu ombro e entreguei a Ascanio. — Flecha!
Peguei uma flecha e posicionei em na palma da minha mão. Encaixei no
arco. — Vou atirar rápido. Tenha a próxima flecha pronta.
A estiquei no arco.
O animal mais corajoso saltou, apontando para o trabalhador mais
próximo.
O arco e a flecha cantaram juntos num dueto feliz e cruel. A ponta da
flecha cortou a garganta da criatura. A primeira fera caiu, assoviando,
tentando arrancar o cabo da flecha com a pata. A flecha tremeu.
Uma luz azul acendeu na ferida e a fera explodiu.
Estendi minha mão e Ascanio colocou outra flecha nela.
O segundo animal também foi atingido. Um momento depois, a segunda
explosão arremessou pedaços de carnes e ossos por todo o lado. Eu não tinha
tempo para assistir. Continuei atirando, rápido e preciso, enchendo o ar com
flechas.
As feras entraram em pânico. Elas correram para lá e para cá em meio a
seus irmãos explodindo, mordendo e arranhando um ao outro. A Fera Mãe
rugiu, batendo suas mandíbulas enormes sem parar, incapaz de descobrir o
que estava matando seus bebês.
— Corram! —Eu gritei.
Os trabalhadores vieram em nossa direção, correndo ao longo da parede.
Os animais os perseguiram. O ar assobiava em um refrão fatal, enquanto
minhas flechas encontravam os alvos.
Felipe pegou uma picareta das mãos de outro homem e correu em direção
ao grupo. Uma mulher à minha esquerda e o guarda Tony atacaram também,
juntamente com outros dois.
Uma das operárias, uma mulher pequena, tropeçou, caiu e escorregou
pelo declive de vidro. Duas feras caíram sobre ela, rasgando a mulher com
rosnados molhados e borbulhantes. Eu afundei duas flechas neles, mas já era
tarde demais.
A mulher gritou, um pequeno grito gutural que foi no meio. O sangue
encharcou o vidro. Um momento depois, a flecha detonou e partes humanas e
de animais choveram sobre o vidro em um dilúvio sangrento.
O primeiro trabalhador que corria chegou à tenda e desabou atrás de mim.
O resto chegou depois. Finalmente Felipe e o guarda de pele escura entraram,
ambos respingados com sangue.
A Fera Mãe virou-se para nós. Por fim encontrou o inimigo, não é?
— Se espalhem no perímetro! —Eu ordenei. — Hora de lutar por suas
vidas! Use o que vocês têm.
Os trabalhadores correram para formar uma linha.
O monstro abaixou a cabeça e eu vi uma fenda estreita em sua carapaça,
localizada entre os olhos dela.
Tecido rosa suave expandia-se e contraiu-se. Olá, alvo.
A besta balançou a cabeça novamente e gritou em minha direção. A onda
de som me atingiu como o rugido de um tornado. Eu teria que acabar com a
mãe-fera ou nenhum de nós sairia vivo.
— Posso mudar agora? —Perguntou Ascanio.
— Agora pode.
A pele de Ascanio se rompeu. Um poderoso músculo cobriu seu
esqueleto, a pele embainhou-o e um pêlo cinza-acastanhado brotou através
dele. Uma crina escura cresceu em sua cabeça e escorria pela parte de trás do
seu pescoço, sobre sua espinha. Listras pálidas cortavam seus membros
anteriores, terminando em garras de doze centímetros. Seu rosto, como seu
corpo, tornou-se uma mistura de hiena listrada e humano. Seus olhos
brilhavam de vermelho.
A Besta Mãe ergueu uma pata dianteira colossal e deu um passo à frente.
O chão tremeu.
O bouda ao meu lado abriu a boca e rugiu de volta, transformando a
gargalhada de Hiena em algo colossal. Meus pêlos do corpo se arrepiaram de
orgulho. Este é meu lindo garoto.
— Mantenha-a ocupada! —Eu gritei. — Faça com que o rosto dela esteja
à vista.
Ascanio saltou sobre as cabeças dos trabalhadores e correu para o
monstro. Ele despachou uma fera pequena do caminho. O gigante balançou
em sua direção.
Estiquei meu arco. Ainda não.
Ascanio jogou o braço em outra criatura, mandando-o para longe.
Ainda não. Um pouco mais de tempo.
O gigante se abaixou, rosnando.
Ainda não ...
Os dentes enormes estalaram em Ascanio. Ele se abaixou, escapando por
alguns centímetros.
Eu deixo a flecha ir. Ela cortou o ar, impulsionada tanto pela corda
quanto pela minha vontade, e atingiu direto na área desprotegida de sua
cabeça. Sim! Acertei em cheio!
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A flecha tremeu e explodiu. Sangue saiu das narinas do beemote . Ela
balançou a cabeça ... e atacou Ascanio. Ele saltou e saiu, bateu no vidro e
pulou atrás dela, cortando a perna do gigante com as garras.
Droga. Isso nem sequer a perturbou.
Ascanio, minhas flechas e nem facões não estavam causando danos
suficientes. Poderíamos cortar ela o dia todo, e não adiantaria grande coisa.
O gigante perseguiu Ascanio. O menino pulava para frente e para trás,
correndo como um coelho louco. Ele não poderia manter isso para sempre. Se
ao menos tivéssemos algo, alguma arma, alguma coisa ...
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O monstro balançou o rabo, bem em cima de uma pesada britadeira que
estava abandonada no vidro. Ainda estava presa ao tanque pela mangueira
que bombeava água para dentro dela. A mangueira era muito curta para
alcançar a fera.
Eu me virei para Felipe. — Será que funciona sem a mangueira?
Ele levou um segundo para entender a minha pergunta. — Sim! —Eu
levantei a mão dele, espalhando os dedos. — Cinco minutos.
Joguei meu arco e corri para a britadeira. Minhas patas escorregavam no
vidro molhado com sangue da fera. Deslizei, pulei, parei na britadeira e a
ergui do chão. Um bastardo pesado.
Uma perna monstruosa do tamanho de um tronco de árvore apareceu na
minha frente. Eu pulei e escalei a fera em direção a sua cabeça, puxando a
britadeira comigo. A maldita coisa devia pesar cento e cinquenta quilos, e eu
tinha que arrastá-la com uma mão. Meu braço direito parecia que ia ser
arrancado do meu corpo. Continuei escalando, cavando na pele do monstro
com a minha mão esquerda e minhas garras traseiras.
A criatura se moveu, perseguindo Ascanio. Seus músculos se arquearam
embaixo de mim. Agarrei-me a ela como uma pulga e subi um pouco mais.
Passei por cima do ombro e corri em direção à sua cabeça. Ela rugiu
novamente e eu plantei a britadeira bem na base de seu pescoço, o único
ponto desprotegido pela carapaça.
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Liguei o botão ON da britadeira.
Nada.
Abaixo as pessoas gritavam alguma coisa. Tentei ouvir.
— Cante! Cante para começar a funcionar!
Aaaa, não acredito. Comecei a cantar, rezando para que isso funcionasse
mais rápido do que os nossos carros.
Ascanio correu pelo local de trabalho, ganhando tempo. Abaixo, os
monstros menores atacavam a linha de trabalhadores.
Funcione, eu desejei, continuei catando. Funcione sua ferramenta
estúpida.
Funcione.
Anda, vamos.
A britadeira estremeceu em minhas mãos. Enfiei minhas garras do pé nas
costas da fera e mergulhei a britadeira profundamente na carne do beemote. A
ponta cortante da britadeira entrou no músculo da criatura. Sangue quente
encharcou meus pés.
A besta uivou em agonia, me deixando surda com o som de sua tortura. A
britadeira entrou um pouco mais em seu corpo, e me agarrei a ela, afundando.
O gigante balançou como um cachorro molhado. Segurei a britadeira e a
empurrei cada vez mais fundo. Isso me sugou e meus braços afundaram em
carne molhada. Respirei fundo e então meu nariz e meu rosto entraram em
contato com mingau de sangue e tecido vivo. Pressão me aterrou. Eu ouvi um
som rítmico sem graça e percebi que era o coração da fera batendo ao meu
lado.
De repente, senti o peso total da britadeira nos meus braços. Eu cai.
A britadeira bateu no chão, destruída e acabei aterrissando em cima dela,
o cabo impactando infelizmente com a minha caixa torácica.
Eita! Isso me deu uma costela quebrada com certeza.
Acima de mim a besta tropeçou, um buraco vermelho no peito pingando
sangue e carne destruída.
Disparei para longe, corri pela minha vida.
A criatura balançou, bloqueando o sol, e caiu com um baque
ensurdecedor. O chão de vidro da clareira se espatifou do impacto. As
fraturas corriam do vidro quebrado para os icebergs de vidro translúcido. Por
uma fração de segundo nada se mexeu, e então pedaços gigantes de vidro
deslizaram das paredes e caíram, explodindo em estilhaços afiados como
navalhas.
Eu me joguei atrás do tanque de água encantada.
Ao meu redor, o vidro caia com explosões de trovão, como se eu
estivesse agachada no meio de um tiroteio. Fragmentos cortaram minha pele,
picando como um enxame de abelhas. Eu cheirei meu próprio sangue. O chão
tremeu.
Gradualmente, as explosões diminuíram. O silêncio reivindicou a clareira.
Eu me endireitei.
Onde está o garoto?
A tenda estava destruída, esmagada sob um pedaço de vidro âmbar do
tamanho de um SUV. Um homem estava chorando, com a perna cortada. As
pessoas saiam lentamente dos seus esconderijos. Eu examinei os
sobreviventes. Felipe estava abraçando um jovem. Pelo menos seu filho havia
sobrevivido.
Cadê Ascanio.
Por favor, que esteja vivo.
Uma alta gargalhada de hiena ecoou no espaço aberto. Eu virei. Ele
estava em cima da fera. Sangue encharcando seu pêlo. Sua boca de monstro
aberta em um sorriso alegre e psicótico.
Respirei fundo.
Aos poucos observei a situação. A Fera Mãe estava morta. Eu a tinha
matado. O gosto do sangue dela queimava na minha garganta, um buraco
negro profundo perfurava o chão sob os restos do vagão ferroviário. Deveria
ser seu covil subterrâneo. Ela havia criado sua ninhada lá, segura e longe de
todos, até que a equipe de Kyle invadiu sua toca.
Um desperdício tão horrível. Nada disso era necessário. No mínimo uma
pessoa havia morrido, muitas outras ficaram feridas, e essa grande e
magnífica fera e sua ninhada perderam a vida porque Kyle Bell queria ganhar
dinheiro rapidamente. Ele estava ao lado dos restos da tenda agora, braços
cruzados, latindo ordens.
Marchei até Kyle. Ele me viu, abriu a boca e eu deu uma surra nele. Os
golpes o derrubaram no chão. — Isto é culpa sua. Você trouxe essas pessoas
aqui. Você sabia que esse lugar era perigoso. —Eu o puxei para cima e o
girei em direção à fera morta. — Olhe! Pessoas morreram por sua causa.
Você entende isso? Se não fosse por você, eu não teria que matá-la. Ela
estava apenas protegendo seus filhotes.
— Ela tentou nos matar!
Eu dei um murro nele novamente. — Ela tentou te matar porque você
invadiu a casa dela.
Os trabalhadores ficaram em torno de nós, com os rostos sombrios.
Ninguém fez qualquer movimento para ajudar seu chefe.
Eu olhei para eles. — Tudo o que vocês extraírem aqui estará
contaminado. Estar nesse local é um crime. Tomar qualquer coisa desta zona
é um crime. Vocês precisam saber disso.
Kyle ficou abaixado, até que eu agarrei sua camisa e o puxei para cima,
com o rosto a dois centímetros do meu. — Vou perguntar isso apenas uma
vez. O que havia no cofre dos destroços do Blue Heron?
— Que cofre?
— Você responde a ela, —disse Felipe. — Você diz tudo o que ela quiser
saber agora.
— Eu não sei do que diabos essa cadela está falando.
— Se você não me responder, eu vou te matar. —Balancei-o, minhas
garras ensanguentadas manchando sua camisa com o sangue do beemoth. —
O que estava no cofre?
— Eu não sei! —Ele gritou. — Não sei nada sobre qualquer cofre! Juro!
— Você tem algo a ver com os assassinatos nos destroços do Blue
Heron? Me responda!
Suas pupilas dilataram e ele estava pendurado em minhas mãos,
completamente flácido, paralisado pelo medo. Ele não estava mentindo.
Pessoas em estado de completo pânico congelam ou correm. A Mãe Natureza
desliga suas faculdades mentais, então seus filhos favoritos não precisam
sentir sua própria morte. Kyle estava apavorado demais para formular uma
mentira. Ele realmente não tinha ideia do que eu estava falando.
Eu o deixei cair e olhei para sua tripulação. — Ele é todo seu. Vocês
precisam ir embora. Estou denunciando este local para o primeiro policial que
eu encontrar.
Peguei meu arco de volta, coloquei no ombro e fui embora. Ascanio
pulou da fera e se juntou a mim. Sua voz era um grunhido profundo, cortada
por seus dentes. — Issssso, foirrr incrrrrível.
— Isso foi uma tragédia. —As pessoas chegaram aqui primeiro do que
esses animais. Eu sabia disso, mas quando você se transforma em um animal,
sua perspectiva é um pouco diferente.
— Sim. Mas tudo acabou bem.
Ele era só um garoto. O que ele entendia?
— Não dessscobrimoss naadaa?
— Isso não é verdade. Nós descobrimos que Kyle Bell não tem nada a ver
com os assassinatos. Podemos eliminá-lo do nosso grupo de suspeitos. Está
com fome?
— Morrrreendo de fome.
— Ótimo. Vamos encontrar algo para comer.
Capítulo 5
71
A melhor coisa sobre o churrasco do Big Papaw era a sua salmoura . O
Big Papaw guardava seu segredo a sete chaves, mas havia muito pouco que
você poderia esconder das papilas gustativas de um metamorfo. Aquela
72
salmoura tinha cerveja de raiz , colorau, alho, pimenta e sal, e depois que as
costelas de porco ficavam de molho por pelo menos um dia, Papaw as jogava
na grelha com alguns pedaços de madeira de nogueira. Eu podia sentir o
cheiro a um quilômetro de distância, dois se o vento fosse mais forte, e isso
me fazia babar.
O restaurante estava localizado em um antigo posto de gasolina
abandonado, com grandes churrasqueiras na parte de trás, do lado de fora.
Parei o jipe no estacionamento, meus pés de besta eram menores do que as
enormes patas de forma de guerreiro de Ascanio, então tive que dirigir.
Ascanio e eu entramos no restaurante.
Colleen, a filha mais velha de Big Papaw, ocupava os balcões. Ela me
deu um olhar maligno e manteve uma mão debaixo do balcão, que eu resolvi
não levar para o lado pessoal. Quando duas criaturas peludas e ensopadas de
sangue entram no seu lugar, qualquer um fica alarmado.
Cavei minhas calças e tirei duas notas de vinte. — Ei, Colleen.
Precisamos de tantas costelas quanto isso puder comprar.
Colleen levantou as sobrancelhas. — Eu conheço você?
— Sou eu, Andrea. Você pode parar de acariciar a espingarda agora. Nós
não somos uma ameaça a nada, exceto ao seu churrasco.
Colleen piscou. — Andy? Eu não sabia que você era uma metamorfo.
E ninguém mais. — Surpresa, surpresa.
— Somosss inofenssssivoss, —assegurou Ascanio piscando e sorrindo,
mostrando seus dentes enormes.
Colleen estremeceu, catou meu dinheiro do balcão, foi até o fundo do
estabelecimento e voltou trazendo uma chapa de metal com três enormes
costelas empilhadas sobre ela.
Ascanio pegou a chapa.
— Obrigada, —eu disse. — Vamos comer no estacionamento e trazer a
chapa quando terminarmos. Não quero alarmar seus clientes.
— Agradeço.
Nós nos dirigimos para o estacionamento e sentamos na parede baixa de
tijolos ao redor, com a chapa de costelas entre nós. Ascanio olhou para a
carne. Está certo, garoto. Eu era uma alfa e qualquer criança aprendia logo
cedo que no Bando ninguém come até que seu alfa lhe dê permissão.
Rasguei a costela ao meio e dei-lhe um pedaço. Ele pegou e rasgou a
carne, esmagando os ossos. Mordi minhas costelas, meus dentes de hiena
esmagando o osso macio. O gosto doce explodiu na minha boca.
Humm ... Comida. Comida deliciosa. Tão faminta.
Nós comemos duas costelas antes que qualquer um de nós decidisse
desacelerar o suficiente para conversar.
— Poossooo faazerrr uumma perrrguuunta desaaagradáveeel? —
Perguntou Ascanio.
Pensei em lembrá-lo de que ele prometera se comportar, mas depois de
tudo o que passou hoje, ganhou algum direito. — Pergunte.
73
— Como vocccccê se torrrrrnou uma bestial ?
Ele tinha que fazer essa pergunta, não é? Chupei um osso, ganhando
tempo. Dizer ao garoto que eu era muito covarde para falar sobre isso não era
uma opção. — Vamos pegar o Bando de Atlanta. Sete clãs, cada um separado
por tipo de metamorfo. Dentro dos clãs você tem uma estrutura hierárquica.
No topo estão os alfas, depois os betas, depois outras pessoas encarregadas de
coisas diferentes nomeadas pelos alfas. Os próprios alfas compõem o
Concelho, que é liderado pelo Senhor das Feras e pela Consorte. Para o
metamorfo comum, existem todos os tipos de proteções no Bando. Tem um
problema com alguém ou alguém está abusando de você, você pode levá-lo a
cadeia de comando todo o caminho até Curran e você será tratado de forma
justa. Você pode não gostar da decisão, mas será justa.
Ascanio assentiu.
— Jovens como você não sabem disso, mas esse tipo de estrutura é bem
recente. Curran só está no poder há cerca de quinze anos. Antes disso, cada
clã estava por conta própria, e alguns, como o Clã Lobo ou o Clã Rato, eram
divididos em pequenos bandos individuais. Cada bando refletia os valores de
seu alfa. Se o alfa era um idiota abusivo, você não poderia fazer muito para se
proteger.
Eu dei a ele outro pedaço de costela. — Minha mãe era uma metamorfa
de primeira geração. Ela cresceu em uma pequena fazenda no sul de
Oklahoma com sua mãe e seu pai. Um dia, um loup bouda entrou em sua
fazenda. Ele matou os cavalos, matou meu avô e atacou minha mãe e minha
avó. Minha mãe tinha quatorze anos e nunca tinha visto uma hiena antes,
muito menos um metamorfo hiena. Minha avó matou o loup, mas depois ela
mesma foi a loup. Minha mãe se escondeu no abrigo de tempestade no
subsolo. Quando os xerifes chegaram à fazenda, minha avó cavara um buraco
de quase dois metros de profundidade, tentando tirar minha mãe para matá-la.
Eles colocaram balas de prata em seu cérebro muito rápido.
— Então minha mãe tinha quatorze anos, sozinha, e não sabia nada sobre
ser uma metamorfa. Os xerifes fizeram algumas chamadas e descobriram que
havia um pequeno bando de bouda no leste do Texas. O alfa era do sexo
feminino e ela foi muito legal no telefone. Ela até se ofereceu para encontrá-
los no meio do caminho e tirar a pobre menina das mãos deles. Então eles
foram embora e entregaram minha mãe e os vinte mil dólares que sobraram
do seguro de vida de meus avós para Clarissa. Ignoraram toda a burocracia
dos Serviços Sociais para Crianças órfãs e entregaram sua guarda ao bando
de Clarissa. Eles pensaram que seria melhor para todos dessa forma.
Eu deixei meus ossos na chapa. — Clarissa era uma cadela sádica. Ela
não era loup, mas estava muito perto de ficar. Ela amava torturar. Era a
melhor nisso. Sua própria vida foi miserável também. Ela e suas duas filhas,
Crystal e Candy, comandavam o bando de duas dúzias de boudas. Minha mãe
era pequena como eu. No primeiro dia em que ela chegou, Crystal bateu nela
e depois urinou em seu rosto. Depois disso tudo só piorou.
Ascanio olhou para mim, as costelas esquecidas em suas mãos.
— O melhor foi descobrir é que meu pai era um animal de estimação
exótico. A matilha ouviu rumores de um traficante de drogas que possuía
uma quantidade grande de predadores e estavam sendo exibidos. Por fim, a
polícia conseguiu prender o traficante e, três dias depois, meu pai saiu do
mato. O Lyc-V rouba pedaços de seu DNA hospedeiro e na maioria das vezes
a transfere o DNA de animal para humano. Para que meu pai existisse, o
vírus tinha que ter infectado um humano, roubado o seu DNA e depois
transferindo para meu pai que era um animal. Isso quase nunca acontece
porque as pessoas não correm por aí mordendo animais.
Quando um metamorfo, que se encontra na forma de seu animal, por
acaso encontra um animal selvagem do seu tipo, a maioria desses animais
selvagens preferem ficar longe. Um lobo de cinquenta quilos olha para um
metamorfo lobo de mais de cem quilos e rapidamente decidi que é melhor
correr para as montanhas.
— Ninguém sabe como meu pai conseguiu se infectar. Ele não tinha
capacidade cerebral suficiente para explicar o que aconteceu com ele.
Clarissa achou que meu pai era a coisa mais engraçada que conheceu. Elas
colocavam uma coleira com pontas de ferro nele e o exibia por aí enquanto
ele estava em sua forma humana. Ele não conseguia falar, exceto por um
punhado de palavras como ‘não’ e ‘faminto’. Era mentalmente deficiente.
Clarissa achou muito engraçado o fato dele ter violado minha mãe. Ele não
sabia o que estava fazendo. Só sabia que uma fêmea foi oferecida a ele, então
ele se acasalou. Minha mãe mal tinha dezesseis anos. Eu nasci nove meses
depois e elas começaram a me bater quando eu ainda era um bebê. Para
minha mãe, sua principal torturadora era Crystal. Para mim, foi Candy, a filha
mais nova de Clarissa.
— Suua mãaee nãooo teeentooou prrroteeegê-la?
— Tentou, mas elas se uniam e a atacava. Ela costumava a atrair atenção
quando elas vinham para mim, dessa forma minha mãe apanhava no meu
lugar. Elas diziam a minha mãe que se ela fosse embora, os humanos nos
matariam. Ela não tinha dinheiro e nem um lugar para onde ir. No meu
décimo primeiro aniversário, Candy e suas lacaias colocaram fogo em mim.
Minha mãe percebeu que, mais cedo ou mais tarde, elas me matariam. Assim
que me curei o suficiente para me mexer, minha mãe me agarrou e fugiu. Nós
andamos por todo o país fugindo. Elas nunca nos encontraram.
Uma lembrança brilhou diante de mim, minha mãe e eu nos
aconchegando no banheiro em algum quarto de hotel, envolto em um
cobertor, nós duas tremendo de medo porque algum ruído estranho nos
lembrou a voz de Clarissa.
— Eeuu nãooo prretendia faazerr voocccê sse lembrarrr diiisso tuuudo.
— Eu sei. Termine sua comida.
Ele olhou para as costelas. — Nnnãaao eeesstooouuu maaaisss ccccom
foomeee.
— Está tudo bem, —eu disse a ele. — Não desperdice sua comida.
Ele mordeu a costela. — Vvvocêee jjáaa vvvoooltooou láaa?
Eu sorri para ele. — O que você acha?
Ele piscou.
— Aconteceu uma coisa muito interessante com esse bando, —eu disse.
— Alguns anos atrás, alguém foi até ele e o limpou da face da Terra.
Desconfiou que deve ter sido algum bom atirador, porque a maioria delas
foram baleadas a distância. Tiros muito certeiros, com balas de prata. —
Inclinei-me e toquei um ponto na base de seu crânio cerca de um centímetro
abaixo do lóbulo da orelha. — Bulbo. Também conhecido como medula
74
oblonga . É uma área do cérebro que controla funções involuntárias:
respiração, frequência cardíaca, digestão. É o único lugar no corpo do
metamorfo que garante a morte instantânea quando atingido por uma bala de
prata. Alvo muito pequeno. —Eu segurei meus dedos a pouco mais de dois
centímetros de distância. — Minúsculo. É preciso muita prática.
Os olhos de Ascanio estavam enormes em seu rosto de bouda.
Nem todo mundo teve uma morte rápida. Algumas foram mais pessoais.
Nem todos morreram também. Haviam ainda lá quatro crianças pequenas do
sexo masculino, duas meninas e um menino adolescentes que estavam
acorrentados. A próxima geração, novas vítimas do terno amor e cuidado de
Clarissa e de suas filhas.
— O qqquee acooonttteceeeu ccomm ssseuu ppai?
— Ele morreu cerca de dois anos depois que fugimos. Ele era uma hiena
e elas só vivem cerca de doze anos na natureza. Ele provavelmente viveu o
dobro disso. Se você acabou de comer, precisamos ir embora.
Ele pulou da parede.
Limpamos o rosto com a toalha guardada no jipe, devolvemos a chapa ao
restaurante e saímos.
— Paraa onde vamosss agoraa? —Perguntou Ascanio.
— Garcia Construções. —Eu duvidava muito que poderíamos até mesmo
entrar no escritório do Anapa em nossas formas atuais.
Garcia Construções tinha um endereço no lado leste da cidade, no
emaranhado de ruas recém-renomeadas, e levamos uma boa hora e meia para
encontrá-lo. O prédio ficava muito atrás de uma enorme cerca de arame, mas
o portão estava bem aberto. Estacionamos na rua e caminhamos para a
direita. O cascalho rangia sob minhas patas. Eu realmente odiava cascalho.
Era afiado, ficava preso entre os dedos dos pés e não fornecia exatamente
uma superfície estável.
Sujeira e lixo aleatórios cobriam o terreno de cascalho antes da estrutura.
O prédio em si não era nada especial: construído pós-mudança, com a magia
em mente. Apenas uma caixa de tijolos, com janelas empoeiradas e uma
porta gradeada, uma casa padrão para um mundo onde monstros surgiam do
nada e tentavam invadir sua casa para comer você. Outro cerca de arame à
direita do prédio e também aberto, levava ao terreno dos fundos. O lugar
cheirava abandonado: esquilos, o cheiro de urina de um gato à espreita,
excremento de cachorro se decompondo ao sol, ratos do mato. Nenhum odor
humano. Estranho.
Corri meus dedos ao longo da tábua de madeira pregada na porta dupla.
Poeira acumulada.
— Essstão fechadosss, —observou Ascanio.
— Parece que sim. Ou o prédio Blue Heron era seu grande retorno aos
negócios e eles não recontrataram ninguém até que conseguissem um novo
contrato, ou ...
— Ouuu?
— Ou alguém contratou-os especificamente para explorar o Blue Heron
e, quando o negócio não deu certo, o cliente os abandonou. Vamos lá, vamos
cavar o lixo deles.
— Oh garoto!
Espertinho.
A lixeira perto da cerca não nos deu nenhuma informação nova. Não
estava exatamente vazio também. No momento em que levantamos a tampa,
uma mamãe gambá muito chateada apontou sua bunda para nós e largamos a
tampa imediatamente.
Estúpido mês de maio, todo mundo estava tendo bebês.
Fui verificar a caixa de correio, enquanto Ascanio explorava os fundos. A
caixa de metal estava vazia. Nenhuma correspondência. Ummm.
— Eeeuu encontrei allllguma coiiiisa! —Ascanio gritou.
Caminhei para os fundos. O espaço estreito entre o prédio e a cerca abriu-
se em um enorme terreno, cheio de lixo aleatório de metal. Criaturas
minúsculas, confusas e rápidas, com longas caudas de chinchila, deslizavam
sobre o lixo. O cascalho estava desigual. Parecia que algo tinha sido arrastado
por ele.
Ascanio me cumprimentou pelas costas, segurando um pneu furado, com
um pedaço de metal cortante encaixado nele. Ele enfiou o pneu debaixo do
meu nariz. O aroma de lubrificante automotivo subiu. Fresco. O lubrificante
de carro mudava seu aroma com o passar do tempo ao ar livre. Este tinha um
cheiro recente.
Alguém tinha dirigido para cá, provavelmente, durante a última semana,
não mais do que dez dias atrás, com certeza. Levantei o pneu. Não foi apenas
um furo, deve ter explodido. O veículo ao qual esse pneu pertencia não foi
muito longe. Eu olhei de volta para as marcas de arrasto. Alguém foi
rebocado. Essa era a explicação mais provável.
A poeira acumulada na tábua que bloqueava a porta tinha meses que
estava ali. Magia quebrava a maioria dos telefones celulares, se você tinha
um, é porque provavelmente você estava no exército. Então, como essa
pessoa conseguiu sair dessa situação com o seu pneu furado? Como ele
chamou um reboque?
Eu corri para a rua, com Ascanio nos meus calcanhares. Duzentos metros
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adiante, uma placa alta anunciava o Downs Motor Care . Arrá!
Eu apontei para o sinal. — Isso seria uma pista.
Ascanio, ao meu lado, deu uma gargalhada que parecia ter saído de um
pesadelo.
Nós caminhamos para Downs Motor Care, que consistia em um
estacionamento repleto de peças de carro e cheio de carcaças de carros
velhos, vários modelos de ambos motores, mecânicos e mágicos. Uma grande
garagem de metal estava na parte de trás. Duas das quatro portas da garagem
estavam abertas. Na primeira porta, um homem debruçado sob o capô de um
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caminhão Dodge .
— Tarde! —Eu cumprimentei.
O homem se virou, nos viu e bateu a cabeça no capô do Dodge. Ele era
jovem, em boa forma, com um rosto que parecia que alguma coisa o
mastigou do lado esquerdo e o cuspiu.
O mecânico segurou uma grande chave de uma mesa próxima. — O que
vocês querem?
Eu segurei vinte dólares. Seis meses atrás eu mostraria minha
identificação da Ordem. Ele ficaria instantaneamente à vontade e eu teria
conseguido minhas informações sem problemas. Mas nos últimos dois meses
de trabalho com Kate. Aprendi que no setor privado pagava-se pelas
respostas às suas perguntas. Isso me irritava, mas eu precisava encontrar o
assassino.
— Procurando por uma informação, senhor, —eu disse.
Ascanio mostrou-lhe o pneu.
O mecânico nos estudou por um longo momento. — Coloque o dinheiro
no chão. Prenda-o com uma pedra e não chegue mais perto.
Eu provavelmente deveria repensar essa coisa de andar por aí em forma
de animal, especialmente se eu continuasse a precisar me sujar de sangue.
Todas as minhas testemunhas pareciam perturbadas com isso.
Coloquei os vinte sob a pedra. — Você rebocou alguém da Garcia
Construction na última semana ou um pouco mais?
O mecânico encostou a chave no peito dele. — Sim.
— Quem era?
— Uma mulher.
— Ela era alguém conhecido dos Garcia?
Ele balançou sua cabeça. — Nunca a vi antes.
— Como ela era?
Ele franziu a testa. — Cerca de quarenta anos, bem vestida, bons sapatos.
Elegante. Parecia uma empresária para mim.
— Ela mencionou o nome dela ou o que ela estava fazendo lá?
— Não. Troquei o pneu, ela me pagou e foi isso.
— Como ela pagou?
— Me deu um cheque.
Eu pisquei para ele algumas vezes, antes de me lembrar de que meus
cílios tremeluzentes não caiam bem na minha forma atual. — Você pegou um
cheque de uma mulher que você não conhecia?
— Era um cheque do negócio dela. Eu liguei para o banco, eles disseram
que tinha fundo.
— Que tipo de negócio?
— Não me lembro, —disse ele. — Loja de alguma coisa. Alguma coisa
com arte.
Interessante. — Alguma chance de você encontrar esse cheque?
— Eu tenho trabalho a fazer, —disse ele. — Estou ocupado.
Mostrei-lhe um cartão, abaixei-me e coloquei debaixo da pedra. — Se
acontecer de encontrar o cheque, há outros cinquenta dólares para você. O
endereço e o número de telefone estão no cartão.
— Vou ver, —disse ele. — Como eu disse, estou ocupado.
— Obrigada pelo seu tempo.
Eu saí.
— Agggooora o que fareeemoss? —Perguntou Ascanio.
— Agora vamos para o escritório e tomaremos um banho.
Capítulo 6
Acordei no armário Novamente.
Chutei meu cobertor em desgosto. Sonhei que estava sendo espancada. A
lembrança do sonho flutuou na minha frente, ainda viva. Era meu décimo
primeiro aniversário, e as boudas mais velhas haviam me perseguido em uma
antiga loja de equipamentos agrícolas. Eu me escondi em um tambor de
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metal, o tipo usado para alimentar os porcos . Elas me acharam, despejaram
querosene no tambor e me incendiaram.
Eu me lembrava do cheiro do meu cabelo queimando.
Puxei meus joelhos para o meu peito. Meu sonho não era apenas um
pesadelo, era uma memória real. Passei anos tentando esquecê-lo, mas o
estresse e toda a conversa com Ascanio deve ter feito isso ressurgir em meu
subconsciente. Eu me aproximei e toquei a parede do armário para me
lembrar que o sonho tinha acabado. A pintura polida parecia fria em meus
dedos. Desde que ando fazendo frequentemente visitas ao meu armário,
talvez eu devesse me mudar para cá de vez.
Instalar um banheiro, uma pia, fazer meu próprio covil ... não.
O dia estava começando do lado de fora. Era hora de continuar com a
vida. Eu precisava me vestir e visitar o escritório do Anapa. Na minha forma
humana. Pelo menos a magia estava de folga. Se eu ficasse irritada,
conseguiria me manter na pele humana, pelo menos.
Saí do armário. Do lado de fora da minha janela, passando pelas grades,
espessas nuvens cinzentas entupiam o céu, prometendo chuva.
Ao fundo do céu cinzento, montanhas de entulhos que um dia foram altos
edifícios agora não passavam de seus esqueletos escuros e retorcidos,
enfeitados com plantas verdes teimosamente tentando conquistar a cidade em
ruínas. À margem do cemitério do distrito comercial, brotavam novas
construções, construções robustas de madeira e pedra, não mais do que quatro
andares e construídas por pedreiros experientes. Mãos humanas, sem
máquinas.
Ao longe, as sirenes da polícia soavam. Apenas mais uma manhã
divertida na Atlanta pós-mudança.
Fiquei na frente do espelho no banheiro. A mulher que olhava para mim
parecia mais aguçada do que ela tinha sido ontem. Mais significante. Mais
forte. Muito ameaçadora para a maioria das coisas no meu guarda-roupa.
Normalmente eu usava jeans, calça cáqui, camisas brancas. Traje profissional
leve, com o objetivo de inspirar confiança e comunicar segurança aos
possíveis solicitantes para a assistência da Ordem. O lema era confiança, e
não ameaça.
Estava cansada de não ser ameaçadora. Tinha que haver algo no meu
armário que se encaixasse a nova eu.
Capítulo 7
O relatório do bom médico confirmou o que eu já sabia: os quatro
metamorfos, incluindo a esposa de Nick, haviam morrido de veneno de
cobra. Eu havia notado quatro tamanhos diferentes de mordida nos corpos e
Doolittle tinha encontrado mais um, o que significava cinco conjuntos de
presas e provavelmente cinco atacantes, a menos que nosso assassino fosse
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uma hidra . Ou uma górgona . Não que alguém já tenha visto uma
górgona, mas você nunca sabia que atrocidades divertidas a magia cometeria
em seguida.
As cobras eram uma espécie de víboras e, com base na opinião relatada
de Doolittle, a maior mordida pertencia a algo com uma cabeça do tamanho
de um coco e uma pequena dose de seu veneno era letal para os seres
humanos e dose maiores poderiam matar metamorfos. Além do relatório
oficial, o envelope continha um pequeno pedaço de papel que dizia: ‘Se você
encontrar uma, me ligue imediatamente. Não tente enfrentar a cobra’.
Eu não a enfrentaria. Eu atiraria nela. Repetidamente.
Jim verificou as impressões digitais que tirei da porta do cofre pelo banco
de dados. Das oito digitais, sete pertenciam à equipe de Raphael. A oitava era
um mistério. Não constava em nenhum dos bancos de dados.
O relatório de antecedentes não teve resultado muito melhor. Nada
suspeito.
Eu peneirei os arquivos. Os funcionários de Raphael era um grupo muito
unido, todo do Clã Bouda e seus parentes.
Homens e mulheres de família, estevam sempre juntos. Visitavam os
mesmos lugares, iam para os mesmos churrascos e tomavam conta dos filhos
uns dos outros. Raphael era muito seletivo em seus hábitos de contratação e
ele não havia contratado mais ninguém por onze meses, muito antes de o
Blue Heron ficar à venda.
Das quatorze pessoas atualmente no quadro de funcionários, seis estavam
acasaladas, com marido e mulher trabalhando para as Extrações Medrano,
outras três estavam acasaladas com pessoas que trabalhavam em outro lugar,
dois eram filhos de outros funcionários, e os três metamorfos restantes já
trabalhavam com Rafael durante anos. Eles levavam uma vida tranquila,
trabalhavam, voltavam para casa, passavam tempo com os filhos.
A checagem de antecedentes dos trabalhadores que Jim fez estava
impecável. Esse tipo de ambiente familiar não fornece exatamente um terreno
fértil para transgressões secretas. Ninguém era um jogador viciado. Ninguém
pediu dinheiro emprestado de fontes perigosas. Ninguém parecia ter espaço
em suas vidas para chantagem, assassinato e casos tórridos. E se um caso
extraconjugal tivesse ocorrido, a maior preocupação deles teria sido com os
seus companheiros. Os boudas eram selvagens até se acasalarem, mas assim
que o acasalamento ocorria, eles entravam de cabeça no território possessivo
e ferozmente ciumento. E seus escândalos eram notoriamente públicos. Nós
amávamos um drama.
Eu liguei para uma amiga minha que trabalhava na MSDU local. Durante
o tempo que passei com a Ordem, Ted havia me enviado para trabalhar junto
às forças armadas algumas vezes, e eu ganhei bastante respeito para merecer
um favor ou dois. Lena, meu contato na MSDU, fez uma rápida checagem
nos antecedentes criminais do Anapa para mim. Ele não tinha nenhum. Ou
ele e sua corporação eram repugnantemente cumpridores da lei ou ele sabia
como cobrir seus rastros.
Finalmente, olhei para cima e acenei para Ascanio. — Pegue a sua arma.
Ele pegou sua faca. — Onde estamos indo?
— Para a biblioteca.
Seu entusiasmo visivelmente diminuiu e ele emitiu um suspiro trágico. —
Mas biblioteca e diversão são dois conceitos que normalmente não andam
juntos.
— Essa é a natureza do negócio. Cinco por cento do tempo você está
matando monstros. O resto do tempo, estamos escavando a terra por um
pequeno pedaço do pêlo pubiano do agressor.
— Ecaaa.
Eu estava com dois problemas ao mesmo tempo. Um deles, ele era um
garoto de quinze anos, equipado com o corpo de um monstro e inundado de
hormônios. Ele estava desesperado por uma oportunidade de deixar escapar
alguma energia. Dois, ele era um bouda. Nós éramos uma espécie facilmente
entediada. Na natureza, as hienas confiavam mais na sua visão do que no
cheiro de sua caça. Nós não fazíamos perseguição como os lobos, não
viajamos em fila indiana, e nós normalmente não rastreamos.
Seguir o rastro de migalhas de pão era contra o instinto natural de
Ascanio. Mas como eu já havia falado para ele, a sua parte humana deveria
sempre prevalecer. Ele tinha que está no comando e não a besta.
— Você sempre pode ficar aqui e praticar exercícios com a vassoura.
— Não, obrigado, —disse ele e produziu um sorriso deslumbrante. O
garoto era realmente uma coisa. — Posso dirigir?
— Sim, você pode. —Eu tive que dar-lhe algo como um prêmio de
consolação.
Nós trancamos o escritório e seguimos nosso caminho.
— Então, por que estamos indo para a biblioteca? —Perguntou Ascanio.
Eu me inclinei contra o meu assento. — Não vá pela Magnolia. Pegue o
caminho pela Redberry em vez disso.
— Por quê?
— A Redberry tem uma espécie de vinhas amarelas estranhas crescendo
nos prédios. Eu quero dar uma olhada. Para responder à sua pergunta,
estamos indo para a biblioteca porque é o único lugar acessível ao público
onde podemos acessar o projeto da Biblioteca de Alexandria.
— O que é isso?
— Anos atrás, antes de você nascer, as pessoas tinham acesso a uma rede
de dados chamada Internet. Se você precisasse de um endereço, por exemplo,
você poderia digitá-lo em seu computador e ele apareceria, com instruções de
como chegar lá. Se você precisasse procurar algo como o ponto de ebulição
do ácido clorídrico, você poderia fazer isso. Conhecimento instantâneo ao seu
alcance.
— Uau.
— Sim. Bem, quando ficou óbvio que a magia destruiria as redes de
computadores, as pessoas tentaram preservar partes da Internet. Eles fizeram
cópias de seus servidores e enviaram os dados para um banco de dados
central da Biblioteca do Congresso. O projeto ficou conhecido como a
Biblioteca de Alexandria, porque nos tempos antigos dizia-se que a biblioteca
de Alexandria continha todo o conhecimento humano, antes que algum idiota
a queimasse até o chão. Como a tecnologia está em alta agora, vamos
explorar esse banco de dados.
— O que estamos pesquisando?
— Informações. Vamos ver o que achamos. Primeiro, Raphael compra
um prédio altamente disputado, deixando todos os outros interessados na
poeira. Então a equipe de Raphael encontra um cofre secreto que não estava
em nenhum dos documentos que eles tinham. Alguém foi ao local de
Raphael, atacou os metamorfos que o guardavam e abriu o cofre. Em seguida,
eles saíram do local, deixando a maior parte do conteúdo do cofre intocada. O
que isso lhe diz?
Ascanio franziu a testa. — Não foi aleatório.
— Certo. Há lugares mais fáceis para roubar e a segurança de um túnel
vigiado não é como um banco. Ninguém imagina que algo valioso pode estar
escondido ali. Também um ladrão aleatório teria esvaziado o cofre.
Ascanio olhou para mim. — Então o ladrão tinha que saber sobre o cofre
e o que havia nele.
Havia esperança para esse garoto ainda. — Exatamente. Temos dois
caminhos de investigação: um, descobrir quem sabia sobre o cofre e poderia
acessá-lo, e dois?
— Descobrir o que eles estavam procurando, —disse Ascanio.
Eu sorri para ele. — Bom. Sabemos que o edifício era de propriedade de
Jamar Groves. Se o Blue Heron tivesse um cofre secreto, Jamar tinha que
saber sobre isso, porque ele era o único que tinha colocado lá. Sabemos que
Jamar Groves colecionava arte e antiguidades. É lógico supor que o cofre
secreto continha o estoque pessoal de Jamar. Também temos a lista do
conteúdo do cofre, que eu fiz no local. Vamos pesquisar nos arquivos por
qualquer menção a Jamar e sua coleção e compará-los com a lista de itens no
cofre.
Ascanio colocou seu rosto bonito em uma expressão martirizada.
— A Biblioteca Central fica na beira do Parque Centenário, —eu disse a
ele. Ao longo dos anos, o parque explodiu em tamanho, engolindo outros
quarteirões da cidade, e a biblioteca foi uma das vítimas.
— E? —Perguntou Ascanio.
— O Parque Centenário é de propriedade dos feiticeiros. Eles fornecem
segurança para a biblioteca, porque é um depósito de conhecimento.
Ascanio se acendeu. — Garotas bruxas?
— A maioria deles, sim. Se trabalhar sério, eu vou deixar você paquerar.
O adolescente bouda sorriu.
— Não fique todo cheio de esperanças, —eu disse a ele. — As bruxas são
muito sérias.
Desde a Mudança, o momento em que nosso lento apocalipse começou,
as plantas decidiram que era hora de atacar todas as coisas humanas. A magia
alimentou o crescimento das árvores, e o Parque Centenário foi um exemplo
brilhante disso. Na última década desde a mudança, o parque triplicou de
tamanho, invadindo os quarteirões vizinhos. Uma vez que os clãs de bruxas
de Atlanta o haviam comprado da cidade como ponto de encontro, o parque
parou de se expandir para os lados, direcionando todo o seu crescimento para
o alto. Enquanto nos dirigíamos, uma densa parede de verde nos
cumprimentou, os troncos das árvores amarrados com trepadeiras espinhosas,
como se uma floresta de trezentos anos de idade houvesse brotado no meio da
cidade.
Capítulo 8
Raphael chegou na hora. Ele sempre chegava na hora. Às sete, uma
pequena pedra bateu na janela do meu quarto e rebateu nas barras de proteção
com um tinido alto. Eu olhei através do vidro. Raphael estava abaixo,
vestindo um smoking.
Como se fôssemos adolescentes indo ao baile do final do ano.
95
Peguei minha enorme clutch da cama e me examinei pela última vez no
espelho. O vestido era malvado, impressionante e foda. Meu cabelo loiro
flutuava ao redor da minha cabeça em uma nuvem lindamente desordenada
que levou meia hora para arrumar e convencê-lo a ficar no lugar. Eu tinha
feito minhas sobrancelhas em uma forma perfeita, apliquei uma linha estreita
de delineador em volta dos meus olhos para fazê-los sobressair, passei uma
leve camada de cor nas minhas pálpebras e terminei com uma camada dupla
de rímel. Meus lábios eram vermelhos, cintilantes e intensos, combinando
com o rubi do olho do dragão.
Coloquei uma pulseira no meu pulso: pedras vermelhas misturadas com
safiras brancas. Era a única joia valiosa que eu possuía. Minha mãe comprou
para mim quando me formei na Academia da Ordem. Eu sempre achei que
me trouxe sorte.
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Eu chequei minha clutch para ver se o contorno do meu Ruger SP101
aparecia através do couro preto. Não aparecia, certo.
Tudo certo. Com a magia, nem sequer dispararia, mas me confortava tê-la
comigo. Eu não levaria uma faca. Poderia contar com Raphael levando
várias.
Por alguma razão, quando um metamorfo normal entrava em briga, a
natureza acionava um interruptor na cabeça que mandava criar garras e presas
e rasgasse as coisas em vez de atirar nelas à distância ou cortá-las com facas
como pessoas inteligentes fariam. Eu sempre dei crédito a Raphael que ele
era a exceção a essa regra.
Ele estava esperando. Não há mais o que enrolar aqui. Eu estava tão sexy
quanto conseguiria.
Dei de ombros e saí do apartamento com meus saltos pretos de dez
centímetros. Um passo, outro passo, desci as escadas e saí pela porta.
A brisa da noite girou em torno de mim, jogando aromas em meu rosto.
Raphael esperava por mim na calçada. Meu cérebro levou um segundo para
processar o que eu estava vendo e ficou paralisado. Minha coordenação
motora foi embora.
Eu parei.
Raphael usava um smoking preto. A luz do começo da noite brincava em
seu rosto, pintando o lado esquerdo dourado, enquanto a direita permanecia
na sombra. Ele parecia perfeitamente equilibrado entre a escuridão e a luz.
O terno elegante mapeava a força de seus ombros largos e a elasticidade
flexível de sua cintura estreita, trazendo à tona a beleza natural de seu corpo e
seu lado perigoso. Seus olhos azuis pareciam duros e focados que te avisava:
não cruze a linha, seria extremamente imprudente.
Ele não usava o smoking como um cavalheiro acostumado a usar um
terno, nem o usava como um cavaleiro usa sua armadura. Raphael usava da
mesma forma que um assassino usa couros e capas. Ele era um punhal
vestido em uma bainha preta. Eu queria agarrá-lo, mesmo sabendo que ele
cortaria minha alma em pedaços.
Meu coração martelou no peito. Isso era uma ideia muito ruim. Mas era
minha única chance com Anapa e seu escritório, e eu tinha uma dívida para
pagar com Nick e com as famílias dos quatro metamorfos mortos.
Raphael estava olhando para mim e eu apenas fiquei lá, incapaz de me
mover. Eu tinha que fazer alguma coisa. Diga algo.
Triste, triste Andrea triste, embalando seu coração partido e miserável.
Patética.
Eu me recompus, entrando nos eixos de novo. O mundo parou de girar,
minha mente entrou em ação e finalmente registrei o significado da expressão
de Raphael. Ele parecia em branco. Completamente em branco, como se
estivesse olhando para algo que havia destruído seu cérebro.
— Raphael?
Ele abriu a boca. Nada saiu.
— Você está bem?
Os lábios de Raphael se moveram. Ele xingou.
Ah! Peguei você! Morra, querido. Onde está sua noiva de dois metros de
altura agora?
— Há algo errado com o meu vestido? —Passei minha mão pelo meu
corpo.
Raphael finalmente conseguiu formular uma palavra. — Não. Apenas
imaginando onde você escondeu sua arma.
Mostrei-lhe minha clutch gigante.
— Ah, —ele disse. — Não vi isso.
Claro que ele não viu. Estava muito ocupado olhando para mim. Era uma
pequena vingança boba, mas tinha um gosto tão doce.
Raphael me levou ao seu Jeep do Bando que cuspia e rugia, arrotando
magia. Ele abriu a porta para mim. Quando cheguei perto, seu perfume
deslizou pela minha pele, cantando para mim.
Companheeeeiro. Companheiro, companheiro, companheiro.
Droga.
Sentei no meu lugar. Em vez de fechar a porta, ele se inclinou para mim,
um olhar de intensa concentração no rosto, como se estivesse prestes a dizer
ou fazer algo imprudente.
Minha respiração ficou presa na minha garganta. Se ele se abaixasse para
me beijar, eu iria dar um soco na cara dele. Eu não seria capaz de me
controlar.
Raphael se afastou de mim e fechou a porta.
Bom. Foi melhor assim. Isso mesmo.
Raphael entrou no jipe, fechou a porta, abafando o rugido do motor de
água encantada e nós decolamos.
Ele alcançou o compartimento lateral em sua porta, pegou uma pasta e a
deixou cair no meu colo. Eu abri. Uma linha do tempo dos movimentos de
seus trabalhadores na noite do assassinato. — Ótimo. Obrigada.
— Não há de que.
Analisei as linhas do tempo.
Vinte minutos depois, ficou claro que nenhuma das pessoas de Raphael
teve tempo de voltar ao local e assassinar seus amigos e colegas. Raphael era
o único homem sem um álibi sólido. De acordo com sua agenda, ele foi para
casa, aparentemente sem sua noiva. Conhecendo-o, eu esperava que fossem
como coelhos, mas acho que até coelhos tinham um dia de folga de vez em
quando.
Bati no papel. — E quanto a Colin? O arquivo de Jim disse que ele está
com dívidas.
— Ele está com dívidas porque sua casa pegou fogo. Ele pegou um
empréstimo de emergência do Bando. Ele trabalha duro e sabe que, se estiver
em apuros, pode vir até mim.
Eu inclinei minha cabeça para trás, mas não muito forte, não faria nada
para bagunçar meu cabelo contra o encosto da cabeça.
— Nós concordamos em compartilhar informações, —disse Raphael.
— Eu não tenho muito o que compartilhar. Passei o dia todo na biblioteca
tentando localizar a coleção de arte de Jamar. Encontrei oito itens que não
estavam no cofre, algumas com fotos. Nada se destacou. Tem um conjunto de
impressões que não pertencem a ninguém da sua folha de pagamento, e que
não está em nenhum dos bancos de dados que Jim pesquisou. Analisei uma
tonelada de evidência de antecedentes sem quaisquer pistas conclusivas.
— Você vai resolver isso, —disse ele. — Se Jim não tivesse lhe atribuído
esse caso, eu teria chamado por você.
— Obrigada pelo voto de confiança. Então ninguém pode confirmar que
você foi para casa?
Raphael deu de ombros. — Não. Se eu soubesse que teria que fornecer
um álibi, teria feito questão de não passar a noite sozinho.
— Estou surpresa que você passou a noite sozinho.
Ele não pegou a isca. — Já faz quarenta e oito horas e não temos
nenhuma pista.
Seu tom me disse que ele não estava criticando. Seu povo estava morto.
Raphael estava zangado, frustrado e sofrendo. — Eu não diria isso. Você
sabe como são essas coisas, lento e firme, vence a corrida.
— Eu sei. —Ele olhou para a estrada. — Eu tive que assinar os papéis
dos seguros por morte hoje.
Isso deve ter o abalado. — Nick veio me ver. Ele está passando por um
momento difícil.
— Ele não é o único, —disse Raphael. — Eu deveria saber sobre o cofre.
Deveria saber que estava lá.
— Não se culpe, —disse a ele. — Eu pesquisei as notícias de imprensa de
Jamar durante todo a tarde e não vi o cofre ser mencionado. Você não perdeu
isso. A informação simplesmente não estava lá para começar.
— Você realmente acha que Anapa tem algo a ver com isso?
— Não sei se ele tem. Ele não tem antecedentes criminais. Não tem
multas de estacionamento. Sua empresa está completamente limpa, embora
eu não tivesse tempo para cavar muito fundo além disso. Tentei que ele me
recebesse, ele sabe que está sendo observado. Sua segurança sabe que eu sou
também.
Raphael olhou para mim.
— Sua porta-voz fez questão de me lembrar que eu não tinha mais a
Ordem do meu lado.
— Ah.
Ah o que? Ah, isso é muito ruim? Ah, eu entendi? Ah, bem feito para
você? — Eles sabem quem eu sou, sabem que sou capaz de fazer. Por que
não gastou dez minutos respondendo minhas perguntas? Então eu ia embora e
todo mundo ficava feliz.
— Você acha que ele está escondendo alguma coisa?
Suspirei. — Eu não sei. Estou coletando informações e encontrei um
obstáculo. Pronta para encenar um arrombamento, esta festa é a minha
melhor chance.
Raphael bufou. — Um arrombamento. Você?
— Eu pensei sobre isso, —eu disse. — Acho que ele tem o teto
fortemente protegido e há muitas câmeras de vigilância. As câmeras são
fáceis, elas deixam um caminho que dá para você se movimentar de várias
maneiras. Entraria facilmente no prédio do seu escritório. Mas, invadir lá não
faz muito sentido já que ele quase não fica no escritório.
Raphael olhou para mim. Eu gostaria que ele parasse de fazer isso. Toda
vez que ele se virava para mim, meu coração tentava sair para fora do meu
peito em piruetas em uma tentativa fútil de se jogar a seus pés. Enquanto isso,
minhas mãos queriam envolver sua garganta e estrangulá-lo. Era bom que
meu cérebro estivesse no comando.
— Quem é você e o que você fez com Andrea?
— Eu sou a versão nova e mais complicada. Ou muito melhor,
dependendo da maneira como se olha para isso.
Ele olhou para frente. — Eu sempre soube que estar fodido era algo que
tínhamos em comum.
— Não, eu sempre fui a fodida. Você é o mimado.
A linha do maxilar de Raphael endureceu. — Trabalho desde os dezesseis
anos, seis dias por semana. Construí minha empresa a partir do nada, com dez
mil dólares de capital inicial emprestado do Bando, assim como todo mundo,
e paguei cinco vezes mais. Eu estou liderando o Clã Bouda inteiro agora.
Ninguém me deu nenhum tratamento especial. Como exatamente eu sou
mimado?
Eu pisquei para ele. — Sério?
— Sim. Por favor me esclareça.
97
— Você se lembra no ano passado que queria tirar as férias nas Keys
por uma semana?
Ele olhou para mim. — Você vai jogar na minha cara nossas férias contra
mim? Você adorou.
Eu adorei. Era só eu, ele e o oceano. — Você se lembra que uma família
bouda queria se juntar ao clã na mesma época? A família De La Torre?
Um metamorfo individual que se juntava ao bando era um assunto
relativamente simples. Ele se apresentava para os alfas de seu clã, e se eles
dissessem sim, os alfas fariam a entrada do metamorfo ao Bando.
Com famílias e pequenos bandos, o processo tornava-se complicado.
Depois de várias verificações de antecedentes e entrevistas individuais, uma
data em especial tinha que ser definida, e alfas ou betas de outros clãs tinham
que estar presentes.
Raphael deu de ombros. — E o que tem os De La Torres?
— A Tia B tinha a data marcada e você tinha que estar lá para apresentá-
los ao resto do Bando com ela.
— Sim.
— E você disse a sua mãe que ela podia fazer o que quisesse, mas você
estava tirando suas férias.
— Eu trabalhei sete dias por dois meses sem parar.
Eu mostrei meus dentes para ele. — Você vai me deixar fazer o meu
ponto ou eu tenho que te morder para impedi-lo de interromper?
— Se você me morder, eu vou morder de volta. E eu tenho dentes
maiores.
Ah, é assim então. — Mas estou muito mais motivada.
Ele rosnou. Eu rosnei logo depois e estalei meus dentes humanos para ele.
Uma pequena luz louca acendeu nos olhos de Raphael, mas eu não consegui
entender o que isso significava. Eu costumava ser capaz de lê-lo melhor.
Costumava saber exatamente o que ele estava pensando, isso que se
registrava em seu rosto, eu não sabia. Ele estava mais fechado agora,
misterioso. Havia uma determinação de aço e uma sugestão de perigo sob a
superfície.
Raphael se tornou imprevisível. Era excitante e excitação não era a
emoção que eu estava procurando.
— O que, não vai dizer mais nada? —Ele perguntou.
— Estou esperando para ver se você vai fazer alguma coisa ou apenas
mostrar seus lindos dentes.
— Não me tente.
Eu dei um suspiro de zombaria. — Oh, eu faria. Mas então eu teria que
levar seu corpo maltratado para sua noiva e eu odeio histeria. Ou você queria
dizer o outro tipo de tentação?
Raphael riu. Foi uma risada selvagem que prometia todos os tipos de
coisas más. Diversão e coisas malvadas.
Algo apareceu na nossa frente.
— Ônibus! —Eu gritei.
Ele olhou para o para-brisa e desviou, evitando por alguns centímetros
um ônibus parado e tombado.
Pequenas agulhas de adrenalina arrepiavam minha pele. Estremeci,
tentando afastá-las. Os cabelos na minha nuca se arrepiaram. Manchas fracas
da minha besta apareceram sob a pele dos meus braços.
— Qual foi o ponto de trazer o episódio das férias? —Raphael perguntou.
— Sua mãe remarcou tudo. Ela trocou um favor com Curran por uma
autorização especial para que a família pudesse ficar por mais uma semana no
território do Bando. Convenceu Valência a remarcar o recital de balé,
quarenta alunos tiveram que mudar seu horário para coincidir com a nova
data. B planejou e embaralhou as coisas. Não importava quantas pessoas
ficariam incomodadas, mas o bebê dela teria as férias dele, por Deus. —Eu ri.
— Encontrei ela brigando com Valência. Quase chegaram ao sangue. Eu me
ofereci para mudar as férias. Ela olhou para mim como se eu tivesse crescido
uma árvore de Natal na minha cabeça. —Imitei a voz da Tia B. — Oh não,
querida. Você sabe o quanto Raphael trabalha muito. Vocês dois vão lá e se
divirtam.
Raphael olhou severamente através do para-brisa, dirigindo pelos buracos
no asfalto com precisão cirúrgica.
Nenhum comentário, né?
— Você cresceu protegido e nem sabe a sorte que tem. Sua mãe te ama
mais do que a própria vida. Ela celebra o fato de que você existe. —
Considerando que ambos os irmãos de Raphael tinham ficado loups na
infância e B teve que matá-los, eu não podia julgá-la. — Você é inteligente,
bonito e respeitado. Você é um lutador perigoso e se tornou rico ...
— Confortável, —disse ele com os dentes cerrados.
— Certo, confortável. As mulheres se jogam em seu caminho. Aposto
que quando você trouxe sua noiva para a Tia B, ela nem piscou um olho,
quando qualquer outra pessoa teria sido expulsa do Clã Bouda.
— Existe algum motivo para você estar acariciando meu ego?
— Não estou acariciando. Estes são fatos simples, querido. Raphael, você
é adorado. Você tem tudo.
— Nem tudo, —disse ele.
— Tudo, —repeti. — Se você não for mimado, não sei quem é. É por isso
que você nunca pode se colocar no meu lugar. Toda essa boa sorte lhe deu
certas proteções. Para você, ‘bouda’ significa pessoas que pensam que você é
um semideus. Para mim, ‘bouda’ significa pessoas que quebraram meus
ossos por diversão.
Ele se virou para mim novamente, seus olhos azuis escuros. — Meu clã
bouda nunca abusou de você. Este Bando ofereceu proteção a você e lhe
convidou para fazer parte dele. Você os traiu.
E voltamos à estaca zero.
— Chegamos. —Raphael assentiu à frente. No final da rua, uma mansão
espaçosa erguia-se contra o céu, toda de pedra branca esculpida e detalhes em
ouro. Bonita.
Um estacionamento fechado esperava por nós, completo com um
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atendente em uma cabine pequena, armado com uma arbalest .
Se estacionássemos nesse estacionamento fechado, estaríamos presos.
— Não no estacionamento, —eu murmurei.
— Sim. Podemos precisar sair rápido. —Raphael virou na rua lateral. Boa
ideia. Se tivéssemos que sair com pressa, seria mais rápido do que sair de um
estacionamento.
Eu apontei para o prédio meio arruinado. — Isso parece bom e escondido.
Ele estacionou atrás da ruína e desligou o motor, matando o barulho
constante que fornecia o pano de fundo para a nossa conversa. Nós nos
sentamos mergulhados no súbito silêncio.
Eu enfrentei ele. — Continuamos voltando a esse problema de novo e de
novo, então vamos resolver de uma vez por todas, porque eu não quero mais
falar sobre isso. Digamos que a Clã Bouda fosse atacado e incendiado, e
então algum cavaleiro da Ordem ligasse pedindo minha ajuda. Sua mãe te
proibisse de sair, porque ela precisa de você lá. Sua casa do clã está em
ruínas, mas eu quero que você venha comigo para ajudar a Ordem. Você iria?
— Isso é exatamente o que você não entende. —O rosto de Raphael
estava decidido. — Se minha mãe colocasse esse tipo de condição em mim,
eu teria dito a ela para se foder. Qualquer pessoa que lhe der um ultimato de
‘escolha-me’ ou ‘salve o seu amigo’ não vale a sua lealdade.
Ele tinha alguma razão. — Você está certo. Mas a minha pergunta
permanece. A Ordem era tudo para mim, Raphael. Era o meu bando, minha
família. Todos os dias eu me levantava e ia trabalhar, me orgulhava do que
conquistei, porque eu era um cavaleiro. Eu ajudava as pessoas. Eu não era
mais uma criatura patética e louca que todos chutavam e socavam sempre que
queriam. Eu não queria ser mais essa criatura. Talvez tenha sido covarde
rejeitar a realidade de eu ser um metamorfo e fingir que eu era humana. Eu
não sei. O que sei é que enquanto eu fosse um cavaleiro, eu não seria uma
vítima. Eu era importante para alguém, você entende isso?
— Sim, —disse ele.
— Você acha que foi fácil para mim? Porque não foi. Às vezes, não
importava o que eu fizesse, eu tinha escolhas ruins para lidar, e eu fiz o meu
melhor que pude. Então me diga, Raphael, você teria se afastado da sua mãe
e do seu clã para ajudar a Ordem?
— Não, —disse ele.
Seu tom me disse que finalmente entendeu. Ele não gostou, mas
entendeu. A Ordem tinha sido minha família. Eles me maltrataram, mas você
não abandona sua família só porque eles fazem algo que você não gosta. Nós
finalmente chegamos a um entendimento. Infelizmente, era tarde demais para
nós dois.
— Então eu considero este assunto encerrado. —Abri a porta do meu lado
e saí para o ar frio. Um momento depois ele se juntou a mim. Nós
caminhamos pela rua em direção à mansão.
— Sinto muito sobre o episódio no seu escritório, —disse Raphael. — Eu
não deveria ter levado Rebecca. Foi mesquinho.
— Águas passadas. —Acenei minha mão para ele e dei-lhe um sorriso
doce. — Mas se você fizer isso de novo, eu vou matar vocês dois.
Ele riu baixinho. Foi uma deliciosa risada sedutora que conhecia tão bem.
— Tenha cuidado, alguém pode confundir você com uma bouda imunda.
— Eu gosto de boudas. Eles são divertidos na cama.
— Eles? —Uma borda afiada repentina penetrou na voz de Raphael.
— Eles. Já que você é oficialmente um homem compromissado, não se
importará se eu testar alguém do clã.
— Como quem?
Nós passeamos pelos portões. O guarda na cabine verificou meu vestido e
ficou olhando. Eu dei a ele um sorriso amigável.
Raphael levantou o convite. O guarda examinou e acenou para nós.
— Aproveitem a festa.
— Nós vamos, —Raphael respondeu em uma voz que sugeriu que o
inferno iria congelar antes que ele pudesse aproveitar qualquer coisa.
Passeamos pela calçada.
— Quem? —Raphael exigiu.
Para um homem a um fio de distância de se acasalar com outra mulher,
ele estava muito interessado em minhas aventuras sexuais.
— Eu ainda não decidi. Sempre quis ter uns três.
Raphael parou.
— Dois caras ou talvez um cara e uma garota. Desde que você é mais
experiente do que eu, o que você acha? Qual deles é mais divertido?
— Por que só dois parceiros? —Raphael disse, enunciando as palavras
muito claramente. — Por que não meia dúzia? Você poderia distribuir
números para manter a ordem. Cada um recebe uma placa bonitinha escrito
nela: — Pode vir, agora.
Ah, o bouda mimado não gostou disso. Nem um pouco. — Não seja bobo.
Isso seria brega. —Parei ao lado do vidro e da porta de ferro forjado,
esperando que ele abrisse.
— Brega?
— Sim.
Raphael abriu a porta. Lá dentro, um salão de azulejos nos esperava,
banhado pelo brilho das lâmpadas elétricas feitas para parecerem com velhas
lanternas a gás. Eu passei e acenei para uma mulher mais velha em pé ao lado
da porta. Ela usava um vestido da cor do vinho tinto e sua maquiagem era
impecável. Dois homens estavam perto dela. Ambos pareciam que
mastigavam rochas e cuspiam cascalho para ganhar a vida.
— Seu convite, —disse a mulher.
Raphael entregou-lhe o convite e soltou um sorriso. Uau. Ascanio não
sabia, mas ele tinha um longo caminho a percorrer.
O rosto da mulher suavizou-se. Ela escovou o convite com os dedos bem
cuidados e sorriu de volta.
— Bem-vindo à festa.
Dezesseis ou sessenta anos, isso não importava. Raphael sorria e a
mulherada suspiravam. E ele ainda se perguntava por que eu achava ele
mimado.
Raphael colocou a mão nas minhas costas, gentilmente me escoltando até
a sala ao lado. Uma sala espaçosa se estendia à nossa frente. Suas paredes
cremes subiam alto, sustentando um teto de seis metros. O piso de granito era
polido em brilho quase espelhado. Janelas enormes de quatro metros de
altura, emolduradas por cortinas brancas delicadas e cortinas douradas mais
grossas, derramavam a luz fraca do entardecer na sala. Molduras corriam ao
longo do teto. À nossa direita, uma escada branca curva conduzia ao andar de
cima. O lugar inteiro parecia um palácio, gracioso e de alguma forma
atemporal.
O ar cheirava a vinho, canela e outro aroma estranho, mas familiar ...
orégano? Não. Manjerona, misturado com a doçura exuberante e fumegante
99
da mirra. — Escolha interessante para pot-pourri .
— Picante. —Raphael se inclinou para mim, aquele sorriso arrojado
ainda em seu rosto. — Com esse perfume forte eu não consigo sentir se esse
cheiro está encobrindo o cheiro de algo desagradável ou não.
Ficamos parados por um longo segundo, nossas narinas se agitando,
tomando respirações rasas e tentando separar as fragrâncias uma das outras.
— Eu sou um fracasso, —disse. — Se houver algum odor oculto sob essa
mistura de ervas e resinas, eu não consigo dizer.
Raphael franziu as sobrancelhas. — Eu também.
À nossa volta, pessoas caminhavam por todos os lugares, homens de
smokings e ternos sob medida, mulheres em vestidos caros e pedras
brilhantes, parecendo servos de algum antigo tirano. A música emanava de
algum lugar acima, suave, exótica e discreta, como uma sugestão de um
perfume intrigante pairando no ar.
— Por que tenho a sensação de que estou em uma corte? —Murmurei.
— E essa corte parece ter seu próprio rei, —disse Raphael.
Os convidados se separaram e eu vi um homem. De estatura média, ele
tinha uma riqueza de cabelos ondulados da cor de âmbar claro. Um terno caro
cinza claro desenhava sua figura magra. Ele virou.
Hããã. Anapa era lindo.
Ele estava em seus trinta e tantos anos, aproximando-se dos quarenta. Seu
rosto estreito, com maçãs do rosto pronunciadas e um queixo forte, era
masculino, mas era uma masculinidade civilizada, refinada, aristocrática e
cuidadosamente preparada. Alguns homens ricos exageravam nos cuidados
com a aparência, faziam as sobrancelhas e raspavam o rosto até parecerem
ligeiramente femininos. Anapa equilibrou muito bem isso. Seu cabelo estava
perfeitamente cortado, mas ligeiramente despenteado. Suas sobrancelhas
ainda mantinham algum desalinho. Seus lábios eram cheios e bem feitos, mas
suas bochechas e queixo sugeriam uma barba rala. Seus grandes olhos azuis,
com cílios curvos, escondiam um intelecto vivo e uma centelha de humor.
Sua pele, bronzeada do sol e escura para um loiro, sua imagem refletia o
litoral, sol brilhante e da água azul. Ele não parecia um nórdico era mais
100
como um mediterrâneo .
Ele nos viu e sorriu, fazendo linhas de riso nos cantos de seus olhos se
destacarem. Era um sorriso caloroso e amigável, como se achasse algo sobre
nós incrivelmente divertido e não pudesse esperar para compartilhar.
— Nós fomos descobertos, —disse Raphael, começando em direção a
Anapa.
Nós passeamos pela multidão em direção ao nosso anfitrião. — Como
vamos representar isso? —Perguntei.
— Eu sou um homem de negócios e você é meu delicioso doce de
101
braço , sem cérebro.
Delicioso doce de braço? — É bom que Rebecca não esteja aqui ou ela
ficaria com ciúmes.
— Ela não saberia o que significa doce de braço, —disse Raphael, seu
rosto neutro.
— Oh, ela não é o tipo ciumenta?
— Não, ela realmente não saberia o que a expressão significava.
Ah!
A mulher de vestido azul à nossa frente deu um passo para o lado e
Anapa se aproximou de nós.
— Senhor Medrano. —Anapa ofereceu sua mão.
Raphael sacudiu. — Feliz Aniversário.
Eu bati meus cílios e fiz o meu melhor para parecer burra como uma
prancha.
— Obrigado, obrigado. —Anapa olhou para mim, ainda sorrindo, uma
apreciação em seus olhos. Não havia nada de sexual em seu olhar. Ele me
examinou mais da maneira como se examinaria um raro cão de boa
aparência. Ou um cavalo. — E você seria sua adorável acompanhante.
Eu escorreguei na minha língua do Texas e ofereci minha mão. — Boa
noite. Prazer em conhecê-lo.
Anapa levou meus dedos aos dele. Levantou minha mão, como se para
beijá-la, e fez uma pausa, inalando o cheiro, saboreando-o. — Mmm. —Ele
riu baixinho. — Você tem um corpo muito interessante.
Ceeerto, isso foi esquisito.
Raphael se moveu, sutilmente se inserindo entre mim e Anapa. Sua mão
cobriu a minha e o outro homem soltou. — Querida, diga adeus ao Senhor
Anapa. Ele tem outros convidados para conhecer.
— Adeus. —Eu balancei meus dedos para ele.
Anapa sorriu para nós novamente. — Por enquanto.
Raphael me guiou para a multidão.
— Que diabos foi aquilo?
— Eu não sei, —ele rosnou. — Ele parecia normal quando o conheci.
Aparentemente, eu tinha um dom especial para arrancar a loucura nos
homens.
Nós caminhamos para a mesa de bebidas e nos viramos, examinando a
sala.
Um homem na escada à nossa direita. Dois caras na saída, uma mulher na
sacada, mas não havia guardas nos corredores que irradiavam da sala
principal. Peguei um pequeno pedaço de torrada com pinhões e cogumelos
empilhados na bandeja do aperitivo e dei uma mordida. Hmm. Gostoso.
— Segundo andar, —eu murmurei.
— Exatamente, —concordou Raphael.
Se o escritório estivesse no primeiro andar, teria um guarda restringindo o
acesso a ele.
— Pronta? —Raphael perguntou.
— Pronta.
Nós caminhamos para a direita em uníssono e começamos a tecer nosso
caminho de um grupo de pessoas para o próximo. O segundo andar teria que
esperar. Nós tínhamos acabado de entrar e os guardas ainda estavam nos
observando, e se eles fossem bons, eles provavelmente teriam pedido minha
identidade agora. Tínhamos que circular até que eles se concentrassem em
outra pessoa.
Quarenta minutos depois, fizemos um circuito completo pela sala. O
velho Rafael costumava ser especialista em conversa fiada. Ele falava com os
homens sobre negócios, dizia elogios sutis às mulheres e todos o amavam.
O novo Raphael ao meu lado parecia mais sério e menos disposto a bater
papo. Apesar de sua aparência linda, mas sombria ao meu lado, conseguimos
descobrir a localização do escritório através de um casal mais velho. O covil
da ruína de Anapa ficava no segundo andar, no lado sul da casa.
Coincidentemente, um dos banheiros do primeiro andar ficava do lado sul
também, fato que descobri quando fui arrumar o cabelo.
A música ficou mais alta. Casais dançavam no meio do salão, balançando
para frente e para trás. O álcool estava indo tão rápido quanto os garçons o
trazia. Algumas pessoas pareciam já pareciam bem embriagadas para o estilo
sofisticado da festa de Anapa. A conversa fiada e fofoca inofensiva
acabaram, dando lugar aos tópicos mais apimentados e olhares significativos
enquanto a bebida abaixava as inibições.
Raphael pegou minha mão e me levou para o meio do salão.
— O que você está fazendo? —Perguntei através do meu sorriso.
— Se eu tiver que ouvir outra vez de como Malisha, da contabilidade,
ficou com Clayton, do departamento jurídico, vou enlouquecer. —Ele me
virou, ainda segurando minha mão, manobrando-me para uma pose de dança
clássica. Seu braço deslizou ao redor da minha cintura e eu tremi.
— Então você pensou que dançar seria melhor?
— Sim. —Ele começou a balançar. — Finja que estar aproveitando.
— Um homem bonito, uma grande festa, comida adorável. O que não é
pata aproveitar? Oh espere, o homem é você. —Eu comecei a dançar
também. Eu era muito boa em dançar. Ele se arrependeria de me puxar para
este salão. — Você gosta de foder comigo, não é?
— Bem, já que decidimos que você é minha acompanhante, tenho que me
divertir de alguma forma.
Já que estamos jogando esse jogo ... inclinei meu rosto para ele e dei-lhe
um olhar apaixonado.
— Você precisa espirrar? —Ele perguntou.
— Fique quieto. Estou fingindo gostar da sua companhia, assim como
você disse.
— Tente não parecer forçado.
— Oh, eu não vou. Eu sou muito bom em fingir.
Isso calou a boca dele.
Nós continuamos balançando. Estar perto dele assim, embrulhada em
seus braços, era pura tortura. Eu me inclinei para mais perto dele e fiz um
pequeno ruído, não um rosnado, nem um ronronar, um suspiro de desejo e
luxúria. Raphael se concentrou em mim, como um gato faminto em um rato.
— Você deveria me levar ao banheiro e me beijar, —eu disse a ele.
Um lampejo de fogo rubi explodiu em suas íris e derreteu. Ele se inclinou
mais perto, me puxando para ele. — O que disse?
— Você deveria me levar ao banheiro e me beijar, —repeti em seu
ouvido. — Não há como subir pelas escadas. Podemos usar a janela do
banheiro para chegar ao segundo andar.
A mão de Raphael escorregou da minha cintura até a minha bunda. Um
pequeno choque elétrico correu através de mim.
— Uau, direto para as mercadorias, hein?
— Não pode simplesmente sair do nada. —O sorriso de Raphael era puro
mal.
Nós nos inclinamos um pouco mais.
Raphael apertou minha bunda.
— É sério isso?
Ele ignorou. — Fingindo, querida, você se lembra.
Eu passei meus braços em volta do pescoço dele, estiquei contra ele,
como um gato preguiçoso querendo um carinho.
No outro extremo da sala alguém quebrou um copo. A sala virou-se
coletivamente em direção ao som.
Raphael pegou minha mão e nós silenciosamente escorregamos para o
corredor da esquerda. Estava quase deserto. Dois caras encostados na parede,
concentrados em uma discussão que envolvia frases como ‘idiota’ e ‘como se
ele estivesse no maldito lugar’. Eles não nos deram atenção.
Uma pequena placa na porta à direita dizia BANHEIRO.
Raphael tentou a porta. A alça não girou na mão dele. Ocupado.
Um sujeito da segurança saiu do quarto no corredor, um homem sério,
sem sorrir, em um terno preto completo com um fone de ouvido.
Raphael me empurrou contra a parede e apoiou meu corpo no dele,
pegando meu braço direito acima da minha cabeça e prendendo-o contra a
parede com a esquerda. O clichê mais antigo da cartilha.
Ele estudou meu rosto por um segundo, curvou-se ... seus lábios tocaram
os meus.
Eu queria beijá-lo. Eu o queria tanto que o desejo bloqueava todo o
resto. E por que diabos eu não poderia beijá-lo? Então, e se ele tivesse uma
futura noiva? Eu não lhe devo nada. Ser boa era superestimado.
Raphael lambeu meus lábios, exigindo, seduzindo. Seus dentes pegaram
meu lábio inferior, puxaram levemente. Ele era, neste momento, inteiramente,
completamente meu, só meu.
Eu abri minha boca.
Ele demorou, beijando meus lábios, devagar, certeiro, como se
tivéssemos todo o tempo do mundo e não houvesse necessidade de nos
apressarmos. Pequenos choques elétricos dispararam do meu coração até as
pontas dos meus dedos.
Sua língua deslizou em minha boca e tocou a ponta da minha. Ele tinha
gosto de Raphael: tempero, fogo e necessidade embrulhado em um só. Eu o
lambi, convidando-o para entrar. Nós nos beijamos, cada golpe de sua língua,
cada toque de suas mãos acariciando meu corpo, ampliado para uma sensação
quase dolorosamente intensa. O calor se espalhou através de mim, meu corpo
pronto para mais. Eu queria que ele me tocasse. Eu queria as mãos dele nos
meus seios. Eu queria puxar sua roupa e correr meus dedos pelo músculo
duro de seu peito. Eu o provoquei, seduzindo-o, em seguida, puxando para
trás, deixando-o pensar que ele poderia recuperar a minha boca e tomar o seu
lugar.
Parecia voltar para casa. Parecia um remédio acalmando uma ferida crua.
Eu o amava tanto, e o beijei, bebendo no coquetel de doces lembranças e
amargo futuro.
A porta do banheiro se abriu ao nosso lado, o som muito alto em meus
ouvidos.
Eu parei e instantaneamente Raphael se endireitou. Um homem baixo que
havia saído do banheiro deu um sinal de positivo com um sorriso de ‘Vai lá!’
E seguiu pelo corredor. O segurança não estava à vista.
O beijo havia rasgado um buraco dentro de mim. Eu queria Raphael.
Queria segurá-lo e saber que ele era todo meu. Queria fazer amor com ele. Eu
precisava de um banho frio.
Eu tinha que me recompor e precisava decidir o quanto seria ruim, porque
fazer amor com ele neste banheiro agora seria muito, muito ruim.
Raphael segurou a porta do banheiro aberta para mim. Eu entrei. Ele
seguiu e trancou.
Controle-se. Você consegue. Foi apenas um beijo estúpido de qualquer
maneira.
Ele tinha o olhar muito satisfeito em seu rosto. Ele sabia que tinha me
derretido ali mesmo, e agora se sentia satisfeito por ter me excitado.
Aparentemente eu era um brinquedo.
Seu desgraçado. Certo, vamos ver como você gosta disso.
Eu o empurrei contra a porta e o beijei novamente, deslizando meu corpo
contra o dele, mordiscando, lambendo, ronronando em seus braços. Fui para
ele com todas as armas que eu tinha. Deixei que ele começasse a tirar o paletó
e me separei.
— Eu acho que as barras na janela têm prata nelas, não é?
Ele parou, seu paletó na metade dos ombros.
— É bom que eu trouxe luvas.
— Andrea!
— O que foi? Ah, sobre o beijo? Me desculpe, eu não estava
completamente satisfeita. Mas agora estou e não se preocupe, —dei um
tapinha no peito dele. — Sua virtude está intacta. Você não precisa contar
nada para Rebecca. Foi apenas um beijo. Não significou nada.
Seu grunhido era música para meus ouvidos.
Eu me virei para a janela que ficava perto do teto e era apenas do
tamanho suficiente para passarmos. As barras formavam uma grade
retangular que brilhava fracamente à luz da lua, muito pálida para não ser
uma liga de prata. Prata significava mãos queimadas. Eu segurei barras de
prata com as mãos nuas antes. Parecia pegar algo mergulhado em ácido.
Abri minha clutch e peguei meu cortador de vidro e minha arma, uma
camisa preta e um par de luvas de tecido.
Atrás de mim, Raphael andava de um lado para o outro no banheiro como
um tigre enjaulado.
Todos os meus hormônios ainda estavam acesos, e todo o meu corpo
estava zumbindo. Minhas mãos tremiam um pouco.
Dentro da clutch havia um zíper cuidadosamente escondido. Abri o zíper
e, onde uma clutch normal teria um forro, está tinha alças finas e material
extra que permitia que elas fossem desdobradas em uma mochila maior. Eu
tinha adaptando-a há algum tempo.
— Interessante. —Raphael comentou.
— Estou feliz por ter gostado. Agora sei o que te dar para o seu
aniversário.
— Eu quero o meu azul, —disse ele. — Para combinar com meus olhos.
— Tudo o que você quiser. —Coloquei as luvas. — A janela está
trancada. Você poderia me levantar, por favor?
Ele passou as mãos em volta das minhas pernas e me pegou sem uma
palavra. Ele não apenas me levantou, ele me abraçou, acariciando-me sem
mexer as mãos. Eu ainda estava nervosa, e quando ele me tocou, eu quase
gemi.
Oh, mais essa. Nós estávamos jogando um joguinho sádico, e eu não
perderia para ele.
Eu agarrei a grade. Firme. Apoiei um joelho contra a parede e puxei com
força, empurrando contra Raphael. A grade soltou. Raphael me abaixou no
chão. Deslizei a grade atrás da penteadeira, ao lado da lata de lixo, tirei meus
sapatos e virei de costas para ele.
— Você poderia abrir para mim?
Ele tocou meu pescoço e puxou meu zíper para baixo, lentamente. Um
pequeno e delicioso arrepio tomou conta de mim. Eu não fazia ideia de que
tinha tanto bouda em mim.
Saí do vestido. Por baixo eu usava um minúsculo sutiã preto e shorts de
bicicleta de lycra. Coloquei a camisa, rolei meu vestido, guardei meus
sapatos, meu bracelete da sorte na minha bolsa, e apertei o coldre da minha
arma diagonalmente no peito.
— Bolsa do Exército suíço, —observou Raphael. Eu ouvi as notas
brincalhonas familiares em sua voz. O beijo deve tê-lo desequilibrado, mas
ele já estava recuperado agora, e estava tramando algo. — Alguma algema aí
dentro?
— Não, porque, você acha que eu vou precisar de alguma?
— Depende do que você está planejando fazer e com quem.
E ele tinha que ir lá. A velha Andrea teria lhe dado uma olhada. Eu me
inclinei para ele com um sorriso doce. — Eu não preciso de algemas para
manter um homem na minha cama. Acho que nós dois sabemos muito bem
disso. Se eu realmente quisesse fazê-lo trair a sua noiva, eu iria. Sorte para
ela, que não estou ansiosa em fazer algo que vou me arrepender depois.
Eu coloquei o cortador de vidro na minha boca, pulei para cima e deslizei
pela janela, segurando os tijolos com as pontas dos dedos antes dele descobrir
minha mentira. Eu ouvi Raphael destrancar o banheiro. Um momento depois,
ele puxou-se pela janela com graça fácil.
Subimos como dois lagartos, subindo apressadamente a parede. Raphael
alcançou a janela do segundo andar e arrancou a grade com um puxão casual.
Eu cortei um semicírculo no vidro da janela, estendi, passei a mão pela
abertura e soltei o trinco. O segundo trinco seguiu, e eu deslizei a janela para
cima e mergulhei, as pernas entrando primeiro. Raphael seguiu, colocando a
grade de volta no lugar.
Olhei ao redor do quarto escuro. Os contornos de uma grande cama de
dossel erguiam-se da escuridão à direita.
Raphael roçou minhas costas. Meu corpo pedia por sexo, por favor.
Minha mente dizia: ‘Não até que o inferno congele.’
— Você está me tocando, —eu o repreendi.
Ele acariciou minhas costas, deslizando a mão para baixo, atingindo todos
os pontos sensíveis que eu nem sabia que tinha.
— Não, não estou. Foi apenas um contato acidental.
— Oh? Bom saber. Se você me tocar de novo e eu quebrar seu braço,
você pode ter certeza que será completamente acidental.
Ele se aproximou, sua coxa roçando minha bunda. Eu lhe dei uma
cotovelada nas costelas. Não foi um empurrãozinho gentil.
Ele riu.
— Eu sei que é difícil, desde que eu tenho uma boa bunda e tudo, mas
tente se concentrar em nosso assalto ilegal.
— E existe assalto legal?
Aff ...
Escapei para a porta e abri-a. O corredor estava vazio. Ahhh. Finalmente
as coisas estavam melhorando. Saí pela porta e desci até o final do corredor,
onde uma enorme porta de madeira se erguia.
Supostamente o escritório estava por trás dela. Saí do corredor e corri
para a porta. Raphael me seguiu.
Peguei a maçaneta. Aberta.
— Muito fácil, —Raphael murmurou.
Se fôssemos pegos, o Bando teria o inferno para se explicar.
— Não tem outra escolha agora. —Entrei no escritório.
O aroma de mirra apimentou o ar. Filas de prateleiras marrons olhavam
para mim, cheias de volumes e objetos variados. Uma miniatura de
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bergantim com detalhes surpreendentes. Um vaso antigo, uma estátua de
um homem musculoso ajoelhado. Ao lado das prateleiras, uma pesada
escrivaninha retangular estava em cima de um tapete com os cantos
adornados com detalhes dourados. Três cadeiras esperavam que alguém se
sentasse, uma atrás da escrivaninha e duas nos cantos da sala. Cortinas
douradas cintilantes emolduravam as duas janelas. Decorações de metal
retorcido pendiam das paredes negras, sendo as mais proeminentes escamas
de metal com uma lua acima delas, na parede em frente à mesa. Os olhos
estilizados da lua estavam fechados para meras fendas e sua boca sorria.
O lugar estava vazio.
Raphael passou por mim e checou as janelas. Eu tranquei a porta e
deslizei para trás da mesa. Deste ponto de vista, a sala assumiu uma nova luz.
Cada objeto dentro do escritório tinha sido colocado em uma posição precisa
orientada pela mente da pessoa por trás da mesa. A mesa era o centro desse
pequeno cosmo e, no momento em que me sentei atrás dele, tornei-me o
ponto focal da sala, como se tivesse assumido um lugar no centro de alguma
convergência invisível de poder. Se objetos inanimados pudessem adorar, os
adornos do escritório de Anapa teriam se ajoelhado diante de mim, porque eu
me sentei no lugar do deus deles.
Os pequenos cabelos na parte de trás do meu pescoço se levantaram. Seja
qual for a inteligência que estivesse em ação aqui, não poderia ser humana.
As pessoas não pensavam assim.
Raphael se afastou da janela e ficou ao meu lado. — O que foi?
Eu acenei com a minha mão. Ele se aproximou e eu o peguei pelo ombro
e o puxei para o meu nível. — Olhe para a sala.
Ele inspecionou o escritório. Seus olhos se arregalaram.
— Não sou só eu que acho, não é? —Eu sussurrei.
— Não. —Ele mostrou os dentes. — Quanto mais cedo sairmos daqui,
melhor.
Eu tentei a gaveta de baixo. Ela abriu facilmente. Vasculhei tudo.
Documentos, declarações comerciais mensais do banco... nada de
interessante. Eu tentei a de cima. Trancada.
Raphael puxou uma chave do bolso e enfiou na fechadura. Ele torceu e a
fechadura estalou.
Raphael deslizou a gaveta aberta. Uma pasta de couro marrom. Eu
peguei, coloquei na mesa e abri. Uma pasta com folhas de plástico
transparente protegia uma fotografia: um jarro esculpido de marfim com
figuras em alto relevo de pessoas engajadas em combate e embarcações
compridas com pequenas cabines navegando sobre o mar de homens
afogados.
— De que país você acha que é a origem disso?
Raphael estava analisando o escritório. — Inferno se eu sei.
Eu queria ter Kate comigo agora. Ela teria me dito quando e onde foi feito
e para que deus.
Eu me virei para a próxima página de plástico. Esta fotografia mostrava
uma jarra antiga feita de argila marrom com um longo bico cônico. A ponta
do bico havia quebrado.
— O que você acha que é isso?
— Um pinico.
— Isso não é um pinico. Você vai levar isso a sério?
— Estou levando isso muito a sério, —disse ele em voz baixa.
Passei para a próxima página de plástico. Um punhal de ponta para o alto
com cabo de marfim ... espere um minuto.
— Eu sei o que é isso. —Bati no plástico. — Eu vi hoje na biblioteca.
Jamar comprou essa faca. É de Creta e ela não está no cofre agora.
Olhei para a faca. Era muito simples, com uma lâmina curva de 30
centímetros de comprimento e um simples cabo de marfim em
surpreendentemente boas condições.
Raphael se concentrou na lâmina. — É cerimonial.
— Como você sabe?
— A lâmina nunca foi afiada. —Ele desenhou o dedo ao longo da borda
curva da faca. — Está vendo? Nenhuma marca no metal. Além disso, o
desenho está errado. É muito curva para golpear em um movimento para a
frente, mas se eu cortar com isso posso desenhar um corte do tamanho que eu
103
quiser. Quase parece uma faca de tourné .
— O que é isso?
— É uma faca de cozinha para descascar. Você se lembra, nós temos uma
no conjunto em nossa caixa de açougueiro.
Ele teria que parar de dizer ‘nosso’ algum momento. Mas chamar a sua
atenção sobre isso agora iria interromper o fluxo de informações sobre facas,
e eu precisava de sua perícia. Eu conhecia armas, mas Raphael conhecia
facas.
Ele continuou. — Se fosse afiada e mais curta, poderia ser uma variação
104
de um karambit , uma faca curva das Filipinas. Em forma de garra de tigre.
Eu nunca vi muita vantagem no uso dela, muita pequena e minhas próprias
garras são maiores. Onde isso foi encontrado, você disse?
— Creta.
Raphael franziu a testa. — Facas e espadas cretenses eram tipicamente
105
estreitas e afiladas, como os kopis gregos . —Ele virou a foto. Voltei
novamente. — Humm.
— O que foi?
Ele levantou a foto com a faca apontando para baixo. — Picareta. É disso
que isso me lembra. A única maneira de obter o efeito máximo dessa lâmina
é esfaquear alguém com ela diretamente. Ele levantou o punho e fez um
106
movimento de martelar. — Como com uma picareta de gelo .
— Como se alguém estivesse amarrado e você tivesse que esfaqueá-lo no
coração?
— Possivelmente. E Anapa matou quatro pessoas por isso? —A voz de
Raphael gotejou de escárnio e raiva.
— Nós não sabemos disso. —Eu não conseguia manter a emoção fora da
minha voz. — Tudo o que sabemos é que Anapa sabia sobre a faca e a sua
utilidade. Não sabemos por quê. —E não havia nada que nos desse uma pista.
Um pequeno cartão com seu nome e poderes especiais teria sido legal. —
Mas já é alguma coisa para começar a procurar.
Eu olhei para o final da pasta. Mais artefatos. Não reconheci mais nada. A
faca tinha que ser a chave.
— Você é importante para mim, —disse Raphael. — Você sempre foi, e
não porque você era um cavaleiro ou um metamorfo.
De repente, a brincadeira não era mais engraçada. — E se importa tanto
que em vez de esperar que eu me recompusesse, você encontrou outra
mulher. Vamos ser honestos, Raphael, uma boneca com uma peruca loira e
eu temos a mesma importância para você. Inferno, a boneca pode ainda ser
melhor do que eu. Ela não iria falar. —Cristo, eu parecia tão amarga.
— Eu não quero mais brincar, —disse ele. — Eu te amo.
Isso machucou. Acho que vou ficar dormente agora.
— Muito tarde. Você está prestes a se casar.
— Rebecca não importa, —disse ele.
— Raphael, ela é uma mulher viva que respira. Alguém que você sentiu-
se atraído fortemente ao ponto dela ser sua noiva. Claro que ela importa.
— Rebecca não é minha noiva.
Congelei. — Repita?
— Eu disse que Rebecca não é minha noiva, —ele repetiu.
— O que você quer dizer com ‘ela não é ‘minha noiva’? Quero dizer, sua
noiva.
Raphael deu de ombros. — Ela é uma interesseira que eu encontrei em
um compromisso de negócios. Alguém deve ter falado para ela que eu era um
bom partido, então ela se aproximou. Minha mãe tem ficado nervosa demais
com suas rebeldias e, como precisei ir ao clã Bouda para um churrasco, levei
Rebecca até lá. Depois que ela disse à mamãe que era muito empolgante que
todos nós virássemos lobos, expliquei para minha mãe que se ela não me
deixasse em paz, alguém como Rebecca seria minha próxima companheira.
Rebecca deve ter me ouvido.
Isso não estava acontecendo.
— Você me deixou, —disse Raphael. — Nenhuma explicação. Tivemos
uma briga, depois fomos todos para a batalha contra Erra e, depois que ela
nos incendiou, você desapareceu. Eu pensei que você estava morta. Eu fui a
todos os hospitais. Eu me sentei em salas de espera. Toda vez que eles
traziam um novo corpo carbonizado, eu parava de respirar porque pensei que
poderia ser você debaixo de toda aquela carne queimada. E o que eu ganhei
depois de tudo isso? Uma nota no correio. Cinco dias depois. Cinco dias
depois, Andrea!
‘Não procure por mim, tenho que fazer algo pela Ordem,
voltarei em breve’.
Nenhuma explicação, nada. Você me dispensou da sua vida e foi à sua
cruzada. Agora, semanas depois, de repente decide me ligar, como se eu
fosse apenas um vira-lata que sempre estará lá esperando por você.
Eu abri minha boca.
— Eu a trouxe porque queria que você soubesse como era. Você passa a
vida tão ligada em ajudar as pessoas que mal sabe que machuca as pessoas
que realmente se importam com você. Você quer a verdade sobre Rebecca?
Bem. Eu mal a conheço. Ela era um meio para um fim. Eu nem dormi com
ela. Eu até pensei que poderia ...
Havia muitas palavras que eu queria dizer de uma só vez.
— Por vingança, —disse Raphael. — Ela me beijou, mas não senti nada.
A resposta correta finalmente se acumulou em minha mente. Eu fiz minha
boca se mover.
— Eu te odeio.
Ele abriu os braços. — Isso é novidade?
Tudo o que agitava dentro de mim, tudo que doía e torcia, como um
redemoinho de vidro quebrado no meu peito, rasgou, destruindo meu
orgulho. — Você quebrou meu coração, Raphael! —Eu gritei. — Chorei por
horas quando cheguei em casa ontem à noite. Parecia que minha vida tinha
acabado, seu filho da puta egoísta. E você, você me fez passar por isso só
para me ensinar uma lição? Quem diabos você pensa que é? Você tem
alguma ideia do quanto isso doeu?
— Sim, —ele disse. — Eu sei exatamente o quanto.
— Há uma diferença! Eu era um daqueles corpos carbonizados em uma
cama de hospital. Fiquei inconsciente por três dias e acordei em um hospital
militar, acorrentada à minha cama. Havia um advogado da Ordem sentado ao
meu lado. Eu não tive escolha: ou eu ia com ele voluntariamente ou eu seria
levada em custódia pela Ordem algema em grilhões de prata na perna.
Consegui escrever duas notas, parei no meu apartamento por dez minutos
para pegar minhas roupas e fomos embora. Eu nem tive a chance de fazer
arranjos para Grendel. Eu tive que levar o cachorro comigo e eles
concordaram com isso só porque eu preferiria lutar com eles do que deixar o
cachorro morrer de fome dentro do meu apartamento. Eu não te machuquei
de propósito, mas você me machucou deliberadamente. Eu sou um brinquedo
para você?
Seus olhos brilharam de vermelho. — Eu poderia te perguntar a mesma
coisa.
— Você … seu idiota! Você é um bebê mimado!
— Idiota egocêntrica.
— Filhinho da mamãe!
— Arrogante, orgulhosa, hipócrita.
— Estou tão cheia de você, —eu disse a ele com os dentes cerrados.
— Quer saber? Estou cansado de fazer as coisas do seu jeito, —disse
Raphael preguiçosamente. — Não espere que eu aceite mansamente o que
você quiser essa noite. Não vai ser mais do seu jeito.
Minha voz poderia cortar aço. — Se fizer isso, eu vou atirar em você.
Ele estalou os dentes. — É melhor você atirar de jeito. Um tiro será tudo
que você conseguir.
Esse desafio durou até o fim das minhas defesas. Minha outra eu se
derramou do meu corpo humano em uma confusão de pele e garras, exalando
fúria. Eu bati meus dentes monstruosos para ele, minha voz bestial um
grunhido irregular. — Eu vou arrancar seu coração. Você vai se arrepender
do dia em que nasceu. De todos os bastardos idiotas e egoístas...
— E você me quer. —Ele sorriu. — Você não pode esperar para subir de
volta na minha cama.
— Deixe de ser criança!
— Olha quem está falando.
A magia bateu em nós, como um enorme dilúvio. As Proteções
apareceram no topo da moldura da porta e das janelas em cortinas cintilantes
de laranja translúcido. Símbolos azuis se acenderam nos cantos da sala.
A lua na parede abriu os olhos com um grito metálico.
Mergulhei embaixo da mesa e Raphael se encostou na parede. Atrás das
cortinas.
— Boudas, —disse a lua na voz saturada de diversão de Anapa. — Tão
previsível.
— Não foi possível resistir a bisbilhotar, não é?
Merda! Merda, merda, merda.
Raphael puxou uma cortina da janela e jogou-a sobre a lua.
— Isso não vai ajudá-los, —disse Anapa. — Não saiam. Eu estarei logo
aí.
Eu saí de debaixo da mesa e bati na Proteção mágica da janela mais
próxima. Dor queimou através de mim, eu pisquei e Raphael me puxou do
chão. Meus dentes chocalharam no meu crânio.
— Ah-ah-ah, —disse a Lua Anapa. — Eu lhes avisei para não sair.
Raphael se atirou na Proteção da janela. Sua resistência às Proteções
mágicas era maior que a minha.
O feitiço defensivo se agarrava a ele, afiados chicotes de raios alaranjados
ardendo em sua pele. Seu corpo estremeceu rígido. Seus olhos reviraram em
seu crânio.
Eu peguei ele e o puxei de volta. O raio laranja me beijou e eu quase
desmaiei de novo. Nós caímos no chão.
— Fi-fi-fo-fum, —a lua cantou. — Eu sinto o cheiro do sangue da hiena e
estou subindo as escaaaaadas.
Os olhos de Raphael se abriram. Ele se levantou e olhou para cima.
Se nós quebrássemos o piso, cairíamos no abraço de boas-vindas de seus
seguranças. Atravessar o teto era a nossa melhor aposta.
— Me pegue! —Disse.
Ele me agarrou e me empurrou para cima. Eu soquei o teto, colocando
toda a minha força nisso. O painel quebrou com o impacto do meu punho, e
eu bati no feixe de madeira embaixo dele.
— O que vocês dois estão fazendo? —A lua se perguntou.
Martelei o teto com o meu punho de novo e de novo, alargando o buraco.
A madeira quebrou sob a insistência dos meus socos. Rasguei a parte
quebrada do feixe, jogando-a para o lado e esmurrei a escuridão. Ele rasgou e
o céu noturno piscou para mim através da abertura estreita. Não há sótão. Nós
iríamos sair direto para o telhado. Raphael me colocou de pé, deu um pulo e
pulou, girando no ar, chutando a abertura que eu havia feito. Ele caiu em um
rolo quando uma chuva de tábuas de madeira bateu no chão.
Cruzei meus braços sobre a cabeça e pulei. Madeira e telhas atingiram
meus antebraços, e eu agarrei o telhado e me levantei. A borda do telhado
brilhava com magia. No chão, enormes símbolos laranja se estendiam pelo
gramado luminescente, um brilho amarelo pálido cobrindo cada folha de
grama em uma camada de magia. O quintal inteiro ao redor da casa era
protegido e era um inferno de uma Proteção. Ótimo.
Raphael forçou seu caminho através do buraco atrás de mim.
Pousar no gramado não era uma opção. A magia poderia nos fritar ou
fazer algo pior. Eu me virei procurando por uma árvore, uma torre, uma
parede, qualquer coisa perto o suficiente para saltar do telhado.
Na extremidade do telhado, um longo cabo descia até a parede que
cercava a casa de Anapa.
— Linha de energia, —nós gritamos um ao outro ao mesmo tempo.
Corremos pelo telhado. Subi na linha de energia e corri ao longo dela,
equilibrando-me nos meus pés enormes. Um, dois, três, inclinar, inclinar …
Eu pulei no baixo muro de pedra que separava a casa de Anapa e o quintal da
rua. Raphael tirou os sapatos, arremessou-os para a noite, deu um pulo e
saltou, pegando a linha de força com os braços. Levantou-se de novo e se
movimentou devagar, com os braços abertos, suspensos entre a relva laranja
brilhante e o céu negro.
Segurei minha respiração.
A porta lateral da mansão se abriu. Um rugido estrondoso reverberou
durante a noite, feito por uma boca cavernosa. Meus pêlos se levantaram.
Raphael balançou, correu os próximos três metros e pulou, limpando a
distância restante em um salto poderoso. Ele navegou pelo ar e caiu na
parede, ao meu lado.
Um clarão de luz amarelo brilhante e anormal explodiu no gramado. Eu
não esperei para ver o que era. Nós pulamos da parede para a rua e corremos.
O rugido nos perseguia. Com o canto dos meus olhos, vislumbrei uma
enorme sombra saltando sobre a parede como se não fosse nada. A criatura
caiu na rua atrás de nós, do tamanho de um rinoceronte, com uma cabeça
enorme e uma enorme juba armada e com longas mandíbulas de crocodilo.
Seu odor me atingiu, um odor pungente e oleoso, reminiscente de peixe
podre, sangue velho e suor em decomposição, atravessado por um fedor não
natural. Um cheiro revoltante, violento, terrível, me atacou, prometendo a
morte. O medo se contorceu através do meu corpo. Meus instintos me
fizeram correr o máximo que eu podia.
Nós corremos pela rua.
A coisa atrás de nós rugiu novamente e nos perseguiu. Ela bateu atrás de
nós, enorme, mas estranhamente rápida.
Eu olhei para trás. A distância estava diminuindo.
O ar virou fogo na minha garganta. Uma dor espetou meu lado.
Corre. Corre mais rápido. Mais rápido!
Eu olhei por cima do meu ombro novamente. A fera estava ganhando.
Nós estávamos correndo e ela estava se aproximando.
Dobramos uma esquina a uma velocidade vertiginosa. Um prédio
arruinado apareceu à nossa frente, uma grande e escura montanha de
escombros com um buraco negro aberto no piso inferior. Raphael apontou
para ele. Nós viramos para a direita e saltamos através da abertura para a
escuridão.
No interior, o prédio era vasto e vazio, uma concha cercada por paredes
externas. Colunas altas de sustentação erguiam-se, não suportando nada, os
últimos andares tinham desmoronado há muito tempo, e a lua brilhava
através dos buracos no telhado de vidro empoeirado, pintando o chão em
manchas aleatórias de luz azul. Nós voamos sobre ele como dois fantasmas,
silenciosos e rápidos, e afundamos nas sombras profundas e escuras contra a
parede oposta. Raphael estendeu a mão e apertou minha mão. Eu apertei de
volta.
Talvez a fera passasse por nós.
Uma silhueta escura apareceu na abertura na parede através da qual
havíamos entrado. Não tivemos essa sorte.
A besta deu um passo à frente. Metade do corpo desceu, baixou a cabeça.
Eu a ouvi cheirar. Pequenas nuvens de poeira deslizaram pelo chão. Estava
nos seguindo. Se fugíssemos, seria mais rápido do que nós. Se nós fossemos
para os telhados, nós acabaríamos em ruínas e teríamos que pousar, e estaria
esperando. Tínhamos que matá-lo.
Ao meu lado, Raphael tirou o paletó do smoking. Ele usava bainhas de
couro duplo embaixo. Tirou duas espadas e as passou para mim. Eu as
segurei enquanto ele tirava a camisa. Suas calças em seguidas. Ele pegou as
espadas de volta e eu aliviei minha mochila dos meus ombros.
A besta deu um passo à frente. Garras gritaram no concreto. Passo, risco.
Passo, risco. Seu cheiro revoltante se aproximou de nós, cobrindo-me como
uma chuva de lodo frio.
Eu me enrolei em uma bola apertada.
A fera se moveu em um raio de luz e meu pulso acelerou. O que eu tinha
confundido com uma juba de cabelo grosso era uma juba de pequenos
tentáculos marrons. Eles se contorciam e se contorciam, esticando-se e
enroscando-se como um ninho de minhocas minúsculas de um metro de
comprimento. Tire o pescoço da lista de possíveis alvos. Cortar ou arranhar
a massa de carne contorcida levaria muito tempo.
A besta baixou a cabeça novamente, apoiando-se nas pernas poderosas
embainhadas em pêlo amarelo. As longas garras de suas patas dianteiras
arranhavam a poeira. Sua estrutura robusta parecia construída para ser usada
em demolição. Se isso começasse a correr, ele se chocaria contra a parede e
nem diminuiria a velocidade. Eu não via fraqueza. Por que coisas assim
sempre aconteciam comigo quando eu não tinha um rifle à mão?
A besta levantou a cabeça. Grandes olhos amarelos de coruja olharam
diretamente para nós.
Teríamos que ir no intestino e nos olhos. Essas eram as nossas únicas
opções.
Toquei em Raphael e apontei para os meus olhos. Ele assentiu, curvou-se,
contraindo os músculos e saltou.
Sua pele estourou no meio do salto quando seu corpo se transformou em
uma forma nova e mais forte. Um homem havia começado o salto, mas um
bouda em forma de guerreiro terminou: um híbrido letal de dois metros de
altura de animal e homem, armado com garras mortais e dentes perversos
presos em mandíbulas enormes que poderiam esmagar um fêmur de uma
vaca como se fosse uma casca de amendoim.
Eu corri para o lado.
Raphael pousou em cima da fera e cortou suas costas com as espadas. O
sangue encharcou os cortes. A criatura berrou e caiu no chão, rolando.
Raphael saltou para a escuridão. A besta se levantou de um pulo e girou,
tentando se lançar atrás dele.
Eu bati de lado, cortando a testa da fera com minhas garras. A criatura
bateu de volta, muito rápido.
Os dentes roçaram minha pele. Eu pulei para trás e a besta se lançou
contra mim, estalando os dentes. Eu pulei para trás de novo e de novo,
ziguezagueando enquanto me perseguia. Porra, era rápido.
Raphael saiu da escuridão e cortou o lado da besta com suas espadas.
A besta não lhe deu atenção. Os tentáculos em sua cabeça brilhavam com
uma cor laranja profunda. A luz laranja pulsou para fora e pegou meu braço.
Uma dor intensa queimou meu ombro, uma queimadura fria, como se alguém
tivesse aberto meu braço e jogado nitrogênio líquido sobre o músculo.
Eu gritei e cortei o focinho com minhas garras, arranhando a carne
sensível.
A besta se lançou para mim. O brilho pulsou e me agarrou. A dor
explodiu na minha cabeça. Eu não conseguia me mexer. Eu não consegui
fazer um som. Apenas estremeci no aperto da magia, a agonia tão intensa,
parecia que meus ossos estavam se despedaçando.
Alguém cortou minhas pernas, as paredes deram cambalhotas e eu caí na
sujeira.
Atrás da besta, Raphael se transformou em um redemoinho de aço,
lançando sangue para a noite.
A besta uivou.
Eu tentei me levantar, mas eu ainda não conseguia mexer minhas pernas.
Eu podia vê-las ali mesmo, mas elas não me obedeciam.
Raphael deu um chute enorme nas costelas da criatura.
A abominação girou em direção a ele, sua cabeleira faiscando.
Raphael correu.
A criatura gritou, um som terrível e sobrenatural. Sangue dos cortes que
eu causei gotejou em seus olhos, tornando-o meio cego. Ele levantou seu
focinho, inalou e atacou Raphael.
Eu só tinha que me levantar. Eu tinha que me puxar para cima.
Raphael correu ao longo da parede, saltando sobre as pilhas de lixo. A
criatura correu atrás dele, devorando a distância entre eles em grandes saltos.
O chão tremia com cada baque de suas patas.
Eu rolei de joelhos, desajeitada como uma bêbada, e me forcei a ficar de
pé.
A crina da criatura ficou laranja brilhante.
— Magia! —Eu gritei.
Raphael olhou por cima do ombro.
O brilho laranja ao redor da crina da fera uniu-se e chicoteou da criatura
em raios duplos brilhantes. Raphael ziguezagueou, mas já era tarde demais. O
raio esquerdo pegou seu tornozelo, estilhaçando-se em uma dúzia de
pequenas garras que morderam a carne de Raphael o derrubando.
O mundo parou. Tudo que eu podia ver era o rosto de Raphael, torcido
pela dor. O medo apertou em mim e me estimulou em uma ação desesperada.
Por um segundo, ele pareceu flutuar sem peso, suspenso alguns
centímetros do chão e depois desabou, rolando na terra.
Por favor não morra. Por favor, por favor, não morra.
Havia quinze metros entre mim e a fera. Parecia que eu estava correndo
por uma eternidade, presa em algum tipo de inferno, observando o homem
que eu amava morrer em câmera lenta.
A besta bufou em alegria viciosa.
Vou chegar aí, querido. Aguarde mais meio segundo.
As mandíbulas gigantescas se abriram largamente, dentes prontos para
rasgar.
Eu bati na besta de lado, enfiei minhas garras embaixo dela e afundei-as
no intestino da criatura.
O sangue me encharcou. As entranhas escorregadias deslizaram contra
meus dedos. Eu agarrei-as e puxei.
A besta girou, tentando me morder. Afundei minhas garras na ferida e
segurei. O raio laranja me atingiu, fogo e gelo envoltos em dor. O luar no céu
se ofuscou.
Raphael apareceu do outro lado da fera e arranhou-a. Ele estava vivo. Eu
quase chorei do alívio.
A magia nos feriu novamente.
Meu Deus. Isso machuca.
A magia não nos mataria. Apenas machucaria.
Feridos.
Raphael e eu nos encaramos sobre a coluna da fera através da névoa de
dor e rimos. Nossos estranhos gritos de hiena ecoaram pela ruína.
Ele queria jogar o jogo de dor contra duas boudas. Não tinha chance.
Nós espancamos a fera.
Ele nos arremessou com suas patas traseiras e nos chocou com sua magia,
e nós a arranhamos e a arranhamos, aguentando e rindo através da dor. Eu
provei sangue na minha boca e agarrei ainda mais, cavando o estômago da
fera, arrancando vísceras e ossos para fora. Nós esculpimos e entalhamos,
saindo e voltando da dor, jogando sangue e úmidas entranhas.
A besta estremeceu.
Não tínhamos outra opção. Era a criatura ou nós, matávamos ou
morreríamos.
A besta tropeçou, inclinou-se para o lado e desabou.
Olhei para cima, respirando com dificuldade. Em minha frente, Raphael
estava de pé, coberto de sangue. Seu peito peludo e musculoso arfava. Entre
nós, a besta jazia, os ossos da caixa torácica descobertos. Nós tínhamos quase
tirado sua carcaça. Ele deveria ter morrido há muito tempo, mas a magia a
manteve vivo.
Afundei no chão. Meu corpo estava vermelho de sangue da besta e o meu.
Longos arranhões das garras da fera cortavam meu lado direito, do quadril
para baixo, pela minha perna. Os cortes queimavam. Se eu fosse humana,
precisaria de centenas de pontos.
Nós ganhamos. De alguma forma, vencemos e ambos sobrevivemos. Foi
algum tipo de milagre. Eu estava com ossos cansados. O chão parecia tão
bom. Talvez se eu me deitasse aqui por um minuto e fechasse os olhos ...
— Andrea.
Os olhos de Raphael brilhavam com fogo de rubi. Seu rosto, uma mistura
de humano e hiena, não refletia bem as emoções, mas seus olhos me
encaravam com uma determinação arrepiante.
— O que foi? —Eu perguntei.
— Estou levando você para casa.
Minha mente mastigou suas palavras, tentando quebrá-las em pedaços.
Me levando para casa? Me levando para casa …
Casa. Com ele.
Meu cansaço evaporou em um instante. — Não.
— Sim. Você vem para casa comigo. Nós vamos tomar um banho, comer
e fazer amor, e tudo ficará bem.
Levantei minha bunda do chão. — Acho que não.
— Acabou de fazer as coisas do seu jeito. Seu jeito significa não falarmos
por meses. Você vem para casa comigo.
— Você me machucou, de propósito, mas está tudo bem agora, porque
você não dormiu com Rebecca e nós podemos ir para casa.
— Sim!
— Não funciona assim. Eu não vou para casa com você. Você e eu
terminamos.
— Você é minha, —ele rosnou.
Que diabos. Talvez a luta tenha arrancado algum parafuso em seu
cérebro.
— Você sempre será minha. —Ele pisou na carcaça e começou andar em
minha direção. Olhei em seus olhos e vi um bouda insano olhando para mim.
A luta tinha tirado o equilíbrio entre pensamento racional e paixão
enlouquecida. O freio de emergência de Raphael estava com defeito e ele e eu
estávamos em rota de colisão. — Você sabe disso e eu sei disso. Nós nos
amamos.
— Somos ruins um para o outro.
— Você não vai me deixar de novo! —Ele rosnou.
A adrenalina ainda correndo através de mim subiu. Ele estava me
desafiando! Marchei em direção a ele, coloquei meu focinho o mais perto
dele que podia e disse devagar, pronunciando claramente cada palavra: —
Estou deixando você. Você não pode brincar comigo. Eu não sou seu animal
de estimação e você não vai me machucar de novo só por achar que eu devo
ser punida Provocá-lo era idiota. Eu sabia disso, mas não consegui evitar. O
coquetel louco de hormônios e magia que essa luta me fez passar me tirou a
sanidade. Eu sabia que deveria parar, mas era como se houvesse duas de
mim, uma Andrea racional e uma louca bestial comandada pela emoção e
agora a Andrea racional estava sendo arrastado por um rio caudaloso de
hormônios, enquanto a Andrea bestial acenava adeus próximo a um
penhasco.
Eu gritei as palavras. — Você partiu meu coração e agora eu estou
deixando você. Olhe.
Ele me machucou. Ele pagaria.
— Está sou eu indo embora. —Eu me virei e dei alguns passos. — Você
está assistindo?
Ele pulou em mim e caímos, rolando na terra, braços sobre pernas.
Minhas costas bateram no chão e Raphael me prendeu em uma posição
clássica, sentado no meu estômago. Uma das piores posições em que você
pode ficar preso.
— Não vai a lugar nenhum agora, —disse ele.
Eu dobrei meus joelhos, plantei meus calcanhares no chão e fiz uma
ponte sobre ele. Ele se inclinou para frente, sua mão direita caindo no chão.
Entendi o que ele ia fazer. Deixei cair meus quadris, peguei seu braço direito,
puxando-o contra o meu peito, pisei meu pé direito sobre o dele, capturando-
o, e empurrei bruscamente para a direita. Raphael se inclinou e eu rolei em
cima dele. Ele apertou meus ombros com as mãos.
— Estou me levantando e saindo daqui. Você terá que lutar comigo para
me impedir. Sua escolha.
Raphael abriu os braços. Ele estava me deixando ir. Eu sabia que ele
faria.
Fiquei em pé e fui embora. Uma parte de mim estava gritando: O que
você está fazendo, sua estúpida? Corre de volta. Eu continuei andando,
segurando a memória de Raphael me dizendo: ‘Eu sei exatamente o quanto
doeu’.
Essa coisa entre nós era muito complicada e doía muito. Eu não tinha
mais nada em mim e não conseguia lidar com isso.
Atrás de mim, Raphael rugiu, sacudindo a ruína. Continuei andando. O
som de sua frustração me perseguiu até que finalmente comecei a correr. Meu
corpo está doendo. Febre aqueceu meu rosto, o Lyc-V estava tentando
consertar meu corpo machucado. Se apenas consertasse coração quebrado
fosse assim tão fácil.
Corri mais rápido, corri pela parede, pela abertura e saí para a noite
enluarada. Pulei para o telhado mais próximo e corri e corri, o ar queimando
em meus pulmões, gotas de sangue da besta caindo do meu corpo, deixando
uma trilha horrível.
Continuei até a fadiga se transformar em uma dor nos meus membros. Eu
estava em um telhado em algum lugar. Os prédios ao meu redor não pareciam
mais familiares. Eu diminuí, depois parei. Atrás de mim a cidade se estendia,
mergulhando em magia. Na frente, um rio corria, como uma serpente
prateada brilhando ao luar. Árvores altas ficavam de guarda na margem
distante. Pequenos pontos de luz, verde e turquesa, flutuavam suavemente
entre seus galhos. Eu havia percorrido toda a cidade até a Floresta Sibley, um
dos novos bosques pós-mudança, sobrecarregados de magia e cheios de
coisas famintas que viam os humanos como lanches saborosos e divertidos.
As árvores me chamavam. Elas pareciam tão pacíficas e mesmo eu
sabendo que não eram, não pude resistir.
Mergulhei do prédio para o rio. A água fresca espumava ao meu redor
com um milhão de bolhas. Eu emergi e nadei, deslizando pelas profundidades
frias como se estivesse voando. O rio terminou cedo demais, e eu saí na
margem oposta, encharcada, mas sem sangue. Subi e fiz meu caminho
através do mato. A floresta cantou para mim em uma dúzia de vozes
diferentes e me provocou com uma infinidade de cheiros.
Inalei o aroma picante das ervas da floresta, o almíscar de um guaxinim e
o cheiro levemente amargo do gambá. Meus ouvidos se contraíram, captando
os sons de camundongos correndo na vegetação rasteira, o canto distante de
uma coruja e o chilrear das cigarras, remexendo na escuridão reconfortante.
Enquanto caminhava, a grama roçava minhas pernas, fazendo cócegas no
meu pêlo. Acima de mim, uma densa vinha coberta de minúsculas flores
brancas tremia na brisa da noite. As minúsculas flores se destacaram,
brilhando de verde pálido e flutuando ao meu redor, como luzes de fadas.
Fascinada, agachei-me na grama e observei uma das flores brilhantes se fixar
em uma folha. Tão linda.
Eu andei pela floresta, pensando em nada. Se eu pudesse ter mudado para
uma hiena, eu teria. Eu só queria me acalmar, cheirar coisas, ver animais se
movimentando e fingir que fazia parte desse mundo, em vez do lugar do
outro lado do rio. Minhas escolhas eram mais simples aqui: Deitar na grama
ou em um tronco caído? Observar os ratos ou tentar pegar um? Ouvi a coruja
piando ou escutar os sapos cantando? Simples e fácil.
Finalmente, subi em uma grande árvore, enrolei-me em seus galhos
e adormeci.
Capítulo 9
Dormir em uma árvore parecia uma ótima ideia em teoria. Na prática,
acordei pouco antes do nascer do sol, toda dolorida, meu pêlo úmido de
orvalho matinal e cheirando a sangue em decomposição. Aparentemente nem
tudo tinha sido lavado no rio. A magia tinha ido embora, com a tecnologia
mais uma vez segurando as rédeas do planeta, e a floresta mágica de ontem
era um lugar encharcado, lamacento e desagradável. Confrontado com a
adorável escolha de permanecer em minha forma de animal ou trotar pela
cidade nua, decidi que o pêlo era preferível. Atravesse o rio e pulei nos
telhados.
Tinha planejado quebrar a lei com meu ex-namorado, que eu professava
odiar, quebrei a lei, matei o cão de guarda/criatura mágica do dono da casa,
vítima do meu assalto, em um ataque de frenesi assassino, e depois fugiu pela
cidade, perambulei pela floresta e adormeci em uma árvore na minha forma
de animal.
Quando resolvi saí dos trilhos da lei, não o fiz de maneira suave. Não, eu
capotei algumas vezes, voei pelo ar e explodi em uma bola de fogo.
Cheguei ao meu prédio, subi as escadas para o meu apartamento e olhei
para a minha porta. As chaves estavam na minha bolsa, que eu havia largado
no chão antes de combatermos o monstro no armazém. As barras de metal
nas minhas janelas eram soldadas, embutida na parede de tijolos.
Provavelmente poderia arrancá-las, se eu me esforçasse o bastante e
envolvesse alguma coisa em torno de minhas mãos, já que as barras tinham
prata nelas, mas tiraria um pouco da parede com elas. Como diabos eu ia
entrar sem quebrar a porta?
Passos vieram de baixo. Um momento depois e a Sra. Haffey subiu as
escadas, carregando algo enrolado em um pano de cozinha.
Maravilha.
A Sra. Haffey viu minha bunda peluda e parou. Por um longo segundo
nos entreolhamos, ela em um roupão rosa e eu, um metro e oitenta de altura,
peluda, ensanguentada, e cheirando como um cachorro molhado que rolou
em um pântano.
Não grite. Por favor, não grite.
A Sra. Haffey pigarreou. — Andrea? É você?
— Sim, senhora. Bom Dia.
— Bom Dia. Aqui, fiz-lhe um bolo de cenoura na noite passada. —Ela
entregou o objeto enrolado no pano para mim.
Eu peguei e cheirei, enrugando meu nariz preto. — Obrigada. Cheira
maravilhosamente bem.
— Eu só queria te agradecer por Darin. Nós estamos juntos há tanto
tempo. Eu só não sei o que faria sem ele. —Ela deu um passo em minha
direção e me abraçou.
Oh meu Deus, o que eu faço?
Abracei-a de volta, tão gentilmente quanto pude, com um braço.
— Se cuida, agora. —Disse a senhora Haffey sorrindo e descendo as
escadas.
Ela abraçou minha eu peluda, fedorenta e manchada de sangue. Ela não
fazia ideia, mas eu correria de volta para aquele porão e lutaria contra uma
centena daqueles insetos só porque ela não tinha gritado quando me viu.
Eu precisava entrar e mudar para a minha forma humana, pronto. Antes
que qualquer vizinho decidisse ligar para a polícia porque havia um monstro
invadindo o apartamento da ‘boa garota texana’.
Agarrei a maçaneta da minha porta. Ele virou na minha mão, mas meu
cérebro não processou imediatamente e eu bati meu ombro nela. A porta se
abriu com um baque estrondoso e eu entrei no apartamento, agachando-me.
Meu apartamento cheirava a Raphael. Se ele ainda estivesse aqui, não
havia como não ter me ouvido.
Chutei a porta, rosnei um pouco para que ele soubesse que eu estava
falando sério e comecei a procurá-lo. Um rápido olhar me disse que Raphael
não estava em minha sala. Meu quarto também estava vazio e meu armário
também. Fiz um círculo completo, cheguei à cozinha e parei. Minha bolsa
estava no meio da mesa da cozinha, com meu vestido e sapatos ainda dentro
dela. Minha toalha de mesa estava faltando e arranhões longos e irregulares
cobriam a superfície da mesa. Os arranhões pareciam suspeitosamente com
letras.
Eu subi em uma cadeira e olhei para ela de cima.
MINHA
Oh isso era ótimo. Fantástico. Muito maduro. Talvez ele puxaria minhas
tranças para o lado ou me deixaria grudada na minha cadeira.
Eu empurrei a mesa. Quem ele achava que era, invadindo meu
apartamento e vandalizando meus móveis? Eu nunca fiz isso com ele. Nunca
arruinei nenhuma de suas coisas.
Fui tomar banho e me limpei.
Só me faltava essa, o que diabos eu deveria fazer com essa coisa de
MINHA? Um momento ele estava empurrando outra mulher debaixo do meu
nariz, no próximo ele decidiu que estávamos de volta e não conseguia
entender por que eu não estava concordando com ele. Uma velha canção
107
surgiu em minhas memórias. Love is all you need . Talvez, mas na vida real
o amor raramente é tudo o que você precisa. Raphael e eu também tínhamos
orgulho, culpa e raiva, ciúme e mágoa, e tudo isso estava misturado a esse
108
gigantesco nó górdio . Desembaraçar parecia impossível.
Capítulo 10
Doolittle era um homem muito bom. Parecia ter cinquenta e poucos anos,
embora provavelmente fosse mais velho, metamorfos viviam mais e pareciam
mais jovens do que a maioria das pessoas comuns. Sua pele era escura, quase
azulada, cinza prateado salpicava seu cabelo curto e escuro, falava em voz
baixa com um suave sotaque sulista; e os óculos, que insistia em usar,
combinavam com uma expressão ligeiramente distraída, faziam com que se
parecesse com um bom professor universitário, alguém especializado em
história ou antropologia e que passava a vida num escritório cheio de livros.
Você meio que esperava que ele sentasse ao seu lado e trocasse uma ideia
franca sobre uma civilização há muito esquecida e assegurá-la de que
realmente aquele oito em sua prova não foi tão ruim.
No entanto, no momento em que qualquer tipo de lesão, por mais trivial
que fosse, se manifestava, Doolittle se transformava em um tirano teimoso e
desagradável, que tratava você como se tivesse seis anos de idade. Ele era
como um curandeiro do bando. Consertava ossos quebrados, removia prata e
outros objetos estranhos, costurava feridas, e geralmente passava cada minuto
acordado, certificando-se de que os metamorfos do bando continuassem
respirando.
Sua persistência obstinada confirmava a fama que a sua contraparte
animal tinha. Se houvesse leis da natureza, uma delas certamente diria que
119
discutir com um texugo era inútil.
No segundo em que pisei na soleira da porta, Doolittle me colocou em
uma cadeira. Ele tirou meu sangue e examinou o local da picada no meu pé,
que eu não havia percebido, e a maior no meu ombro, que adquirira um
inchaço roxo-amarelado. Barabas contou a cena, enquanto Julie e Ascanio
pairavam ao fundo, quietos como dois ratos.
— Víboras? —Perguntou Doolittle, checando meus olhos.
— Aparentemente sim. Pelo menos a que eu peguei era. Não uma
cascavel, no entanto. —Barabas deu de ombros. — Presas de oito
centímetros.
— Náusea? —Doolittle me perguntou.
— Sim. —Eu ainda estava suando também. O suor encharcava meu rosto
e minhas costas, úmido e frio, e meu coração batia rápido demais. A mordida
no meu braço também não se fechava. Isso era um mau sinal. O Lyc-V
fechava a maioria das feridas em minutos.
Alguém bateu na porta do escritório. Barabas foi até a porta, deslizou
para o lado a portinhola de metal que cobria a estreita janela do espião e
olhou através dela.
— É o seu namorado.
— Barabas, abra a maldita porta, —rosnou Raphael.
Barabas deslizou desbloqueou a fechadura. — Você quer que eu o deixe
entrar?
— Estou pensando sobre isso.
Barabas deslizou bloqueou a fechadura novamente. — Ela está pensando
sobre isso.
— Andrea, —Raphael chamou. — Me deixe entrar.
— A última vez que eu vi vocês dois juntos, estavam tão felizes, —disse
Barabas. — Só por curiosidade, Raphael, como diabos você conseguiu foder
isso?
A voz de Raphael ganhou a qualidade perigosa de quem estava prestes a
ficar louco. — Olha que interessante do que me lembrei, como estão as coisas
com você e Ethan?
— Não é da sua conta, —disse Barabas.
— Deixe-me entrar e eu não vou arrancar sua cabeça.
— Você não vai arrancar a minha cabeça de qualquer maneira, —disse
Barabas. — Nós somos amigos.
— Deixe ele entrar, —eu disse. Se não o deixássemos entrar, ele não iria
embora. Apenas ficaria no pé da porta gritando com Barabas obscenidades
um para o outro. Minha cabeça doía o suficiente sem a gritaria.
Barabas abriu a porta e Raphael entrou. Ele me viu e ficou pálido.
— Não a agite, —advertiu Doolittle.
— Não sonharia com isso. —Raphael puxou uma cadeira e sentou-se ao
meu lado.
Doolittle olhou meus olhos com uma lanterna, escutou meu batimento
cardíaco e colocou um copo de líquido escuro na minha mão. — Beba isso.
Eu tomei um pequeno gole. Tinha gosto de mistura de querosene com
120
terebintina . — Isso é horrível.
Doolittle olhou para mim através dos óculos. — Agora, minha jovem,
você vai tomar todo esse copo. Se eu pude largar tudo e correr para cá, no
mínimo, você pode me pagar pela minha gentileza tomando o remédio.
Engoli a bebida. Queimou minha garganta e eu tossi. — Doutor, você está
tentando me matar ...
— Beba um pouco mais, —disse Raphael.
Apontei para ele. — Você ouviu o que o médico disse. Não me agite.
Bravamente tomei outro gole do material desagradável, tentando forçá-lo
para o estômago e mantê-lo lá.
— Muito bom, —Doolittle aprovou. — Lembro que eu te avisei para não
confrontar essa cobra.
— A cobra me atacou. Ou melhor, a mulher com presas de cobra me
atacou.
— Se você terminar o copo todo, eu vou te dar um pirulito.
Havia algo profundamente absurdo em toda essa conversa. — Pare de me
tratar como uma criança.
— Eu vou se você se acalmar e tomar o seu remédio. —Doolittle olhou
para Barabas. — Suponho que você não viu a mulher cobra em questão?
Barabas sacudiu a cabeça. — No segundo em que entrei, o médico cobriu
a cabeça dela.
— Que vergonha.
Tomei outro gole, eu nunca provei nada mais ruim. Preferia leite morno
com bicarbonato de sódio ao invés disso.
Tirei a Polaroid do meu sutiã.
— Aqui.
Raphael pegou a Polaroid dos meus dedos e entregou a Barabas sem uma
palavra.
Os olhos do meu advogado se arregalaram. — Por que diz 'Propriedade
de Jim Shrapshire'?
— Porque esse é o nome verdadeiro de Jim.
— Isso não explica nada, —disse Barabas.
— Se eu morresse, o PAD reivindicaria a cena e o bando ficaria fora da
investigação. Havia uma boa chance de que eles não deixassem o bando
examinar o corpo de Gloria. Mas quando eles encontrassem a Polaroid no
meu corpo, eles mostrariam para Jim e perguntariam a ele sobre isso. Ele
saberia procurar em suas fontes de seus conhecidos por criaturas com presas
retráteis.
— Você foi mordida e sua prioridade era tirar fotos? —Disse Barabas.
— Não a agite, —disse Raphael a ele.
— Parecia importante na hora.
Barabas olhou para Raphael. — Como você aguenta isso?
— Primeiro o trabalho. É assim que ela funciona, —disse Raphael.
Doolittle emitiu um longo suspiro de sofrimento. — Você sabia sobre
procedimentos de emergência de picada de cobra. Você nem pode alegar
ignorância. Isso foi apenas uma desconsideração deliberada de sua vida, isso
é exatamente o que foi O metamorfo texugo e o metamorfo suricato olharam
para a fotografia.
— Presas retráteis, —disse Barabas. — Como uma cascavel.
121
— Ou uma víbora Saw-scaled . —Doolittle franziu a testa. — Onde
esse mundo vai parar?
— O que há de tão especial sobre uma víbora Saw-scaled? —Perguntei.
— É uma cobra interessante, —disse Barabas. — Pequena, mal-
humorada, ativa depois de escurecer. Você anda por ela, te morde, você acha
que não é nada demais. Vinte e quatro horas depois você desenvolve
sangramento interno espontâneo. Mata mais pessoas do que qualquer outra
espécie de cobra na África. Também é deliciosa e tem um aperto de
mandíbula forte.
Bebi meu remédio desagradável e contei os detalhes para eles: Garcia
Construções, marcas de um veículo rebocado, mecânico, cheque com o nome
de Gloria e Gloria me atacando quando mencionei a faca.
— Então é a faca que vimos quando invadimos o escritório de Anapa, —
disse Raphael.
Barabas enfiou os dedos nos ouvidos. — Lálálálá, eu não estou ouvindo
nada sobre qualquer invasão.
— Sim, —eu disse a Raphael. — Eles estão todos envolvidos nisso.
Ele franziu a testa.
Terminei o último gole do remédio e coloquei o copo na mesa. — Eu
quero meu pirulito. Mereço.
Doolittle enfiou a mão na bolsa e ofereceu-me uma escolha: uva,
melancia ou laranja. Fácil. Peguei o de melancia e enfiei na boca. — Então,
como ela tem presas?
— É uma espécie de acréscimo de magia, —disse Doolittle. — Talvez
seja uma criatura que nunca vimos antes.
— Seu padrão de presas é semelhante aos ferimentos nos funcionários de
Raphael.
Doolittle assentiu. — Semelhante, mas infelizmente não podemos ter
certeza, porque não temos a cabeça dela.
— Além disso, havia várias mordidas de tamanhos variados em seus
corpos, —eu disse.
— O que significa que seus amigos ainda estão foragidos, —terminou
Raphael.
— Pessoas andando por aí com presas venenosas, —eu interrompi. —
Como isso é possível?
Doolittle olhou para mim com um sorriso irônico. — Como é possível
que apareçam em nós pêlos, presas e garras?
Touché.
Doolittle verificou meu sangue no tubo de ensaio e tirou um kit de couro
da bolsa. — A coagulação de sangue ainda é anormal. —Ele desenrolou o kit
de couro na minha mesa. Instrumentos estranhos de metal brilhavam, cada
um em um bolso de couro elegante. Parecia o tipo de kit de ferramentas que
um torturador medieval carregaria.
A mão de Doolittle parou no bisturi.
— Você vai me cortar, não é?
Doolittle assentiu. — Esse inchaço roxo em seu braço é o acúmulo de
Lyc-V morto combinado com veneno aprisionado. Temos que tirá-lo do seu
sistema. Você se lembra de como empurrar a prata do seu corpo?
— Sim. —Não é algo que você esqueceria.
Doolittle puxou uma cadeira e sentou ao meu lado, então nossos olhos
estavam nivelados. — Eu preciso fazer um corte no seu braço e inserir uma
agulha no músculo afetado pela picada. A agulha é feita de uma liga de prata.
Isso machucaria. Aí sim. E doeria como o inferno.
Raphael se aproximou e cobriu minha mão com a dele.
— Devemos dar alguns minutos para o seu corpo reagir, —disse
Doolittle. — Então eu quero que você se concentre em empurrar a agulha de
prata para fora. Isso irá estimular o fluxo sanguíneo e linfático direto na
ferida e expulsar o veneno. Se limparmos o veneno, suas chances de
sobrevivência serão significativamente maiores.
Os pelos da minha nuca se arrepiaram. Eu estava cansada, muito cansada,
e meu corpo parecia ter sido espancado com um saco de pedras. O simples
pensamento de agulhas de prata me fez querer encolher.
— Você pode fazer isso, —disse Raphael. — Pare de ser um bebê sobre
isso.
— Foda-se.
— Isso mesmo, —disse ele. — Vamos lá, mulher corajosa. Mostre-me o
que você tem.
Eu apertei os braços da cadeira. — Faça.
Raphael colocou as mãos no meu ombro direito, me prendendo na
cadeira. Barabas me segurou na esquerda.
Doolittle pegou um bisturi. Sua mão piscou, rápido demais para ver. A
dor me picou, rápida e afiada. Sangue negro jorrou da ferida e Doolittle
limpou-a com gaze. — Isso vai doer.
Uma agulha incandescente se empurrou em meu braço. Meu corpo inteiro
gritou em alarme. Parecia que alguém tinha feito um buraco no meu músculo
e derramado metal derretido nele.
— Aguente firme, —Doolittle me disse, sua voz suave. — Você está indo
muito bem. Maravilhoso. Segure isso. Um pouco mais …
Eu rosnei e agarrei o braço com a mão esquerda. Barabas me segurou
firme.
— Você gostou da minha mensagem na mesa? —Raphael perguntou.
— Adorei, —disse através dos dentes cerrados. — Vou ter que retribuir o
favor mais tarde.
A dor cresceu cada vez mais, queimando meu braço. Meus membros
tremiam sem controle.
— Não se transforme, —disse Doolittle. — Você está indo bem. Você
está indo muito bem. Só mais um pouquinho. Um pouco mais, Andrea.
A dor percorreu meu músculo até o osso e raspou-o com dentes
serrilhados afiados.
Eu rosnei.
— Quase lá, —Doolittle cantou. — Quase.
— Nós estamos aqui, —Barabas me disse. — Nós estamos aqui com
você.
Eu não ia aguentar. Eu não ia aguentar nem mais um segundo. Meu corpo
torceu, procurando uma maneira de escapar. Manchas leves apareceram na
minha pele.
— Não se transforme, —retrucou Raphael.
— Cale a boca.
— Seja boazinha ou eu vou te beijar na frente de todo mundo.
— De jeito nenhum, —eu rosnei. Tinha que aguentar e continuar viva
para que eu pudesse dar um soco no rosto dele. Era um grande objetivo.
— Espere, —disse Doolittle. — Mais dez segundos.
Aaah. Isso dói. Dói, dóii, dóiiiiiiii ...
— Expelir, —replicou a voz de Doolittle.
Eu concentrei cada centímetro da minha vontade na dor.
O calor se espalhou através de mim, penteando minha carne com dedos
pontiagudos.
Saia do meu corpo. Dê o fora!
A agulha estremeceu.
Eu gritei.
— Expulse, —insistiu Doolittle.
— Você pode fazer isso, —Barabas me disse.
Eu empurrei. A agulha deslizou livre e o sangue escaldante jorrou pelo
meu braço. Ele ficou cinza, roxo e, finalmente, vermelho brilhante. Raphael
soltou meu braço e eu lhe dei um soco no peito. Era a parte mais próxima
dele.
— Boa menina. —Doolittle exalou. — Muito bem.
Limpei as lágrimas dos meus olhos e vi Ascanio. Ele olhava para mim.
Seus olhos eram enormes e aterrorizados.
— Que seja uma lição para você, —disse Doolittle. — Não se deixe ser
mordida. Peguem alguma comida na geladeira. Andrea precisa comer.
É incrível o quanto um bom sanduíche, ou três, podem fazer por você.
Minha cabeça parou de girar e eu não sentia mais como se minhas pernas
fossem de geleia. Olhei para o presunto cada vez menor, do qual Julie tinha
esculpido a carne para os meus sanduíches. Não cabia mais nada no meu
estômago, mas eu ainda estava com fome.
Doolittle colocou uma pequena caixa de plástico na minha frente e abriu
o topo. Seis pequenas ampolas em uma fileira ordenada.
— Antiveneno, —ele disse e me mostrou um objeto que parecia uma
arma. — Uma ampola entra aqui. Depois de ouvir um clique, pressione-o
contra a pele e puxe o gatilho. Não use em humanos. Está na forma de uma
arma, então você não deve ter dificuldades em usá-la.
Uma pistola de antiveneno, carregue, ouça o clique, aperte o gatilho.
Tudo bem, eu poderia fazer isso.
— Infelizmente, isso é tudo que posso fazer até saber mais, —disse
Doolittle. Ele se aproximou e olhou nos meus olhos. — Eu aconselho
fortemente contra qualquer atividade física pelas próximas vinte e quatro a
quarenta e oito horas. Nada extenuante. Sem relações sexuais, sem corrida e
sem luta. Você me entende?
— Perfeitamente.
— Eu não sou ingênuo o suficiente para acreditar que você seguirá meu
conselho.
— Eu juro solenemente atender a pelo menos um terço disso. ‘Nenhuma
relação sexual’ não será um problema.
Barabas riu baixinho.
Doolittle sacudiu a cabeça. — Se você sentir que vai desmaiar, tome
outra dose de antiveneno e se deite.
— Sim senhor.
Doolittle balançou a cabeça novamente e foi arrumar suas ferramentas.
Barabas entrou em seu lugar e se encostou na minha mesa, com os braços
cruzados sobre o peito. — Como seu advogado, sou forçado a aconselhá-la a
ficar longe da cena do crime. Nós dois sabemos que você não vai, mas se for
pega, haverá repercussões.
— Obrigada pelo aviso. —Agora eu tinha o conselho de um médico e um
advogado. Tentei lutar contra um bocejo, mas ele ganhou. — Eu
definitivamente vou levar isso em consideração.
Eu tinha que voltar para a cena do crime. Todos na sala sabiam disso.
— Há outra coisa e você não vai gostar de ouvir, mas como seu
advogado, estou acostumado com isso. Sua posição com o Bando é
indefinida. Isso torna as coisas muito mais complicadas do que precisam ser.
Torne-se um membro oficial.
Acertar as coisas com a mulher que enviou duas boudas para me bater.
Certo.
Barabas olhou para Julie. — Por favor, pegue sua bolsa. Estamos
voltando para a Fortaleza.
Julie cruzou os braços. — Mas …
— Julie, —Barabas disse calmamente. — Por favor, pegue sua bolsa.
Julie foi para a cozinha e voltou com a mochila.
Meus olhos estavam aparentemente produzindo cola em vez de umidade,
porque eu tinha dificuldade em mantê-los abertos.
— Leve Ascanio com você também, —eu disse. O garoto parecia
realmente abalado.
— Não, —disse Raphael.
Eu me virei para ele. — Você não pode dar ordens aqui.
— Eu ainda sou o Alfa dele. Ascanio ou eu, um de nós vai ficar aqui com
você e ficar de guarda enquanto você dorme. Gloria está morta e agora seus
amigos e parentes podem estar procurando por você. Você mal consegue
manter os olhos abertos. Eu não me importo com o quão bom é essa porta,
você precisa de alguém acordado e alerta caso eles apareçam. Isso pode ser
Ascanio se você preferir, mas eu estou mais do que feliz em ficar na cama
com você e te abraçar enquanto você dorme. É a sua escolha.
Chega um ponto na vida de todo mundo que você está cansado demais de
discutir. Eu abri minha boca e percebi que tinha atingido esse ponto. Se eles
não saíssem no próximo meio minuto, eu adormeceria sentada. — Eu vou
ficar com o garoto.
Ascanio piscou. Julie pisou no pé quando passou por ele e ele lhe deu
uma cotovelada nas costelas.
— Ligue para mim se acontecer alguma coisa, —Barabas me disse.
— Certo.
Um momento depois, o advogado e o médico foram embora. Raphael e
eu nos entreolhamos.
— Vá embora, —eu disse a ele.
— Por enquanto, —disse ele. — Eu voltarei.
— Eu não vou deixar você passar pela porta.
— É o que vamos ver. —Raphael se virou para Ascanio. Proteja-a.
— Sim, Alpha.
Ele saiu. Ascanio fechou e trancou a porta atrás de si.
Ponderei se valeria a pena me forçar a subir para a cama ou se eu deveria
simplesmente deitar no agradável e confortável piso de madeira. Minha
dignidade ganhou. Eu sou durona, deus, que droga. Poderia encarar doze
degraus. Venceria esses doze degraus.
Eu me arrastei até a cama armada no andar de cima e desmoronei de
bruços. Tentei tirar meus sapatos, mas o mundo escorregou pelos meus dedos
antes que eu tivesse a chance de levantar minha cabeça do travesseiro.
— Andrea? —Ascanio sussurrou ao meu lado.
Eu abri meus olhos.
Ele estava agachado ao lado da cama. — Sinto muito em te acordar.
Minha mãe está do lado de fora. Posso deixá-la entrar?
— Claro que você pode deixá-la entrar.
— Obrigado.
Ele foi embora. Esfreguei meus olhos e me sentei. O relógio de corda na
mesa de cabeceira perto da cama dizia sete da noite. Todas as células do meu
corpo doíam. Lá embaixo, a tranca tiniu, Ascanio estava abrindo a porta.
Forcei-me a ficar em pé, atravessei o sótão e sentei-me no topo da escada.
Ascanio abriu a porta e ficou de lado. Martina entrou. Ela tinha um raro
olhar, uma espécie de beleza régia que misturava severidade e sensualidade,
mas não muito inclinada a qualquer um deles. Seu cabelo escuro coroava sua
cabeça em uma trança enrolada. Sua pele bronzeada era impecável. Suas
feições eram bem definidas, e ela se mantinha com grande equilíbrio, tão
autocontrolada com uma confiança silenciosa que as pessoas gravitavam para
ela. Barabas a chamava de rainha Martina. Ela usava jeans e uma blusa cor de
azeitona, mas o apelido ainda se encaixava.
Ascanio fechou a porta, trancou-a e ficou ali sem jeito. Eu nunca o tinha
visto estranho antes.
— Como você está? —Martina estendeu a mão para tocar sua bochecha,
mas parou antes do contato real, como se tivesse pensado duas vezes.
— Eu estou bem ... obrigado.
— Eu trouxe-lhe o seu favorito, —disse ela, entregando-lhe uma cesta.
Ascanio tirou a toalha da cesta e sorriu. Era um sorriso tímido de criança,
tão em desacordo com a sua personalidade adolescente de Don Juan. Fiquei
olhando, tentando entender.
— Experimente esses aqui, —disse ela.
Ascanio olhou para mim.
— Tudo bem, —disse Martina. — Vá. Eu vou conversar com Andrea.
Ascanio pegou a cesta, inclinou-se e beijou a mãe na bochecha. Então ele
se virou e foi para a cozinha.
Martina subiu as escadas e sentou-se ao meu lado.
— O que há na cesta? —Perguntei.
122
— Cannoli , —disse ela. — Ele realmente gosta deles.
E ela veio até aqui, a uma hora da Fortaleza, apenas para trazê-los. Algo
não estava certo.
— Raphael já contou a nossa história? —Ela perguntou.
— Não. —Sabia que por algum motivo Ascanio não viveu todo a sua
vida com o clã, mas era só isso que eu sabia.
Ela assentiu. — Eu era jovem e morava no meio-oeste. Não fui mordida,
eu nasci uma bouda. Minha mãe também era bouda, meu pai era um
metamorfo lobo. Eu tinha uma família maravilhosa, Andrea. Era muita
amada.
— O que aconteceu? —Perguntei. Engraçado, eu pensei que toda a sua
autoconfiança criaria uma distância, mas ela parecia muito legal. Sua voz me
deixou à vontade.
— Tivemos uma inundação, —disse ela. — Uma daquelas inundações
insanas que às vezes atinge estados como Iowa. O rio transbordou e destruiu
nossa cidade. Estávamos sentados no telhado e minha mãe viu nossos
vizinhos flutuando no carro, seus filhos no banco de trás. O carro afundava e
todo mundo estava gritando. O carro afundou, sumiu. Minha mãe era mais
forte que meu pai, então ela entrou logo depois atrás do carro e não voltou.
Meu pai mergulhou para tirá-la, mas ele também não voltou. Eu sentei lá no
telhado e chorei e gritei e gritei e implorei a Deus para deixá-los voltar, mas
não havia nada além de rio lamacento.
Eu podia imaginá-la sentada no telhado, chorando. — Isso é horrível.
— Obrigada. Meus avós me acolheram, mas não era a mesma coisa. Saí
assim que pude e viajei por aí, fazendo bicos aqui e ali, trabalhando em bares,
servindo de garçonete em lanchonetes. Eu era selvagem. Se um cara tivesse
olhos bonitos e belos bíceps, eu entrava no jogo. —Ela sorriu, uma pequena
faísca em seus olhos. — Procurando por amor em todos os lugares errados,
mas me diverti.
— Você achou o Senhor Certo?
— Eu encontrei muitos Senhores Certos Temporários. Nenhum deles
durou muito tempo. Não sabia disso na época, porque era jovem e estúpida,
mas o tipo de grande amor que eu estava procurando não poderia ter
acontecido comigo naquela época. Eu nem sabia que tipo de pessoa queria
ser, muito menos o que queria de um cara. Mas eu queria esse amor que
perdi, então tive essa brilhante ideia: engravidaria e teria um bebê. Um bebê
me amaria não importa o que, porque eu seria sua mãe. Nós seríamos uma
pequena família juntos. Seria como era antes de perder meus pais.
— Nunca é como antes.
— Eu sei disso agora, mas naquela época eu era egoísta, ferida, e muito
jovem. Conheci o pai de Ascanio. John era lindo. Homem bonito. E um
bouda como eu. Um pouco passivo demais, mas ele era gentil e muito
adequado. Seduzi-lo foi muito divertido, ele fazia tudo o que eu pedia. Eu
gostava em estar no comando. Ficamos juntos por dois meses quando
engravidei. Estava tão feliz. Eu disse a ele e ele chorou.
— Ele chorou? De alegria?
— Mais como de pavor.
— Ah não.
Martina assentiu. — Sim, isso deveria ter sido uma alerta para mim.
Aparentemente, John cresceu em um culto religioso adorando algum deus
inventado, e ele foi enviado ao mundo para uma peregrinação de um ano. Ele
chegou a um acordo sobre ‘pecar’ comigo, provavelmente porque eu era
muito boa em ‘pecar’ e ele gostava disso, mas uma criança o trouxe de volta
a realidade fanática. Nós não poderíamos ter um filho em pecado, e ele se
recusou a casar comigo a menos que eu voltasse com ele e seu profeta nos
casasse. O problema era que eu teria que dormir com o tal profeta para
purificar meu corpo.
— Não, —eu disse. — Foda-se isso.
— Essa foi a minha reação. É o meu corpo e eu não seria abusada dessa
maneira. John também me avisou que não seria um bom marido e nem um
bom pai. Eu disse que ele estava livre para pegar a estrada. Eu e meu bebê
ficaríamos bem. Mas John teve uma mudança de coração e ficou por perto.
Eu deveria ter arrancado a cabeça dele naquele momento, mas me iludi,
pensei que ele tinha ficado porque me amava. Entrei em trabalho de parto. O
hospital nunca tinha recebido uma metamorfo para dar à luz antes e o meu
parto foi uma coisa longa e terrível. Então eu consegui dá à luz a Ascanio e
valeu a pena. Ele era tão lindo. Eu estava lendo um livro francês na época
sobre um escultor e ele tinha um aprendiz ridiculamente bonito, cujo nome
era Ascanio. Eu sabia exatamente que nome meu bebê. O hospital me sedou
depois disso para me deixar descansar. Quando acordei, meu lindo bebê tinha
ido embora. John o levou.
— Ele o quê?
— Ele o levou de volta ao culto. Ele me deixou uma nota, o nojento.
Dizia que ele não podia deixar seu filho ser criado em pecado, e já que
Ascanio era um inocente, ele o levaria embora, mas eu não poderia ir, porque
eu estava maculada pelo nosso pecado.
— Eu o teria matado. Eu o teria assassinado ali mesmo.
— Eu tentei, —disse Martina. — Procurei por ele durante anos. Estava
amarga e quebrada até então, e é quando a Tia B me encontrou. Ela estava em
algum tipo de viagem. Eu estava ... bom, o termo apropriado seria fodida.
Não havia mudado para a minha forma animal por anos. Não parecia que isso
fazia sentido. E isso só me trouxe miséria. Ela foi atrás de mim. ‘Venha ficar
com sua própria espécie. Não precisa se comprometer com nada. Apenas
venha morar conosco um pouco e, se você não gostar, está livre para ir’.
Eventualmente, eu fui com ela. Não importava de um jeito ou de outro. Então
vim para cá e aos poucos, pouco a pouco, me recuperei. Então a ligação veio.
O profeta do culto decidiu que meu filho estava competindo demais e estava
estragando seus planos de harém, então ele nos chamou para ir buscá-lo. Nós
fomos — E John?
— Ele morreu há um tempo atrás. Uma coisa boa também, porque eu o
teria matado. Então, como você pode ver, é difícil para nós dois, —disse
Martina. — Ascanio nunca teve uma mãe e eu nunca tive um filho. Nós
tentamos o melhor que podemos e quando encontramos algo que pode fazer
um de nós feliz, nós dois suspiramos aliviados. Eu faço a ele cannoli e ele me
compra sabonete perfumado com seu dinheiro do estágio. Eu tenho duas
gavetas cheias desse sabonete. —Um pequeno sorriso feliz iluminou seu
rosto. — Se você alguma vez ficar sem sabonete, me avise. Eu tenho o
suficiente para manter o Bando inteiro limpo por uma semana.
Realmente gostei dela. Não imaginei que iria, mas gostei. Ainda assim,
algumas coisas precisavam ser esclarecidas. — Você não veio aqui para me
contar essa história, não é?
—Não. Eu vim aqui para falar sobre o clã e a Tia B.
— Eu não quero ser rude, —disse. — Mas não há nada que você possa
dizer para me fazer jogar bola com a Tia B. Eu não vou lá e não vou implorar
e me arrastar para ser admitida no clã só para ser uma das garotas de recado
dela. Isso não vai acontecer. E acho que é covardia da parte dela mandar você
para essa conversa. Executoras não funcionaram, nem você, então me
pergunto qual será seu próximo passo. Quem mais ela enviará?
— Ela não me enviou, —disse Martina. — Foi meu filho que pediu.
— Ah.
— Você sabe o que eu faço pelo clã? —Ela perguntou.
— Não.
— Sou uma terapeuta licenciada, —disse ela. —Especializei-me nas áreas
de terapia familiar, controle da raiva e de estresse, ajustamento de
adolescente e aconselhamento sobre perda e luto. Eu sou uma das dez
conselheiras da Bando.
— Eu não estou no Bando, —disse a ela.
— Eu sei. —Ela sorriu. — Este é um presente.
— Eu não preciso de terapia. —Soou hipócrita no momento em que saiu
da minha boca. — Certo, então talvez eu precise, mas eu não ... eu não sei.
— Isso não tem que ser uma sessão de terapia, —disse ela. — Isso
poderia ser apenas nós duas conversando. Poderíamos falar sobre Deb e
Carrie e sua conduta no estacionamento.
Eu olhei para ela. — Quanto Ascanio lhe contou?
— Ele não disse nada sobre o seu passado, se é isso que te preocupa, —
disse ela. — Exceto que você teve dificuldades, e houve abuso e isso esta
relacionado aos boudas. Ele queria que eu fosse até a Tia B e explicasse a ela
que as boudas não poderiam continuar invadindo seu território, porque elas
iriam te levar longe demais. As palavras exatas foram ‘Elas estão tentando
fodê-la em seu próprio território.’ Ele está preocupado que você acabe
matando alguém.
— Ele está certo, —eu disse a ela.
Martina tirou um pequeno gravador. — Eu fiz isso para você.
Ela apertou o botão. A voz da Tia B soou no pequeno alto-falante.
— … Eu disse para ir lá e descobrir o que eles conversaram. Pedi que
fossem espertas. Eu disse para alguém ser grosseira?
— Não, senhora, —disse Carrie calmamente.
— Então, por que você se decidiu improvisar?
— Nós pensamos ... —Deb começou e ficou em silêncio.
— Eu não faria muito disso, se eu fosse você, querida. Quando você
pensa, você acaba com ossos quebrados. Além disso, fico muito feliz quando
você me deixa pensar por você. Quer me fazer feliz, não é?
— Sim senhora, —duas vozes femininas em coro.
— Vou explicar as coisas para vocês agora, porque não quero que se
sintam excluída. Vocês achavam que, como Andrea é bestial, poderiam
facilmente dominá-la? Andrea é uma sobrevivente. Nunca subestimem isso.
Ela aprendeu a matar, treinou para isso, praticou. Você luta por diversão e
dominação. Ela luta em todas as batalhas como se fosse pela vida dela. Se
você atacá-la, ela vai te rasgar como um vestido mal costurado. Andrea
também entende como as leis que defendem o direito humano funcionam. E
todos nós sabemos o quanto isso é importante, não é?
Outro coro. — Sim, senhora.
— Vocês entendem agora porque ela seria uma vantagem para o clã?
— Sim, senhora.
Eu era uma vantagem ativo. Isso era novidade para mim.
— Eu não me importo se ela é bestial, elefante ou ornitorrinco,
precisamos dela. Ela é como um pinheiro. Não vai dobrar, quebra, mas não
dobra. Passei meses tentando convencê-la de que se juntar a nós era do
interesse dela e vocês duas decidiram passar uma chave nos meus planos.
— Eu sinto muito, —disse Carrie.
— Eu também, —Deb ecoou.
— Vão embora e tentem ficar longe de mim por um dia ou dois, certo?
— Sim, senhora.
A porta se fechou. Um grito terrível seguiu-se, o som do metal sendo
torturado.
— Era um suporte de livros muito bom, —disse a voz de Martina.
— Bem, agora é um pedaço muito legal de lixo, —disse a Tia B.
Eu olhei para Martina. — Aquele em forma de coruja? —Era um lindo
par de suportes para livros, de metal, com acabamento em bronze claro, com
123
grandes cristais de âmbar Swarovski para os olhos. A Tia B usava-as em
sua mesa para evitar que os arquivos caíssem do porta-arquivos.
Martina parou a gravação e assentiu. — Ela apertou um na mão. Sabe
quando você esmaga um donut de geleia no seu punho e o recheio derrama?
Isso é o que parecia. —Ela apertou o botão.
— ... Ascanio falou sobre o que Andrea e Raphael falaram? —Perguntou
Tia B.
— Não. Ele levou Rebecca lá.
O gravador ficou em silêncio.
Tia B suspirou. — Por que é que nos sacrificamos e trabalhamos duro
para impedir que nossos filhos cometam os mesmos erros que nós, e eles
insistem em ignorar tudo o que dizemos?
— Provavelmente porque eles são nossos filhos e na idade deles nós
ignoramos nossos pais também.
Tia B suspirou novamente. — Você vai vê-la?
— Sim.
— Você vai me dizer como foi?
— Você sabe que qualquer coisa que ela diga é confidencial, —disse
Martina.
— Eu sei. Apenas me diga se correu tudo bem ou não. Precisamos dela.
Martina desligou o gravador e colocou-o entre nós.
— Isso não muda nada, —eu disse a ela.
Martina olhou para mim. — Qual é a alternativa, Andrea? Como você vê
esta situação? Você bateu nela, em público.
— Ela me desceu o braço em mim nas escadas.
— Aquilo foi um tapinha amoroso comparado ao que ela poderia ter feito.
Você a desafiou. Ela não podia ignorar. Você não iria, no lugar dela.
Não, eu não faria. Teria feito a mesma coisa. Rápido também.
— Você pode ir embora, —disse Martina.
— Eu não vou embora. Esta é minha casa agora. Por que eu deveria sair?
— Então, juntar-se ao Bando é sua única escolha. Você não pode ser
avulsa, Andrea. É a nossa lei e você está sujeita a ela, porque você é uma
metamorfo. Você é um de nós.
Eu cerrei meus dentes. — Eu poderia desafiá-la.
— Você perderia. Mas suponha que você ganhasse, —disse Martina. —
Então o que? Eu não vou seguir você, Andrea. Você não lutou ao meu lado,
não me provou que merece me liderar. Não conheço você e não confio em
você. Se você tivesse sucesso e matasse a Tia B, todos seríamos obrigados a
seguir você. Eu não sei onde a lealdade de Raphael estaria, mas ele teria que
escolher entre a mulher que ama e sua família. É uma cruel escolha para se
fazer.
— Raphael e eu estamos em um lugar complicado.
— Eu não duvido disso. Somos boudas, afinal de contas. —Martina
encolheu os ombros. — Se uma mulher vê seu namorado em um restaurante
com outra mulher, ela pode marchar e confrontá-lo lá. Ela pode esperar e
confrontá-lo mais tarde. Mas se uma bouda vir outra mulher com seu
companheiro, ela jogará a bebida na cara dele, depois a mesa e talvez um
membro infeliz da equipe do restaurante, se por acaso estivesse por perto.
Nós fazemos declarações dramáticas, na luta e no amor.
— A vida seria mais fácil sem o drama, —eu disse a ela.
— Não para nós. Temos que desabafar, Andrea. É assim que
funcionamos. Mas de volta ao clã. A atual segunda de B não é adequada para
ser a responsável pelo clã. Ela é beta, porque ninguém mais quer o emprego e
a responsabilidade. Nós ficaríamos sem líder e teríamos que lutar. Você
realmente seria tão egoísta, Andrea?
Ela estava certa. Eu estava errada. Não queria ser governada pelas leis dos
Metamorfos, e uma parte muito esquisita de mim queria pisar nos meus pés e
gritar que não era justo. Mas era. Um cidadão do país estava sujeito às suas
leis, e mesmo que algumas pessoas achassem que isso era injusto, elas ainda
tinham que obedecê-las. Quando não o fazia, pessoas como eu os prendiam.
Eu não queria ser tratada como especial porque eu era bestial. Mas eu
estava sendo, porque eu tinha empurrado a situação para o canto, e agora todo
mundo estava fazendo concessões especiais para mim.
O que realmente tenho a perder juntando-me ao clã? B estava certa, eu
tinha as ferramentas adequadas. Poderia juntar-me, assumir uma posição de
responsabilidade, provar a mim mesma e, quando chegasse a hora, tiraria as
boudas da Tia B.
Esse pensamento me intrigou, virando-o de um jeito e de outro na minha
mente. — Logicamente, sei que você está certa. Tudo o que você disse faz
sentido. Mas parece que estou desistindo de alguma forma.
Martina assentiu. — Você sente que estar sendo forçada, e tem que se
juntar ao Bando não porque quer, mas porque deve fazer isso para sobreviver.
Esta é a sua casa e você quer morar aqui nos seus termos, não nos do Bando.
— Sim.
— O que é quer fazer na vida, Andrea?
Olhei para ela. Eu não tinha ideia de como responder.
— Cada um de nós escolhe um propósito, —disse Martina. — O meu é
ajudar as pessoas a se curarem. Qual é o seu?
— Eu não tenho certeza, —disse a ela.
Martina sorriu. — Algo para se pensar.
Eu era uma metamorfo. Ninguém poderia tirar isso de mim. Ninguém
poderia me forçar a me aposentar cedo e as boudas precisavam de mim. Mas
eu não tinha ideia de qual era o meu objetivo na vida. Nunca havia pensado
nisso em termos grandiosos.
— Obrigada por ter vindo, —eu disse. — Você vai dizer a Tia B que eu
vou visitá-la em um ou dois dias?
Martina assentiu. — Eu vou deixá-la saber.
Capítulo 11
Acordei cedo e fiquei na cama por alguns minutos, olhando para o teto,
antes que meu cérebro finalmente registrasse que havia um novo candelabro
sobre ele. Eu não devo ter notado isso na noite passada, quando finalmente
caí na cama, exausta e enfurecida. Um disco de prata brilhante de cerca de
quarenta e cinco centímetros de diâmetro estava preso diretamente ao teto.
Longas folhas de cristal onduladas, modeladas com nervuras de várias
texturas em cascata, suspensas por correntes escondidas dentro de contas de
cristal. Finas gavinhas de cristal, como os brotos curvados de uma videira,
penduradas entre as folhas, translúcidas com luz, e entre elas, em correntes
mais reluzentes, esferas de cristal texturizadas, cobertas de prata, brilhavam
suavemente na brisa leve das janelas abertas. Era maravilhosamente
romântico, mas moderno, uma espécie de lustre que uma sereia do século
XXI poderia ter em sua caverna submersa ou uma Rainha do Gelo de um
conto de fadas poderia estar pendurada em seu palácio de gelo.
Era exatamente o tipo de candelabro que eu adoraria ter. Elegante,
feminino, romântico, mas sem um traço de fofura brega. E eu queria arrancá-
lo do meu teto. Ele me deixou tão brava.
Eu me empurrei para fora da cama. A fadiga ainda insistia nos meus
ossos, mas estava ficando melhor.
Sem náusea. Sem dor. Meu corpo deve ter vencido a guerra com veneno
de cobra. Agora, se eu pudesse ganhar a guerra comigo mesma.
A magia estava baixa e eu estava profundamente grata por não ter que
recorrer ao fogão a querosene. Entrei no escritório, confisquei o monitor de
Raphael e liguei o gabinete de Gloria na mesa da minha cozinha. Enquanto o
computador ligava, preparei dois pedaços de torrada do Texas, uma fatia de
pão grosso, com manteiga em ambos os lados e frito um pouco na frigideira,
e um bife pequeno, quase queimado dos dois lados. Eu precisava de calorias.
139
Fiz um café chocantemente forte em um ibrik , uma pequena cafeteira turca
que Kate me deu de presente e sentei-me com o meu café da manhã. Humm,
café, o café da manhã dos campeões. Delicioso e nutritivo.
Estava na metade da minha primeira xícara e nos arquivos de Gloria,
quando alguém bateu na minha porta.
O olho mágico revelou um homem negro carrancudo de trinta e poucos
anos, vestido de preto e parecendo que queria morder a cabeça de alguém.
Jim. Havia outras pessoas no corredor atrás dele. Que diabos?
Eu abri a porta. Jim estava na minha porta. Ele tinha mais de um metro e
oitenta de altura, cabelo curto e o tipo de constituição muscular resultado das
inúmeras lutas pela sua vida. Ele parecia mau, e ele trabalhava muito duro
para continuar parecendo assim. Jim gostava de ser subestimado.
Quando cheguei a Atlanta pela primeira vez, fiz questão de ler os
arquivos confidenciais que a Ordem mantinha sobre os metamorfos. Antes do
pai de Jim ser preso e morrer na prisão na mão de outro prisioneiro, Jim fazia
aulas avançadas e tirava notas excelentes. Poderia ter sido o que quisesse.
Um médico, como o pai dele. Um cientista. Um engenheiro. Mas a vida
entrou em seu caminho. Ele era o alfa do Clã Gato agora e supervisionava os
oficiais de segurança do Bando, o que significava que todos os dias ele
investigava, descobria e eliminava ameaças ao Bando. Jim amava seu
trabalho.
Atrás dele, oito pessoas lotaram o patamar: Sandra e Lucrezia, do clã
Bouda, ambas oficiais de combate, Russell e Amanda do Clã Lobo, dois
caras que eu não conhecia, Derek, o terceiro empregado da Cutting Edge, e
meu advogado, Barabas.
— Se isso é uma gangue de linchamento, você não trouxe pessoas
suficientes, —eu disse.
— Você não atende o seu telefone, —disse Jim. Sua voz estava em
desacordo com seu rosto: seu rosto dizia ‘ossos quebrados’, mas sua voz
dizia ‘cantora de balada romântica’.
— Eu o esmaguei.
— Por quê? —Perguntou Barabas.
— Estou tendo problemas de relacionamento, —eu disse a ele.
Derek sorriu. Ele costumava trabalhar com Jim antes de ingressar na
Cutting Edge. Aos dezenove anos, ele ainda era surpreendentemente bonito,
mesmo depois que alguns monstros derramaram metal derretido em seu rosto.
Nós tínhamos matado os filhos da puta, mas o rosto de Derek nunca curou
muito bem. Ele não estava desfigurado, mas tinha cicatrizes e agora parecia o
tipo de homem que você não gostaria de encontrar em um beco escuro. Eu o
vi entrar em um bar e parar a conversa só com as feições do seu rosto.
Jim, Derek, Barabas e dois boudas de combate, sem contar os outros
caras. Ou eles esperavam que eu lutasse com eles, ou algo pesado estava
prestes a acontecer.
— Podemos entrar? —Jim perguntou.
E ver o trabalho de Raphael? Infelizmente, dizer ao chefe de segurança
do Bando para ir embora parecia extremamente insensato, para não
mencionar um ponto negativo para a minha investigação. Ótimo. Os
metamorfos fofocavam mais que senhoras da igreja entediadas. Antes de hoje
à noite, o Bando inteiro saberia sobre o golpe de Raphael. — Claro.
Eu os assistir eles analisarem meu apartamento. Os dois boudas acenaram
para mim. Isso foi interessante.
Os oito metamorfos se espalharam pela minha sala e cozinha e de repente
meu apartamento parecia pequeno demais.
— Eu pensei que você e Raphael não estavam mais juntos, —disse
Barabas.
Fique calma. — Na verdade, nunca moramos juntos no meu apartamento.
Eu vivi com ele, —eu disse. Eu não morderia Barabas. Isso não era certo.
— Ele veio aqui ontem à noite enquanto ela estava fora, —disse Jim. —
Ele e um grande caminhão de mudanças.
— Oh. —Barabas pensou sobre isso. Seus olhos se iluminaram. — Oh!
Dá uma surra em meu advogado também não era interessante. Eu me
virei para Jim. — Você colocou um espião no meu apartamento?
— No segundo que você se tornou um alvo, —disse ele.
Bem, isso era a cereja do bolo. Eu inclinei minha cabeça. — Teria sido
muito bom você me deixar saber, gato. Odiaria confundir minha babá com
uma ameaça e, acidentalmente, atirar nele.
Jim piscou. Ah! Eu consegui surpreender o mestre espião.
— Então esses são móveis novos? —Barabas disse, seu rosto pura
inocência.
— Não me tente, Barabas.
As duas mulheres bouda abriram grandes olhos para o retrato da Tia B na
minha prateleira.
— Belas decorações, —Sandra ofereceu e mordeu o lábio, obviamente
esforçando-se para não rir.
— Sim, a maneira como a luz aqui toca no rosto da Tia B é muito boa, —
acrescentou Lucrezia.
— Foda-se, Lucrezia, —eu disse a ela.
Sandra gemeu e a risada explodiu de sua boca. Ela se dobrou. Lucrécia se
dissolveu em risadinhas.
Hoje à noite, não apenas o Bando, mas os metamorfos do Canadá
saberiam o que Raphael tinha feito no meu apartamento. Eu o mataria.
Cruzei meus braços no peito e me virei para Jim. — Existe uma razão
para todos vocês virem aqui?
— Sim, —disse Jim. — Por que você tem seu computador na mesa da
cozinha?
— Esta é uma longa conversa.
— Eu tenho tempo.
Nós nos sentamos à mesa da cozinha e eu o informei do que fiz ontem à
noite enquanto Derek fazia mais café para todos. Expliquei Anapa em termos
gerais, o Cajado de Ossos, o Volhv e a faca. No final, Jim acenou para o
computador. — Kyle, veja o que você pode fazer com isso?
Um sujeito corpulento que parecia dobrar varas de aço para se divertir,
sentou-se ao computador, abriu uma pequena maleta, ligou uma caixa com
luzes piscantes ao gabinete e seus dedos começaram a voar sobre o teclado.
Ele piscou para mim, ainda digitando sem olhar para o teclado.
— Gloria não tem impressões digitais nos arquivos, —disse Jim. — Sem
carteira de motorista, sem autorização municipal de funcionamento para a
loja dela, nada. Ela só um dia apareceu e montou seu bazar de bugigangas.
— E ninguém se importou porque era a rua White? —Como ele sabia de
tudo isso?
Jim assentiu. — Como posso facilitar sua vida?
Se não tivéssemos uma audiência, eu poderia tê-lo abraçado. — Gloria e
seus parceiros provavelmente assassinaram os funcionários de Raphael.
Primeiro, eu preciso que voltem a rua White e no resto da Warren e coletem
algumas informações. Quantas vezes ela estava na loja, quem vinha visitá-la,
quando saía, o que dirigia, onde ia e assim por diante. Trabalho braçal básico.
Em segundo lugar, preciso estabelecer o paradeiro de Anapa.
— Você ainda desconfia dele? —Jim perguntou.
— Há algo estranho nele. Eu tenho um pressentimento de que ele está até
o pescoço nesta bagunça, provavelmente não estava trabalhando com Gloria.
Terceiro, preciso de um especialista em faca ritual. Deixei uma mensagem
para Kate, então isso deve ser resolvido se eu puder afastá-la do lado de
Curran por cinco minutos.
— Eu vou cuidar disso, —disse Jim. — Vou falar com você assim que
soubermos alguma coisa.
Alguém bateu. Este era o meu dia para os visitantes aparentemente.
— Espere, —Jim disse e acenou para a porta.
Derek foi até a minha porta. Eu ouvi abrir e então a voz de Derek disse:
— Entre, detetives.
Barabas se escondeu atrás da parede da cozinha.
Collins e Tsoi entraram na minha sala de estar. Dois oficiais
uniformizados os seguiam e Derek na retaguarda. Os policiais encararam os
metamorfos. Jim e companhia encararam de volta.
— O que vocês estão fazendo aqui? —Collins finalmente perguntou.
— Eu poderia te perguntar a mesma coisa. —Jim manteve a voz calma.
— Precisamos falar com a Nash, —disse Tsoi.
— Por favor, fiquem à vontade, —disse Jim. — Nós não vamos estar no
caminho.
— Preferimos fazer isso na delegacia, —disse Collins.
— Minha cliente está sendo presa? —Barabas disse, saindo à vista.
Collins fez uma careta. Tsoi revirou os olhos.
140
— Você não precisava pular para fora como um jack-in-the-box ,—
disse Collins.
— Mas eu sei o quanto vocês dois amam surpresas. Gostaria de ver o
mandado, por favor, —disse Barabas.
Collins trancou os músculos de sua mandíbula.
— Nenhum mandado? —Barabas sorriu.
Tsoi estava olhando ao redor da sala, fazendo as contas. Dez metamorfos
contra quatro policiais. De repente, o rosto de todos ficou sombrio.
— Tudo isso acabaria se você cooperasse, —disse Collins.
— Estamos dispostos a cooperar, se conseguirmos os relatórios
completos do caso da negociante de antiguidades com acesso a evidências, —
disse Jim.
— De jeito nenhum, —disse Tsoi.
— A perda é de vocês. —Jim encolheu os ombros.
Collins se virou e saiu.
— Isso não acabou, —disse Tsoi e saiu com os dois oficiais de uniforme
a reboque.
Ninguém disse nada até Sandra na janela anunciar: — Eles estão entrando
em seus carros.
— Eu te disse, —Jim disse a Barabas. — Eu conheço Collins, ele é um
homem razoável.
Barabas suspirou. — Mas eu estava ansioso por uma luta.
De repente, as coisas fizeram sentido: de alguma forma, Jim descobriu
que os policiais estavam vindo me buscar, e ele tinha trazido seu bando para
impedi-los de me levar.
— Como você sabia que eles estavam vindo? —Perguntei a Jim.
— Eu tenho meus jeitinhos.
— Você grampeou a delegacia do PAD. —Filho da puta. Se ele fosse
pego, haveria o inferno para pagar.
Jim sorriu sem mostrar os dentes. — Algo parecido.
— Eles estão sob pressão pesada vindo de cima para resolver o caso, —
disse Barabas. — Pessoas com presas de cobra deixaram alguém no escritório
do prefeito muito nervoso. Quase me faz pensar se eles sabem algo que nós
não sabemos e querem colocar uma tampa sobre tudo isso o mais rápido que
puderem. O plano era buscá-la e espreme-la um pouco por informações. Não
podíamos deixar que fizessem isso, você tem coisas a fazer e não há motivo
para perder tempo em uma sala de interrogatório. Como o seu telefone não
estava funcionando, decidimos aparecer antes deles.
— Nós cuidamos um dos outros, —disse Lucrezia.
Mas eu não era um deles. Bem, não oficialmente. E ainda assim eles
vieram aqui para me apoiar. Olhei cada rosto e percebi que eles fariam isso
de novo e eu faria o mesmo. Em suas cabeças, eu já pertencia a eles.
Uau.
Pela primeira vez na minha vida eu não tinha que esconder quem eu era.
Eles estavam cuidando de minhas costas e era isso.
Meia hora depois todos saíram do meu apartamento. Kyle levou o
computador com ele. Na saída, Sandra passou por mim. — A Tia B quer uma
palavrinha com você. Hoje às onze na Confeitaria Highland. Ela disse que
não se atrasaria.
A pata suave da alfa Bouda. — Eu estarei lá.
Jim foi o último a sair. Ele parou na porta. — Vou providenciar a coleta
de informações no bairro da loja de antiguidades. Alguns dos meus homens
irão cavar a fundo e descobrir qualquer sujeira que Anapa tenha.
— Aha.
— Eu conheço Collins. Ele é competente e completo. Quando você sair
do seu apartamento, você terá um espião a mandado dele. Preciso que você
não faça nada por vinte e quatro horas ou um pouco mais. Você sabe como o
jogo é jogado: você é o para-raios. Guie-os, não os perca, vá almoçar com a
Tia B, visite um mercado ou algo assim. Vá a qualquer lugar, mas o mais
longe de Anapa ou da rua White. Deixe os policiais se concentrarem em
você, para que meu pessoal possa trabalhar em paz. Pode ter um dia de folga
de qualquer maneira. Você está horrível.
— Você passará sua vida solteiro, Jim.
— Fique longe da rua White.
— Tudo bem, entendi.
Eu o empurrei porta afora e tranquei. Tinha telefonemas para fazer.
Às onze horas, entrei pela porta da Confeitaria Highland usando calça
preta, camisa preta, botas de combate com ponta de aço e batom carmesim.
Combinava muito melhor com o meu eu novo. Minha escolta policial
clandestina convenientemente estacionou do outro lado da rua.
Localizado na Avenida Highland, o prédio de tijolos baixos que abrigava
a Confeitaria Highland sobrevivera às garras da magia quase intacta. Esta
área era chamada de Old Fourth Ward. Antes que a magia separasse Atlanta,
a Fourth Ward era um lugar de acontecimentos históricos com construções
históricas do início do século anterior, fábricas desativadas transformadas em
apartamentos e renovadas Cabanas de espingarda, estruturas longas, estreitas
e retangulares, uma vez usados pelos mais pobres, transformada em habitação
na moda. Supostamente o nome vinha da estrutura da casa: se alguém apontar
uma espingarda na porta e atirar, todos dentro da residência seriam atingidos
ou mortos de tão estreita que a casa seria.
A Old Fourth Ward abrigava antigamente o Boulevard, um lugar onde
mais drogas passavam pelas mãos do que na maioria das outras áreas da
cidade juntas, e a Avenida Edgewood, onde dezenas de bares e restaurantes
ofereciam bebidas, música e outros prazeres da variedade noturna.
Agora, com Downtown em ruínas a oeste e Midtown igualmente
devastada, a Old Fourth Ward era um bairro sossegado. Os bares e
restaurantes ainda estavam lá, mas serviam aos clientes da classe
trabalhadora. Era um lugar onde carpinteiros, pedreiros e funcionários da
cidade vinham almoçar, e a Confeitaria Highland era o lugar onde paravam
no caminho para casa quando um desejo por doces os atingia.
Eu tinha verificado a área ao ar livre, mas Tia B não estava em nenhuma
das mesas de ferro forjado preto, então fui para dentro, passando pelo balcão
cheio de confeites de chocolate, bolos e creme, através da sala estreita com
um banco virado de costas. O restaurante estava quase vazio, o almoço estava
a uma boa hora de distância. A Tia B estava sentada no canto, de costas para
a parede. Ela parecia estar em seus cinquenta e poucos anos, um pouco gorda,
com um rosto gentil e cabelo castanho que usava em um coque. Usava uma
bela blusa verde e caqui e parecia uma avó prestes a lhe servir alguns
biscoitos.
O olhar dela enganava bem, mas maioria das pessoas que a conhecia era
aterrorizada com tia B. Inferno, eu era apavorada com Tia B. Mesmo outros
alfas a evitavam, inclusive minha melhor amiga, a consorte do Senhor das
Feras. Sempre que a Tia B era mencionada, Kate ficava com um olhar
estranho no rosto. Não alarme exatamente, mas definitivamente preocupação.
À sua direita estava Lika, sua beta. Alta, forte, Lika tinha cabelos escuros
curtos e um rosto severo, do tipo que se esperaria de uma mulher que
passasse muito tempo na ativa do exército. O clã Bouda tinha algumas
mulheres que eram mais velhas, mais experientes e que poderiam eliminar
Lika, mas nenhuma delas queria o trabalho da beta. Betas tinham vidas
ocupadas e muita responsabilidade. Os alfas tomavam decisões, os betas as
executavam.
Aqui estava a minha chance. Eu me juntaria ao Clã Bouda, assim como
todos queriam. Mas eu faria nos meus termos.
Fiz uma pausa diante da mesa e olhei para Lika. — Você está no meu
lugar.
O rosto da Tia B permaneceu perfeitamente calmo.
— É isso mesmo? —As sobrancelhas de Lika se juntaram.
— Mova-se, —eu disse a ela.
— Mover-me, —disse ela.
Eu olhei para Tia B. Normalmente, os desafios públicos eram até a morte,
mas havia apenas três de nós aqui.
— Para submissão, —disse ela. — Eu não quero perder nenhuma de
vocês. Não são muitos de nós.
Lika levantou-se detrás da mesa. Ela tinha cerca de quinze centímetros a
mais que eu e talvez quarenta quilos acima do meu peso, tudo isso músculos
duros. Mas ela nunca me viu lutar, enquanto eu conhecia seus movimentos.
Empurrei a mesa mais próxima para trás, limpando algum espaço. Lika
fez o mesmo.
Lika virou a cabeça para a esquerda, estalando o pescoço e depois
novamente para a direita. Revirei os olhos e fingi estar entediada.
Ela pulou. Foi uma investida rápida e mortal. Seu punho direito estalou
como um martelo.
Eu me abaixei sob o golpe, esmaguei meu ombro sob sua caixa torácica,
agarrei suas pernas alguns centímetros abaixo de sua bunda e a levantei.
Minha investida a tirou do seu centro de gravidade e ela não tinha para onde
ir, senão para cima. Eu a joguei no ar e a derrubei com todas as minhas
forças, agachando-me para controlar sua queda. A Lika encontrou-se com o
chão e boom! Antes que ela tivesse a chance de recuperar o fôlego, eu
desenhei uma linha com minhas unhas em sua garganta e dei um passo para
trás.
Lika levou dois segundos para se livrar do atordoamento e rolou de pé. —
Novamente?
Olhei para a Tia B, como uma boa bouda. Eu sabia sobre a cadeia de
comando. De fato, a cadeia de comando me fazia sentir segura e confortável.
A Tia B assentiu.
Lika mudou sua postura e balançou para frente e para trás na ponta dos
pés. Certo. Fiquei tensa, como se fosse avançar. Ela deu um passo com o pé
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esquerdo e chutou com ele para a direita em um roundhouse , apontando
para minhas costelas com sua canela. Foi um inferno de um pontapé. Se eu
tivesse ficada parada, teria quebrado minhas costelas, me aleijando. Não
poderia fazer muito com costelas quebradas, exceto dobrar para um lado e
gemer.
Peguei sua perna logo abaixo do joelho, envolvendo-a com o braço
esquerdo, dei um passo à frente, empurrando Lika para trás e
desequilibrando-a, e varri sua outra perna debaixo dela. Ela caiu com força.
Eu me agachei o suficiente para fingir cortar seu lado, marcando seus órgãos
internos como meu alvo. Se eu tivesse garras, eu poderia enfiar minha mão
nela, sob e na caixa torácica, e arrancar seu coração. Dei alguns passos para
trás.
Lika ficou de pé. Seu lábio tremeu no começo de um grunhido.
— Sem pêlo, —disse Tia B. — Senhoras, em um lugar público, nós
usamos nossa cara humana.
— Novamente? —Perguntei olhando para a Tia B.
Ela assentiu.
Lika atacou. Suas mãos se fecharam sobre meus braços. Um movimento
de agarrar. Ela estava apostando em sua força superior. Mas nenhuma
quantidade de força poderia mudar a física simples.
Apertei minhas mãos em seus antebraços, plantei meu pé esquerdo no
meio de seu estômago e rolei para trás.
Ela não esperava e o impulso a puxou para baixo. Balancei para frente,
batendo meu tornozelo em sua garganta, forçando-a de volta, e rolei para
cima em uma posição sentada com as duas pernas no peito de Lika e seus
braços presos. Antes que ela tivesse a chance de se orientar, me inclinei para
trás, esticando o braço sobre o meu corpo. Com minhas coxas como âncora,
tudo que eu tinha que fazer era puxar um pouco e seu cotovelo seria uma
torrada.
— Termine, —disse Tia B.
Eu puxei o cotovelo. A articulação estalou com um grito seco.
Lika rosnou entre os dentes cerrados.
— Não haverá revanche, —disse Tia B. — Ela tem melhor técnica e mais
treinamento. Também é mais rápida que você. Estamos claras, querida?
— Sim, senhora, —exclamou Lika.
— Deixe ela ir.
Soltei o braço de Lika, levantei e ofereci minha mão a ela. A bouda olhou
por um segundo, suspirou e segurou meus dedos com a mão ilesa. Eu a puxei
para cima. — Boa luta.
— Tanto faz. —Sua voz não tinha qualquer hostilidade real. — Estava
cansada de ser um beta de qualquer maneira. Você pode ficar com todos os
problemas.
Lika olhou para o braço flácido dela. — Eu vou ao banheiro para
consertar isso.
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— Não demore muito, —disse Tia B. — Pedi cupcakes Red Velvet ,
seus favoritos.
— Sim, Alpha. —Lika saiu em direção ao banheiro.
Tia B se virou para mim e sorriu. Eu poderia jurar que havia orgulho
nisso. Não pode ser. Devo estar enganada.
— Sente-se, querida, —disse Tia B. — Amei o batom, a propósito.
— Obrigada. —Sentei no lugar de Lika e esperei até a porta do banheiro
se fechar atrás dela. — Por que pediu que eu a machucasse?
— Se você continuasse dando a alguma chance, ficaríamos aqui até o pôr-
do-sol. —A Tia B encolheu os ombros. — Lika é teimosa. Nada menos do
que uma vitória decisiva a impediria. Lembre-se disso. Você lidará com ela
como minha beta e ela se mostrará problemática de vez em quando.
Tia B olhou para mim do outro lado da mesa. Suas íris brilhavam de um
vermelho brilhante. O peso do olhar alfa me segurou. Lutei por um longo
momento com o seu olhar, mas me forcei a desvia-lo e consegui olhar para
baixo em direção a mesa.
— Bem-vinda à família, —disse Tia B.
Eu estava dentro. Para melhor ou pior, eu era agora um membro do Clã
Bouda e a segunda no seu comando depois da Tia B.
Uma garçonete entrou com uma bandeja de cupcakes, um bule de chá e
três xícaras.
— Você não viveu de verdade até ter experimentado os cupcakes Red
Velvet daqui. —Tia B empurrou um bolinho gordo na minha direção. —
Experimente.
Minha nova alfa estava me oferecendo comida. Outra demonstração de
lealdade e submissão. Quebrar o cotovelo da ex beta não foi suficiente,
aparentemente. Mordi o bolinho e lambi a cobertura cremosa. Humm ...
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cream cheese . Lutar me deixou com fome.
A garçonete partiu.
— Você sabe o que o trabalho beta envolve? —Perguntou Tia B.
Claro. — Executora, guardiã, garota de recados, a bouda chata.
Tia B cortou um bolinho pequeno ao meio e mordeu um pedaço. — Você
esqueceu babá.
— Eu sinto muito. Como sou boba.
— Por que a súbita mudança de ideia? —B perguntou.
— Por duas coisas. Primeiro Jim veio me visitar hoje de manhã. Ele
trouxe oito pessoas com ele. Ocuparam meu apartamento e quando alguns
policiais apareceram tentando me levar, eles foram recebidos com uma firme
resistência.
— E?
— E eu percebi que, se estiver em apuros, o Bando me apoiará e eu
apoiarei o Bando. Todos os meus amigos estão no Bando. Eu gosto de
pertencer algum lugar. Preciso disso, preciso da estrutura. —Lambi a
cobertura. — Estou cansada de começar de novo. Provavelmente não vou
deixar de ser um metamorfo, então posso fazer o melhor possível com isso.
Eu serei a melhor bouda que posso ser.
— Melhor que eu? —B arqueou as sobrancelhas.
— Sim. Pretendo eclipsar sua fama.
Tia B sorriu. — Pensando alto.
— Sempre. —Bebi meu chá.
— E a segunda coisa? —Perguntou a tia B.
— Falei com Martina e percebi que para tirar o clã de você, preciso
ganhar lealdade dele primeiro.
— Ah, então você planeja assumir?
Eu lambi a cobertura dos meus lábios. — Daqui alguns anos. Até lá tenho
certeza que eles vão me seguir.
A Tia B recostou-se e riu.
— Você fez um bom trabalho por muito tempo, —eu disse. — Não acha
que merece uma boa aposentadoria?
Tia B continuou rindo. — Muito bem. Eu falarei com Curran. Por conta
da investigação, tenho certeza de que o leão nos concederá uma prorrogação
para a sua entrada no Bando, já que oficialmente você entrou para o clã.
Desde que ele saiba que você e eu temos um entendimento e um pedido de
admissão foi feito, não encontraremos problemas.
Lika voltou do banheiro, esfregando o braço, sentou-se ao meu lado e
esperou até que B acenou para a comida e só então ela pegou um cupcakes
Red Velvet. — Delícia.
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— Eu preciso que você vá até o Condado de Milton, —disse B.
Ôu-ôu! O xerife do Condado de Milton e eu não tínhamos o melhor
relacionamento. Foi ele quem prendeu a mim e Raphael depois do incidente
da banheira de hidromassagem.
— Onde? —Perguntei tomando meu chá. Earl Grey. Saboroso.
— No o escritório do xerife no Condado de Milton, —disse a Tia B.
Eu engasguei um pouco com meu chá.
— Alguns dos nossos foram presos na noite passada, —disse Lika. —
Incluindo o seu garoto.
Meu garoto, oh não! — O que diabos Ascanio fez desta vez? Na última
vez que o vi, ele estava com a mãe.
— Nada, —disse Tia B. — Lugar errado, hora errada. Houve algum tipo
de briga de bar. Eu até poderia ir resolver isso com Kate, mas ela está esses
dias resolvendo problemas ao lado de Curran. Algo a ver com os vikings, não
sei exatamente o que é. —A Tia B acenou com a colher. — Envolvê-la agora
significa envolver o Senhor das Feras e não sinto nenhum pingo de vontade
de colocar fogo em sua cauda. Ele vai rosnar e virar tudo do avesso e prefiro
evitar tudo isso. Então preciso que você vá até lá e faça esse problema
desaparecer. Entendo que você e Beau Clayton não se dão muito bem.
Sim, ele jogou minha bunda de biquíni em uma cela de prisão. — Eu vou
fazer isso, —disse e roubei um segundo cupcake.
— Estou muito feliz, —B me disse.
Todos bebemos chá.
— Eu sei que você anda falando com meu filho, —B disse para mim.
— Sim. Ele parece ter enlouquecido.
— O frenesi de acasalamento faz isso. —Disse a Tia B. — E eu não estou
falando sobre a loira. Ele nunca foi abandonado antes, querida. Ele não tem
ideia de como lidar com isso.
Lika deu uma risadinha.
— Eu disse a ele que nós terminamos, e ele arrombou meu apartamento,
arranhou MINHA na minha mesa, —eu disse a ela. —E então ele mudou suas
coisas para o meu apartamento.
Lika parou de comer. — Sério?
Eu assenti.
Tia B sorriu. — Ele sempre foi um menino muito inteligente.
Ali estava, a prova final de que Raphael tinha a quem puxar. Eu tinha
acabado de dizer que ele enlouqueceu, vandalizado meus móveis, e era
culpado de arrombamento e invasão, e ela estava explodindo de orgulho.
— O que você faria na minha situação? —Eu perguntei.
A Tia B cortou outra fatia do seu bolinho. — Eu nunca fui de deixar um
homem fazer o que quisesse comigo, querida. Se alguém se atrevesse a me
tratar dessa maneira, eu esfregaria o nariz dele em tudo que ele havia perdido
por causa de sua acrobacia idiota. Eu faria algo ... espetacular. Algo que ele
nunca esqueceria. E me certificaria de que todos soubessem que tolo ele era.
— Se eu tirar as boudas da prisão, quais são as chances de Raphael passar
esta noite longe de seu apartamento?
Tia B sorriu para mim acima da borda de sua xícara. — Eu diria que essas
chances são muito, muito boas.
Levantei. — Então deixa eu ir providenciar isso.
Os olhos da Tia B brilharam com uma divertida luz rubi. — Lika vai te
informar sobre os detalhes. Boa sorte, querida.
Eu precisaria de cada gota disso também.
— E Andrea? —Disse Tia B. — Você e eu fizemos um acordo hoje.
Confio em você para sustentar sua parte no trato.
Era como se ela tivesse olhado dentro da minha cabeça e visto que eu
ainda estava cambaleando. Falei a conversa e caminhei a caminhada, mas de
alguma forma ela sentia minha hesitação.
— Se Curran definir a data de sua admissão e você não aparecer, seria
realmente desastroso.
— Não se preocupe, —disse a ela. — Eu estarei lá.
Dizer que Beau Clayton era um bom rapaz do sul seria um eufemismo. O
homem guardava uma lata de amendoim verde em sua mesa, pelo amor de
deus! Por algum motivo, estava meio cheio de cartuchos de bala.
Beau olhou para mim por trás de sua mesa, que estava cada centímetro
organizada. Ele era grande como todo o inferno e metade do Texas, um
enorme homem do tamanho de um urso, com ombros de atacante e braços de
levantadores de peso que esticavam as mangas de sua camisa do uniforme
cáqui bem passada. Seu chapéu de xerife de aba larga e marrom escuro estava
em um gancho na parede, de fácil acesso. Acima, uma espada estava
pendurada, uma linda espada com um punho em forma de cesta
145
ornamentada . Eu tinha certeza que já havia visto-a antes, mas pela minha
vida eu não conseguia lembrar onde.
— É sempre bom ver você, Senhorita Nash, —Beau cumprimentou.
Eu dei a ele meu sorriso mais deslumbrante. Se ele achava que poderia
escapar do meu sorriso sulista, estava enganado. — Posso perguntar por que
você tem cartuchos de balas na lata, Xerife?
— Toda vez que alguém atira em mim, eu coloco as cápsulas na lata, —
disse ele.
Tudo bem então.
— Então, o que a traz aos céus ensolarados do Condado de Milton? —
Beau perguntou.
— Você tem aí algumas pessoas do Bando trancados. —E meu primeiro
teste como beta era tirá-las daqui.
— Estamos sempre felizes em ter convidados em nossa prisão, —disse
ele. — Quase nunca nos sentimos sozinhos.
Eu lambi meus lábios, umedecendo-os, e o olhar de Beau deslizou para
baixo. Bem, e quanto a isso? He-he-he.
— Entendo que você tem três dos nossos garotos, —eu disse. — O que
posso fazer para libertá-los?
Beau encostou-se à cadeira. — Bem, é aqui que nos deparamos com um
problema. Pelo que entendi, seus garotos causaram um distúrbio no Steel
Horse, agrediram dois homens e danificaram alguma propriedade lá.
Eu cruzei minhas pernas. — Pelo que me lembro, o Steel Horse está no
Condado de Fulton.
— Você está correta, mas veja, seus garotos estavam fora em uma noite
infernal. Não satisfeitos com aquele pouco de diversão em Fulton, eles
continuaram sua briga pela Alameda Gawker, que os colocou a seis metros
dentro do condado de Milton quando foram posteriormente presos.
Maldição.
Os olhos de Beau brilharam um pouco. — Relatos de testemunhas
oculares indicaram que uma mulher estava envolvida.
Eu sorri para ele. — Uma mulher está sempre envolvida. Então, como foi
a sua versão?
Beau clicou no gravador em sua mesa. A voz de um jovem encheu a sala.
— Então estávamos apenas sentados lá e depois havia uma garota e ela estava
olhando para Chad e eu.
A voz arrastava suas palavras um pouco. Não estava sóbrio. Longe disso.
— E Chad disse: ‘Ei, linda, venha com a gente’, e o cara grande e negro
disse: ‘Cale a boca, garoto branco’.
Eu arqueei minhas sobrancelhas para Beau. O grande cara negro seria
Kamal, que nunca dissera uma palavra desagradável a ninguém em toda a sua
vida.
— E ele disse: ‘Cale a boca’, e eu disse: ‘Nós só estamos conversando’ e
o outro cara negro disse: ‘Nós vamos bater na sua bunda se você não calar a
boca’. E então ele fez um daqueles sinais de mão. Você sabe, uma dessas
coisas de gangues.
Oh, isso estava ficando cada vez melhor. Beau estava fazendo um valente
esforço para permanecer estoico, mas seu rosto traía o olhar sofredor de
alguém que tinha de ouvir algo patentemente idiota.
— O que aconteceu depois? —Uma voz feminina mais velha perguntou.
— Levantamo-nos para sair, e a menina queria vir com a gente, e o
primeiro negro, ele, tipo, levantou-se e disse todo grosseiro para ela, ‘Você
não está indo embora!’ E todos nós ficamos tipo ‘Sim, nós vamos’. E então
joguei uns pedaços de frango neles para que eles soubessem que estávamos
falando sério, e o garoto branco que estava com eles, pegou Chad e o jogou
pela janela.
Cavaleiros brancos bêbados em armadura brilhante, protegendo a infeliz
fêmea das garras de caras negros assustadores.
Me dá um tempo.
— Então o que aconteceu? —A mulher mais velha perguntou.
— Então saíram e subiram a rua. E Chad disse: ‘Nós não podemos deixar
eles escaparem dessa merda’, então nós os seguimos. E eu disse: ‘Ei! O que
vocês estão pensando que acham que podem sair jogando pessoas pela
merda da janela?’ E o cara branco disse: ‘Parecem que vocês gostam de
passar pelas janelas.’ E eu disse a ele: ‘Foda-se’ com uma voz educada e ele
me jogou pela janela.
Beau desligou o gravador.
— Legal da parte dele de ter usado sua voz educada, —eu disse. — Caso
contrário, não vou nem dizer o que teria acontecido.
Beau fez uma careta. — Eles não são dos mais inteligentes e a bebida não
melhorou seu QI.
— E o que os Estúpidos Grandes Caras Negros disseram? —Perguntei.
— Disseram que os garotos estavam bêbados e batiam na garota que
estava com eles. Um desses garotos se aproximou, jogou algumas asas de
frango neles e eles o jogaram pela janela. Como a garota tinha ido embora,
eles decidiram ir embora também, mas aí os dois gênios os seguiram e foram
jogados pela janela da frente do Chuck’s Hardware.
— Jogar frango nas pessoas constitui uma agressão, —eu disse. — Por
sua própria admissão, eles deram o primeiro soco.
— Sim, no caso da situação no Steel Horse. No entanto, o seu povo não
está preso pelo incidente no Steel Horse, eles estão sendo mantidos porque
durante uma briga verbal no meio da rua Gawker Alley, eles se encarregaram
de jogar duas pessoas na janela de Chuck.
Ele me pegou aí. — Com todo o respeito, senhor, mas isso é uma
continuação do mesmo incidente.
— Eu entendo o seu ponto de vista, mas Mike e Chad precisaram de dez
minutos para cambalearem até a rua. São dois incidentes diferentes e você
sabe disso.
Aaaaa. — Peço desculpas, mas não concordo.
— Eu respeito seu direito de discordar, mas isso não muda a realidade.
Não posso ter pessoas sendo jogadas através das janelas, querendo ou não, no
meu condado.
Nós nos encaramos. O nível de polidez subiu para níveis perigosos.
— Teríamos o maior prazer em pagar o prejuízo ao Chuck's Hardware e
restaurar a janela dele, —disse eu. — Estamos felizes em acertar as contas.
Ele estaria disposto a abandonar as acusações?
— Ele é um homem razoável, —disse Beau. — Mas isso vai sair caro.
Dei de ombros. — Garotos são garotos, xerife. Você sabe como é, eles se
divertem e nós pagamos as contas.
— Você também tem Jeff Cooper para lidar, —disse Beau. — O pai de
Mike. Ele está na minha sala da frente fumegando e fazendo uma tempestade
disso tudo. Ele quer que as acusações de agressão sejam feitas.
Puxei uma pequena caixa de plástico do bolso e mostrei o disco dentro
dela.
— O que é isso?
— Filmagem de vigilância.
— O Steel Horse tem câmeras de vigilância? —Beau ganhou vida como
um lobo faminto avistando um coelho suculento e aleijado.
— O dono os instalou depois daquele susto que eles tiveram com a
pandemia. —Uma pandemia que Kate havia parado antes que pudesse matar
a ela e seu companheiro. O Steel Horse acolhia os membros do Bando de
braços abertos, razão pela qual eles não chamaram a polícia quando os
garotos do Bando se meteram em encrenca. — Eles não anunciam esse fato.
Além disso, elas só funcionam metade do tempo, quando a tecnologia está
em alta. Eu lancei o disco entre meus dedos. — Devemos ver?
Beau tirou o disco do estojo e o colocou no computador em uma pequena
mesa no canto. Imagens em preto e branco encheram a tela. Três metamorfos
sentados em uma mesa, com a garota ao lado de Kamal. Dois rapazes em
uma mesa próxima com uma coleção de garrafas de cerveja vazias disseram
algo. Os metamorfos os ignoraram. Mais insultos, desta vez com o aceno de
braços. O menor dos dois adolescentes humanos escolheu uma cesta de ossos
de galinha e jogou na cabeça de Kamal. Ascanio se levantou, pegou o cara e
atirou-o pela janela. Kamal bateu na cabeça dele. Ascanio encolheu os
ombros. O terceiro metamorfo, Ian, jogou algumas notas na mesa e o grupo
saiu.
— Se o Senhor Cooper optar por fazer as acusações, faremos o mesmo,
—disse eu. — Por favor, sinta-se à vontade para ficar com o disco. Eu fiz
cópias. Tenho que te pedir para libertar os meninos. Eu estaria em dívida com
você e eles não correm o risco de desaparecer. Você sabe onde nos encontrar:
a grande fortaleza de pedra a poucos quilômetros da cidade.
Beau foi até a porta e enfiou a cabeça para fora. — Rifsky, poderia tirar
nossos hóspedes metamorfos detidos na cela para mim? Além disso, a
Senhorita Nash aqui vai deixar as informações dela com você para o Chuck's
providenciar o concerto da janela dele.
De repente, lembrei-me de onde tinha visto a espada. Costumava ficar no
apartamento de Kate. Era a espada de seu guardião. Pedaços do quebra-
cabeça se encaixaram na minha cabeça. Ela usou essa espada para me tirar da
cadeia. Eu me senti envergonhada.
Beau se virou para mim. — Não saia da cidade, Senhorita. Nash.
— Não sonharia com isso. —Agora eu devia um favor a Beau.
Maravilhoso.
Dez minutos depois, três metamorfos com caras de culpados me
encontraram nos degraus. Kamal me viu e deu uma segunda olhada. — Eu
pensei que era a Lika que vinha.
Eu dei a ele meu olhar longo e fixo. Ele se mexeu desconfortavelmente
no lugar.
— Vamos tentar de novo, desde o começo. Você diz: ‘Olá, Beta.
Obrigado por vir até aqui e sujeitar você e o Clã ao constrangimento público
por causa da minha estupidez’. E eu não vou quebrar os seus braços.
— Obrigado, Beta, —Kamal e Ian disseram em coro.
Olhei para Ascanio. Ele baixou o olhar para as escadas. — Eu sinto
muito.
— Sim, você sente. —Comecei a descer a rua para o estacionamento. Os
três boudas me seguiram.
Um homem abriu a porta atrás de nós. Musculoso, em seus quarenta e
tantos anos. Seu rosto tinha uma linda cor vermelha que provavelmente
significava que ele estava prestes a explodir suas artérias. — Ei! Ei você!
Quero falar com você!
Continuei andando. — Você jogou dois humanos através de duas janelas
diferentes. Me ilumine: o que acontece quando um metamorfo passa por uma
janela de vidro?
— Nada, —Ian respondeu.
— Parem, —o homem rosnou. — Parem, que droga.
— O que acontece quando um humano passa por uma janela de vidro?
Ninguém queria responder.
— Vou esclarecer a vocês: ele tem hematomas, possíveis ossos quebrados
e várias lacerações. E como ele não tem o benefício do Lyc-V, seus ossos
quebrados levarão semanas para cicatrizar e as lacerações podem matá-los se
o vidro quebrado os cortar no lugar errado. Você quase os matou por causa de
um balde de frango. O que no mundo você estava pensando?
Nós viramos a esquina, escondidos do prédio perto do muro de pedra.
— Nós só queríamos intimidá-los, —disse Ascanio.
O homem atrás de nós tomou a curva em alta velocidade. — Sua puta, eu
disse parem!
Andrea, a louca, estava prestes a emergir. Eu podia sentir isso.
Eu olhei para ele. — Jeff Cooper, eu presumo?
— Está certa. Vocês, seus degenerados, acha que pode simplesmente vir
aqui e jogar as pessoas por aí. —Ele enfiou o dedo no meu peito.
Os três boudas passaram de arrependidos a mostrar os dentes em um
piscar de olhos.
— Não ponha sua mão em mim novamente, —eu disse.
Ele enfiou o dedo no meu peito novamente. — Bem, eu tenho algo para
lhe dizer: não espere o sol se pôr neste município, porque ...
Agarrei seu pulso e puxei-o para frente, derrubando-o com meu pé. Ele
tentou se levantar e eu o peguei pela garganta, um metro acima do chão,
levantei-o um pouco e me inclinei até o rosto. Meus olhos brilharam de
vermelho assassino. Minha voz ficou áspera com um rosnado animal. —
Ouça bem, porque eu não vou me repetir, seu idiota racista. Se você trouxer
qualquer problema para mim ou para o meu povo, eu vou te caçar como um
porco que você é e esculpir uma segunda boca em seu estômago. Eles vão te
encontrar pendurado pelos seus próprios intestinos. Da próxima vez que você
ouvir algo rir e uivar durante a noite, abrace a sua família, porque você não
verá o nascer do sol.
Eu abri meus dedos. Ele caiu no chão, seu rosto branco como um lençol.
Cambaleou para trás, rolou de pé e partiu.
Os três metamorfos olhavam para mim boquiabertos.
— É assim que você intimida as pessoas. Nenhuma testemunha e
nenhuma marca nele. Coloque suas bundas no carro.
Capítulo 12
Era quase meio-dia quando finalmente entrei pelas portas do escritório.
Kate sentava-se à sua mesa. Grendel estava esparramado aos pés dela, uma
enorme monstruosidade negra que tinha mais em comum com o cão dos
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Baskervilles do que com qualquer poodle que eu já tivesse visto. Ele me
viu e abanou o rabo.
Parei para acariciar sua cabeça. — Olha quem está aqui, A Consorte em
carne e osso. Você nos agraciar com sua presença, Sua Majestade. Estou
muito honrada. —Apertei minha mão no meu peito, hiperventilando. — Vou
chamar os repórteres!
Ela fez uma careta. — Rá-rá-rá. Você já almoçou?
— Não, e eu estou morrendo de fome. Poderia comer um pequeno cavalo.
— Acropolis? —Perguntou Kate, levantando-se.
— Só se for agora. —Peguei a pasta da minha mesa e saí pela porta. — A
propósito, temos um espião policial no nosso rabo que não devemos o perder.
— Quanto mais melhor.
Quando ambas trabalhamos na Ordem, o Parthenon era nosso restaurante
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favorito. Ele serviam os melhores sanduiches gregos que eu conhecia.
Infelizmente, agora estávamos a quarenta e cinco minutos do Parthenon, mas
havíamos encontrado a Acrópole, a menos de um quilômetro de distância,
que era muito bom também. Não tinha jardim ao ar livre como no Parthenon,
mas nós nos contentamos com uma cabine isolada perto da janela na parte de
trás.
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Pedimos um monte de sanduiche, molho tzatziki , um prato de ossos
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para Grendel e deliciosos drinques de frutas pink-drop . Mesmo com meus
sentidos metamorfos, eu não tinha ideia do que havia neles e nós duas
decidimos que não era prudente perguntar. Nossos espiões policiais, uma
mulher mais velha e um homem de vinte e poucos anos, estavam sentados do
outro lado da sala, perto da janela. Por enquanto tínhamos privacidade, pelo
menos.
Peguei a foto da faca do arquivo e empurrei em sua direção. — Faca
antiga.
Ela ponderou isso. — Ela não é adequada para o combate.
— Raphael acha que era cerimonial.
Ela assentiu. — É um canino.
— O que?
— Um dente, uma presa. —Ela virou a foto para mim. — Lobo, talvez.
Olhe aqui.
Ela se abaixou e puxou o lábio superior de Grendel, revelando enormes
caninos. — Exatamente o mesmo.
Ela estava certa. A faca tinha a forma de um dente canino. — Como eu
não vi isso?
Kate limpou as mãos no guardanapo de tecido. — Eu também não teria
visto se Curran não tivesse dado uma costeleta de porco a Grendel na noite
passada e este idiota devorou tudo de vez e ficou com um pedaço de osso
preso no céu da boca. Tive que retirá-lo e olhei de perto seus dentes. Não
consigo convencer ao Senhor das Feras que dar-lhe costeletas de porco não é
uma boa ideia. Ele diz que os lobos comem javalis. Eu digo que os lobos
nunca tiveram um javali cortado em costeletas, o que torna os ossos de porco
muito afiados.
Contei toda a história sobre a investigação a ela, sem poupar detalhes. Os
olhos de Kate continuaram ficando cada vez maiores.
— E aqui estamos nós, —terminei.
— O lugar cheirava a jasmim e mirra?
Eu assenti.
Kate pensou por um longo momento. — Você disse que o nome do
milionário era Anapa?
Assenti. — Eu verifiquei. É uma espécie de cidadezinha no Mar Negro na
Rússia.
— Também está nas tábuas de argila Tell el-Amarna, —disse ela. — No
final da década de 1880, foram encontradas placas de argila no local de uma
antiga cidade egípcia. As tábuas datavam do século XIV aC. Elas
provavelmente faziam parte de algum arquivo real, porque a maior parte era a
correspondência dos faraós com os governantes estrangeiros.
— Como você se lembra disso?
— A maioria dos achados escritos é da Palestina e da Babilônia, —disse
ela. — Isso fazia parte da minha educação exigida. De qualquer forma, os
achados são escritos em acadiano, e o nome Bel Anapa é mencionado. —
‘Bel’ significava ‘mestre’ ou ‘senhor’ em acadiano, semelhante ao semântico
Ba'al.
— Como o demônio Baal?
Kate fez uma careta. — Sim. Eles tinham essa coisa onde somente os
sacerdotes podiam dizer o nome do deus, então eles simplesmente chamavam
seus deuses de Ba’al. Semelhante ao modo como os cristãos usam o ‘Senhor’
agora. Então alguns gregos acabaram pensando que Bel ou Ba'al significa um
deus específico, mas não é: Bel Marduk, Bel Hadad, Bel Anapa e assim por
diante, são os deuses específicos.
Maravilha. — Qual deus é Anapa?
— Os gregos o chamavam de Anúbis, Deus dos Mortos.
Uau.
— Aquele com a cabeça de chacal? —Perguntei, levantando as mãos para
a cabeça para indicar as orelhas.
Kate assentiu.
Certo. Nenhum deus que tivesse seu nome as palavras ‘dos mortos’
150 151
ligado a ele poderia ser boa coisa. Hades , Hel , nenhum desses era
filhote fofinho de cachorro.
— Ele não pode ser um deus, —eu disse. — Não há magia suficiente para
a existência física de deuses. Sabemos disso. —Deuses precisavam da fé de
seus adoradores como carros precisam de combustíveis. No momento em que
a magia recuasse, seu fluxo de fé seria cortado e os deuses se
desmaterializariam.
— Ele poderia estar apenas usando o nome, —disse Kate. — Ele poderia
ser o filho de um deus.
Eu olhei para ela.
— Saiman é o neto de um deus, —disse Kate. — Anapa poderia ser
também.
Eu lembrei do escritório de Anapa na mansão. Aquele escritório era de
um mundo que nenhum ser humano poderia ter feito.
— Você acha que uma faca pode ser modelada a partir de presas?
— É possível.
— Anúbis tem algum tipo de animal protetor? —Perguntei. — Como
algo de cerca de um metro e meio de altura com mandíbulas de um crocodilo
e ...
— Corpo de leão? Com uma juba? —Kate perguntou.
Droga. — Certo. Conte-me o resto.
152
— Demônio Ammit , o Devorador dos Mortos, o Comedor de Coração,
o Destruidor de Almas.
Coloquei minha mão no meu rosto.
— Supostamente depois de receber a alma de um recém-falecido, Anúbis
pesa o coração em uma balança onde, noutro prato, estar uma pena de
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Ma'at , a Deusa da Verdade. Se o coração for mais pesado, não é puro
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Ammit recebe um deleite delicioso. A alma não vai a Osíris , não recebe
imortalidade, sem segundas chances. Em vez disso, está condenado a ficar
vagando infeliz para sempre. —Kate olhou para mim. — Deixe-me
adivinhar, você matou o Devorador de Almas.
— Sim. E desde que ele estava protegendo Anapa ...
— Ela. —Kate tomou mais um pouco sua bebida.
— Ammit é uma garota demônio?
— Hum rum.
Suspirei. — Bem, em qualquer caso, Anapa definitivamente não está
usando apenas o nome.
E se Anapa era Anúbis, isso significava que eu havia oficialmente
chateado uma divindade. Nunca fiz isso antes.
Eu bati o dedo na foto da faca. — Poderia ser uma faca egípcia. Creta
antiga e antigo Egito. Até eu sei disso.
— Também pode ser grego, —disse Kate. — A adoração de Anúbis, na
verdade, se espalhou pela Grécia e por Roma.
— Então eu tenho algum tipo de Anúbis, possivelmente uma faca egípcia,
e cobras. Muitas cobras: pessoas cobras, víboras, cobras voadoras ... e um
cajado russo com uma cabeça de serpente. Como tudo isso se encaixa?
Nós nos encaramos.
— Não faço ideia, —disse Kate. — Mas isso não é bom.
Os sanduiches chegaram. Kate empurrou o prato para mim. — Coma.
— Por quê?
— Você perdeu pelo menos uns cinco quilos desde a última vez que vi
você.
— Estou ficando elegantemente magra durante todo o exercício, —disse a
ela.
— Essa última vez foi há três dias. Você não é magra, está morrendo de
fome. Coma a maldita comida.
Por dez minutos não fizemos nada além de comer.
— Como foi com a Tia B? —Kate perguntou.
— Eu dei o braço a torcer, —disse. — Fui vê-la, sentei-me muito
calmamente a seus pés e deixei que ela colocasse uma coleira em mim. Ela
foi surpreendentemente graciosa com tudo isso. —Meu copo estava vazio. Eu
o levantei. Um garçom apareceu e voltou a enchê-lo.
— Obrigada. —Olhei de volta para Kate. — Não sou realmente tão
amarga sobre isso. Isso custou um grande pedaço do meu orgulho, mas eu
não sou amarga. E agora, sou a beta do Clã Bouda.
— Parabéns.
Nós brindamos com os nossos copos.
— Por que diabos não, não é mesmo? Decidi que é o que eu quero e se eu
tenho que usar a coleira da Tia B por alguns anos para ter, então que seja.
Vou aprender tudo o que ela sabe. Vou descobrir como ela pensa, e então eu
vou usar isso contra ela. Esse é o jeito bouda.
— E Raphael?
Dei de ombros. — Eu não decidi ainda. Mudando de assunto, Roman
mencionou que as bruxas estavam todas perturbadas com a visão da Bruxa
Oráculo. Elas ouviram uivos e viram um espiral de argila. Eu estou pensando
desde que Anúbis está envolvido, talvez isso tenha sido um chacal uivando.
Anúbis teria algum tipo de influência sobre os metamorfos chacais?
— Eu não sei.
Teria que ligar para Jim e avisá-lo para remover os chacais do grupo
responsável em trabalhar em Anapa.
Não havia necessidade de tentar o destino.
— Não mude de assunto. —Kate me fixou com seu olhar.
— Que assunto é esse?
— Raphael.
— Ah, esse assunto. —Eu coloquei um pedaço de sanduiche na minha
boca. — Eu disse que não decidi. É complicado.
Kate abaixou o garfo, colocou o cotovelo na mesa e apoiou a bochecha no
punho. — Eu tenho tempo.
Não era certo mentir para a sua melhor amiga. Mesmo que estivesse
mentindo por omissão. Contei a ela minhas maravilhosas aventuras
românticas.
— Eu não posso acreditar que você beijou o Volhv negro, —disse Kate.
— Foi mais ou menos.
— Mais ou menos?
— Você sabe, nem bom, nem ruim, apenas mais ou menos. Eu me sinto
culpada por isso, na verdade. Roman é um bom beijador. Deveria ter gostado
mais. Além disso, colar os lábios com ele é o menor dos meus problemas. —
Eu contei os problemas nos meus dedos. — Entrei em uma área mágica
infecciosa, invadi e entrei no escritório de Anapa, matei o demônio de Anapa,
arrombei e invadi uma cena de crime, roubei evidências da cena do crime,
ameacei enforcar com seus próprios intestinos um ser humano … sua amiga
se foi e ela nunca mais vai voltar. Você tem uma bouda maluca em seu lugar
agora.
— Do que você está falando, sua idiota? Minha amiga nunca foi embora.
Essa era Kate em poucas palavras. Depois que ela se tornava sua amiga,
ela permanecia sua amiga para sempre. Eu mostrei meus dentes para ela. —
Quem você está chamando de idiota?
— Você. Deixe-me resumir: então você e Raphael tiveram uma briga e
não conversaram porque estavam de sentimentos feridos um com o outro,
então vocês dois se encontraram depois de algum tempo e ficaram magoados
de novo, porque nenhum de vocês se desculpou, então Raphael fingiu ter uma
noiva, que não aconteceu nada entre eles, mas você ficou puta do mesmo
jeito, então vocês se beijaram, mas disse a ele que estava tudo acabado
depois que ele ficou louco e arranhou MINHA em sua mesa, então você
beijou o Volhv negro, que você não sentiu nada com o beijo, e por último
Raphael fez a mudança das coisas dele para o seu apartamento.
— Sim. —Isso resumia tudo.
Kate se inclinou para mim. — Quando eu era pequena, Voron me levou
para a América Latina. A TV ainda fazia programação regular naquela época,
e nela passava uma história de amor realmente dramática durante a semana.
Só tinha gente muito bonita ...
Eu apontei meu garfo para ela. — Você está insinuando que nosso
relacionamento é como uma novela latina?
— Eu não estou insinuando. Estou afirmando.
— Você é louca.
Kate sorriu. — Você deu a ele algum olhar significativo e atormentado
ultimamente?
— Cala boca, Kate.
— Talvez ele tenha um irmão gêmeo ...
— Nenhuma outra palavra.
Ela gargalhou em seu assento. Eu tentei sorrir de volta, mas meu sorriso
deve ter sido assustador, porque Kate parou de rir. — O que foi?
— Eu estou muito fodida. —Não quis dizer isso, mas acabou saindo. —
Lutei bastante contra a minha adesão ao Bando, e agora estou dentro. Eu não
sou burra. Sou esperta. Sabia que mais cedo ou mais tarde isso iria acontecer,
e juntar-me aos metamorfos é para o meu benefício. O que eu não entendo é
o porquê resisti por tanto tempo. E também tem o Raphael. Ele está se
comportando como um lunático irracional, mas eu ainda estou muito
obcecada por ele. É como um vício, Kate. Eu poderia desistir e fazer as pazes
com ele, mas não consigo. O que há de errado comigo?
— Você odeia ser forçada, —disse Kate.
— Você está errada. Não tenho nenhum problema com autoridade.
— Você não tem nenhum problema com autoridade quando escolhe
voluntariamente aceitá-lo. Você aceitou o direito da Ordem de lhe dar
comandos. Se alguém tivesse vindo e tentado forçar você a entrar na Ordem,
você teria lutado com unhas e dentes. Tia B tentou forçá-la a se juntar ao
Bando, então você recusou. Mas agora você se uniu nos seus termos, aceitou
voluntariamente sua autoridade e está bem com isso porque foi uma decisão
sua, não dela.
— E Raphael?
— Raphael é um idiota, sem dúvida. Mimado, irracional, difícil, porém
você o ama e sente pressão para consertar as coisas porque vocês dois
tiveram algo maravilhoso, mas estragaram tudo e agora você se sente
culpada. Cabe a vocês dois concertá-lo novamente, mas vocês precisam
perdoar um ao outro primeiro.
— Quando você ficou tão sábia?
Kate suspirou. — Passo todas as minhas quartas-feiras ouvindo as
questões do tribunal dos metamorfos. Você não acreditaria na frequência com
que eles tentam usar o tribunal do Bando para resolver seus problemas
amorosos. Olha, Andi, o que você decidir, eu estou do seu lado. Se você
quiser ajuda, eu vou ajudar. Apenas me diga o que fazer. Se você quiser se
sentar aqui e se lamentar, vou conseguir um lenço para você.
Um lenço, né? — Já que se ofereceu, você vai vir comigo.
— Onde?
— Para a casa de Raphael. É o tempo da vingança.
— Ah não. Outro caso de arrombamento e invasão? —Uma luz maliciosa
acendeu nos olhos de Kate.
— Eu não tenho que quebrar nada para entrar. —Puxei o conjunto de
chaves sobressalentes de Raphael para fora do meu bolso e as agitei. — Ele
me deixou este adorável conjunto de chaves. Parece uma pena não usá-las.
Kate riu.
Eu já tinha feito as chamadas antes de sair para o meu encontro com a Tia
B. Meu plano maligno já estava em andamento.
Levantei minha bebida rosa. — Vingança!
Kate ergueu o copo e nós brindamos.
— Tem que ser muito bom, —disse ela.
— Confie em mim sobre isso. Será épico.
Capítulo 13
O telefone do escritório estava morto.
Roman foi embora ‘para coletar suprimentos’.
Anapa disse que os metamorfos não poderiam nos ajudar a lutar. Ele não
disse nada sobre nós contar ao Bando o que estava acontecendo. Os Chacais
tinham que ser avisados. Mudei de forma, e Raphael e eu corremos para a
noite.
Atravessamos o decrépito distrito industrial, movendo-nos no máximo da
velocidade que um metamorfo podia. Ruínas passavam por nós, escuras,
negras e sombrias, como naufrágios assombrados de navios antigos.
Armazéns eviscerados com vigas de aço empurrando-se para fora, conchas de
veículos, cavernas traiçoeiras de concreto escondendo coisas famintas com
olhos brilhantes, nascidos da magia e famintos por uma explosão de sangue
quente em suas línguas. As bestas apareciam, mas não se aproximavam. Elas
nos reconheciam pelo que éramos, predadores construídos para caçar, matar e
devorar, e agora nenhum de nós estava com disposição para ser
misericordioso.
A cidade acabou e nós corremos ao longo da estrada em ruínas. Aqui a
natureza se revoltava, alimentada pela magia, e as árvores haviam crescido
com uma velocidade chocante, enchendo a velha estrada. Continuamos,
incansáveis, comendo os quilômetros como se fossem petiscos deliciosos. Os
lobos não detinham o privilégio exclusivo das maratonas. Éramos nós, as
hienas. Poderíamos correr para sempre.
Raphael se movia ao meu lado, tão gracioso, tão letal, cheio de beleza
feroz. Parecia tão certo correr assim, vigiando o flanco do outro. Juntos,
éramos um pequeno bando ... um casal acasalado. Se alguma ameaça
cruzasse nosso caminho, nós nos dividiríamos juntos na batalha. Eu tinha
esquecido como era esse sentimento.
A estrada nos levou a um grupo de três carvalhos. Aqui, a rodovia
principal se ramificava para uma trilha estreita com largura o suficiente para
um único veículo passar. Se não prestasse atenção você não a veria. Nós
entramos juntos.
O caminho se curvava e se contorcia, desviando pela floresta.
Um uivo de lobo surgiu na distância, uma nota pura e bela subindo para o
céu limpo. Outro respondeu.
As sentinelas do Bando anunciavam nossa chegada. Um grito de voz
profunda se seguiu, um aviso e uma declaração de propriedade em um só
uivo, um bouda deve estar de plantão hoje à noite.
Nós saímos da floresta em uma clareira. Uma estrutura maciça se erguia
diante de nós, a massa sólida e impenetrável de pedra moldada em um castelo
fortificado ou fortaleza semelhante a um castelo. Era um covil de alta
segurança, envolta em uma parede de pedra cinza, com torres, defesas, um
vasto subterrâneo e uma miríade de passagens escondidas e rotas de fuga. Um
testemunho da paranoia de Curran. Mesmo que a Fortaleza fosse sitiada,
mesmo se o cerco fosse perdido, o Bando sumiria na floresta para se reunir e
lutar outro dia.
Nós atravessamos o pátio e continuamos correndo, pela porta, pelo
corredor estreito, por uma dúzia de lances de escadas até o topo da torre, até o
andar logo abaixo dos aposentos privados de Curran. O guarda nos
reconheceu e saiu do caminho. Raphael era o macho alpha bouda. Ele
sentava-se no Conselho com a Tia B. Ninguém o impediria.
Nós corremos para o espaçoso quarto que Curran chamava de seu
escritório. O Senhor das Feras estava sentado atrás de sua mesa, olhando
alguns papéis. Kate sentada no sofá com uma expressão torturada no rosto,
segurando uma cópia do livro das leis do Bando e fazendo anotações em um
caderno.
Eles olharam para nós juntos.
— Clã Chacal está em perigo, —eu disse.
Nós nos sentamos em uma sala de conferência, ambos ainda em nossa
pele, com o Senhor das Feras, Kate, Jim, Colin e Geraldine Mather, os alfas
Chacais. Colin, um homem musculoso e corpulento, com a constituição de
um lutador e cabelos claros, inclinou-se sobre a mesa, o rosto semicerrado e
ilegível. Sua companheira e esposa sentado ao lado dele. Onde Colin era
claro, Geraldine era morena, sua pele era marrom-escura, seu cabelo era
preto, seu corpo afinado para a eficiência muscular pelo treinamento
constante.
— O nome dela é Brandy Kerry, —disse Geraldine. — Ela tem sete anos
de idade. Seus pais estão em uma viagem de negócios para Charlotte. Eles a
deixaram aqui na Fortaleza no internato na ala sul. Ela tirou uma soneca às
cinco horas com o resto das crianças de sua classe. O quarto fica no sétimo
andar. As janelas estão trancadas. Ruth, a ajudante de ensino, sentou-se à
porta, lendo um livro. No final da hora, Ruth entrou para acordar as crianças
e encontrou a cama de Brandy vazia. Ruth procurou na sala. Nenhum dos
outros sete garotos viu nada. A Brandy evaporou da cama e ninguém notou.
— O resto da equipe revistou tudo, —continuou Colin. — Todos os
quartos foram inspecionados e, para chegar à escada, ela precisava passar
pela recepcionista da escola e por um guarda, e Connie jurou que não viu
uma criança sair. Quando ficou evidente que Brandy não estava em nenhum
lugar da escola, fomos alertados sobre a situação.
De todos os clãs, os Chacais eram os mais paranoicos quando se tratava
de seus filhos. Onde os boudas estragavam seus filhos com muita liberdade e
os gatos encorajavam os filhos a fazerem viagens solitárias, os chacais
sempre davam ênfase à família. Na natureza, ao contrário dos lobos que
formavam bandos ou ratos que se juntavam em grupos muito grandes, os
chacais acasalavam por toda a vida e viviam em pares, criando seus filhos em
pequenas fatias de território.
— Eu gritei com Ruth. —Geraldine apertou a mão em um punho. —
Pensei que ela saiu ou adormeceu, e Brandy escapou.
— Nós checamos as barras nas janelas e fizemos uma varredura completa
da área de dentro e do lado de fora, —disse Colin. — Nenhum sinal dela.
— Ele levou uma bebê. —Um grunhido escorregou na voz de Geraldine.
— Ele arrancou-a da cama dela, aquele maldito bastardo. Eu vou rasgar suas
entranhas.
— Se você o confrontar, ele vai matar você e ela, —disse Kate.
Geraldine se virou para ela.
— Não é um insulto, —disse Curran. — Ela está afirmando um fato. Ele
tem poder sobre os chacais.
— Então, o que fazemos? —Geraldine levantou as mãos.
— Não fazemos nada, —disse Curran.
— Mas ...
— Não fazemos nada, —repetiu ele. — Não sabemos onde ele está
mantendo a criança, mas ele não hesitará em matá-la. Nós vamos atender suas
demandas. Por enquanto.
— Ele quer que Andrea e eu o ajudemos, —disse Raphael. — Nós
faremos.
— Nós já decidimos, —eu disse. — Enquanto façamos o que ele quer,
nenhuma criança será mais levada.
A voz de Colin se transformou em um grunhido áspero. — Então você
quer que nós nos sentemos em nossas mãos, então?
— Não, —disse Kate. — Descubram tudo o que puder sobre ele. Vá até
os livros, visite especialistas, obtenha o máximo de informações possíveis
sobre Anúbis. Descubra suas fraquezas, se ele tiver alguma. Assim que ele
nos der uma chance, nós o atingiremos com tudo o que temos.
— Nós já matamos deuses aspirantes antes, —disse Curran. — Inferno,
nós provavelmente poderíamos matá-lo agora. Mas eu não farei isso à custa
da vida de uma criança. Devemos ser pacientes e espertos. Traga seu povo
para a fortaleza. Quanto menos alvos isolados, melhor. Levante o alerta.
Ninguém vai a lugar nenhum, exceto em grupos de três. Durma em turnos,
com os guardas vigiando as crianças.
Vou reforçar as Proteções mágicas na parte sul novamente. —Disse Kate.
— Isso não vai impedi-lo, mas pode dificultar a vida dele.
Os alfas Chacais pareciam querer arrancar os cabelos.
— Paciência, —disse Curran. — Não podemos puxar essa corrente,
porque há uma criança presa à outra extremidade dela. Vamos persegui-lo
como um cervo, com toda a astúcia e cálculo que temos. Os chacais têm a
reputação de catadores, mas todos nós sabemos o que realmente são capazes.
Todos nós aqui vimos famílias do Clã Chacal derrubarem cervos e alces. Há
honra em capturar presas muito maiores do que você, especialmente se essa
presa for inteligente e difícil de capturar.
Havia uma razão pela qual Curran era o Senhor das Feras.
— Ele pode ser um deus, —Curran continuou, — mas ele está em nosso
mundo agora e está sozinho. Juntos somos mais inteligentes, mais espertos e
mais cruéis. Paciência.
Os Chacais mudaram de agitação para uma terrível determinação de aço.
— Paciência, —repetiu Geraldine, como se estivesse saboreando a palavras
na língua para entender o seu significado.
Colin assentiu. — AJ é professor de antropologia cultural. Ele pode
conhecer um especialista.
Cinco minutos depois, eles tinham seis nomes e saíram.
— Não vai segurá-los por muito tempo, —disse Jim, alguns momentos
depois que a porta se fechou atrás deles. — Quando os pais retornarem, eles
vão levar o clã a um frenesi.
— Então precisamos resolvê-lo antes que os pais retornem. —Curran
olhou para mim e para Raphael. — O que você precisa?
— Um cervo, —eu disse.
— Não entendi, —disse Jim.
— Ele disse que Kate saberia onde estaria o escudo feita da escama de
Apep e era para dizer a ela que levasse outro cervo, —elaborou Raphael.
Curran olhou para sua companheira. Algumas coisas passaram entre eles,
algum tipo de conversa sem palavras que só eles entendiam.
— De jeito nenhum, —disse Curran.
— Eles não podem invocar sozinhos e você não pode se envolver, —disse
Kate.
Os olhos de Curran se transformaram em ouro fundido. — Você está
louca? Era você, eu e cinco vampiros e mal conseguimos fugir. Ele tem seu
cheiro agora. Ninguém vai vê-lo de novo.
— Ninguém, exceto eu. —Ela deu-lhe seu olhar psicótico.
O Senhor das Feras apertou sua mandíbula.
Kate sorriu para ele.
A tensão era tão espessa que você podia cortar em fatias e servir com
torradas. De todos os malucos por controle, Curran era o pior e ele estava
convencido de que Kate era feita de vidro frágil. Eu entendia isso. Entendia
completamente. Ele estava exatamente no mesmo lugar que eu tinha estado
algumas horas antes: ver alguém que você ama mergulhado de cabeça em
perigo e não é capaz de fazer nada sobre isso. Era difícil de assistir e mais
difícil de conviver com isso.
— Há batalhas duras e há suicídio, —disse Curran.
— Concordo, mas eu tenho um plano, —disse Kate.
Curran levantou as mãos, convidando o plano milagroso a surgir.
— O Volhv negro serve a Chernobog, que preside os mortos que caiem
em batalha. Esta é sua área de especialização.
— Eu gostaria de participar desse seu plano, —disse Raphael.
— Eu também, —acrescentei.
173
— O escudo pertence a um draugr , —disse Curran. — É um gigante
morto-vivo e impossível de matar.
— Como impossível de matar? —Perguntei.
— Nós não conseguimos matá-lo, —disse Kate.
— Vocês dois ao mesmo tempo? —Raphael perguntou.
Ela assentiu.
Ótimo.
— Não vamos tentar matá-lo, —disse Kate. — Ele está preso por
Proteções mágicas, mas uma vez que pegamos o escudo dele e o carregamos
além da linha da Proteção, os feitiços que seguram essa prisão mágica podem
falhar. Nós não podemos deixa-lo fugir por aí, porque ele come pessoas. É aí
que o Volhv entra. Roman terá que invocar novamente os feitiços de
aprisionamento no draugr.
— Será que ele consegue fazer isso? —Perguntou Curran.
— Bem, vamos ter que perguntar a ele, —disse Kate.
Quando acordei, três horas depois, Raphael tinha ido embora. A lama dos
meus tornozelos mostrou-se notavelmente difícil de remover. Levou vários
sabonetes e esfregões com um pano e até uma pedra-polmes, até que
finalmente tudo sumiu e a pele das minhas pernas estava vermelha. O Lyc-V
consertaria isso em pouco tempo, mas isso me irritava muito.
175
Eu saí para o corredor e cheirei muffins ingleses . Torradas crocantes,
muffins ingleses fresquinhos, generosamente amanteigados. O aroma agarrou
meu nariz e me arrastou pelo corredor, para uma sala ao lado, onde Kate
estava sentada a uma mesa comprida, tomando café. Badejas cobriam a mesa:
pilhas de ovos mexidos; quentes batatas fritas crocantes crepes suaves,
dobrados em quatro e encharcados com manteiga derretida, bacon, salsicha,
presunto, muffins ingleses.
— Comida!
— Sim! —Kate empurrou um prato na minha direção.
Coloquei meu prato e mordi o presunto. Nham, nham, nham. Carne.
Carne boa. Andrea com fome. Andrea gastara calorias demais nas últimas
quarenta e oito horas. Eu poderia ficar sem dormir ou comida, mas não os
dois ao mesmo tempo.
— Você viu meu companheiro? —Perguntei.
— Ele está com a mãe.
Eu revirei meus olhos.
— Ele estava aqui há meia hora atrás, comendo feito um furacão. A Tia B
nos agraciou com sua presença e ela queria que ele explicasse as coisas para
ela.
Eu comi o muffin inglês e peguei outro. Quase podia sentir a energia
inundando meu corpo. Como um metamorfo, eu tecnicamente poderia ficar
sem dormir completamente, se eu precisasse, mas a comida era uma
exigência. Eu ia me encher até que eu parecesse um daqueles porcos que eles
serviam em banquetes em filmes antigos.
— Seu Volhv favorito apareceu meia hora atrás, reclamando sobre não
dormi e deuses estúpidos. Ele diz que trouxe o cinto do Batman.
Parei de mastigar por um segundo e peguei meu reflexo na chaleira
brilhante. Eu parecia um esquilo com as bochechas cheias de comida. —
Então ele pode prender novamente o draugr?
— Ele diz que pode.
— Isso significa que ainda vamos fazer isso?
Kate assentiu.
Bem. Meu dia finalmente estava melhorando. Já estava na hora.
Capítulo 14
Os cavalos atravessaram o caminho de terra. Segundo Kate, a criatura que
tinha nosso escudo da escama de Apep vivia nas profundezas da Herança
Nórdica. O território dos novos vikings. Os novos vikings não se importavam
com tecnologia dentro de suas fronteiras.
Ao contrário de várias outras organizações escandinavas, a Herança
Nórdica não estava interessada na preservação da cultura escandinava. Eles
estavam interessados em perpetuar o mito dos vikings: usavam peles,
trançavam os cabelos, agitavam armas enormes, iniciavam brigas com
selvagem abandono e geralmente se comportavam de maneira que
confirmava a intenção de parecerem uma horda de espíritos selvagens e
bárbaros. Eles brigavam em qualquer lugar e com qualquer um,
independentemente da ascendência e história criminal, desde que
demonstrassem o ‘espírito Viking’, que aparentemente equivalia a gostar de
violentas brigas e beber muita e muita cerveja.
A área da Herança Nórdica ficava bem longe da cidade. Nossa pequena
comitiva descia pela estrada, Kate e eu na frente, Ascanio dirigindo uma
carroça com um cervo amarrado, e Raphael e Roman atrás. Os dois homens
conversavam tranquilamente, o dialogo parecia surpreendentemente
civilizado.
Acariciei o pescoço do meu cavalo. O nome dela era Docinho e ela vinha
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dos estábulos do Bando. Ela era uma Tennessee Walker , inteligente e
calma, com alta resistência. Eu também gostava da cor dela, ela era um roan
vermelho de um tom tão pálido e suave que quase parecia rosa.
Kate sorria maliciosamente.
— O que foi?
— Seu cavalo é rosa.
— E daí?
— Se você colar algumas estrelas no traseiro dela, vai estar montando um
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Meu Pequeno Pônei .
— Cala boca. —Eu acariciei o pescoço da égua. — Não dê ouvidos a ela,
Docinho. Você é a mais bonita égua do mundo. O nome correto para sua cor
é roan morango, a propósito.
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— Moranguinho, está mais parecido com o cavalo da Moranguinho .
Ela sabe que você roubou seu cavalo? Ela vai ficar muito, muito irritada com
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você .
Olhei para ela com as minhas pálpebras semi-abaixadas. — Eu posso
atirar em você bem aqui, nesta estrada, e ninguém nunca encontrará seu
corpo.
Atrás de nós, Ascanio gargalhou.
A estrada fazia uma curva, presa entre a densa floresta escura à esquerda
e uma colina baixa e coberta de grama à direita. Afloramentos de rocha clara
marcavam as colinas. A área da Herança Nórdica ficava no lado oeste de
Gainesville, a cerca de oitenta quilômetros a nordeste de Atlanta. A expansão
180
maciça da Floresta Chattahoochee há muito tempo engoliu Gainesville,
transformando-a em uma cidade isolada, como uma pequena ilha em meio a
um mar de árvores.
Kate estava montando um cavalo escuro, de aparência desagradável, que
parecia que não podia esperar para pisar alguma coisa até a morte.
— Então, você sente falta da Marygold?
Marygold costumava ser sua mula da Ordem.
— Minha tia a matou, —disse Kate.
Porcaria. — Desculpa. —Ela realmente amava aquela mula.
À frente, o topo de uma pilha enorme de pedras se mexeu. Um corpo
humanoide largo saiu da crista. Sua cabeça era larga e equipada com
mandíbulas de dinossauro armadas com dentes estreitos. Escamas de cinza
protegiam seu corpo, projetando-se da carne como se a criatura tivesse rolado
no cascalho. Longos fios de musgo verde-esmeralda pingavam de suas costas
e ombros. O sol atravessou as nuvens. Um raio perdido pegou o lado da
criatura e a fera cintilou como se tivesse sido mergulhada em pó de diamante.
— Que diabo é isso?
181
— Isso é um landvættir , —disse Kate. — Eles são espíritos da terra
que surgem em torno de assentamentos novos nórdicos. Ele não vai nos
incomodar a menos que ficarmos em seu caminho.
Nós passamos pela criatura.
Raphael incitou seu cavalo para frente e ficou entre nós duas. — Anapa.
Poderoso o suficiente para sequestrar uma criança da Fortaleza.
— Sim? —Eu murmurei.
— E isso é realmente importante para ele?
— Sim?
— Então por que não veio atrás disso sozinho? —Raphael fez uma careta.
— Por que ele não nos ajuda? Por que manter o Bando fora disso? —Eu já
havia me feito essas mesmas perguntas antes, então eu disse a ele a única
resposta que poderia dar. — Eu não sei.
Ele olhou para Kate. Ela encolheu os ombros. — Não sei.
— Perguntei ao seu Volhv, —disse Raphael para mim.
Meu Volhv, huh? — E o que o doce ursinho russo lhe disse?
Kate fez um barulho estrangulado. Raphael apertou a mandíbula, depois
abriu-a.
— Ele disse que Anapa é um deus e os deuses são estranhos. Que tipo de
resposta demente é essa? Ele não é um especialista em tudo isso, e é por isso
que o estamos levando?
Deuses são idiotas viciosos e egoístas. Dei de ombros. — Roman é um
especialista e ele lhe deu sua opinião de especialista. Deuses são estranhos.
— Eu posso ouvir vocês, —Roman gritou atrás de nós. — Não sou surdo.
Raphael balançou a cabeça e recuou.
Anapa não era apenas estranho. Não, ele tinha um plano. E todo o seu
bom humor e sorrisos encantadores eram calculados. Eles mascavaram sua
verdadeira essência da mesma maneira que o pelo macio cobria as garras de
um gato. E eu manteria seu plano para mim mesma. Se eu dissesse a Raphael,
ele faria algo imprudente para me salvar. Se eu contasse para Kate, ela se
preocuparia e tentaria consertar. Não havia como consertar isso. Era o que
era.
A estrada virou, se dividindo em dois caminhos à frente. Uma estrada
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maior, marcada por uma velha bétula , curvava-se colina acima. O caminho
menor e menos explorado desviava para algumas florestas.
Um homem saiu de trás da árvore e barrou o caminho. Com cerca de um
metro e noventa de altura, forte, parecia um tanque do tamanho de um
homem envolto em cota de malha. Ele usava um manto exagerado de pelo
preto e um elmo de guerra polido e carregava um enorme machado com uma
longa haste de madeira.
— É bom ver você de novo, Gunnar, —disse Kate. — Estamos indo para
a clareira.
A metade inferior do rosto de Gunnar empalideceu. — Novamente?
Kate assentiu.
— Você já foi uma vez. Não pode ir de novo.
— Eu não tenho escolha.
Gunnar esfregou o rosto. — Ele tem o seu cheiro agora. Você sabe o que
acontece com as pessoas que vão vê-lo duas vezes.
— Eu sei. Mesmo assim tenho que ir.
Ele balançou a cabeça e deu um passo para o lado. — Foi uma honra
conhecer você.
Kate tocou as rédeas e nossa pequena comitiva seguiu em frente.
— O que exatamente acontece com as pessoas que vão vê-lo duas vezes?
—Perguntei.
— Ele os come, —disse Kate.
A velha estrada se estreitou, abrindo caminho para a floresta. Árvores
altas lotavam a estrada, como se protestassem contra sua invasão no meio
delas. O ar cheirava a floresta: seiva de pinheiro, o odor de terra úmida, o
odor de urina de lince marcando seu território em algum lugar à esquerda e o
almíscar ligeiramente oleoso do esquilo. Um nevoeiro azulado pairava entre
as árvores, obscurecendo o chão. Assustador.
Chegamos a um arco de pedra feito por altos pilares de pedra cinza,
amarrados por vinhas.
Kate pulou do cavalo. — Nós vamos a pé daqui. Raphael, você vai levar
o cervo?
— Pode deixar que eu levo.
Peguei o tripé da carroça e o abri montando-o, avaliando o caminho que
passava pelo arco de pedra. Coloquei o tripé no chão e tirei minha enorme
besta da carroça. Letras escuras corriam ao longo do suporte do arco:
183
THUNDERHAWK .
— Isso é novo, —disse Kate.
Coloquei a besta no topo do tripé montado, peguei uma bolsa de lona da
carroça e desenrolei.
Flechas de besta, carregados com as ogivas de Galahad.
— Este é o meu bebê. —Eu acariciei o estoque.
— Você tem um relacionamento estranho com suas armas, —disse
Roman.
— Você não tem ideia, —disse Raphael a ele.
— Isto vindo de um homem com um cajado vivo e um outro que uma vez
dirigiu quatro horas só para ter uma espada que ele pôs depois em sua parede,
—eu murmurei.
184
— Era uma Angus Trim , —disse Raphael.
— É uma tira de metal afiada.
— Você tem uma espada Angus Trim? —Os olhos de Kate se
iluminaram.
— Comprei em um leilão imobiliário, —disse Raphael. — Se sairmos
dessa, vivos, você é mais do que bem-vinda a minha casa para brincar com a
minha espada.
Era bom que Curran não estivesse aqui e eu estivesse segura em nosso
relacionamento, porque isso poderia ser totalmente mal interpretado.
Peguei minha mochila. Raphael atirou o cervo por cima do ombro. Kate
puxou um bolsa de couro da carroça. Tinha um padrão de contas na lateral da
bolsa que parecia muito familiar. Eu já tinha visto um padrão semelhante
antes em uma reserva do Oklahoma Cherokee, era um trabalho de bordado
indígena.
— Isso é um bordado Cherokee?
Kate assentiu. — Comprei isso de uma mulher da medicina Cherokee.
Eu fiz sinal para Ascanio, chamando-o. — Aponte assim. —Girei o tripé,
movendo o arco. — Visualize por aqui. Para disparar, vire está alavanca e
aperte o gatilho devagar. Faça isso com calma. Nada de pressa.
— Mesmo se ele for apressado, ele vai acertar, confie em mim, —disse
Kate. — Ele terá um grande alvo na frente.
— Não dê ouvidos, ela não pode atirar em um elefante a três metros de
distância. No lugar disso, ela pegaria o arco e o bateria com ele e então
tentaria cortar a garganta dele com sua espada.
Kate riu.
— Sua vez, repita. —Eu acenei com a cabeça em direção ao arco.
— Alvo, mire, puxe a alavanca, aperte o gatilho lentamente, —disse
Ascanio. — Tente não entrar em pânico e chorar como uma garotinha.
— Bom garoto. —Nós seguimos Kate em fila única pelo caminho,
deixando-o próximo a carroça.
A floresta ficou mais sombria, as árvores ficando mais escuras, mais
retorcidas, ainda mais cheias de folhas, mas de alguma forma mortas, como
se estivessem congeladas no tempo. A névoa se espessou em sopa. Os odores
habituais se desvaneceram. Nem mesmo os esquilos se aventuravam por aqui,
como se a própria vida fosse proibida neste lugar.
Troncos esmagados no chão.
Eu senti o cheiro de podridão. Forte e recente.
Chegamos a uma clareira, um pequeno trecho de terra musgosa
ligeiramente maior do que uma quadra de basquete, cercada por enormes
árvores. No centro da clareira havia uma grande pedra, alta e plana como uma
mesa. Um espaço oco havia sido esculpido na pedra e manchado de
vermelho. Eu cheirei. Sangue recente de alguns poucos dias.
— Coloque o cervo na rocha, —disse Kate.
— Então, o que te trouxe aqui pela primeira vez? —Perguntei.
— Uma criança que estava morrendo, —disse Kate. — Foi eu, Curran e
alguns vampiros. Ele e eu fomos os únicos a sair inteiros. Ainda dá tempo
desistir.
— Desistir? —Roman esfregou as mãos juntas. — E perder isso? Você
está malditamente louca?
Ele não falou isso porque estava assustado. Ele estava empolgado. Uau.
Pela primeira vez, fiquei sem palavras.
— Você tem certeza disso? —Kate me perguntou.
Eu tinha o trabalho mais importante neste nosso incrível plano. — Você
vai continuar enrolando isso?
— Ela vai ficar bem, —disse Raphael. — Ela é a pessoa mais rápida que
conheço.
À esquerda, alguma criatura gritou, alto e desesperado. Outro se juntou a
ele. Eu lutei contra um arrepio.
185
— O draugr já foi um Viking chamado Håkon de Vinlândia , —disse
Kate. — Os vikings que viviam lá negociavam com as tribos indígenas
locais, que disseram a Håkon que as tribos do sul, os cherokees, eram
pacíficos agricultores, não guerreiros e tinham muito ouro. Então Håkon
navegou em dois navios com o objetivo de estuprar, saquear e matar os
cherokees. Só que os cherokees tinham bons arqueiros e magia forte. Håkon
morreu no conflito. Ninguém de seus homens se preocupou em enterrá-lo, e
ele ficou tão aborrecido com isso, que ressuscitou dos mortos como um
draugr, perseguiu seus próprios homens restantes e os comeu.
— Literalmente? —Roman perguntou.
Kate assentiu. — Os cherokees encontraram-no roendo ossos dos seus
homens. Ele era muito poderoso e eles não podiam matá-lo, então o
trancaram nesta clareira com suas Proteções para evitar que ele corresse solto.
A luz ganhou um estranho tom azulado. De alguma forma a floresta ficou
mais escura.
— Este é um lugar ruim, —disse o Volhv negro. — Nós não deveríamos
estar aqui. Bem, eu deveria. Mas vocês não. Vejam, meu deus tem domínio
sobre coisas mortas, mas essa criatura pertence a um panteão diferente, então
eu tenho alguma proteção aqui, mas não muito. Não o suficiente para matar o
draugr. Apenas o suficiente para prendê-lo e sobreviver.
— Você está fazendo maravilhas com a minha confiança, —eu disse a
ele.
Kate colocou a bolsa com o bordado de contas Cherokee no chão,
ajoelhou-se e desatou o cordão. Dentro havia quatro varas com uma ponta
afiada em uma das extremidades, cada uma das vara tinha cerca de um metro
de comprimento. Ela pegou a primeira vara, encontrou uma pedra de bom
tamanho e a usou para martelar a vara no chão no começo do caminho.
Aquela direção seria para onde eu teria que correr quando chegasse a hora de
dar o fora dali. A segunda vara foi martelada no lado esquerdo da clareira, a
terceira a direita e a última exatamente oposta à primeira.
— Estas são nossas defesas. Elas vão atrasá-lo um pouco. Não lutem
contra ele. Apenas corram.
Kate tirou um cachimbo de uma caixa e começou a fumar. O tabaco bateu
nela e ela tossiu.
— Fraca. —Eu disse, provocando-a.
— Estou nem aí para você. —Ela circulou a clareira, agitando seu
cachimbo ao redor.
— Eu nunca vi isso antes, —disse Roman. — É muito difícil testemunhar
rituais nativos americanos nos dias de hoje. Tanto se perdeu devido à
apropriação desse tipo de conhecimento restrito aos indivíduos da tribo e a
falta de registros escritos. É emocionante!
— Bem, estamos felizes que pudemos satisfazer sua curiosidade
intelectual, professor, —disse Raphael.
— Eu provavelmente não estou fazendo o ritual da maneira perfeita, mas
a tribo se recusa a se aproximar dessa clareira, então sou tudo o que você tem,
—disse Kate.
Ela completou o círculo, sentou-se e começou a tirar as coisas da bolsa:
um pote de plástico de mel em forma de ursinho, uma garrafa de metal com
cerveja dentro e uma bolsinha.
Pisquei e a floresta estava cheia de olhos amarelos nos espiando atrás dos
pedregulhos, da escuridão das raízes das árvores, dos galhos ...
Eu mostrei meus dentes. — Quem são esses?
— Eu não sei. —Kate manteve a voz baixa. — Eles também saíram da
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última vez. Acho que podem ser uldras . Ghastek disse que eles são
espíritos da natureza da Lapônia. Não nos atacaram da última vez.
À minha direita, uma das uldra subiu no final do tronco de árvore caída, a
poucos metros de distância. Com uns sessenta centímetros de altura
empoleirou-se na casca da árvore, segurando-a com os pés que se
assemelhava a pés de aves. Pêlo escuro e denso cobria seu corpo humanoide.
Seu rosto lembrava vagamente um babuíno.
Os uldras encontraram o seu lugar, movendo-se com uma lentidão
semelhante à do bicho preguiça, e congelaram, mãos enormes com longos e
grandes dedos cruzados dobrados em frente a ela. Sua boca se abriu, exibindo
uma fileira de longos dentes de peixe em águas profundas.
— É apenas um pequeno nechist, —disse Roman ao meu lado.
— Nechist? —Eu perguntei.
— Sim. Coisa impura, escória. Eles são inofensivos. —Ele enfiou a mão
em sua bolsa. — Esperem ... aqui. —Roman tirou um pequeno pacote de
bolachas e sacudiu um. — Aqui, você quer um biscoito? —Ele ofereceu o
biscoito para a criatura.
— Roman ... —Um aviso rastejou em minha voz. Aqueles dentes não
pareciam de brincadeira.
— Não se preocupe, —ele me disse. — Aqui. —Ele clicou sua língua. —
Venha pegar um biscoito.
Os olhos pálidos do uldra se concentraram no biscoito. Lentamente, ele o
alcançou e arrancou o pequeno quadrado dos dedos de Roman. O uldra deu
uma mordida.
— Bom, não é? —Roman clicou a língua mais um pouco. — Vamos.
Venha.
A uldra se arrastou até o antebraço e subiu a manga preta para se sentar
em seu ombro.
— Jesus, —disse Raphael.
Roman falou suavemente com o uldra. — Quem é o menino bonzinho?
Quer outro biscoito?
Um segundo uldra saiu dos arbustos e sentou-se ao lado da bota de
Roman, com os braços cruzados em nervosismo, à espera de um biscoito.
Roman jogou outro biscoito no chão. Duas criaturas menores se arrastou e
puxou a bainha de seu manto.
— Há muitos biscoitos para todos, —assegurou-lhes Roman.
Raphael se inclinou para frente. A uldra mostrou os dentes. Raphael
rosnou para eles.
— Não há necessidade de intimidá-los. —Roman acariciou a criatura
mais próxima.
A primeira uldra terminou sua refeição e esfregou a cabeça contra a
bochecha de Roman.
Um baixo gemido sobrenatural veio das árvores. As uldras fugiram. Um
momento eles estavam lá e, no outro, zaaaap, apenas os biscoitos comidos
pela metade deixados para trás.
— Aqui vamos nós. —Kate andou até a pedra e o cervo sedado deitado
sobre ela.
O plano era simples. Quando o draugr aparecesse e conseguíssemos a
escama, eu fugiria de lá. Normalmente eu teria que chegar apenas aos pilares
de pedra, que marcavam o início das Proteções dos cherokee. Mas Kate
estava preocupada que carregar a escama passando pelos pilares significava
que estávamos levando uma parte da criatura para fora da barreira das
Proteções, o que podia ou não cancelar os feitiços defensivos. Nós tínhamos
que conseguir pará-lo nos pilares.
— Você tem certeza que pode prendê-lo? —Perguntei a Roman.
— Não se preocupe, —disse ele. — Posso fazer isso.
De repente, fiquei muito preocupada.
Kate abriu a bolsa, tirou pedras de runa, pequenos quadrados de ossos
gastos, cada um com uma runa gravada em preto, e jogou-os na mesa de
pedra. Eles se espalharam e tilintaram na pedra, como dados em um copo de
plástico. Ela esvaziou a bolsa das runas e senti um cheiro de lúpulo e cevada.
Cerveja. Kate apertou o pote de mel em forma de urso, esguichando uma
corrente de mel âmbar nas runas.
Roman se inclinou para mim. — Essas são runas nórdicas.
Eu olhei para ele.
— Não as eslavas, —disse Roman. — Achei que merecia saber dessa
informação.
Ele parecia que mal podia conter toda a excitação.
— Agora, —disse Kate.
Respirei fundo, agarrei o veado pela cabeça e puxei sua garganta para o
receptáculo escavado na rocha. O cervo me deu um olhar de pânico. —
Desculpe, garoto. —Kate ergueu a faca e cortou a garganta. O cervo chutou,
mas eu o segurei. O cheiro de sangue, quente e fresco, tomou conta de mim,
chutando meus sentidos em alta velocidade.
Kate sacudiu as runas, segurando-as frouxamente na mão, e vi pequenas
rajadas de raios entre seus dedos.
— Eu te chamo, Håkon. Venha do seu túmulo. Venha provar a cerveja de
sangue.
Um som sibilante veio, feito de velhos ossos esmagados, músculos
mumificados, couro rangendo e misterioso sussurro maligno. Senti o cheiro
doentio de decomposição, a terra, o pó e a carne liquefeita, como se alguém
tivesse jogado minha cabeça em um túmulo. A magia tomou conta de nós,
arrastando um frio congelante em seu rastro. O gelo deslizou pelo chão em
meus pés.
Fora além da clareira, a névoa fluía em nós, engrossando enquanto se
aproximava. Ele gemeu, como uma coisa viva, sua voz cheia de tormento,
fluiu em uma forma humana e desapareceu, deixando uma coisa em seu
rastro.
Com um metro e noventa de altura, era feito de cartilagem seca, carne
murcha e uma pele coriácea que costuma ser vista em vampiros, exceto que
sua cor era cinza-azulada. Nenhuma célula de gordura poderia ser encontrada
em sua estrutura esparsa. Usava armadura de malha e grandes ombreiras de
metal, e nenhum dos dois combinava bem com ele, um pouco torto,
obviamente feito para um corpo muito mais forte. O draugr levantou a cabeça
e olhou para mim. Seu rosto poderia ter sido usado como um modelo em aula
de anatomia, cada músculo nele claramente desenhado sob a fina camada de
pele, parecia revoltantemente alienígena. Seus olhos frios me encararam, sem
pupila e sem expressão.
O morto-vivo abaixou a cabeça e começou a lamber a mistura de sangue e
cerveja.
Náusea subia em meu estômago. Havia algo tão errado sobre essa coisa
não-morta e não-natural sugando o sangue de uma criatura que estivera viva
alguns momentos atrás.
— Já chega, por enquanto, —disse Kate controlando o monstro com suas
runas.
O morto-vivo levantou a cabeça, seu rosto ensanguentado. Sua boca se
moveu e eu vi os cordões de seus músculos faciais deslizarem e se
contraírem. Ecaa.
Sua voz era arrepiante, rouca e antiga. — Eu conheço você. Conheço seu
perfume.
Kate olhou diretamente para o rosto dele. — Eu trouxe a sua cerveja de
sangue como uma oferta.
— Comida tola. Carne idiota, tola.
O draugr desceu para tentar um pouco mais da cerveja de sangue.
— Não, —Kate retrucou.
O draugr encostou-se na pedra. — Sou Håkon, filho de um jarl, flagelo
dos mares, devorador de carne. O que você quer, carne magra?
— Eu quero ver o seu escudo, —disse Kate.
O draugr virou a cabeça. — Meu escudo?
— O escudo que você roubou quando navegou para cá de Vinland como
objetivo de assaltar o ouro das Tribos do Sul.
187
— Os skrælingar , —disse o draugr.
— Sim. Os skrælingar. Você pegou dois navios e veio procurá-los,
lembra?
— Eu me lembro ... —A voz do draugr carregada. — Lembro-me de tudo.
Pássaros com asas que cobriam metade do céu. Eu me lembro da magia
skrælingar. Eu lembro da flecha nas minhas costas. Eu lembro do meu
cadáver deixado para apodrecer.
— Você se lembra do seu escudo? —Kate insistiu.
O draugr inclinou a cabeça para a cerveja.
Kate chocalhou as runas. — Se você quiser a cerveja, você vai me deixar
ver seu escudo.
Um fogo frio e maligno chamejou nos olhos do draugr e pingou de seu
rosto em lágrimas ardentes. — Eu vou devorar você. Vou lamber seus ossos e
esmagá-los entre os meus dentes. Eu vou chupar a sua medula ...
— Isso deve ser bom, —disse Kate. — O escudo.
— Tudo bem, carne. Aqui está.
A terra atrás da pedra se ergueu, rachando, formando raízes e pedras
menores. Uma borda curva de madeira emergiu, subindo cada vez mais alto,
até que todo o escudo redondo se soltou do solo. No meio dela, havia uma
escama amarela, oval e ondulada, presa à madeira por barras de metal. Tinha
setenta centímetros de comprimento.
Setenta centímetros. Que tipo de cobra tinha escamas de setenta
centímetros de comprimento?
— Aqui está o meu escudo, carne.
— Você se lembra de como eu cheguei a você com uma barganha honesta
da última vez e você a quebrou? —Kate perguntou.
O draugr riu. Foi um som frio e oco.
— Uma revanche é justa, —disse Kate.
Eu agarrei o escudo e corri.
O draugr uivou, sacudindo a floresta. A voz de Roman latiu alguma coisa
em russo. Raphael rosnou. A névoa me perseguiu, serpenteando pela
montanha, tentando pegar meus tornozelos. Eu voei pelo caminho.
Magia me deu um soco nas costas. Eu voei alguns metros para frente, bati
no chão em uma bola apertada, fiquei de pé rapidamente e continuei
correndo. Troquei de direção. Kate deve ter usado uma palavra de poder, sua
própria marca de magia, para me dar um empurrão para frente, me fazendo
voar. Isso deve ter sugado suas energias, as palavras de poder eram seu
último recurso.
Você não vai me escapar, uma voz gelada sussurrou no meu ouvido.
Corra tudo o que quiser, carne. Corra mais rápido que puder.
Todos os pêlos do meu corpo estavam em pé.
Pulei sobre uma raiz. A névoa se partiu como um chicote e envolveu meu
pescoço em um nó. Isso tirou os meus pés do chão e eu voei de volta,
agarrando o tentáculo da magia com uma mão, apertando o escudo com a
direita. Bati as minhas costas no chão e a magia me puxou, raspando minha
pele sobre as raízes.
Ah não, você não. Rosnei e peguei um galho com a mão esquerda.
A magia me puxou para trás, esmagando minha garganta. Círculos negros
nadaram diante dos meus olhos.
Plantei meus pés e me forcei. Todos os músculos do meu corpo estavam
tensos.
A magia puxou um pouco mais.
Empurrei para frente. Um pouco. Outro passo. Nenhum morto-vivo
imbecil me arrastaria de volta. Isto não, não vou permitir.
A magia me soltou.
Eu me inclinei para a frente e rolei, cabeça sobre os pés, curvando meu
corpo em torno do escudo, batendo em todos os obstáculos com partes macias
de mim, como se alguém tivesse me colocado em uma secadora com um saco
de pedras.
Bati em uma árvore. O mundo rodou um pouco. Eu me mexi. O escudo
estava em ruínas aos meus pés, todo destruído exceto a escama, que não tinha
um arranhão.
Uma sombra escura e gelada caiu nas árvores ao meu lado.
Agarrei o escudo e me virei. Algo branco estava caindo, então eu
coloquei o escudo na minha frente e me agachei por trás dele.
Lanças de gelo de um metro de comprimento se afundaram no chão ao
meu redor, martelando o escudo. Segurei o escudo até que os impactos
pararam e desci a encosta. Magia explodiu ao meu redor em rajadas frias,
sacudindo os dentes no meu crânio. O cheiro forte de podridão encheu minha
boca. Ao meu redor as árvores gemiam, como se estivessem em pé por uma
mão invisível. Minha garganta queimava.
Eu corri mais ainda na estrada.
Os pilares de pedra apareciam longe à minha direita. Eu corri para eles.
Minhas costelas estavam gritando de dor.
As árvores rangeram atrás de mim. O draugr tinha chegado na estrada.
Meus pés mal tocaram o chão. A magia do draugr congelou minhas
costas.
Algo assobiou pelo ar e um corpo bateu na estrada à minha frente,
arremessado por uma força sobrenatural. Roman. O Volhv não estava se
movendo. Acho que a prisão mágica que ele invocaria acabou não
funcionando.
Entre os pilares, Ascanio girou a besta no tripé, apertou o gatilho e
disparou. A flecha enorme cortou o ar acima de mim. Obrigada garoto!
O mundo explodiu de verde. A onda de choque bateu nas minhas costas.
Eu agarrei na última explosão de velocidade do meu corpo exausto e
atravessei os pilares. Derrapei até parar e me virei. Na estrada, o draugr
seguiu em frente, uma enorme monstruosidade, superando as árvores,
impossivelmente grande. Sua magia girou em torno dele em uma nuvem
tempestuosa.
Raphael saiu das árvores como um pesadelo coberto de pele e atacou o
gigante, rasgando a carne morta-viva.
Empurrei Ascanio do tripé e recarreguei.
O morto-vivo tentou pisar nele, mas Raphael correu para frente e para
trás, muito rápido, retirando músculo seco e cartilagem da perna esquerda do
gigante.
Kate irrompeu da vegetação rasteira e enfiou a espada no pé direito do
draugr. Eu puxei a besta e mirei em Håkon. Coma isso, seu pedaço de merda
morto-vivo.
— Saiam daí! —Eu gritei.
Raphael e Kate correram para longe. Eu atirei. A flecha atingiu o morto-
vivo abaixo do tórax, queimando-o com chamas esmeraldas e explodiu. A
carne de um morto-vivo choveu, mas o draugr permaneceu em pé.
Roman cambaleou a seus pés, seu rosto contorcido pela raiva. Ele gritou
alguma coisa. Um bando de corvos caiu sobre o gigante, rasgando carne
podre de seus ossos.
— Ajude o alfa! —Eu gritei, recarregando. Ascanio correu para o draugr.
Raphael pegou Kate e jogou-a para cima. Ela afundou a espada na lateral
da perna do draugr. A magia quebrou, e então uma rótula de joelho do
tamanho de um carro caiu na estrada. Kate pulou para trás. O draugr oscilou e
caiu de joelhos.
188
— Fogo no buraco! —Eu disparei outro tiro. Por meio segundo, a
ponta da flecha zumbiu, entre as costelas do morto-vivo, depois explodiu,
espirrando fogo de esmeralda sobre carne ressecada. A explosão arrancou as
costelas do draugr e, através dele, vi o saco enrugado de seu coração.
Os corvos arremessaram-se para o buraco e para fora das costas do
draugr, arrastando pedaços de ossos e tecidos com eles.
Eu vi os restos devastados do coração e disparei. A flecha perfurou o
músculo duro na mosca.
A explosão sacudiu o chão. Pedaços de cadáver apodrecido caíram no
chão e Håkon caiu como um arranha-céu desmoronando. Seu queixo bateu na
terra, todo o crânio reverberando pelo impacto.
Arrá! Nós matamos um gigante imortal. Coma seu coração, Senhor das
Feras.
Kate se levantou e mancou em nossa direção.
O joelho dela. Ela tinha uma lesão antiga que continuava machucando. Eu
tinha esquecido completamente. Droga. — Seu joelho está bem?
— Não é o joelho. —Kate passou mancando pelo pilar e caiu contra a
carroça. — Ele me deu uma braçada, o filho da puta. Eu bati em um tronco de
árvore com meu quadril. Juro que esta perna está amaldiçoada.
Roman cuspiu no chão. Seu rosto estava triste. — Um desperdício. O
único do seu tipo e nós tivemos que o matar.
Quase nos rasgou em pedaços e ele estava chateado. Uau.
Raphael andou a passos largos em minha direção. Seus olhos estavam em
chamas.
— Belo tiro, —disse ele.
— Obrigada. Você foi … —Incrível, corajoso, rápido, maravilhoso. —
... não foi tão ruim também.
Roman sacudiu a cabeça. — Um desperdício desses.
— Eu vou dividir os dentes com você, —disse Kate. — Se você quiser.
Ele se virou para ela. — Claro que quero os dentes. E o cabelo.
Os dois partiram para a cabeça, parecendo dois cachorros famintos que
tinham acabado de encontrar uma carcaça fresca e suculenta.
Raphael me agarrou em um abraço de urso. Eu sorri para ele. Isso não foi
tão difícil, afinal.
Ascanio trotou para cima. — Por que eles estão arrancando os dentes?
— Eles são magos, —eu disse.
— Você quer que eu os ajude?
— Sim, —disse Raphael.
O garoto foi para o cadáver do gigante, onde Kate e Roman discutiam
sobre os dentes.
A cabeça do draugr se mexeu.
— Cuidado! —Eu gritei.
Kate olhou para mim.
Eu corri.
Os olhos brilharam com fogo verde, as grandes mandíbulas se abriram,
revelando dentes grossos. Kate virou-se, cortando-o com sua espada.
Eu estava a um metro e noventa de distância quando a magia saiu da boca
do draugr, agarrou Kate e a arrastou para a boca, esmagando-a entre aqueles
dentes atarracados.
Pulei no crânio, puxei minha faca e cortei os tendões que segurava a
mandíbula. Solte minha amiga, seu filho da puta!
As mandíbulas atacaram Kate, tentando quebrá-la como uma noz.
Carne horrível rasgou sob meus dedos. Eu tive um vislumbre de Kate, ela
enrolada em uma bola, mantendo-se longe dos dentes.
Os tendões que eu havia cortado estalaram de volta juntos. Precisava
cortar mais rápido.
Nós estávamos subindo. Eu olhei para baixo. O draugr se levantou.
— Raphael! —Eu gritei, cortando a carne. — Ele está se regenerando!
—Onde Raphael estava?
A lâmina da Matadora cortou a carne bem no canto da articulação onde a
mandíbula se encaixava na mandíbula superior. A espada fumegou. Kate
estava tentando sair.
O draugr mastigou, tentando trabalhar sua maciça língua para empurrar
Kate em direção aos dentes.
Moscas cobriam o morto-vivo, transformando-se em vermes, comendo
sua carne. Eu fatiei e piquei, as larvas comiam, mas quanto mais dano
fazíamos, mais rápido sua carne crescia de volta.
Kate gemeu. Eu tinha que tirá-la dali agora.
Me transformei. Pedaços das minhas roupas voaram para o chão. Eu dei
uma pequena corrida no ombro ósseo do draugr e chutei a articulação
temporomandibular. O osso estalou com um rangido seco, anunciando uma
mandíbula deslocada. A boca do draugr se abriu e Kate pulou.
Uma enorme mão me tirou do ombro e me apertou, esmagando-me. Eu
rosnei e o mordi. Pressão me pegou. Meus ossos estalaram. Ele estava me
esmagando como se eu fosse um
189
squishie e estivesse tentando espremer todo o material vermelho e mole
para fora.
O cheiro de gasolina me alcançou.
A dor era insuportável agora. Meus olhos lacrimejaram de dor e fúria.
O draugr me agarrou com mais força.
Meu ombro deslocou e eu gritei quando meu braço estalou como um
palito de dente.
Algo acendeu. Através das minhas lágrimas eu vi o clarão de fogo e
Raphael em forma de sua fera furiosa, subindo pelo draugr que tinha seu
cabelo pegando fogo. Raphael saltou, correu para o rosto da criatura e
arrancou um olho morto-vivo com um soco esquerdo.
O draugr gritou e me soltou, batendo em si mesmo, tentando agarrar
Raphael.
Eu caí. Eu caí e de repente algo me pegou. Eu vi o rosto de Ascanio. Ele
me deixou de pé. Perto de mim, Roman se levantou, suas mãos arranhando o
ar, seu cajado gritando.
Acima de nós, o draugr era um pilar de fogo.
Uma forma peluda saltou do draugr, atingiu a árvore e caiu. Sim! Isso,
Raphael!
O draugr rugiu e se virou para nós.
Roman ficou tenso.
O morto-vivo deu um passo lento em nossa direção. Então outro.
— Queimá-lo não está adiantando, —Roman gritou. — Eu não posso
segurá-lo.
A chama cobria o corpo do morto-vivo, mas nada da carne realmente
carbonizar. Droga. Ele não poderia simplesmente morrer?
Os pés de Roman se deslizaram para trás. Raphael pousou ao lado dele.
Kate endireitou-se. — O que nós fazemos?
— Devemos separar as partes do seu corpo e enterrar essas partes em
lugares diferentes. Ele é da Terra, ele pertence a Terra. A Terra vai segurá-lo.
— Eu posso separá-lo se você o segurar por pouco tempo, —Kate disse.
— Mas isso será tudo que vou poder fazer. Depois fico sem magia e
nocauteada.
O draugr deu outro passo.
Roman se inclinou para trás. Seus olhos reviraram em sua cabeça.
Correntes cobertas de fumaça escura irromperam do chão e amarraram os pés
e os punhos do draugr.
Kate abriu a boca e disse uma palavra de poder. A magia explodiu dela
em uma torrente e se chocou contra o draugr, mal me tocando. O pânico me
espirrou. Minha pele se arrepiou e uma gargalhada histérica de hiena me
arrancou, ecoando a risada maluca de Raphael e o riso alto de Ascanio.
O draugr recuou, tentando correr, as correntes se esticaram, e seu corpo se
despedaçou como um brinquedo de montar.
Atrás de mim, Kate caiu no chão. Roman soluçou uma vez e caiu ao lado
dela. Agora restávamos nós três.
Nós corremos. Agarrei um braço enorme e puxei-o com toda a minha
força, para a floresta, longe da estrada, e cavei no solo, arrancando as raízes e
cortando meus dedos peludos em pedras pontiagudas. Meus braços estavam
cheios de dor. Ignorei a dor. Cavei cada vez mais, jogando terra para os
lados, até que finalmente eu empurrei a parte do braço no buraco e a cobri
com terra. Então eu corri para a estrada, peguei o próximo pedaço e fiz a
mesma coisa de novo e de novo.
Nós cinco estávamos deitados em macas na ala médica do hospital da
Fortaleza. Quando tínhamos entrado mancando na Fortaleza com o escudo,
imundos, cobertos de sangue, sujeira, e usando o delicioso perfume de carne
em decomposição misturado com gasolina e fumaça, Doolittle quase teve um
aneurisma.
Nós tínhamos sido amarrados e deitados a força em nossas camas na ala
hospitalar. Até mesmo Ascanio, que havia saído impune. Doolittle e seus
assistentes nos examinaram e rapidamente determinaram que Rafael tinha
queimaduras de segundo grau, eu tinha um braço fraturado, Roman estava
desidratado e tinha sofrido uma concussão, e Kate tinha duas costelas
quebradas, um quadril machucado e seu joelho tinha se deslocado
novamente. E então Curran atravessou a porta.
A raiva do Senhor das Feras era uma coisa terrível de se ver. Algumas
pessoas invadiam, alguns socavam coisas, mas Curran escorregava para esta
calma gelada e arrepiante. Seu rosto endurecido em uma máscara neutra, e
seus olhos se transformaram em um inferno derretido de ouro puro. Se você
olhasse para ele por mais de dois segundos, seus músculos se trancariam,
seus joelhos tremeriam, e você teria que lutar para não se encolher. Era mais
fácil olhar para o chão, mas eu não fiz isso. Além disso, ele não estava com
raiva de mim. Ele não estava nem bravo com Kate. Ele estava zangado com
Anapa. Eu não tinha dúvidas de que, se ele conseguisse segurar o deus
naquele momento, ele o teria quebrado ao meio.
— São apenas as costelas, —Kate disse a ele. — E elas nem estão
quebradas. Estão só fraturadas.
— E o quadril, —disse Doolittle. — E o joelho.
Aí está. Não espere misericórdia de um texugo.
— Quanto tempo você precisa mantê-la mais aqui? —Curran olhou para
Doolittle.
— Ela pode ir para seus aposentos, desde que não saia de lá, —disse
Doolittle. — Eu não posso fazer mais nada com a magia em baixa. Ela deve
ficar quieta até eu poder consertá-la.
— Ela vai. —Curran estendeu a mão para Kate. — Ei bebê. Pronta?
Ela assentiu. Curran deslizou as mãos por baixo dela e levantou-a com
delicadeza, como se não pesasse nada.
— Bom? —Ele perguntou.
Ela colocou o braço ao redor dele. — Nunca estive melhor.
E ele a levou embora.
— Então, jovem senhora, como você quebrou o seu braço? —Doolittle
me perguntou.
— Ela estava tentando impedir que Kate fosse mastigada, —disse
Raphael.
— Uma causa digna. —Doolittle olhou para mim. Esperei que a ficha
dele caísse.
— Você sabia que seu braço estava quebrado? —Ele perguntou.
— Sim.
— E você, por acaso, colocou o braço em uma tipoia ou fez um esforço
para mantê-lo parado?
Oh Cristo — Não. Estava ocupada.
— O que você fez com o braço quebrado, mesmo? —Doolittle perguntou.
— Eu cavei. —E doeu como o inferno, mas nesse momento matar o
draugr era mais importante.
— Você estava sob estresse? —Doolittle perguntou.
— Eu estava tentando enterrar pedaços de um gigante morto-vivo para
evitar que ele ficasse furioso através da floresta e comesse qualquer humano
aleatório que encontrasse. Isso seria muito mais fácil se você me disser onde
quer chegar ao invés de fazer todas essas perguntas.
Doolittle acenou para um de seus assistentes. A mulher baixa se
aproximou rapidamente da cama de Roman. — Coloque-o em seu próprio
quarto privado
— Isso é um código para me matar? —Roman perguntou. — Porque eu
não vou ser fácil de derrubar.
Ela deu uma risadinha e empurrou a cama dele com ele nela.
O medi-mago olhou para Ascanio. — Você também pode ir.
O garoto pulou da cama e saiu correndo como se estivesse pegando fogo.
Doolittle puxou a cadeira e sentou-se ao meu lado. Seu rosto era tão
gentil. — Eu já tratei um menino, —ele disse.
— Ele era um homem-rato abusado por sua família. Seu pai o espancava
repetidamente. Ele era um desperdício odioso de um ser humano e a mudança
de forma do garoto deu a ele uma desculpa para se enfurecer.
Um nó formou na minha garganta. — Humm.
— O Lyc-V é um vírus muito adaptativo, —disse Doolittle. — Se o corpo
é ferido da mesma maneira repetidamente, ele se adapta a essa velocidade dos
ferimentos. Metamorfos em climas mais frios crescem pêlos mais grossos.
Metamorfos em climas com exposição solar frequente desenvolvem melanina
em ritmo acelerado.
— Sim. —Eu sabia de tudo isso.
Doolittle inclinou-se um pouco para mim. — O menino que mencionei
desenvolveu seu próprio mecanismo de defesa: seus ossos se curavam com
extrema rapidez. Seu corpo continuava tentando lhe dar ferramentas para
fugir da próxima surra.
— O que aconteceu com o menino? —Perguntei.
— Não vamos nos preocupar com ele agora, —disse Doolittle. — Vou
fazer algumas perguntas particulares. Você gostaria que Raphael ficasse ou
fosse embora? Diga a palavra e eu vou jogá-lo para fora.
Raphael mostrou os dentes.
— Ele pode ficar, —eu disse.
— Houve algum abuso físico em sua infância, Andrea? —Perguntou
Doolittle gentilmente.
Engoli. — Sim.
— Por quanto tempo?
— Onze anos.
Doolittle pegou minha mão e apertou um pouco. — Seus ossos curam
muito rapidamente sob estresse. O corpo une-se a eles o mais rápido possível
sem se importar se estão ou não alinhados, tentando simplesmente tornar
você operacional novamente.
Eu olhei para o meu ombro. Não parecia no lugar certo. — Você tem que
recolocar meu braço.
— Eu sinto muito, —disse Doolittle. — O braço está torto. Tente levantar
todo.
Eu levantei meu braço. Uma dor aguda atingiu meu ombro bem no centro
do osso.
— Quanto mais demorarmos, mais difícil será colocá-lo no lugar, —disse
Doolittle.
Uma metamorfa trazia um carrinho cheio de instrumentos.
— Você vai usar um martelo? —Perguntei. Na minha cabeça, Doolittle
colocava um pé-de-cabra no meu ombro e batina nele com um martelo.
— Não. Usarei uma serra elétrica estreita. Você terá que ser sedada. Eu
prometo que você não sentirá nada.
— Certo. —O que mais havia para dizer?
Finalmente Doolittle terminou. Não doeu uma vez que o osso já havia
sido cortado, ou pelo menos não doeu muito. Roman sentou na minha cama
por um tempo e me contou piadas engraçadas enquanto outros limpavam ao
redor.
Finalmente todos eles saíram. A escuridão havia caído, eu pedira que
deixassem as luzes apagadas, então no quarto só restava o luar. Olhei tudo ao
meu redor e me senti completa e totalmente sozinha.
Soltei um longo suspiro que pareceu mais como um soluço.
Uma sombra se destacou da porta do banheiro e cruzou o chão para mim.
Seu perfume me atingiu primeiro, aquele cheiro irritante, reconfortante e
endurecedor. Raphael se ajoelhou na minha cama, descansando um braço na
cabeceira, e se inclinou sobre mim até que nossos olhos estivessem nivelados.
— Oi.
— Oi.
— O que está acontecendo com você?
— Nada. O que faz você pensar que algo está acontecendo comigo?
Seus olhos azuis me examinaram. — Você saiu da sedação com marcas
de mordida em seu estômago e lama em seus pés.
— Muitos metamorfos saem da sedação cedo.
Ele balançou sua cabeça. — Esta é a sedação de Doolittle de que estamos
falando. O que está acontecendo?
Eu apertei meus dentes para impedir que as palavras saíssem.
— Andi, estou bem aqui. Olhe para mim. —Ele se inclinou para mais
perto. — Olhe para mim.
Olhar para ele foi um erro fatal. As palavras fizeram uma pausa e eu não
consegui mais mantê-las. Coloquei meus braços, o bom e aquele em uma tala,
em torno dele. Minha bochecha roçou a dele, sua pele contra a minha e eu o
beijei. Eu o beijei com tanta ternura e amor quanto pude, porque de um jeito
ou de outro eu o perderia.
— Ele quer meu corpo, —eu sussurrei no ouvido de Raphael. — Ele quer
usá-lo em vez do que ele tem agora, porque eu tenho uma melhor
constituição metamórfica e melhor magia.
Seus braços se apertaram em volta de mim.
— Eu tenho que ser voluntária.
— E se você não fizer isso? —Ele sussurrou.
— Coisas ruins vão acontecer. —Eu o beijei novamente, meus braços
segurando ele. — Eu vou lutar com ele. Vou lutar com ele com tudo que
tenho, mas se isso acontecer, se eu for obrigada o aceitar, não serei mais eu,
será ele. —Eu sussurrei, minha voz tão baixa que não tive certeza se ele
ouviu isto. — Não importa o que aconteça, eu amo você. Você sempre será
meu companheiro. Me perdoe. Eu sinto muito que não temos mais tempo.
Raphael me apertou, me pressionando para ele. — Você me escute. —
Seu sussurro era uma promessa feroz. — Ele não vai ter você. Nós vamos
matá-lo juntos. Confie em mim. Eu não vou deixar.
— Você pode ter que ser obrigado, —eu disse a ele. — Você tem que me
prometer que se ele pegar meu corpo, você irá se afastar, Raphael. Você irá
continuar, vai encontrar alguém para amar, vai ter filhos ...
— Cale a boca, —ele me disse.
— Prometa-me.
— Eu não estou prometendo nada, —disse ele. — Eu morreria antes de
perder você.
— Raphael!
— Não.
Ele deslizou na cama ao meu lado, me segurando em seus braços.
Seu perfume me envolveu, e eu segurei nele, até que adormeci.
Capítulo 15
De manhã, acordei sozinha no quarto do hospital. Doolittle levou um
enorme café da manhã para mim e ficou no meu pé enquanto eu comia até o
último pedaço de ovos mexidos, fatias de lombo e panquecas. Eu engoli tudo
e escapei da enfermaria para procurar Roman.
Encontrei o sacerdote do deus mau em um canto do pátio norte. Era um
daqueles pequenos espaços externos dentro da Fortaleza, protegidos por um
muro alto e feitos para proporcionar relativa privacidade. Para chegar lá,
atravessei o arco de pedra, caminhei até o fundo de uma torre baixa e, no
meio do caminho, ouvi risos estridentes.
O Volhv negro estava em um banco, cercado por um bando de crianças, e
fazia pequenas coisas desaparecerem de suas mãos e reaparecerem atrás de
suas orelhas e em seus cabelos. Uma mulher em um casaco observava-o
discretamente encostada na parede. Os visitantes da Fortaleza nunca eram
deixados sem supervisão, especialmente em torno das crianças.
Inclinei-me contra a parede e observei o Volhv também. Havia algo tão
alegre em Roman. Era como se parte de sua vida fosse tão sombria e escura
que ele sentia a necessidade de viver o resto dele ao máximo, espremendo
cada pedaço de diversão e felicidade disso. Mesmo seus suspiros martirizados
tinham uma qualidade ligeiramente zombeteira sobre eles, como se ele
apenas fingisse estar chateado.
Roman me viu. — Certo, isso é mágica suficiente para hoje. Vão agora.
Vão, vão, vão.
As crianças decolaram. Roman abriu os braços. — O que posso fazer.
Sou muito popular.
Eu sorri e sentei ao lado dele no banco. — Eu tenho uma pergunta séria.
— Eu vou dar uma resposta séria.
— Pode um deus ser morto?
O humor drenou do rosto de Roman. — Bem, isso depende se você é um
panteísta ou marxista.
— Qual é a diferença?
— O primeiro acredita que a divindade é o universo. Os dois são
sinônimos e inexistentes um do outro. O segundo acredita no
antropocentrismo, vendo o homem no centro do universo e deus como apenas
190
uma invenção da consciência humana. Claro, se você seguir Nietzsche ,
você pode matar deus apenas pensando nele.
Faça uma pergunta a um sacerdote e receba uma resposta enigmática. Não
importa qual religião ... — Roman, —eu disse. — Posso matar Anúbis?
— Estou tentando responder. Anúbis é uma divindade, uma coleção de
conceitos e crenças específicas. Você não pode matar um conceito, porque
para isso você deve destruir todo ser humano que crer nele. Sua melhor
aposta seria identificar a todos que alimentam a ideia de sua existência e
atirar na cabeça deles.
— Então a resposta é um não?
Roman suspirou. — Eu não terminei. Você quer respostas simples para
perguntas muito complicadas. As perguntas erradas. A pergunta que você
deveria fazer antes de ‘se um deus pode ser morto’, é que é Anúbis? Você
deve entender a natureza de uma coisa antes que possa terminar sua
existência. No caso de Anúbis, sua divindade é parcial. Ele requer uma forma
mortal para sobreviver aos períodos de tecnologia. Sua forma mortal é apenas
isso, mortal. Você conhece sua natureza. Você sabe onde cortar e como você
pode destruí-lo. Você pode acabar com a forma mortal de Anúbis. Isso
acabará com Anúbis? Não há certezas neste mundo, mas eu teorizaria que
não, não. Enquanto houver um culto de Anúbis, dedicado à veneração de seu
conceito específico com uma imagem específica, ele continuará. Ele
renascerá.
— Com que rapidez? —Perguntei.
— Com que rapidez ele irá voltar se você o matar? —Roman franziu o
cenho. — O aperto dele em sua forma corpórea é tênue. O fato de que ele
poderia ser morto em si é devastador para sua divindade. As pessoas não
gostam de acreditar em deuses que podem ser assassinados e permanecerem
mortos, eles preferem muito mais acreditar no renascimento. Se eu fosse ele,
eu teria esperado algumas centenas de anos antes de decidir molhar os dedos
nessa bagunça mágica e tecnológica. Então a resposta simples é que ele
retornará. Mas não na minha vida e provavelmente não na de nossos filhos ou
netos. Eu me prepararia mesmo assim, porque quando ele voltar, ele estará
chateado.
— Então seu corpo mortal pode morrer?
— Sim. É apenas um corpo. Infelizmente, é um corpo com enorme
potencial mágico. Eu não sei quais são as reservas dele, mas ele usará cada
gota delas para se defender. Ele tem sido muito conservador com seus shows
de poder até agora, o que provavelmente significa que ele está acumulando
isso para essa batalha final com a Apep no caso de falharmos.
Se o corpo mortal fosse o alvo mais provável, lutar contra ele em meus
sonhos seria inútil.
Roman deu um tapinha nas minhas costas. — Anime-se, garota mortal.
As coisas têm um jeito de se resolver.
Não dessa vez. Mas eu não iria humildemente para o abate. Não, eu
lutaria contra ele pelas vidas das pessoas que amava até o amargo fim.
Ganhar ou perder, Anapa se arrependeria de me conhecer.
Raphael atravessou o arco, seguido por Ascanio. Raphael estava de calça
jeans preta e uma camiseta preta que complementava seu cabelo e mostrava
seus bíceps bem torneados. Ascanio de alguma forma conseguiu copiar sua
roupa tão precisamente que ele se parecia com o irmão mais novo de
Raphael.
Raphael viu Roman, registrou sua mão nas minhas costas e focou nele
como um tubarão.
— O que você está fazendo aqui?
— Estou sentado e conversando com uma garota bonita. —O Volhv
olhou para ele com um ar ligeiramente zombeteiro. — Estávamos nos
divertindo muito até você aparecer.
— Isso é bom. Que tal você se mandar daqui, —disse Raphael.
— Estou muito cansado de você me dizer o que fazer, —disse Roman.
Eles brigaram o caminho inteiro de volta da luta com o draugr. Meu braço
doía demais para prestar atenção, mas, aparentemente, durante a batalha na
clareira, alguém havia corrido para o lado errado e os dois conseguiram
colidir, o que interrompeu o feitiço de aprisionamento de Roman. Eles
culparam um ao outro. O fato de que Raphael e eu estávamos juntos e ele não
conseguia tolerar homens na minha vizinhança também não ajudava.
— Vai. Cai fora, —disse Raphael.
O Volhv recostou-se, com os braços atrás da cabeça. — Que tal você ir se
foder?
Resposta agradável na ponta da língua.
Raphael sorriu. — Grande linguajar para um homem em um vestido.
— Não é um vestido. É um manto, que são minhas roupas de trabalho.
Você sabe, trabalho? A coisa que os homens de verdade fazem?
Ôu-ôu!
— Homens de verdade, hum? —Raphael ainda estava sorrindo, e a
insinuação de insanidade em seus olhos o fez parecer um pouco
desequilibrado.
— Em que você trabalha mesmo? —Roman franziu a testa, fingindo
pensar. — Ah sim. Você fica parado e se mantem bonito para impressionar os
visitantes do sexo feminino? Você deve ser muito bom nisso. Afinal, não
requer nenhuma habilidade real envolvida. Só acho que não existe uma
aposentadoria para esse tipo de coisa, no entanto. Não ajuda a manter uma
esposa e filhos alimentados também. A menos que você encontre uma
senhora rica e espere que ela pague suas contas em troca de favores ...
Ele não pode ter dito isso.
Raphael congelou, momentaneamente ferido, sem palavras.
— Quantos anos a velha senhora teria que ter? —Perguntou Ascanio. —
Velha como quarenta?
— Volte para a Tia B e fique com ela, —disse Raphael. Sua voz estava
estranhamente calma. Ôu-ôu.
— Sim, Alpha. —Ascanio girou nos calcanhares e decolou.
Raphael o havia tirado do perigo imediato.
— O que vocês dois estão fazendo? —Eu perguntei a eles. — Não temos
um problema maior para resolver?
— Fique fora disso, —Raphael me disse. — Isso é entre ele e eu.
Eu conhecia esse olhar. Era o seu olhar ‘Eu farei isso ou morrerei
tentando’.
— Eu tenho que concordar, —disse Roman. — Esta é uma conversa entre
nós.
Dois idiotas. — Tudo bem, —eu disse. — Se matem.
Raphael se concentrou em Roman com a concentração inabalável de um
predador avistando sua presa. — Vamos, agora. Vamos.
Roman sorriu. — Certo.
Raphael se esticou, rolando a cabeça da esquerda para a direita.
Roman levantou-se, pegou seu cajado e o girou como um monge Shaolin
inclinado em fúria. Raphael endireitou os ombros.
Homens. Isso dizia tudo.
Roman se inclinou para frente. O vento girava em torno de seus pés. O
Volhv negro disparou para frente, como se suas botas pretas tivessem asas.
Raphael saiu do caminho, deixando Roman passar por ele, girou, deu um
pulo e chutou Roman entre as omoplatas.
O mago voou para a parede, mas não bateu, porque uma almofada de ar
invisível parou sua queda. Ele se pôs de pé e se virou. — Humm.
Raphael tinha um olhar assustadoramente sombrio em seu rosto.
Os lábios de Roman se moveram. Um casulo de fios negros escorregou
do chão em correntes retorcidas, envolvendo-se em torno dele, sem o tocar.
Raphael atacou, surpreendentemente rápido.
Os fios pretos se encaixaram em torno do pulso de Raphael. Roman se
aproximou e dirigiu um golpe esmagador no topo do quadril de Raphael.
Soava como uma marreta batendo em uma viga. Eu já tinha visto esse golpe
antes. Era um golpe de sambo, uma arte marcial de defesa pessoal que os
russos praticavam. Eita, eita, eita, eita. Raphael pegou os fios pretos e puxou.
Roman se esforçou, recuando.
Um garotinho correu pelo arco de pedra e se dirigiu para os dois. Eu pulei
do banco, corri e peguei ele.
— Oi! —Ele disse.
Eu o levantei do chão. Meu braço na tala gritou um pouco e eu mudei seu
peso para o outro. — Oi.
— Eles estão lutando! —O menino me disse, apontando para os dois
homens.
— Sim, eles estão. Onde estão seus pais?
Um casal correu através do arco, um homem alto e uma mulher de
cabelos escuros em seus trinta e tantos anos, seguidos por uma adolescente.
— Dylan! —A mulher pegou o menino. — Me desculpe. Nós apenas
queríamos dar nossos respeitos ao alfa. Nos disseram que ele estaria aqui.
Nós não pretendíamos interromper. Estamos tentando entrar no Clã Bouda ...
Olhei para o rosto dela e o reconhecimento me deu um soco no estômago.
Michelle.
Michelle Carver, que cravou um prego na minha mão quando eu tinha
cinco anos, porque ela achava engraçado ouvir-me gritar. Michelle Carver,
que me bombardeou com tijolos, depois que Candy quebrou minhas pernas.
Tudo o que pude fazer foi rastejar e Michelle me perseguiu e jogou tijolos e
pedras na minha cabeça. Michelle, que aplaudiu enquanto a cadela alfa
espancava minha mãe até deixa-la em uma poça de sangue. Michelle ‘Bata
nela novamente, Candy!’
Eu tinha matado cada uma delas. Todas, exceto ela. Ela tinha
desaparecido um par de anos antes de eu voltar e limpar aquele sádico clã de
cadelas boudas da face do planeta. Eu tentei encontrá-la, mas ela tinha feito
um bom trabalho em cobrir seus rastros.
Raphael soltou os fios. — Andrea?
Eu estava segurando o filho de Michelle Carver em minhas mãos.
Soltei o garoto. Ele deslizou para o chão.
— Andrea? —Todo o sangue drenou do rosto de Michelle. — Andrea
Nash?
Ela se afastou de mim.
Raphael veio em minha direção.
— Você sabe o que ela é? —Uma nota histérica vibrou na voz de
Michelle. — Ela é uma bestial.
O mundo de repente se tornou muito simples. Eu me transformei. Seu
companheiro tentou ficar no meu caminho. Eu dei um empurrão e ele voou.
Agarrei Michelle pela sua garganta e a levei para a parede, prendendo-a no
lugar. Meu braço tinha pêlo e minha mão tinha garras, e o sangue de Michelle
esguichando sob sua pele através de sua jugular fazia cócegas em meus
dedos.
— Diga-me novamente o que eu sou. —Eu esmaguei a parte de trás de
sua cabeça no tijolo. — Me diga de novo.
Michelle coaxou no meu aperto. Ela não fez nenhum movimento para
mudar. Não tinha forma de guerreiro. Ela nunca foi a mais forte. Não, ela só
gostava de pegar alguém mais fraco e amedrontá-la. Não mudou nada.
— Esta mulher fez algo ruim para você? —Roman perguntou.
— Esta mulher torturou a mim e a minha mãe durante anos.
Roman encolheu os ombros. — Seja lá o que você quer fazer com ela,
seja rápida, eu vou cuidar da entrada para você.
Ele se foi. Tudo o que restou era a garganta pálida e macia de Michelle. O
mundo estava vermelho. Muito vermelho, e toda vez que exalava, o mundo
ficava cada vez mais raivoso e mais vermelho.
A mão de Raphael descansou no meu ombro. Ele me acariciou, dedos
firmes acariciando minha pele. — Você tem o direito da vingança e seria bom
se vigar.
Seria ótimo. Ele não tinha a mínima ideia de como seria ótimo. Queria
dizer a ele que finalmente a peguei. Eu tinha contado a Raphael sobre ela
antes. Eu queria dizer a ele agora o quanto queria rasgá-la, mas tudo o que
saiu foi um grunhido.
— Eu conheço você. —Raphael colocou os braços em volta de mim, sua
boca perto da minha orelha, sua voz suave. — Se você a matar na frente de
seus filhos, isso vai assombrá-los pelo resto de sua vida. Deixa ir, amor.
Deixe ela ir.
Não! Não, ela não conseguiria fugir disso. Não! Todo mundo pagou, ela
pagaria também.
Meu braço ferido doía. A dor era tão crua, tão fresca.
Ela pagaria. Este desperdício fraco e cruel de ser humano pagaria. Esse
pedaço de merda que atormentou minha infância. Ela era a razão pela qual eu
acordava segurando a porra de uma faca de açougueiro. Ela era a razão pela
qual Doolittle teve que usar uma serra em meu braço. Ela pagaria!
— Deixe ela ir, querida. Deixe-a ir, Andi. Para o seu próprio bem. Por
mim. Por nós. —Raphael beijou minha pele logo abaixo da minha orelha. —
Deixe ela ir, amor.
Eu queria afundar no vermelho. Eu queria ver o sangue dela nas minhas
mãos. Mas sua voz me segurou de volta.
— Controle-se, —disse ele. — Seus filhos estão assistindo. Controle-se,
querida.
Eu ouvi um pequeno som estridente, gemendo ao meu lado, e percebi que
era o garotinho berrando em medo histérico. Sua irmã soluçava.
— Você é melhor que isso, Andi. Faça a coisa Certa. Deixe-a ir embora.
Quando forcei meus dedos a abrirem, toda a dor das minhas memórias e
toda a minha frustração saíram de dentro de mim em um grito curto e agudo.
Eu girei e me afastei, para a outra parede, o mais longe dela que podia.
— Ela é bestial, —Michelle murmurou. — Ela é!
— Ela é a beta do clã e minha companheira, —disse Raphael.
Michelle cambaleou para trás como se ele tivesse batido nela.
Os olhos de Raphael eram duas poças ardentes de fogo vermelho-sangue.
— Seu pedido de entrada no clã foi negado. Reúna sua família e vá embora.
Se você estiver no meu território até o entardecer, eu vou te caçar e arrastar
você perante a comissão dos clãs para ser julgada por tortura, abuso de uma
criança, e quaisquer outras acusações que nossos advogados irão fazer contra
você. Você será considerada culpada, sofrerá e será executada. Seus filhos
estarão sob a proteção dos guardiões do Bando e eles odiarão seu nome
quando crescerem.
Michelle pegou o marido machucado. A filha dela pegou o menino e eles
saíram correndo.
Raphael andou em minha direção e passou os braços em volta de mim.
Minha raiva irrompeu em soluços torturados. Lágrimas molharam meus
olhos. — Eu tive ela.
— Eu sei.
— Nas minhas mãos.
— Eu te amo, —ele sussurrou. — Eu te amo, estou orgulhoso de você.
Foi a coisa certa a fazer.
— Não! —Eu não conseguia parar de chorar. Eu não estava triste, só não
conseguia conter o choro. — Ela deveria estar morta. Essa seria a coisa certa.
— Para ela, mas não para você. Isso te comeria viva. Não é quem você é.
Eu desabei no chão e chorei. Aprendi a não chorar naquela época, porque
quanto mais chorava, mais excitada elas ficavam, mas eu podia chorar agora.
Ninguém me impediria, e então eu sentei lá e deixei tudo sair, enquanto
Raphael me segurava e sussurrava palavras de tranquilidade, amor e
bobagens em meus ouvidos.
Eu não consegui matar a Michelle. Eu não podia traumatizar seus filhos
do jeito que ela me traumatizou. Mas poderia me juntar ao Bando e me
certificar de que nenhuma outra menina tivesse que enfrentar minhas
escolhas. Nenhum outro pequeno bouda estaria escondido, assustado e
sozinho, temendo ser encontrado e abusado novamente. Não no meu turno.
Não enquanto eu respirasse.
Gradualmente, meus soluços cessaram. Nós nos sentamos juntos, Raphael
e eu.
— Que fique claro, eu estava ganhando, —disse Raphael. Eu poderia
dizer pela voz dele que ele estava me distraindo. Havia conforto na familiar
provocação, e agora eu precisava desesperadamente disso.
— Não parecia assim de onde eu estava. Ele tinha você todo amarrado.
— Isso é o que você pensa, —disse ele.
— Isso é o que eu vi.
— Lidar com aquele tapete roxo deve ter causado algum dano cerebral
permanente, —disse Raphael.
— Para você.
Ele se inclinou e murmurou: — Não fui eu que ficou com manchas roxas
na bunda.
Ah, é assim, então? — Você gostaria de ter manchas roxas na bunda
também?
Ele sorriu e acenou com a cabeça.
— Talvez você precisasse de apoio para ajudá-lo com Roman, —eu disse
a ele.
— Eu não preciso de apoio. Eu posso segurá-lo com uma mão amarrada
nas costas.
— Ele tinha você com uma mão amarrada atrás das costas.
— Talvez parecesse assim de onde você estava sentada …
Foi assim que o mensageiro de Jim nos encontrou, sentados no chão,
brigando e flertando. As equipes de Jim haviam retornado do Warren, o
bairro pobre da rua White, e trouxeram com eles informações sobre Gloria.
194
Raphael, Roman e eu seguimos a Linha Ley de Atlanta. O trilho
mágico funcionava se a magia estava em alta ou em baixa, mas quando a
tecnologia estava em alta, como agora, a velocidade da linha ley caía para
apenas sessenta e cinco quilômetros por hora. Levamos várias horas para
chegar lá. A magia finalmente apareceu no mundo e nossa caravana saiu
direto entre Waycross e Folkston para os braços abertos de uma mulher
metamorfa com um Jeep do Bando. Ela era baixa, de cabelos escuros, e tinha
uma pitada de sardas no nariz.
— Aqui, o veículo de vocês. —Ela estendeu as chaves. Raphael as pegou.
— Vá por esse caminho, quando chegar a uma bifurcação peguem o caminho
da direita, depois na segunda bifurcação peguem à esquerda. Vocês irão parar
em um cais. Há dois barcos de pontões lá. Peguem eles. O caminho através
do pântano está marcado com tiras de tecido branco. Boa sorte.
Ela foi embora.
Nós carregamos a nossa carga no jipe, e eu subi com a minha
195
submetralhadora Heckler & Koch UMP , conhecida também como pistola-
metralhadora. Roman se arrastou para o banco de trás.
Vinte minutos depois, paramos diante do píer de madeira. À nossa frente,
um canal estreito se curvava na parede verde de árvores e arbustos. Dois
barcos de pontões flutuavam na água escura de chá preto.
Uma caixa estava no cais. Do lado alguém havia escrito em marcador
preto: ‘Um presente do tio Jim’.
Raphael abriu a tampa da caixa. Roupas de camuflagens—Uniformes de
Combate do Exército, em adoráveis padrões aleatórios de verdes e marrons,
perfeitos para o pântano.
— Eu gosto desse tio. —Encontrei o menor conjunto e tirei meu jeans.
Roman arregalou os olhos, como se nunca tivesse visto uma mulher de
calcinha antes.
Raphael jogou um conjunto para ele. — Não fique aí parado. Vista-se.
— Você quer que eu use isso? —Roman olhou para os Uniformes e
colocou a mão sobre o peito, como se estivesse protegendo seu manto negro.
— Isso não está certo.
— Você tem um problema com calças? —Raphael perguntou.
Roman tirou o roupão, revelando um par de jeans pretos por baixo. — Eu
sempre uso minhas calças. Eu só não quero vestir essa roupa retardada. Eu
nem sei como colocar isso.
— Use a camuflagem, —eu disse a ele. — Não vai te matar. Se não usá-
los é que pode.
Roman suspirou, revirou os olhos e tirou o roupão e o jeans, revelando
um torso musculoso. Bem. Alguém tem trabalhado nos músculos. Roman
puxou as calças de uniforme, tirou as botas pretas, dobrou a parte inferior das
calças em um movimento praticado e enfiou os pés em suas botas.
Hmmm.
Em seguida, ele vestiu a camisa do Uniforme e dobrou as duas mangas
perfeitamente iguais até o cotovelo.
Raphael olhou para ele. Roman puxou o Uniforme e flexionou os
músculos do braço. — Aumenta o seu braço, viu?
— Seu idiota, —eu lhe dei um soco no ombro.
— Devagar! Eu me machuco facilmente. —Ele esfregou o bíceps
esculpido e eu peguei um vislumbre de uma tatuagem em seu braço: uma
caveira usando uma boina. Guarda florestal do exército.
Agora eu vi tudo.
Epílogo
A cerimônia de minha entrada oficial ao Bando foi realizada na terça-
feira no principal local de encontro do Bando, uma grande sala bem abaixo
da Fortaleza, onde o terreno com terraço se inclinava em ‘degraus’ em
direção ao palco com um poço de fogo de metal. Eu já tinha ouvido Kate
descrever isso antes, mas nunca tinha visto. Pensei em vestir algo especial,
mas parecia meio sem sentido. Qualquer que fosse a roupa que eu usasse, eu
ainda seria a mesma e é isso que realmente importava.
Poucos minutos antes das dez da noite, Martina bateu na porta da pequena
sala onde me pediram para esperar. — Está na hora.
Eu a segui descendo as escadas, cada vez mais para baixo. Eu não fazia
ideia de que a Fortaleza fosse tão funda no subsolo.
Finalmente ela parou diante de uma porta sólida. — Nervosa?
— Não realmente. —Eu tinha passado a manhã sentado em uma pequena
sala com Raphael e as famílias dos quatro metamorfos assassinados,
contando a eles toda a longa história. O Bando tinha reunido o pessoal da
adoração da cobra e os pressionaram por informação. Não demorou muito
para a verdade sair: os funcionários de Raphael foram assassinados por Saii,
os sacerdotes. Eles eram os únicos com glândulas de veneno. O resto do povo
da cobra tinha presas, mas suas mordidas dificilmente eram fatais.
Todos os seis do Saii estavam mortos. Eu matei Gloria, Roman e eu
havíamos matado Sanchez na ponte, e os quatro restantes morreram antes de
nossa batalha com Apep. O Bando deslocou o pessoal do culto a cobra que
sobrou e a pouca bagagem que eles tinham nos barcos e os despacharam sob
escolta armada para fora do território do Bando.
Eles estavam proibidos de retornar. Derek supervisionou o comboio e
disse que a maioria parecia aliviada.
O Saii os tinham feitos de escravos.
Eu tinha que segurar o bebê Rory novamente. Fizemos um pacto, ele e eu.
Ele cresceria para ser gentil e forte, e eu me certificaria de que seus membros
do clã nunca o maltratassem ou quebrassem seus ossos.
Fui capaz de olhar nos olhos de Nick quando eu lhe disse que as pessoas
que haviam assassinado sua esposa nunca mais machucariam mais ninguém.
Ele me agradeceu. Esta cerimônia empalideceu em comparação ao momento
que tive com Nick e o seu bebê.
— Última chance de voltar, —disse Martina.
Eu sabia o que esperava atrás da porta. Raphael e sua mãe. Alguns
membros do Clã Bouda. Kate e Curran. Meus amigos, meus alfas, meu
companheiro e o novo futuro. Pela primeira vez, eu não teria que esconder
quem eu era.
Abri a porta.
A vasta câmara se estendia à minha frente, mergulhando para o palco,
onde havia uma fogueira em um poço de fogo de metal.
Chamas dançavam dentro dela.
Atrás do poço estava a Tia B. À esquerda, Curran e Kate sentados juntos
com os outros alfas e betas.
Metamorfos ocupavam os degraus do terraço que os rodeavam. Centenas
de metamorfos. De repente fiquei nervosa.
Não havia como voltar atrás. Levantei a cabeça e desci as escadas em
direção ao fogo, olhando diretamente para Raphael em busca de apoio. As
escadas duraram uma eternidade. Finalmente parei ao lado da Tia B.
— Nós nos reunimos aqui para convidar Andrea Nash para o Bando, —
disse Tia B, sua voz percorrendo o ambiente.
— Vocês a conhecem. Ela lutou por nós. Ela deu seu sangue e usou suas
habilidades para o bem do Bando. Hoje nós honramos o seu sacrifício e a
aceitamos como uma das nossas. Se algum de vocês tiver algum problema
com isso, levante-se e desafie-me.
— Não, obrigado! —Alguém brincou da direita.
Um leve riso correu pelo ambiente. Eu tentei ficar parada, mas as risadas
borbulhavam para fora de mim.
Tia B sorriu. — É a sua vez, querida. Seu momento.
Pisei mais perto do fogo e puxei minha manga da blusa para trás. As
chamas crepitaram e queimaram na fogueira. Eu enfiei meu antebraço no
fogo. As chamas lambiam, queimando minha carne. O cheiro de pêlo
queimado do meu braço subiu. Segurei por mais um segundo para provar que
estava no controle. Nenhum loup podia tocar as chamas. Isso inspirava forte
terror instintivo neles.
Abaixei meu braço, tentando não estremecer com a dor, e disse as
primeiras palavras do meu juramento. — Eu, Andrea Nash, uma humana e
uma metamorfo, juro obedecer às leis do Bando e do meu clã. Juro obedecer
aos meus alfas e honrar as tradições do meu clã. Juro ser leal aos meus
irmãos e irmãs do Bando, para protegê-los de danos, e se for necessário, lutar
até a morte ao seu lado ...
E continua ...
Epílogo Parcial
“Deletado do Gunmetal Magic”.
Kate está se preparando para ser dama de honra no casamento
de Andrea e Raphael ...
Munição de balas.
[←2]
faca de açogueiro
[←3]
A SIG Sauer P226 é uma pistola feita pela empresa SIG Sauer. Ela dispara
munições calibre 9x19 mm, .40 S&W, .357 SIG e .22. É essencialmente uma versão melhorada da SIG Sauer
P220, mas desenvolvida com uma capacidade melhor e carregadores maiores. A P226 possui diversas variantes,
como a P228 e a P229.
[←4]
PAD (Paranormal Activity Division) Divisão de Atividade Paranormal.
[←5]
Smith & Wesson é uma das principais marcas de armas de fogo dos Estados
Unidos há mais de 164 anos. - M & P340 (modelo da arma)
[←6]
O termo 357 Magnum, .357 S&W Magnum ou 9×33 mmR refere-se a um calibre de revólver criado por
uma equipe de desenvolvimento da empresa armeira Smith & Wesson em 1934, formada por Elmer Keith,
Phillip B. Sharpe, e pelo Coronel D. B. Wesson. Foi com este calibre que se deu início à era das munições
Magnum, basicamente versões potenciadas de calibres existentes, provados e comprovados.
[←7]
Na história é aquele que manuseou a besta. Eram chamados besteiros os soldados medievais equipados
com bestas.
[←24]
Marca e modelo da besta.
[←25]
Chacal.
[←28]
Prédio da concessionária de energia elétrica de Atlanta-EUA
[←29]
Prédio que funciona um teatro, é um espaço para eventos culturais em Atlanta-EUA.
[←30]
Blue Heron (inglês) – Garça azul.
[←31]
Na história eles chamam de Toppler edifícios projetados, em caso de queda, as estruturas serem
preservadas o máximo possível e não pegar fogo.
[←32]
Medical examiner-tradução literal: Medico examinador. É o nosso IML aqui, Instituto Médico Legal. O
Instituto Médico Legal, mais conhecido pela sua sigla IML, é um instituto brasileiro responsável pelas
necropsias e laudos cadavéricos para Polícias Científicas de um determinado Estado na área de Medicina Legal.
[←34]
Substâncias que causam danos aos organismos vivos.
[←35]
Substâncias extremamente importantes nas reações químicas vitais que ocorrem nos organismos vivos.
Responsáveis em várias funções desde de digerir nutrientes até produzir neuro-hormonios.
[←36]
Substâncias com o poder de aglutinar (coagular, juntar, unir) as células vermelhas do sangue, impedindo
dessa forma que elas funcionem corretamente. Mas em uma hemorragia a função dessas substâncias
coagulantes presentes no sangue auxilio no estancamento do fluxo sanguíneo.
[←37]
Decomposição da matéria orgânica, em especial de proteínas, causada por microrganismos, com produção
de substâncias de odor desagradável.
[←38]
Dente-de-leão
[←54]
Um verão indiano é um período de clima quente, excepcionalmente quente, que às vezes ocorre na
primavera e no outono no Hemisfério Norte. Verões indianos são comuns na América do Norte e na Ásia. O
Serviço Nacional de Meteorologia dos EUA define isso como condições meteorológicas que são ensolaradas e
claras com temperaturas acima do normal, ocorrendo de 1 de maio a meados de junho e de final de setembro a
meados de novembro. Geralmente é descrito como ocorrendo após uma geada fatal.
[←55]
Em inglês some head que também na linguagem popular americana pode significar receber sexo oral. Por
isso a Andrea acha engraçado a piada da Kate.
[←80]
Videira de prata
[←83]
Aquele que vive como um nobre.
[←84]
Masculino: No traje de gala, não tem negociação: o homem tem que usar smoking.
[←88]
karambit
[←105]
kopis gregos
[←106]
Picareta de gelo
[←107]
Tradução: “O amor é tudo o que você precisa”
[←108]
Torniquete improvisado.
[←114]
O sistema linfático é uma rede complexa de vasos e pequenas estruturas chamadas de nódulos linfáticos que
transportam o fluido linfático dos tecidos de volta para o sistema circulatório.
[←115]
O texto utilizou a expressão ‘Mirandized’, que é um tipo de notificação habitual dada pela polícia
americana.
“Você tem o direito de permanecer em silêncio. Qualquer coisa que você disser pode e será usada contra
você em um tribunal. Você tem o direito de ter um advogado. Se você não puder pagar um, um será nomeado
pelo tribunal. Com esses direitos em mente, você ainda está disposto a conversar comigo sobre as acusações
contra você?”
[←116]
[←117]
Jararaca
[←118]
Mangusto, suricato
[←119]
Texugo-do-mel
[←120]
A terebintina é um fluido obtido pela destilação de resina de árvores vivas, principalmente pinheiros. É
usado principalmente como solvente e como fonte de materiais para síntese orgânica.
[←121]
Arco composto
[←132]
Chá preto
[←133]
Russo “Em nome de Chernobog”
[←134]
A frase original em inglês é: You shall not pass significa algo como Você não passará. Dito de modo bem
enfático, soará como uma ordem clara e direta indicando que a outra pessoa não passará por aquele caminho ou
local. Foi por causa do personagem Gandalf do filme O Senhor dos Anéis: a sociedade do anel que essa frase se
tornou conhecida. Veja o trecho: https://www.youtube.com/watch?v=mJZZNHekEQw
[←135]
Rocky é uma série de filmes de ação estrelada e escrita pelo ator americano Sylvester
Stallone, o qual nestes filmes interpreta o boxeador Rocky Balboa.
[←136]
A saga conta a história de uma família mafiosa que luta para estabelecer sua
supremacia na América depois da Segunda Guerra. Uma tentativa de assassinato deixa Vito Corleone
incapacitado e força os filhos Michael e Sonny a assumirem os negócios.
[←137]
O soldado aposentado das Forças Especiais, John Matrix, vive isolado com sua filha Jenny,
mas sua privacidade é interrompida pelo ex-comandante Franklin Kirby, que o avisa que seus companheiros
estão sendo assassinados um por um.
[←138]
Tugg Speedman, um ator muito famoso, se dirige para o sudeste asiático para participar de
um dos filmes mais caros de todos os tempos. Porém, logo depois do início das gravações, ele e seus
companheiros, Kirk Lazarus e Jeff Portnoy, se veem em meio a uma guerra no local das filmagens, a qual faz
com que eles se tornem soldados de verdade.
[←139]
[←140]
The Hound of the Baskervilles (em português, O Cão dos Baskervilles) é um romance
policial escrito por Sir Arthur Conan Doyle, tendo como protagonistas Sherlock Holmes e Dr. Watson.
Publicado em 1902, a história era originalmente dividida em partes, impressas pela revista Strand Magazine de
agosto de 1901 a Abril de 1902. Nesse caso, o detetive e seu fiel parceiro Watson investigam a morte do Sir
Charles Baskerville, um milionário inglês achado morto em um pântano próximo de seu lar. Conta a lenda que
Charles havia sido assassinado por um cão que assombrava a região, conhecido por matar gerações da família
Baskerville. A causa mais provável pela morte de Charles, no entanto, seria um ataque cardíaco.
[←147]
Hel ou Casa das Névoas, é um dos nove mundos da mitologia nórdica, o domicílio
dos mortos, governada por Hel, cujo nome é compartilhado com o próprio lugar
[←152]
Flor de Lótus
[←161]
Ninfeia
[←162]
jasmim
[←163]
Anúbis (em grego antigo: Ἄνουβις) ou Anupo foi como ficou conhecido pelos
gregos deus egípcio antigo dos mortos e moribundos, guiava e conduzia a alma dos mortos no submundo,
Anúbis era sempre representado com cabeça de chacal, entretanto os egiptólogos mais conservadores afirmam
que não há como saber com certeza o animal que o representa, era sempre associado com a mumificação e a
vida após a morte na mitologia egípcia, também associado como protetor das pirâmides. Na língua egípcia,
Anúbis era conhecido como Inpu (também grafado Anup, Anpu e Ienpw). A menção mais antiga a Anúbis
está nos Textos das Pirâmides do Império Antigo, onde frequentemente é associado com o enterro do Faraó.[2]
Na época, Anúbis era o deus dos mortos mais importante, porém durante o Império Médio, Osíris.[3] , passou a
ter a função de deus primordial dos mortos, enquanto que Anúbis tinha funções menores como por exemplo o
preparo do corpo e embalsamento dos mortos, além disso era o protetor do processo de mumificação.
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Uma outra forma de se pronunciar Anapa.
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Avatar significa manifestação corporal de um ser super poderoso, na religião hindu. Avatar é um ser
supremo, imortal. A divindade Vishnu que é adorada pelos hindus, tem muitos avatares, e já sofreu segundo
eles muitas encarnações. Em outras religiões também é usado este termo lembrando as encarnações de outras
divindades. Avatar é qualquer espírito que ocupa um corpo terrestre, o que representa uma manifestação divina
na terra, para o povo hindu é a encarnação da divindade, que desce do reino divino, e usa a matéria de outro
corpo.
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Rá ou Ré (em egípcio: *ri:ʕu), é o deus do Sol do Antigo Egito. No período da Quinta Dinastia
se tornou uma das principais divindades da religião egípcia, identificado primordialmente com o sol do meio-
dia.
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Na mitologia egípcia, Bastet, Bast, Ubasti, Ba-en-Aset ou Ailuros (palavra grega para
"gato") é uma divindade solar e deusa da fertilidade, além de protetora das mulheres. Também tinha o poder
sobre os eclipses solares. Quando os gregos chegaram no Egito, eles associaram Bastet com Ártemis, embora
esta deusa esteja eminentemente relacionada à lua, enquanto Bastet inegavelmente estava relacionada aos mitos
solares.
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Set, também chamado Setesh, Sutekh, Setekh ou Suty, eventualmente grafado Seth (em
inglês) e Seti (grafia mais correta em português), é um deus egípcio do caos, da seca, da guerra , o senhor da
terra vermelha (deserto) onde ele era o equilíbrio para o papel de Hórus como o senhor da terra negra (solo).
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Um fractal é um objeto geométrico que pode ser dividido em partes, cada uma das quais semelhante ao
objeto original. Diz-se que os fractais têm infinitos detalhes, são geralmente autossimilares e de escala. Em
muitos casos um fractal pode ser gerado por um padrão repetido, tipicamente um processo recorrente ou
iterativo.
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Meu Pequeno Pónei ou Meu Querido Pônei foi uma série de desenho animado
baseada na franquia homónima produzida entre os anos de 1986 e 1987 pela Sunbow Productions e Marvel.
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Cipreste de Pântano.
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