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Mais uma Produção Exclusiva das Divas & Lord’s FOREVER

Traduzido do Inglês e Espanhol por Fãs


Disponibilizado por: Janiele
Tradução e 1ª Revisão:
*Bia Divas
Revisão, Leitura Final e Formatação:
*Bia Divas e *Divas Rosa

Algumas pessoas têm tudo planejado - Andrea Nash não é uma dessas
pessoas.

Depois de ser expulsa da Ordem dos Cavaleiros da Misericórdia, toda a


existência de Andrea está em frangalhos. Tudo o que ela pode fazer é tentar
juntar seus pedaços novamente, algo facilitado trabalhando para a Cutting
Edge, uma pequena firma de investigação de sua melhor amiga, Kate Daniels.
Quando vários metamorfos trabalhando para Raphael Medrano - o macho
alfa do Clã Bouda e ex-amante de Andrea - morrem inesperadamente em um
local de escavação, Andrea é designada para investigar ... e deve trabalhar
com Raphael. Enquanto a busca de Andrea pelo assassino a leva as
profundezas secretas de uma Atlanta sobrenatural, ela sabe que lidar com
seus sentimentos por Raphael pode ter que ficar em segundo plano para
salvar o mundo ...

Jornal da Constituição de Atlanta


40° aniversário da Mudança.

O mundo sofreu um apocalipse mágico. Nós empurramos o progresso


tecnológico longe demais, e agora a magia voltou com uma vingança. Veio
como uma maré invisível, arrancando aviões do céu, jogando monstros em
ruas lotadas, sugando as usinas elétricas e obstruindo o uso das armas de
fogo. Algumas pessoas acordaram e se descobriram metamorfos. Outros
morreram, mortos por uma doença provocada pela magia, e ressuscitaram
como mortos-vivos sem mente, roubados de sua capacidade de raciocinar e
motivados apenas por sua fome consumidora. Deuses se tornaram reais,
maldições ganharam poder, e telecinese e telepatia não eram mais produtos
de ilusão e efeitos especiais.
Durante três dias a magia se enfureceu e então desapareceu sem aviso,
deixando o mundo cambaleante, sua população dizimada, suas cidades em
farrapos. Desde aquele dia, o dia da Mudança, a magia vem e vai como bem
entender. Ele inunda o planeta como uma onda quebrando no litoral,
sibilando e fervendo, deixando seus presentes perigosos, e então recua mais
uma vez. Às vezes uma onda dura meia hora, às vezes três dias. Ninguém
pode prever isso e ninguém sabe o que o nosso futuro nos reserva.
Mas nós somos resistentes. Nós vamos sobreviver.

Capítulo 1
Baque!
Minha cabeça bateu na calçada. Candy me puxou pelo meu cabelo e bateu
meu rosto no asfalto.
Baque!
— Bata nela de novo! —Michelle gritou, sua voz adolescente estridente.
Eu sabia que era um sonho, porque não doeu. O medo ainda estava lá,
aquele terror afiado e vivo, misturado com raiva impotente, o tipo de medo
que transforma um ser humano em um animal. As coisas se tornam destiladas
para conceitos simples: eu era pequena, elas eram grandes. Eu era fraca, elas
eram fortes. Elas me machucaram e eu suportei.
Baque!
Meu crânio ricocheteou na calçada. O sangue manchou meu cabelo loiro.
Com o canto do olho, vi Sarah começar a correr como um chutador antes de
um gol no campo. A carne em seu corpo ferveu. Os ossos cresciam, os
músculos se enrolavam ao redor deles como algodão doce sobre um graveto,
os cabelos brotaram, embainhando o novo corpo, meio humano, meio animal,
em uma camada de pêlo arenoso pálido manchado com pontos reveladores de
hiena. A bouda sorriu para mim, sua boca malformada cheia de presas. Eu me
encolhi, enrolando meu eu de dez anos em uma bola. O pé com garras bateu
nas minhas costelas. As garras de oito centímetro acertaram um osso que
rangeu dentro de mim como como um pauzinho quebrado. Ela continuou me
chutando.
Baque! Baque! Baque!
Isso era um sonho. Um sonho cultivado a partir das minhas memórias,
mas ainda apenas um sonho. Eu sabia disso, porque dez anos depois que
minha mãe levou a mim de onze anos na e fugiu para o outro lado do país,
voltei e coloquei duas balas no meio dos olhos de Sarah. Eu tinha esvaziado
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um cartucho na orelha esquerda de Candy. Ainda me lembrava do modo
como o crânio dela florescia de vermelho quando as balas atingiram o outro
lado. Eu tinha matado todo o clã de metamorfos Hiena. Eu limpei aquelas
cadelas bouda da face do planeta, porque o mundo era um lugar melhor sem
elas. Michelle foi a única que escapou.
Eu sentei e sorri para elas. — Estou acordando, senhoras. Vão se foder.
Meus olhos se abriram. Eu estava em meu armário, enrolada em um
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cobertor e segurando uma faca de açougueiro . A porta do armário estava
entreaberta e a luz cinzenta do início da manhã escorregava pela abertura
estreita.
Fantástico. Andrea Nash, veterana condecorada da Ordem, escondida em
seu armário com sua faca e um cobertorzinho. Eu deveria ter segurado o
sonho por tempo suficiente para transformá-las em poças de sangue. Pelo
menos não me sentiria tão patética.
Inalei, provando o ar. Os aromas normais do meu apartamento flutuavam
ao meu redor, o toque de maçã artificial do sabonete no banheiro, a fragrância
de baunilha da vela ao lado da minha cama e o mais forte de todos, o fedor de
pêlo de cachorro, rastros de quando meu amigo, o poodle de Kate, Grendel,
me fizera companhia. Aquela aberração da natureza tinha dormido ao pé da
minha cama, e seu cheiro característico estava permanentemente grudado no
meu tapete.
Nenhum intruso.
Os aromas estavam enfraquecidos, o que significava que a magia estava
baixa.
Toc-toc-toc!
Mas essa agora?
Toc!
Alguém estava batendo na minha porta.
Chutei meu cobertor, fiquei de pé e corri para fora do armário. Meu
quarto me recebeu: minha cama grande, livre de intrusos, a bagunça
amassada do cobertor no tapete, meus jeans e sutiã, descartados ontem à
noite ao lado da cama, do lado de um livro de Lorna Sterling com um pirata
seminu na capa, estante recheada de outros livros até a borda, cortinas azuis
pálidas na janela gradeada, nada fora do lugar.
Larguei a faca de açougueiro na minha mesa lateral, vesti minhas calças
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de pijama, peguei minha Sig-Sauer P226 debaixo do travesseiro e corri para
a porta. Acordar com uma arma na minha mão faria muito mais sentido, mas
não, eu acordei segurando uma faca. Isso significava que eu deveria ter me
levantado no meio da noite, corrido para a cozinha, peguei uma faca no
açougue, corri de volta para o quarto, peguei um cobertor e me escondi no
armário. Tudo sem perceber onde eu estava ou o que estava fazendo. Se isso
não fosse louco, eu não sabia o que era.
Não dormia com uma faca desde que eu era adolescente. Essa explosão
do passado não era bem-vinda e precisava ir embora bem rápido.
Toc-toc!
Cheguei à porta e fiquei na ponta dos pés para olhar pelo olho mágico.
Uma mulher negra alta de cinquenta e poucos anos estava do outro lado. Seus
cabelos grisalhos saíam da cabeça em uma bagunça, ela estava vestindo uma
camisola, e seu rosto estava tão torcido pela preocupação que eu mal a
reconheci. Sra. Haffey. Ela e o marido moravam em um apartamento logo
abaixo de mim.
Normalmente, a Sra. Haffey via sua aparência como um assunto sério.
Em termos de estar sempre arrumada a qualquer hora, ela era minha heroína
—eu nunca a vi sem a maquiagem e o cabelo perfeitamente feitos. Algo
estava realmente errado.
Abri a porta.
— Andrea! —A Sra. Haffey ofegou. Atrás dela, longos fios brancos
cobriam o patamar e a escada. Eu tinha cem por cento de certeza de que eles
não estavam lá quando me arrastei no meu apartamento na noite passada.
— O que aconteceu?
— Darin está desaparecido!
Eu a puxei para o meu apartamento e fechei a porta. — Preciso que você
me diga desde o começo, devagar e claramente: o que aconteceu?
A Sra. Haffey respirou fundo. Ela tinha sido esposa de um policial por
vinte e cinco anos e sua experiência de lidar com uma vida inteira de
emergências facilitou que se acalmasse suficiente para me contar. Sua voz
estava quase firme. — Acordei e fiz café. Darin levantou-se para levar o
Chief para passear. Eu tomei banho. Quando saí, Darin ainda não tinha
voltado. Saí na varanda, mas ele não estava em seu lugar de costume.
Eu sabia exatamente onde ficava o local de costume: dois andares sob a
janela do meu quarto, onde o cão dos Haffey, o Chief, preferia marcar seu
território com o seu xixi. Eu sentia o cheiro no meu caminho para o trabalho
todas as manhãs. Claro, o Chief sentia o cheiro do meu perfume e isso só o
fazia mais determinado a fazer xixi em todo o seu caminho pela a supremacia
territorial.
— Liguei várias vezes para Darin e nada. Eu tentei descer. Há sangue em
todo o patamar e uma substância branca nas escadas que está bloqueando o
caminho.
— O Senhor Haffey levou sua arma com ele?
O Sr. Haffey havia se aposentado da Divisão de Atividade Paranormal do
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Departamento de Polícia de Atlanta. Policiais do PAD levavam suas armas a
sério. Tanto quanto eu sabia, Darin Haffey nunca saia de casa sem seu
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revólver Smith & Wesson M & P340 .
— Ele sempre leva sua arma com ele, —disse a Sra. Haffey.
E ele não havia disparado também, porque seu revólver tinha o calibre
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357 Magnum . Quando ele puxasse o gatilho, o tiro soaria como um pequeno
canhão explodindo. Eu teria ouvido o tiro e reconhecido, mesmo durante o
sonho. O que aconteceu, aconteceu rápido.
A misteriosa "substância branca" deve ter aparecido como resultado da
onda mágica na noite passada. Kate, minha melhor amiga, havia resguardado
meu apartamento meses atrás. Feitiços invisíveis protegiam meu apartamento
em uma barreira protetora. Ela cobriu as paredes em todo o perímetro, do teto
até o chão. Qualquer coisa mágica teria dificuldade em entrar, o que
provavelmente explicava por que eu tinha dormido a salvo durante toda a
noite.
— Você sabe que Darin é cego como um morcego. —Sra. Haffey torceu
as mãos. — Ele nem consegue ver mais em quem está atirando. No outro dia
saiu correndo do banheiro, gritando e espumando pela boca. Ele escovou os
dentes com creme de barbear em vez de pasta de dentes ...
Uma nota de histeria escorregou em sua voz. Com seu um metro e
cinquenta e cinco, ela ainda tinha oito centímetros de altura a mais do que eu
e estava inclinando-se sobre mim. — Eu liguei para a polícia, mas eles
disseram que demorariam vinte minutos ou mais. Eu pensei que desde que
você trabalhava com a Ordem ...
Eu costumava trabalhar com a Ordem. Quando era um Cavaleiro da
Ordem Misericordiosa, meu trabalho era ajudar as pessoas quando os
policiais não queriam ou não podiam ajudá-las com os casos mágicos
perigosos. Eu tinha condecorações e um registro de serviço estelar, mas nada
disso importou quando a Ordem descobriu que eu era um metamorfo. Eles
me julgaram mentalmente perturbada e inadequada para o trabalho e me
‘aposentaram’.
Mas eles não haviam tirado meu treinamento ou minhas habilidades.
Pressionei um botão na minha parede. Um painel deslizou para o lado,
revelando um pequeno nicho que costumava ser um armário de corredor e
que eu havia convertido em meu próprio arsenal pessoal. Uma fileira de
canos de armas brilhava à luz da manhã.
A Sra. Haffey fechou a boca.
Vamos ver. Eu estaria levando minhas Sigs, mas precisava de algo com
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mais poder. O AA-12 , uma espingarda calibre 12 automática com cartucho
de 32 balas sempre era uma boa escolha. Ela disparava 300 tiros por minuto
com recuo mínimo. Eu enchi a minha com balas de aço. Aperte o gatilho uma
vez e com um único tiro perfure a porta de um carro. Aperte e segure o
gatilho, e qualquer coisa do outro lado, não importa o quanto a armadura
fosse boa, se tornaria uma pilha de carne em seis segundos e meio. Paguei
uma fortuna por isso e valeu cada dólar.
Peguei o AA-12 e coloquei um coldre de quadril, no qual enfiei as minha
Sig e seu gêmeo. — Sra. Haffey, eu preciso que você fique aqui. —Dei a ela
um grande sorriso. — Tranque a porta atrás de mim e não abra até eu voltar.
Você entendeu?
A Sra. Haffey assentiu.
— Obrigada, senhora.
Eu pisei no patamar e ouvi a trava fechar atrás de mim.
A "substância branca" se estendia em longas e pálidas mechas sobre as
paredes. Assemelhava-se a uma teia de aranha, se a aranha fosse do tamanho
de uma bola de boliche e, em vez de trabalhar em uma espiral, ela decidisse
tecer apenas na direção vertical. Cruzei o patamar e inalei. Geralmente havia
uma corrente de ar passando por aqui, vinda da entrada da frente para o topo
do prédio. Hoje, nenhuma brisa subia a escada, mas mesmo assim, senti o
forte cheiro metálico de sangue fresco. Meus pêlos da nuca se levantaram. A
predadora em mim, a outra eu que dormia profundamente, abriu os olhos.
Desci as escadas, movendo-me silenciosamente nos degraus de concreto,
minha espingarda pronta. Mesmo que a magia tenha tornado minha existência
possível, isso não significava que eu manipulava a magia. Meu negócio era
armas. Me dê armas no lugar de feitiços a qualquer hora.
A teia ficou mais abundante. No andar do apartamento dos Haffey, ela
cobria as paredes e o corrimão da escada de madeira. Eu me virei, descendo.
O fedor de sangue atacou minhas narinas e provei na minha língua. Todos os
meus sentidos entraram em ação. Meu coração bateu mais rápido. Minhas
pupilas se dilataram, melhorando minha visão. Minha respiração acelerou.
Minha audição se aguçou e eu percebi um ruído distante, abafado, mas
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inconfundível: o latido profundo e gutural de um buldogue .
Dei mais alguns passos para baixo. O sangue manchava as escadas em
uma grande quantidade, pelo menos um par de litros, possivelmente mais,
tudo em grandes poças redondas. Ou alguém sangrou e caminhou, ou alguém
sangrou e foi carregado. Por favor, não seja Darin. Gosto de Darin e gosto
da esposa dele. A Sra. Haffey sempre foi gentil comigo.
No primeiro andar a teia formava um túnel estreito. A porta do
apartamento 1A estava intacta, mas coberta de fios brancos. As paredes que
seguia para o andar mais abaixo cobertas com a mesma teia branca, mas
nenhum sinal de destruição nela.
Nenhum sinal de Darin indo por esse caminho também. A porta do
apartamento 1B estava destroçada. Marcas ensanguentadas se estendiam
através do limiar, apontando para o apartamento. Alguém foi arrastado para
dentro.
Pisei no corredor. Um novo cheiro me puxou, um odor ligeiramente
amargo e espinhoso que disparou alarmes instintivos em minha cabeça. Isso
não é bom.
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O apartamento tinha exatamente o mesmo layout que o meu: um
corredor estreito, abrindo para a cozinha à direita, a sala de estar à
esquerda, depois o primeiro quarto e depois um pequeno corredor
perpendicular que levava à despensa e banheiro de hóspedes, e finalmente a
suíte.
Caminhei mais um pouco, delicadamente, observando todos os detalhes e
me movimentando muito cuidadosamente e devagar: começando na parede,
me movendo a um ângulo de noventa graus, inclinei um pouco para longe da
parede me preparando para ver qualquer ameaça ao virar da esquina antes
que ela me visse. Pulando em torno dos cantos de forma muito dramática,
mas pelo menos eu teria sua cabeça explodida.
Cozinha: nada aqui.
Eu me mudei para a sala de estar.
À esquerda, junto a uma mesa de café, havia uma grande cesta de vime
cheia de fios. Duas longas agulhas de madeira presas em um ângulo. Ao lado
da cesta havia um braço humano decepado. O sangue jorrou dele,
encharcando o tapete bege de parede a parede em uma mancha vermelha
escura.
Pele clara. Não era Darin Haffey. Não, era provável que a Senhora
Truman morasse nesse apartamento com seus dois gatos. Ela gostava de
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brincar de bridge no seu clube de tricô e colecionava fios para projetos
‘especiais’, com os quais nunca fazia nada. Agora seu braço rasgado estava
ao lado da cesta com seu estoque de tricô. Não havia tempo para absorver e
lidar com isso agora. Eu ainda tinha que encontrar Darin.
Segui em frente. O odor azedo espinhoso ficou mais forte.
Quarto: nada aqui. Banheiro: nada aqui.
Um enorme buraco aberto no chão da despensa. Alguma coisa havia se
espatifado no chão e destruído o azulejo de baixo.
Circulei o buraco, espingarda apontando para baixo.
Nenhum movimento. Parecia que não havia nada aqui também.
Um ruído abafado cortou o silêncio.
Meus ouvidos se contraíram.
Au! Au!
Chief ainda estava vivo em algum lugar lá dentro. Pulei no buraco,
aterrissei no piso de concreto do porão e me afastei da luz que entrava pelo
buraco. Não há necessidade de, seja lá o que for, me ter como um alvo fácil.
Trevas enchia o porão, os fios de teia pingando em cantos escuros. As
paredes não existiam mais.
Havia apenas teia, branca e sem fim.
Meus olhos se ajustaram à escuridão. A visão metamorfa garantia que,
enquanto houvesse alguma luz, eu não esbarraria em nada.
Manchas escuras e molhadas danificavam o concreto. Sangue. Eu segui
isso.
Em frente concreto rachado, uma longa fissura percorria o chão, com pelo
menos um metro de largura. O prédio de apartamentos já não era muito
robusto. A magia odiava edifícios altos e roía-os, pulverizando tijolos e
argamassa até a estrutura desabar. Quanto maior o prédio, mais rápido ele
caia. O nosso era muito baixo e muito pequeno e até agora escapamos ilesos,
mas buracos gigantes no porão não inspiravam confiança.
Um barulho de bufo veio de dentro do buraco. Eu me inclinei sobre isso.
Um cheiro de fedor de pêlo de cachorro tomou conta de mim.
Chief, seu bobo idiota.
Eu me agachei na frente do buraco. O buldogue se contorcia abaixo,
bufando fazendo uma tempestade. Ele deve ter caído na fissura, e a queda foi
muito alta para pular para fora.
Coloquei minha espingarda no chão e me inclinei, agarrando Chief pela
nuca. O buldogue pesava quarenta quilos pelo menos. Com o que diabos os
Haffey alimentava-o, comida de pequenos elefantes? Eu o puxei para fora e
fiquei de pé, com a espingarda nas mãos. A coisa toda levou meio segundo.
Chief pressionou contra a minha perna. Ele era um Olde English
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Bulldogge , um regresso aos tempos em que o Bulldog Inglês era usado para
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Bull-baiting . Um cão poderoso e ágil, Chief não temia nem caminhões de
lixo, nem cães e cavalos vadios. No entanto, aqui estava ele, esfregando-se
contra a minha panturrilha, apavorado.
Levei um segundo para abaixar e acariciar sua grande cabeça. Tudo bem,
garoto. Você está comigo agora.
Nós começamos a avançar, movendo-nos lentamente da primeira sala
estreita para um espaço mais largo. A teia cobria as paredes, criando
esconderijos nos cantos. Assustador como o inferno.
Cuidadosamente dobrei a esquina. Na parede oposta à minha direita, dois
fornos ficavam lado a lado: o elétrico para os tempos em que a tecnologia
tinha a supremacia e a antiquada monstruosidade que queimava carvão para
uso durante as ondas mágicas, quando a magia nos roubava a corrente
elétrica. À direita do forno de carvão, havia uma grande lixeira de carvão,
uma caixa de madeira de mais de um metro de altura, cheia de carvão. No
carvão, meio enterrado, estava o Sr. Haffey.
Duas criaturas rastejavam no concreto em frente à lixeira. Com cerca de
trinta centímetros de altura e pelo menos um metro e meio de comprimento,
eles se pareciam com enormes vespas sem asas, com um largo tórax no peito
afinando em uma cintura antes de se dilatar no abdome espesso. Cerdas
castanhas duras cobriam seus corpos bege quase translúcidos. Suas cabeças,
maiores que o crânio maciço do Chief, tinham mandíbulas do tamanho de
tesouras de jardinagem. Suas garras raspavam o concreto enquanto se
moviam, um som estranho e desagradável.
A criatura esquerda parou e plantou suas seis pernas cobertas de
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quitina . Seu rabo se inclinou para cima e uma corrente de líquido viscoso
saiu, aderindo à parede. A criatura esfregou a bunda no chão, acumulando a
substância em uma poça e afastou-se quando as secreções se endureceram em
teia pálida.
Ai credo. Eca. Eca. Eca.
O Sr. Haffey levantou a cabeça.
As criaturas pararam, fixadas no movimento.
Eu disparei.
A espingarda rugiu, cuspindo trovão. A primeira bala de aço atingiu
certeiro a criatura, cortando a quitina como se fosse uma madeira
compensada fina como papel. O inseto se partiu ao meio. Seu traseiro, cheio
de líquidos, caindo no chão como um monte de boias de natação amarradas
juntas. Sem uma pausa, me virei e coloquei um segundo tiro no seu
companheiro.
O Chief latiu ao meu lado, estalando suas mandíbulas. As criaturas se
sacudiram e se agitaram, arrastando seus pedaços de corpo.
O odor azedo de cravo encheu o ar.
Darin Haffey sentou-se no lixo. — Aposto que Kayla te arrastou para
isso.
Eu sorri para ele. — Não, senhor, eu é que fui pedir uma xícara de açúcar.
— Hummm, sei.
A teia que obscurecia o resto da sala à minha esquerda rasgou.
— Mais deles, —o Sr. Haffey gritou, levantando sua arma de fogo.
O primeiro inseto explodiu a céu aberto. Eu atirei. Bam!
Mais dois. Boom, boom!
Bam!
Boom-Boom-Boom!
Os corpos destruídos de quitina se colidiram, formando uma pilha de
pernas repuxadas e entranhas que induziam vômitos.
Boom. Boom. Boom! Bam!
Um inseto saltou sobre a pilha, mirando em mim. Balancei a espingarda.
O impacto explodiu o intestino da criatura, espalhando líquido sujo sobre
mim. Suco de insetos queimava meus lábios. Ecaaa.
Um inseto menor correu em minha direção. Mandíbulas afiadas cortaram
a minha perna. Seu desgraçado! Chief bateu na criatura, rasgando a coisa
antes que eu pudesse jogar uma bala nela.
Bam! Bam!
Continuei atirando. Finalmente a invasão repugnante parou. Esperei,
ouvindo, mas não apareceu mais nenhum movimento. Minha panturrilha
queimava. A dor não me incomodava muito, mas eu estaria deixando uma
trilha de sangue, o que me faria ridiculamente fácil de rastrear. Eu tinha cinco
tiros sobrando ainda no AA-12. Não há como saber se tinha matado todos
eles ou se esta era a calma antes da segunda onda de insetos. Tinha que tirar o
Sr. Haffey daqui.
Ele estava sentado na lata de carvão, olhando para a pilha de partes de
insetos. — Droga. Isso sim é saber atirar.
— Nosso objetivo é agradar, —eu disse a ele.
— Você aponta como se gostasse desse negócio.
Coisa engraçada, elogio. Eu sabia que era uma ótima profissional, mas
ouvi-la do veterano do PAD me deixou toda aquecida e sem graça. — Você
viu a Sra. Truman?
— Eu vi o corpo dela. Eles a rasgaram em pedaços, esses idiotas.
Pobre Sra. Truman. — Você pode andar?
— Os filhos da puta machucaram minha perna. Estou sangrando como
um porco preso.
É por isso que ele se escondeu no carvão. Ele enterrou a perna no pó de
carvão para camuflar o cheiro. Inteligente.
— Hora de ir, então.
— Me escute. —O Sr. Haffey colocou um pouco de dureza de policial em
sua voz rouca. — Não tem como você me tirar daqui. Mesmo se eu me apoiar
em você, tenho quase cem quilos e meu peso só vai te derrubar comigo.
Deixe-me uma arma e saia daqui. Kayla deve ter ligado para a polícia. Eu vou
segurá-los até que ...
Balancei a espingarda e a coloquei sobre o meu ombro, tirei o Sr. Haffey
para fora do carvão. Eu não era tão forte quanto um metamorfo normal,
embora eu fosse mais rápida e mais ágil, mas um homem de cem quilos ainda
não era um desafio.
Acelerei os passos para o buraco, Chief nos meus calcanhares. O
buldogue agarrava estoicamente uma perna quitinosa. Ele tinha que inclinar a
cabeça para trás para carregá-lo, mas o olhar em seus olhos dizia que nenhum
exército do mundo poderia tirar isso dele.
— Isso é embaraçoso, —o Sr. Haffey me informou.
Eu pisquei para ele. — O que? A Sra. Haffey não levou você acima pela
porta em sua noite de núpcias?
Seus olhos se arregalaram. — Isso é ridículo. O que você é?
Eu passei a maior parte da minha vida fingindo ser humana. Mas agora a
hiena estava fora do saco e, mais cedo ou mais tarde, tinha que começar a
aceita-la. — Uma metamorfo.
— Lobo?
— Bouda. —Bem, não exatamente. A verdade era mais complicada, mas
eu não estava pronta para essas explicações ainda.
Chegamos ao buraco. Se eu fosse uma bouda normal, poderia ter pulado
do buraco com o Sr. Haffey em meus braços. Mas sabia dos meus limites e
isso eu não conseguiria. Jogá-lo para cima feriria sua dignidade além do
reparo. — Eu vou levantar você. Pode ficar em pé?
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— O papa é católico ?
Eu o coloquei de pé, agarrei-o pelos quadris e o levantei. O Sr. Haffey
puxou-se para a borda, aproveitei e dei uma boa olhada no seu ferimento. Era
um corte de mais de dez centímetro em sua perna e tocar sua calça de
moletom deixou minha palma sangrenta. Ele precisava de uma ambulância
para ontem.
Joguei Chief e seu prêmio em forma de pata de inseto para fora do
buraco, pulei, peguei a borda e me puxei para cima.
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— Você vai pelo menos me levar ao estilo bombeiro ? —Indagou o Sr.
Haffey.
— Não posso, senhor. Estou tentando evitar que o seu sangue escorra
mais ainda da sua perna.
Ele rosnou profundamente em voz baixa.
Eu o peguei e caminhei. — Tudo vai acabar em breve.
Ele gargalhou.
Escutei um som familiar atrás de mim, vindo do quarto principal.
— Pensei que a Ordem não permitia metamorfos.
— Eles não permitem. Quando me descobriram, me demitiram.
Aumentei a velocidade dos passos. Algo nos perseguia.
— Isso aí é besteira. —O Sr. Haffey balançou a cabeça. — E
discriminação. Você falou com seu representante sindical?
— Sim eu fiz. Lutei o quanto pude. De qualquer forma, eles me
aposentaram com pensão completa. Eu não posso apelar.
O Sr. Haffey me deu um olhar avaliador. — Você aceitou?
— Não. Disselhes para enfiá-lo ...
Eu o deixei cair no chão o mais gentilmente que pude e me virei, com a
espingarda pronta.
Um enorme inseto pálido nos atacou. Atirei duas balas e ele se debateu no
chão. Peguei o Sr. Haffey novamente e andei o mais rápido que podia para a
porta.
— Ouça, a maioria dos meus contatos se aposentou, mas alguns de nós
temos filhos no departamento. Se você precisar de um emprego,
provavelmente posso te arrumar alguma coisa. O PAD ficará feliz em ter
você. Você é um inferno de uma atiradora. Não deveria deixar isso
desperdiçar.
— Muito apreciado. —Eu sorri. — Mas já tenho um emprego. Trabalho
no negócio de minha melhor amiga, ela é a dona. —Comecei a subir as
escadas.
— Que tipo de negócio?
— Remoção de materiais mágicos. Proteção. Investigação. Esse tipo de
coisa.
O Sr. Haffey abriu os olhos. — Investigadora particular? Segurança
particular?
— Isso é a mentalidade de policial em você. Eu digo a eles que sou uma
metamorfo e eles não piscam. Mas se eu disser segurança particular, a não,
isso não dá certo.
— Então, como estão os negócios? —Haffey olhou para mim.
— Os negócios estão bem. —Se bem, significava péssimo. Entre Kate
Daniels e eu, tínhamos uma riqueza de habilidades, um pequeno mar de
experiência e manchas suficientes em nossa reputação para matar uma dúzia
de carreiras. Todos os nossos clientes, quando chegavam a nós, é porque
estavam desesperados, ou os outros profissionais já haviam os recusados.
— O que o seu homem pensa sobre isso?
Raphael Medrano. A lembrança dele era tão crua que eu poderia evocar
seu perfume apenas pensando nele.
O forte cheiro masculino saudável que me deixava louca ...
— Não deu certo, —eu disse.
O Sr. Haffey se mexeu desconfortável. — Você precisa abandonar essa
tolice de trabalho que faz agora e voltar ao uniforme. Estamos falando de
aposentadoria, benefícios, avançar na classificação e pagar ...
Eu corri até a minha porta. — Sra. Haffey!
A porta se abriu. O rosto da Sra. Haffey relaxou. — Oh meu Deus, Darin.
Oh Deus.
À distância, as sirenes familiares soaram.
A cavalaria chegou com um grande número de armas. Eles carregaram o
Sr. Haffey em uma ambulância, agradeceram minha ajuda e me disseram que
desde que eu era um civil, precisava me manter fora do caminho deles. Eu
não me importei. Matei a maior parte do que estava lá embaixo e eles se
vestiram e se deram ao trabalho de trazer lança-chamas. Era justo deixá-los se
divertir um pouco.
Cuidei do corte na minha perna. Não havia muito a fazer sobre isso. O
Lyc-V, o vírus responsável pela existência dos metamorfos, repararia os
ferimentos a um ritmo acelerado, quando cheguei ao meu apartamento, o
corte já estava se fechando. Em alguns dias, a perna estaria nova como folha,
sem cicatrizes. Alguns ‘presentes’ do Lyc-V eram úteis. Alguns, como a
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raiva de um berserker , eu poderia viver sem.
Estava esfregando os fluídos de insetos do meu rosto com uma toalhinha
de maquiagem, quando o telefone tocou. Limpei o sabão do meu rosto e corri
para a cozinha para atendê-lo.
— Olá?
— Nash? —Uma voz suave disse ao telefone.
A voz suave pertencia a Jim, um metamorfo jaguar e o chefe de
segurança do bando. Ele geralmente se nomeava por Jim Black, se você não o
conhecesse bem. Eu vasculhei seu passado durante o meu mandato com a
Ordem. Seu nome verdadeiro era James Damael Shrapshire, um fato que eu
mantinha para mim, já que ele não anunciava isso.
O bando de metamorfos de Atlanta era o mais forte do país e meu
relacionamento com ele era complicado. Mas o bando apoiava a Cutting
Edge, o negócio que Kate possuía e para o qual eu agora trabalhava.
Eles haviam fornecido o capital inicial e eram nosso primeiro cliente
prioritário.
— Ei, Jim. O que posso fazer por você? —Jim não era um cara mau.
Paranoico e secreto, mas os gatos eram criaturas estranhas.
— Uma de nossas empresas foi atacada ontem à noite, —disse Jim. —
Quatro pessoas estão mortas.
Alguém obviamente tinha um desejo de morte e esse alguém não era
muito inteligente, porque havia maneiras muito mais fáceis de cometer
suicídio. O bando cuidava de si mesmo e, se você machucava um deles, eles
faziam questão de ir atrás de você. — Alguém que eu conheço?
— Não. Dois chacais, um bouda e uma raposa do Clã Ágil. Eu preciso
que você vá lá e confira.
Eu fui para o quarto. — Sem problemas. Mas porque eu?
Jim suspirou no telefone. — Andrea, quantos anos você passou como um
cavaleiro?
— Oito. —Comecei a jogar minhas roupas para a cama: meias, botas de
trabalho, jeans ...
— Quantos desses você gastou em casos ativos?
— Sete. —Adicionei uma caixa de munição para a pilha de roupas na
cama.
— É por isso. Você é a investigadora mais experiente que eu tenho que
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não está comprometida em algo, e eu não posso pedir a Consorte para
investigar isso, porque A) ela e Curran estão trabalhando em outra coisa e
B) quando a Consorte se envolve metade do mundo explode.
Kate, a consorte. O título ainda me fazia rir. Toda vez que alguém usava,
ela tinha um olhar martirizado em seu rosto.
— Essa bagunça parece complicada e os policiais estão envolvidos até os
cotovelos. Eu preciso que você vá até lá e resolva.
Finalmente. Algo em que eu poderia realmente afundar meus dentes.
Segurei o telefone entre o ombro e a orelha e tirei um lápis e um bloco de
notas da mesa de cabeceira.
— Você tem um endereço?
— Mil quatrocentos e doze na Griffin.
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A rua Griffin percorria a SoNo , um dos antigos distritos financeiros,
entre Midtown e Downtown. O nome veio de ‘Avenida South e North’. Era
uma área ruim e instável, com prédios de escritórios antigos caindo para a
esquerda e para a direita.
— O que os metamorfos estavam fazendo lá?
— Trabalhando, —disse Jim. — É um local de extração.
Extração. Ah não. Não. Ele não faria isso comigo. Mantive minha voz
neutra. — Quem está no comando do local?
Por favor, não seja Raphael, por favor, não seja Rafael, por favor, não ...
— Extrações Medrano, —disse Jim.
Droga.
— Raphael está sendo questionado por alguns policiais, mas eu mandei
alguns advogados para ter certeza de que eles não irão segura-lo. Ele se
juntará a você assim que a polícia for embora. Olha, eu sei que as coisas não
estão boas entre você e Raphael, mas todos nós temos que fazer coisas que
não queremos fazer.
— Jim, —eu o interrompi. — Vou fazer. Sou uma profissional.
Estou trabalhando nisso.

Capítulo 2
Levei quarenta e cinco minutos para percorrer os destroços da cidade até
SoNo. A magia realmente destruiu Atlanta. O centro da cidade tinha sofrido
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mais, mas Midtown e Buckhead haviam levado uma surra. Arranha-céus
outrora imponentes estavam em ruínas, lembrando lápides de esperanças
humanas, tombadas de lado. Os viadutos desmoronavam e novas pontes de
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madeira cobriam os cânions do asfalto.
Detritos sufocavam as ruas. Atlanta ainda estava viva e pulsando e a
cidade estava se reconstruindo pouco a pouco, mas o peso e o volume do
concreto caído tornaram-se um problema. Eu tive que fazer um grande
contorno ao norte em torno dos destroços.
No cruzamento da rua Monroe com a rua dez, algo fluorescente explodiu,
encharcando as paredes das novas casas em laranja vibrante que cheirava a
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vômito velho. A equipe de Riscos Biológicos da cidade reduziu o tráfego
para uma única pista fiscalizada por dois caras com placas de trânsito PARE,
que deixavam os veículos e cavaleiros passarem pouco a pouco, enquanto o
restante da equipe de Riscos Biológicos lavava o pus laranja com mangueiras
de incêndio.
Ao meu redor, o tráfego da manhã relinchava, zurrava e defecava na rua.
Veículos a gasolina falhavam durante a magia. Meu jipe tinha dois motores,
um a gás e outro de água encantada, por isso, mesmo quando a tecnologia
estava inoperante meu carro ainda me levava para onde eu precisava de forma
confiável, mas não muito rápida. Comprar um carro adaptado como o meu
era caro, então a maioria das pessoas optava por cavalos, camelos e mulas.
Tanto faz o mundo está na onda tecnológica ou mágica, eles trabalhavam
sempre.
O problema era que também não cheiravam muito bem. Era meados de
maio, e um dia quente desse jeito, juntamente com o fedor que subia do chão
na rua fazia qualquer um querer correr daqui.
À minha esquerda, um homem em cima de um cavalo branco apontou
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uma besta para a placa de PARE. A corda vibrou e uma flecha perfurou o
metal, bem no meio da letra R. No alvo.
O sujeito do Risco Biológico empurrou a placa furada contra o caminhão
de serviço, tirou uma espingarda do banco do caminhão e apontou-a para o
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besteiro .
— Faça o meu dia, seu filho da puta! Faça o meu dia!
— Foda-se você e sua placa!
— Ei, —uma mulher gritou. — Há crianças aqui!
— Cai fora! —O cavaleiro disse a ela e apontou a besta para o cara do
Risco Biológico. — Deixe-me passar.
— Não. Espere sua vez como todo mundo.
Eu poderia dizer pelas caras dos dois que nenhum deles atiraria. Só
estavam falando merda um para o outro e desperdiçado o tempo de todo
mundo, porque enquanto o cara do Risco Biológico brigava com o idiota do
cavalo, o trânsito permanecia parado. Nesse ritmo, eu nunca chegaria à minha
cena de crime.
— Ei, idiota! —Um dos outros motoristas gritou. — Saia da estrada!
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— Está aqui é uma Falcon 7 , o cavaleiro disse a ele. — Posso colocar
um raio através do seu para-brisa e prendê-lo ao seu banco como um inseto.
Uma ameaça direta, hum? Certo.
Abaixei meus óculos de sol um pouco para que o cavaleiro pudesse ver
meus olhos. — Isso é uma boa besta.
Ele olhou em minha direção. Viu uma garota loira amigável com um
grande sorriso e um leve sotaque texano e não se assustou.
— Ela tem o que? Uns trinta e quatro quilos? Leva cerca de quatro
segundos para recarregar?
— Três, —disse ele.
Dei-lhe meu sorriso da Ordem: um sorriso doce, olhos neutros, estendi a
mão para o banco do passageiro e tirei minha metralhadora. Com cerca de
setenta centímetros de comprimento, a HK era meu brinquedo favorito para
combates de curta distância. Os olhos do cavaleiro se arregalaram.
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— Esta é uma metralhadora HK UMP . Reconhecida por seu poder de
equilíbrio e confiabilidade. Ciclo de taxa de fogo: oitocentas voltas por
minuto. Isso significa que eu posso esvaziar este cartucho de trinta balas em
você em menos de três segundos. Nesse intervalo, vou cortar você pela
metade. —Não era estritamente verdade, mas soava bonito. — Você
consegue ver o que está escrito no cano?
No cano da arma, lindas letras brancas soletravam INÍCIO DA FESTA.
— Você abre a boca novamente, e eu vou começar a festa.
O cavaleiro fechou as mandíbulas.
Olhei para o cara do Risco Biológico. — Aprecio o trabalho que você
está fazendo pela cidade, senhor. Por favor, continue.
Dez segundos depois, atravessei o bloqueio da estrada, conduzi o jipe
pela rua Monroe e virei à direita na Avenida North. Fiz dois quarteirões antes
que a rua terminasse em uma montanha de vidro amassado. Esta intrépida
aventura teria que continuar a pé. Estacionei, verifiquei minhas armas, tirei
meu kit de cena do crime do porta-malas e corri pela rua.
Talvez Raphael não estivesse lá.
Mais cedo ou mais tarde eu teria que entrevistá-lo. Meu ritmo cardíaco
acelerou com o pensamento. Respirei fundo até diminuir a velocidade. Eu
tinha um trabalho a fazer. A Ordem poderia não ter dado muito valor a ele,
mas pelo Bando obviamente valia a pena. Eu seria profissional nesse caso.
Profissionalismo. Apenas os fatos, senhora. Siga em frente, não há nada
para se preocupar aqui. Não precisa entrar em pânico.
Este não era o meu primeiro caso e este não era o meu primeiro
assassinato. Era a oportunidade de trabalho que importava e eu não iria
estraga-lo fazendo uma grande tempestade por causa dos meus problemas
particulares.
O mil quatrocentos e doze na Griffin parecia uma pequena colina de
metal retorcido, decorada com pedaços de concreto, misturada com mármore
sujo, pilhas de vidro azulado quebrado e poeira cinzenta fina, o resultado das
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presas da magia mastigando os materiais do prédio. Uma retroescavadeira
e algum outro veículo pesado de construção cujo nome eu não conhecia
estava do outro lado da rua, ao lado de uma tenda.
Um túnel reforçado conduzia para dentro da colina, com dois metamorfos
em guarda. O da esquerda, de jeans escuros e camiseta preta, era um bouda
masculino de trinta e tantos anos, magro, moreno, com um sorriso fácil. Eu já
o conhecia, o nome dele era Stefan e nós não tínhamos nenhum problema um
com o outro. Como a maioria das boudas, ele era bom com uma faca e,
ocasionalmente, se seus oponentes realmente o irritassem, ele as continuava
usando depois de matá-los.
O outro metamorfo, à direita, era maior, mais jovem e de olhos escuros,
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com cabelos castanhos curtos. Inalei o cheiro dele. Um metamorfo chacal .
Eu parei antes do túnel. Os olhos de Stefan se arregalaram. — Ei você.
— Ei para você também.
O chacal me deu uma longa olhada. Eu usava uma camisa branca de
mangas compridas, calça marrom e um casaco de couro por cima. A principal
vantagem do casaco era seus milhões de bolsos. Minha duas Sigs
descansavam em coldres de ombro duplos. O nariz do chacal enrugou. Isso
mesmo, eu não cheiro como uma bouda normal.
— Jim me enviou, —eu disse a Stefan.
Stefan levantou as sobrancelhas. — O Jim do Bando?
— Sim. Raphael conseguiu voltar da polícia? —Meu interior apertou.
— Não.
Graças a Deus. Eu era uma covarde. Uma terrível e triste covarde. —
Preciso examinar a cena.
O chacal finalmente identificou o cheiro. — Você é …
Stefan se esquivou, batendo casualmente no pé do chacal com sua bota de
trabalho com bico de aço. — Ela é importante nesse caso. Venha, Andrea,
vou mostrar a você as coisas por aqui.
Ele mergulhou no túnel. Tirei meus óculos, enfiei-os no bolso do casaco e
segui-o. Um odor de pedra seca nos cumprimentou, misturado com outra
coisa. O perfume secundário revestiu minha língua e eu o reconheci: era o
cheiro fraco e quase imperceptível da decomposição precoce.
Quando a magia atacava um prédio alto, ela roía o concreto primeiro,
atacando-o em lugares aleatórios até se transformar em poeira.
Eventualmente, o edifício caía como uma árvore podre. Concretos e materiais
quebráveis pereciam, mas o metal e outros valiosos materiais resistiam. As
empresas de extração entravam nos prédios caídos e recuperavam o metal e
qualquer outra coisa que pudesse ser vendida.
Naufrágios caídos como este eram instáveis. Era preciso um tipo especial
de insanidade para entrar em um prédio que poderia cair em sua cabeça a
qualquer momento. Os metamorfos revelaram-se adequados: todos, para
começar, éramos loucos, a força aumentada permitia que trabalhássemos com
rapidez, e a regeneração alimentada com Lyc-V consertava ossos quebrados
em tempo recorde.
Raphael poderia ter quaisquer outros defeitos, mas se certificar que os
ossos de seus trabalhadores fossem quebrados o mínimo possível, era uma
prioridade dele. A passagem tinha seis pés de largura. Vigas de aço grossas e
pilares de pedra sustentavam o telhado e a malha de metal segurava as
paredes. Eu tinha um metro e sessenta, mas Stefan tinha quinze centímetros a
mais do que eu e ele também não precisava se abaixar. Uma série de luzes
elétricas corria pelo teto, piscando vagamente. Muito vagamente. Fizemos
uma pausa, deixando nossos olhos se ajustarem à escuridão, e seguimos em
frente.
O túnel se inclinou para baixo.
— Conte-me sobre o edifício, —eu pedi.
— Caiu cerca de sete anos após a mudança, juntamente com o prédio da
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Georgia Power e logo depois o prédio da Civic Center . Antes de cair, era
uma torre de trinta andares de vidro azul em forma de V. Propriedade de
Jamar Groves, que também foi o responsável pela construção. Jamar era um
promotor imobiliário e este bebê era seu orgulho e alegria. Ele chamava o
30
edifício Blue Heron . No dia do desabamento as pessoas disseram a ele para
sair do prédio, mas ele colocou na cabeça que o prédio não cairia. Ele ainda
está aqui em algum lugar. —Stefan assentiu para o teto. — Ou pelo menos
seus ossos estão.
— Naufragou com o seu navio? —O fedor de decomposição estava
ficando mais forte, agarrando-se às paredes do túnel como uma pintura suja.
— Sim. Jamar era um cara estranho, aparentemente.
— Somente os pobres são estranhos. As pessoas ricas são excêntricas.
Stefan deu um sorriso. — Bem, Jamar possuía uma enorme coleção de
arte e tinha algumas ideias interessantes. Por outro lado, ele tinha uma casa
de banho de mármore em estilo romano no segundo andar.
— Então vocês estão atrás do mármore? —Perguntei.
— Dane-se o mármore. Estamos atrás do encanamento de cobre. Toda a
estrutura tinha canos de cobre antigo. Os preços do cobre estão no teto agora.
Até mesmo a fiação de cobre é cara. É claro que, se você sentir o cheiro de
plástico, vale o dobro, mas não faremos isso. A fumaça é tóxica como o
inferno, mesmo para nós. Há aço também, mas o cobre é o verdadeiro
prêmio. É por isso que Raphael comprou o prédio.
— Ele comprou o prédio? —Há alguns meses, quando Raphael e eu
estávamos juntos, ele trabalhava principalmente com contrato de aluguel de
serviço: os proprietários de vários prédios o empregavam para recuperar os
objetos de valor por uma porcentagem de qualquer coisa que ele
recuperasse.
Stefan sorriu. — Nós agora podemos fazer isso. Estamos brincando com
os meninos grandes.
O túnel continuava indo cada vez mais para baixo, escavando.
— Por que cavar tão fundo debaixo do prédio? Por que não usar as
laterais?
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— O Heron é um toppler , —disse Stefan. — Tinha mais de seis andares
e não pegou fogo.
Magia derrubava edifícios de diferentes maneiras. Às vezes, toda a
estrutura interna entrava em colapso e o prédio implodia em uma fonte de
poeira. Mais frequentemente, a magia enfraquecia partes do edifício,
causando um colapso parcial até que a coisa toda caísse, tombando de lado.
Os topplers eram valiosos, especialmente se não pegassem fogo, porque
qualquer coisa no subsolo tinha uma boa chance de sobreviver.
— Nós estávamos tentando entrar no porão, —Stefan confirmou. — Há
sistemas de aquecimento e supressão de incêndio lá embaixo, geradores,
acesso a elevadores de carga e elevadores comuns, tem muito metal lá. E
você nunca sabe, às vezes pode até encontrar servidores de computador.
Coisas mais estranhas sobreviveram a um prédio caído. Chegamos.
Adiante, a passagem se alargou. Stefan ligou o interruptor e as lâmpadas
duplas no teto se acenderam. Nós entramos em uma câmara redonda, com
cerca de oito metros largura. Quatro corpos jaziam no chão de terra, dois
homens e duas mulheres. Na parede oposta, um disco de metal de um metro e
oitenta de altura se projetava, revelando um túnel redondo cheio de escuridão,
uma porta do cofre deixada entreaberta.
— Um cofre?
Stefan fez uma careta. — Em nenhuma das plantas e nenhum dos
documentos relacionadas ao edifício que tivemos acesso foi mencionado a
existência desse cofre. Nós estávamos cavando alegremente o nosso túnel e
nos deparamos com ele ontem à noite. Ficamos tentando abrir a porta por
cerca de uma hora, mas não tínhamos as ferramentas certas para isso, então
Raphael colocou dois guardas aqui e dois na entrada, e fomos embora. Um
serralheiro deveria vir esta manhã e abrir o cofre. Em vez disso, encontramos
isso.
Quatro pessoas mortas, esparramadas na terra. Ontem à noite eles haviam
abraçado seus entes queridos antes de ir para o turno. Eles fizeram planos.
Esta manhã eram minha responsabilidade. A vida era uma cadela viciosa.
— Ok, deixe-me começar a fazer o registro.
— O quê?
— O registro da cena do crime? O registro de quem esteve aqui e a que
horas?
Stefan me deu um olhar vazio.
— Eh …
Deus, caramba. Peguei um caderno pequeno e uma caneta do bolso do
casaco e mantive minha voz amigável. — Eu te ensino. Vou fazer primeiro
para você ver. Observe.
Marquei a data no topo da página e escrevi:

Assinei e passei o caderno e a caneta para ele.


— Agora você coloca seus dados. Quando o pessoal responsável vier para
pegar os corpos, você os faz escrever os dados deles também. Precisamos
manter um registro de quem vem e desceu aqui.
Coloquei minha bolsa com o kit de cena do crime de lado, abri, tirei as
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luvas e as vesti. Em seguida peguei a câmera Polaroid Instant Digital e
uma pilha de envelopes de papel para fotos e provas da cena do crime.
Outras câmeras tiravam fotos melhores, mas a mágica causava estragos
nos dados digitais. Às vezes, você obtinha imagens nítidas de alta definição e,
outras, acabava com uma confusão borrada de cinza ou nada. As câmeras
Polaroid Instant Digital produziram fotos mais rapidamente do que qualquer
outra no mercado e armazenavam a imagem digitalmente como um bônus.
Era o mais próximo de um registro instantâneo de evidências que podíamos
obter.
— Os corpos foram movidos de alguma forma?
Stefan encolheu os ombros. — Sylvia os encontrou, checou os pulsos,
examinou o cofre e viu que não havia ninguém lá, e saiu direto da escavação.
Nós conhecemos o procedimento.
Se eles soubessem os procedimentos, haveria um registro feito. — Onde
está Sylvia agora?
— Com Raphael, sendo interrogada pelos policiais.
Em termos legais, o Bando tinha direitos semelhantes aos de uma tribo
nativa americana, com a capacidade de se governar e fazer cumprir suas
próprias leis. Se um metamorfo morresse no território do bando, era um
assunto do Bando. Esses metamorfos haviam morrido dentro dos limites da
cidade, e o PAD queria entrar em ação. Eles não eram exatamente fãs do
metamorfos, por um bom motivo.
Nós vivíamos na zona cinzenta entre a fera e o humano. Aqueles de nós
que queriam permanecer humanos viviam pelo Código, um conjunto de
regras rígidas. O Código tratava de disciplina e moderação e obedecia à
cadeia de comando. Às vezes, os freios humanos fracassavam, e um
metamorfo jogava o Código pela janela e virava Loup. Loups eram sádicos,
loucos assassinos. Eles se divertiam com o assassinato, o canibalismo e todas
as outras perversidades violentas que seus cérebros insanos poderiam
imaginar. O Bando caçava-os e os exterminavam com extrema rigidez, mas
isso não impedia que o PAD visse cada metamorfo como um assassino em
potencial. Sempre que um assassinato de metamorfo acontecia na cidade, eles
tentavam se intrometer.
Não que eles conseguissem qualquer resultado. Os advogados do bando
eram feras vorazes.
Agachei-me junto ao corpo mais próximo e apontei a câmera. O flash se
acendeu, queimando a cena com luz branca por uma fração de segundo. A
câmera fez um barulho, imprimindo a imagem. Puxei para fora e sacodi um
pouco para secar, antes de deslizá-la em um envelope de papel.
O homem morto parecia estar no final dos cinquenta anos. Metamorfos
envelheciam bem, então ele poderia ter mais de setenta anos, pelo que eu
sabia. A pele da testa tinha uma tonalidade morena, particular àquelas do
subcontinente indiano. Esse era o único pedaço de pele exposta que não foi
danificado. Grandes bolhas inchavam em toda parte em suas bochechas,
pescoço e braços, a pele solta dos músculos, esticada e completamente negra.
Tirei outra foto.
— Eu nunca vi nada assim antes, —disse Stefan.
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Eu já. — O ME passou por aqui?
— Sim. Mas nós os expulsamos.
É isso mesmo, mesmo que os membros do Bando tenham morrido fora do
território do Bando, o Bando ainda tinha o direito de reivindicar seus corpos.
E tecnicamente o prédio era propriedade do Bando, já que Raphael tinha
comprado. Eu deveria ter me lembrado disso. Ficando enferrujada, Senhorita
Nash. Ficando enferrujada.
Entreguei-lhe a câmera Polaroid. — Você poderia segurar isso por um
segundo?
Ele pegou a câmera. Puxei uma faca do meu cinto e cortei a camisa do
homem diretamente no peito dele. O tecido fino se separou facilmente. Fiz
um corte em cada manga e gentilmente virei o corpo de lado. Um grande
inchaço marcava o topo do ombro esquerdo, logo acima da clavícula. Passei a
faca pela borda inferior da bolha. Os fluidos corporais jorraram, pretos e
manchados de sangue. O fedor me atingiu instantaneamente, o cheiro sujo e
podre de carne em putrefação.
Stefan amaldiçoou e se afastou.
— Se você vai vomitar, gentilmente faça isso no túnel.
Ele se dobrou e balançou a cabeça. — Não, eu estou bem. Eu estou bem.
Estiquei a pele seca para baixo. Dois furos irregulares marcavam as costas
do homem, perto do encontro do ombro com o pescoço. O inchaço os havia
escondido antes.
— O que é isso?
— Uma picada de cobra.
— Não somos imunes ao veneno de cobra?
Balancei a cabeça. — Não.
— Você está brincando comigo.
— Não, eu não estou. Metamorfos não anunciam exatamente esse fato,
por razões óbvias, mas sim, se uma cobra te morder, você vai sentir os
efeitos.
Stefan piscou para mim. — Nós regeneramos ossos quebrados e somos
imunes a doenças e venenos.
— Somos muito resistentes ao veneno, mas não imunes. Lembre-se de
Erra?
Os olhos de Stefan se escureceram. — Sim. Eu lembro.
Erra era a tia de Kate e seu segredo. A família de Kate era mágica, o tipo
de magia que destruía as cidades e alterou o curso das antigas civilizações.
Sua tia tinha dormido por milhares de anos, mas o início da magia a
despertou, e ela veio para Atlanta à procura de problemas e quase destruiu a
cidade. Uma de suas criações, que ela chamou de Venom, invadiu uma das
casas do Clã Lobo na cidade e envenenou todo mundo dentro. Eles morreram
em agonia. Foi um alerta para o bando. Os metamorfos poderiam ser
envenenados, se o veneno fosse forte o suficiente.
— A maioria das doenças na natureza é viral ou bacteriana, —eu disse.
— O Lyc-V é um vírus ‘ciumento’, por isso acaba destruindo outros
invasores. Veneno ingerido vai parar no estômago. No segundo em que ele
tenta entrar na corrente sanguínea, o Lyc-V irá destruí-lo. Uma picada de
cobra é outra história.
Eu me levantei, tirei um pano do bolso e limpei as mãos. — A cobra
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injeta toxinas diretamente no corpo e essas toxinas são químicas: enzimas ,
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coagulantes e assim por diante. Algumas apenas atacam a área da picada,
mas outras atacam o sistema nervoso, e o Lyc-V não os reconhece como uma
ameaça até que o dano comece a se espalhar.
— Então, que tipo de toxina é essa aqui?
— Hemotóxico. Provavelmente de uma víbora. No momento em que o
veneno entra na vítima, ele começa a coagular o sangue e entupir os vasos
sanguíneos. O Lyc-V existe em todos os tecidos, mas a maior parte está na
corrente sanguínea. Entupir as artérias dificulta o vírus chegar ao veneno
rápido o suficiente para destruí-lo. Uma vez conheci um metamorfo búfalo
que caiu em um ninho de cascavéis. Parecia exatamente assim quando
tiramos o cadáver dele.
Stefan olhou para o corpo. — Como uma cobra conseguiu mordê-lo de
costas? Ele não estaria deitado na terra. Talvez sentado, mas não deitado.
Metamorfos levavam a higiene pessoal a sério. ‘Animal imundo’ era um
insulto comum que as pessoas nos chamavam. Os guardas não estariam
deitados em terra suja, a menos que fosse absolutamente necessário.
— Eu não sei. Peguei uma régua da minha bolsa e segurei até as marcas
da mordida. Oito centímetros e meio. Cinco centímetros significaria uma
grande cobra. Seis centímetro e meio significaria um chocalho de quatro
metros e meio. Oito e meio era loucura.
— Posso te dizer que se eu fosse uma cobra inteligente, este é o lugar que
eu morderia, —eu disse. — Se você causar coagulação nas artérias que levam
ao cérebro, a morte será rápida assim. —Eu teria estalado meus dedos, mas
estava usando luvas de látex.
— Então, nós temos víboras gigantes superinteligentes que deslizaram
para cá, mataram nosso povo, abriram o cofre, roubaram algo dele e
escaparam, sem serem detectadas?
— É o que parece.
— Certo. Só queria ter certeza de que não era algo perigoso.
Lancei a ele um sorriso rápido e comecei a processar a cena.
A cena era um pesadelo. Os trabalhadores de Raphael estavam nesse local
somente há doze horas, mas duas dezenas de tipos de perfumes diferentes se
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agarravam ao chão, sem mencionar o fedor de putrefação que subia dos
corpos. No calor da Geórgia, mesmo nesse subterrâneo profundo, os
cadáveres decompõem-se rapidamente.
Um exame superficial dos corpos mostrou várias picadas de cobra. Notei
quatro diferentes extensões de presas e escrevi-as. Dividi a cena em linhas e
procurei, de parede a parede, pegando cada tampa de garrafa e cada cabelo.
Um caminhão chegou do Bando para levar os corpos de volta a Fortaleza,
a enorme sede do Bando do lado de fora de Atlanta, que todos insistiam que
não era um castelo, apesar de parecer com um e funcionar como um. Escrevi
algumas notas para Doolittle, o principal medi-mago do Bando, detalhando
minha teoria da cobra. Ele seria o único a examinar os corpos. Empacotei as
impressões digitais que havia coletado em um envelope grande e encaminhei
para Jim. O Bando tinha seu próprio banco de dados de impressões digitais, e
Jim estava em uma posição muito melhor para identificar as impressões
digitais do que eu. Eu conhecia a teoria por trás da análise de impressões
digitais e aprendi algumas habilidades rudimentares na Academia da Ordem,
mas na prática, para mim, não passava de um monte de espirais que não fazia
ideia do que fazer.
Também escrevi uma rápida avaliação preliminar para Jim, solicitei
arquivos históricos sobre todos os trabalhadores de Raphael e enviei todo o
conjunto do que coletei para a Fortaleza com a equipe do corpo.
Entrei no cofre e fiquei ali um pouco, examinando visualmente o
conteúdo. Estava cheio de antiguidades. Um par de gatos totalmente negros,
elegantes de pescoço longo, com olhos do que provavelmente eram
verdadeiras esmeraldas, estava encostado na parede. À esquerda dos gatos,
uma placa de pedra desgastada pela idade e tão alta quanto eu repousava no
chão, figuras vestidas em túnicas estavam esculpidas nela. À direita, uma
pequena cadeira de madeira, pintada de dourado e marrom, erguia-se com os
pés formando a aparência de patas de leão.
Nas prateleiras havia um colar de ouro ornamentado, dentro de uma caixa
de vidro em cima de um travesseiro de veludo vermelho, um conjunto de
pequenas garrafas, cristais envoltos em fios de ouro, um armário de madeira
vazio, uma grande escultura de cristal água-marinha em cima de veludo
preto, três homens de um lado e uma mulher acenando adeus. Ou talvez olá.
Não, provavelmente era um adeus. A vida era assim mesmo.
Antiguidade por todos os lados na cena, emanando dos itens como um
aroma de uma flor. Quantas pessoas morreram por essas coisas? Eu sabia
que pelo menos quatro tinham morrido e tinha a sensação de que a contagem
de corpos continuaria a subir.
Chamei Stefan e cataloguei o cofre, item por item, e pedi que ele
assinasse tudo como testemunha. A lista era tão longa que minha caneta
estava em agonia até o final. Algo deve ter sido retirado do cofre, mas o que?
Eu me arrastei em cada centímetro do maldito lugar, procurando qualquer
indicação de um item faltando, mas o cofre estava livre de poeira. Nenhum
esboço misterioso, nenhum gancho vazio, nada que me desse qualquer pista
sobre o que tinha acontecido aqui. Por tudo o que pude descobrir, em vez de
tirar alguma coisa, os atacantes colocaram alguma coisa e não seriam os
buracos.
Quando finalmente saí do túnel, coberto de sujeira e ossos cansados, o sol
quase completara sua fuga abaixo do horizonte. O processamento de cena era
um trabalho lento e tedioso. Da próxima vez, encontraria um ajudante.
Stefan se levantou do tambor de aço no qual ele estava sentado. —
Acabou?
— Sim. Alguma notícia de Raphael?
— Não.
Ou os policiais o seguraram ou ele estava fazendo de tudo para me evitar.
— Stefan, esse material no cofre é muito antigo. Não temos como saber
se alguma delas tem magia ou não. Vocês precisam se manter longe disso.
Não toque, não cheire, não tente transportá-lo. Vou pedir a alguém com
conhecimento mágico para movê-lo até a Fortaleza e colocá-lo em
quarentena.
Stefan olhou para mim. — Entendi o que você está dizendo, mas você
terá que falar com Raphael sobre isso. Ele provavelmente virá aqui depois
que os policiais o liberar. Você quer deixar um recado anotado para ele?
Boa ideia. — Tem algum papel para escrever? —Balancei minha caneta
exausta. — O meu já se foi.
— Claro, na tenda.
Olhei para a tenda de trabalho a alguns metros de distância. — Obrigada.
Fui até a tenda, empurrei a aba da entrada para o lado e entrei nela.
Cheirava como Raphael.
Seu perfume permeava cada centímetro do espaço, das paredes da tenda à
mesa dobrável e a cadeira, até os papéis empilhados na mesa. Cada objeto
pulsava com ele, chamando-me, cantando: — Raphael ...
Raphael … Companheiro … —O perfume me envolveu, quente,
acolhedor, meu, e cada centímetro de mim gritou em frustração. Eu tropecei
de volta e quase caí sobre uma pedra.
— Você está bem? —Stefan perguntou.
— Sim. —Eu tinha que sair de lá.
Eu me virei e marchei para longe.
— E a nota? —Stefan perguntou.
— Vou deixar uma mensagem no telefone dele.
Continuei andando e tentando colocar distância entre mim e aquela tenda
amaldiçoada. Se alguém tivesse barrado meu caminho, eu poderia ter atirado
nele.
Parei no escritório da Cutting Edge, estava trancado, Kate ausente,
guardei meu kit de processamento da cena do crime no armário do nosso
escritório e dirigi para casa. Subi as escadas, que já estavam livres de teias,
mas chamuscadas com fuligem escura dos lança-chamas da PAD, e parei no
apartamento dos Haffey. Ninguém respondeu minha batida. Espero que o Sr.
Haffey tenha melhorado.
Fui até o meu apartamento, entrei e me encostei na porta, com medo de
que o mundo lá fora me agarrasse de alguma forma.
Meu apartamento estava escuro e vazio. Ele servia como meu pequeno
refúgio, especialmente nas três semanas que eu tinha ficado aqui, tentando
aceitar a saída da Ordem. Era meu canto pequeno e seguro, só eu, eu e eu.
Bem, e Grendel, mas o poodle, era tão bom ouvinte que não conseguia nem
sequer aguentar o fim de uma conversa.
Meu apartamento não parecia seguro agora. Parecia sufocante e estéril.
Nenhum Raphael. Lembrei-me de como era acordar de manhã e encontrá-
lo me segurando. Se fechasse os olhos, podia ouvir sua risada. Ele me fazia
tão feliz, mas o mais importante, eu o fazia feliz.
Quaisquer que fossem minhas deficiências, eu sabia que poderia fazer o
dia dele feliz. Nunca percebi quanta alegria isso me trazia. Eu não tinha que
fazer nada. Só tinha que me aconchegar ao lado dele no sofá, enquanto ele
observava seus relatórios de negócios, e seu rosto se iluminava.
E agora ele se foi.
Isso é uma merda. Isso machucou muito, muito.
— Isso é uma merda, —eu disse, minha voz alarmantemente alta no
quarto silencioso. Sabia exatamente o que tinha que fazer. Tinha que pegar o
telefone e ligar para ele e dizer-lhe como me sentia. Deveria ter feito isso
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semanas atrás, mas levantar o telefone parecia tentar pegar Stone Mountain .
Nosso feliz para sempre terminou em uma luta e nós dois fomos culpados
por isso. Quando Erra estava furiosa em Atlanta enviou uma de suas criações
para a sede da Ordem. Kate e eu lutamos com a criatura e mal sobrevivemos.
O escritório da Ordem terminou queimado, destruído, todas as janelas
quebradas, as paredes fumegando.
Foi quando uma chamada de emergência veio do Clã Lobo. Eles estavam
sob ataque de Erra também e estavam morrendo. Kate e eu queríamos ajudar.
Ted, o defensor dos Cavaleiros residentes, ordenou que não fossemos. Ele
precisava de nós na Ordem.
Kate arrancou o seu distintivo da Ordem e saiu. Eu não fiz isso. Eu era
um cavaleiro. Fiz um juramento e não poderia escolher quais ordens seguir.
O meu juramento me prendia a Ordem.
Raphael levou para o lado pessoal. Em sua mente, rejeitei os metamorfos,
o Bando, e por isso o rejeitei. Ele era o príncipe das boudas de Atlanta, o
filho favorito, amado, admirado e apoiado em tudo que fazia. Para ele, ser um
metamorfo era a coisa mais natural do mundo.
Para mim, ser um metamorfo significava ser ferida, degradada e viver
com medo. Todos os ossos do meu corpo foram quebrados por metamorfos
antes dos dez anos de idade. Eu fui esfaqueada, socada, chutada, chicoteada e
incendiada. Eu observei minha mãe sendo espancada repetidamente e com
uma alegria viciosa dos seus algozes. Eu rejeitei essa vida e escolhi a Ordem.
Os Cavaleiros eram meu bando e Ted era meu alfa.
Raphael sabia tudo isso, ou a maior parte disso. Havia contado a ele sobre
minha infância. Mas para ele todo aquele abuso tinha sido infligido a mim
pelos ‘maus’ metamorfos. O Bando de Atlanta consistia em ‘bons’
metamorfos, com leis, disciplina e segurança. Ele achava que o Bando
merecia minha lealdade acima de todos os outros simplesmente porque todos
ficariam furiosos se soubesse do que passei. Ele esperava que eu me afastasse
de tudo pelo que trabalhei tanto e fosse sua princesa bouda. Nós tivemos uma
briga feia e seguimos nossos caminhos separados. Nenhum de nós disse que
estava tudo acabado. Apenas paramos de falar um com o outro.
Eu pretendia ligar para ele. Tinha planejado fazer isso depois que
finalmente derrubamos Erra, mas naquela última luta eu me machuquei.
Minha condição de metamorfo foi descoberta e a Ordem solicitou
cordialmente minha presença em sua sede. Não era o tipo de convite que
podia ser recusado. Então fui a julgamento. Pensei que era a minha chance de
mudar a Ordem para melhor. Havia outras pessoas nas fileiras como eu,
metamorfos de armário, secretos e não-humanos. Eu queria provar que
éramos dignos de ser Cavaleiros. Eu tinha um registro estelar, anos de serviço
exemplar e as condecorações e prêmios para provar isso. Pensei que tinha
uma chance. Tentei, tentei tão desesperadamente, e no final foi tudo para
nada. A Ordem se livrou de mim e era isso.
Eu não podia mudar o passado, mas poderia trabalhar no presente. Eu
estava infeliz sem o Raphael. Sabia exatamente do porque eu não tinha
pegado o telefone. Claro, parte disso era orgulho. Outra parte era raiva. Eu
estava cansada de todo mundo me julgar. A Ordem me julgou por ser um
metamorfo. Os metamorfos me julgavam por ter tido o tipo errado de pai. Em
uma época em que minha vida estava uma droga, eu precisava que Raphael
fosse uma pessoa que não me julgasse, e fiquei com raiva porque ele me
julgou. Mas no fundo tudo era medo. Contanto que eu não ligasse para ele,
Raphael não poderia me dizer que nós terminamos.
Como é que eu conseguia enfrentar tiroteios, adversidades esmagadoras,
me colocar entre balas e civis, mas não consegui reunir coragem suficiente
para falar com a pessoa que mais importava para mim?
Entrei na cozinha, peguei o telefone e disquei o número de Raphael. Nós
tínhamos algo, droga. Nós nos amávamos. Eu sentia falta dele. Ele tinha que
sentir minha falta também. Precisávamos parar com essa estupidez e resolver
as coisas.
O telefone tocou.
Ele iria entender. Se apenas me desse uma chance, eu o faria entender
tudo isso.
Algo molhado tocou minha bochecha e percebi que era uma lágrima.
Jesus Cristo. Limpei rapidamente. Era bom que eu estivesse sozinha e
ninguém pudesse ver.
A secretária eletrônica clicou. A voz de Raphael disse: ‘Raphael
Medrano. Deixe um recado.’
Mantenha-se calma. Mantenha-se profissional.
— Oi, sou eu. Jim me pediu para investigar os assassinatos em seu local
de trabalho. Preciso te entrevistar, então eu pensei que talvez pudéssemos nos
encontrar no meu escritório amanhã de manhã. —Território neutro, sem
memórias para atrapalhar. Eu hesitei. — Eu sei que nós não nos separamos da
melhor maneira, e eu me arrependo disso. Nós dois cometemos alguns erros.
Espero que possamos colocar isso de lado e tentar trabalhar juntos nesta
investigação.
Eu sinto sua falta. Sinto sua falta terrivelmente.
— Gostaria de uma chance resolvermos isso. Tenho algumas coisas para
te dizer que estão muito atrasadas. Vejo você amanhã.
Eu desliguei.
Não parecia certo. Isso não era exatamente o que eu queria dizer. Mas,
novamente, chorar histericamente ao telefone e soluçar sobre como seu
cheiro me fazia querer me enrolar em uma posição fetal, não adiantaria nada.
Desculpas e lágrimas tinham que esperar até que nos encontrássemos e
estivéssemos sozinhos.
Eu poderia fazer isso direito. Só precisava pensar um pouco mais.
Capítulo 3
A manhã trouxe luz e magia. Levei alguns minutos extras para
decidir o que vestir. Não que isso fizesse alguma diferença, mas minha
camisa azul-claro combinava com meus olhos e parecia legal. Coloquei
meu jeans favorito e me olhei no espelho.
Maquiagem completa seria demais. Passei um pouco de rímel e modelei
meu cabelo loiro, que estava fazendo o seu melhor para crescer depois de um
corte curto. Logo que eu fui expulsa da Ordem, tinha pintado as pontas do
meu cabelo de azul, mas agora o corante tinha saindo e eu acabei com uma
cabeça cheia de mechas de cores diferentes.
Como uma adolescente antes do baile de fim de ano: ziguezagueando e
tremendo de nervosismo. Cruzei meus braços e olhei para mim mesma no
espelho. Atiradora de elite, morrer, matar, resistir, uauuu. Certo, assim é
melhor.
Raphael sempre trouxe um lado estranho de mim. O lado selvagem,
aquele que era feito de emoções puras. Aquela Andrea selvagem o amava
completamente e fazia coisas irracionais, como se sentar ao lado do telefone
com o coração batendo rapidamente, esperando que ele ligasse, ou correndo
perigo, entrando de cabeça em situações quase suicidas, só para lutar ao seu
lado. Essa Andrea selvagem, foi até presa certa vez. Nós tínhamos ido para
um banho romântico na hidromassagem do hotel, em algum momento me
levantei para usar o banheiro, quando voltei encontrei uma vagabunda
tentando dar em cima de Raphael. Ela não aceitou um não como resposta e ao
invés de sair de lá rapidamente, ela sugeriu que todos nos divertíssemos
juntos. Eu a espanquei algumas vezes. Infelizmente, acabei apontando uma
arma para o segurança do hotel na época, e a polícia apareceu. Raphael
adorou todo o espetáculo. Eu estava finalmente agindo como uma
metamorfo: irracional, possessiva e apaixonada.
Eu não sabia se essa parte de mim era o meu lado de hiena ou apenas
aquela intransigente garota de quinze anos que morava dentro de cada
mulher, mas agora não era a hora de deixá-la sair. Eu tinha que permanecer
racional, então poderia me desculpar e tentar consertar as coisas entre mim e
Raphael.
A Cutting Edge ocupava um edifício robusto no extremo norte de Atlanta,
a cerca de uma hora da Fortaleza.
O Senhor das Feras, também conhecido como o gato fofinho de Kate,
havia escolhido o local, e ele escolheu o local mais próximo da Fortaleza que
ainda estava dentro dos limites da cidade. Curran não gostava de ficar sem
Kate e Kate não gostava de ficar sem Curran.
A porta estava destrancada. Ótimo. Entrei. Ascanio levantou os olhos da
vassoura.
Apesar de ter poucos clientes, a Cutting Edge tinha um excesso de
funcionários, em parte porque Kate continuava a contratá-los. Segundo ela,
Ascanio Ferrara era estagiário. Na realidade, ninguém com um pouco de bom
senso o contrataria como estagiário ou qualquer outra coisa, exceto talvez
como um provocador de engarrafamento no trânsito. Se você o colocasse em
uma esquina, mais cedo ou mais tarde uma motorista do sexo feminino iria
arruinar tudo.
Um pouco mais de quinze anos, com cabelos negros brilhantes e olhos
verdes, Ascanio era lindo. Não apenas bonito, não apenas atraente. Ele era
lindo. Tinha toda essa coisa de anjo caído, havia uma mente maliciosa por
trás daquele rosto inocente e olhos bonitos.
Como a maioria dos filhos homens do clã Bouda, ele era estimado e
mimado, ainda mais porque estava desaparecido a maior parte da vida e sua
mãe acabara de encontrá-lo há alguns meses. Nesse curto período, ele havia
se metido em todos os problemas possíveis imagináveis, culminando com a
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prisão por ter feito um ménage à trois nos degraus do tribunal. O menino
não entendia como o Bando funcionava e, finalmente, Tia B o jogou para
Kate. Era isso ou matá-lo. A solução de Kate foi fazer com que está bola de
problemas e hormônios fosse nosso estagiário. Como a mente de Kate
funcionava, eu nunca entenderia. Era um mistério.
Ascanio chamou a atenção e me saudou, segurando a vassoura como um
rifle.
Eu apontei para a vassoura. — Não.
— Por que não?
Porque isso faria com que todos os instrutores de tiro, ex-militares
espumassem pela boca. — Você saúda com sua arma como sinal de respeito.
Ele me apresentou uma expressão de inocência intrigada. — Eu não tenho
um rifle ou uma espada. A vassoura é minha arma.
Espertinho. — Garoto, você tira minha paciência.
— Ave, Andrea! Ianitori te salutant!
Salve, Andrea, aqueles que zelam saúdam você.
Kate estava forçando Ascanio e Julie, sua filha adotiva, a aprender latim,
porque muitos textos mágicos históricos eram escritos nele e, aparentemente,
era uma parte essencial de sua educação. Como as lições eram conduzidas no
escritório durante o nosso tempo livre, eu estava aprendendo a língua junto
com eles.
Apontei para Ascanio. — Nenhuma outra palavra. O latim é uma língua
morta, mas isso não significa que você moleste seu cadáver. Termine
varrendo, ianitor.
Ele girou a vassoura com a destreza de um fuzileiro naval no Silent Drill
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Platoon , plantou o cabo no chão, pulou, girou em torno dele, as pernas
esticadas e caiu sobre um joelho, a cabeça baixa, a mão direita estendida,
segurando a vassoura em seu punho paralelo ao chão.
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— Você tomou café esta manhã , não tomou?
Ele olhou para mim e balançou a cabeça, um grande sorriso estampado
em seu rosto.
Boudas adolescentes. E isso era o suficiente.
Sentei e tentei o melhor para me concentrar em analisar meu caso. A
pesquisa das evidências apenas confirmou o que eu já havia percebido na
noite passada: não encontrei nenhuma arma de fogo. A maior parte do que
peguei parecia lixo comum, o que não significava necessariamente que fosse
lixo. Era uma evidência, cujo significado não era imediatamente aparente.
Cataloguei mesmo assim. Crimes raramente eram resolvidos pelos detetives
super brilhantes em uma explosão de glória intelectual. A maioria deles era
resolvida por investigadores pacientes e meticulosos como eu.
O rugido de um veículo movido a motor de água trovejou do lado de fora
da nossa porta e morreu. Raphael. Tinha que ser. Kate teria estacionado no
canto do estacionamento ao lado, porque ela tinha problemas em ficar presa
se precisasse sair rapidamente.
Fingi estar concentrada em minhas prováveis evidências inúteis. Eu tinha
passado toda a viagem até o escritório tentando descobrir o que dizer, como
dizê-lo. Queria explicar o porquê das minhas decisões. Queria dizer a ele que
o amava. Tentei me preparar para a possibilidade de que ele me rejeitasse,
mas a maior de mim esperava com um desejo ingênuo desesperado de que ele
me perdoasse e que íamos para casa juntos.
Uma batida soou através da nossa porta absurdamente reforçada.
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— Periculo tuo ingredere ! —Proclamou Ascanio.
O que diabos ele acabou de dizer? Ingredere … Entre … Entre por sua
conta e risco. — Se é um cliente, eu vou atirar em você, —eu disse a ele.
A porta se abriu. Um novo perfume girou em torno de mim, uma
fragrância pesada, rosa, patchouli e coentro, um perfume caro. Uma mulher
alta entrou. Ela devia ter um metro e oitenta e seus saltos dourados cintilantes
adicionavam mais dez centímetros à sua altura. Seu cabelo, da cor de ouro
branco luminoso, caia sobre os ombros dela, passando por sua bunda. Ela
usava um vestido preto muito curto ou uma camiseta longa, eu não conseguia
decidir qual. Fosse o que fosse, a cintura fina e delicada era presa por um
cinto branco com tachas douradas. Seu rosto, bonito e pintado com
maquiagem quase perfeita, tinha aquela expressão levemente insípida, às
vezes vista nas modelos: ela estava sonolenta, com tesão, ou precisava
espirrar a qualquer momento.
Uma figura sombria entrou no escritório atrás dela. Um e noventa de
altura, magro, vestindo uma jaqueta de couro preta e jeans desbotados ... ele
entrou na parte iluminada da sala. Olhos azuis escuros olhavam para mim e o
mundo se desfez ao nosso redor.
Seu rosto, emoldurado por cabelos negros e macios, não era perfeito do
jeito que Ascanio era, mas era masculino e bonito, e seus olhos transmitiam
uma espécie de intensidade sexual, uma promessa e um desafio, que fazia as
mulheres perderem todo seu auto respeito e proporem, ali na hora, um
encontro. O cheiro familiar tomou conta de mim como um perfume cheio de
dor.
Raphael.
Como se fosse em um sonho eu o vi colocar a mão na bunda da mulher,
empurrando-a delicadamente em direção às duas cadeiras ao lado da minha
mesa.
Oh doce Jesus!
Ele me substituiu.
Ele me substituiu por uma versão melhor de mim.
E ele a trouxe para o escritório. Para esfregar na minha cara.
O planeta parou de girar ao meu redor. Levantei, me vi estender a mão e
me ouvi dizer: — Bom dia.
— Rebecca. —A mulher apertou minha mão.
Concentrei-me para não esmagar os ossos dos dedos nas dobras de
cartilagem.
— Recebi sua mensagem, —disse Raphael.
E eu recebi a sua, alto e claro. Dentro de mim, a outra eu, aquela que
tinha garras e presas, uivava em fúria desamparada. Ela não entendia
nuances. Ela entendia apenas que a pessoa que amava e se importava com ela
a tinha traído e agora ela estava machucada. Ele era meu. Meu! A outra me
gritou dentro de mim, arrancando as paredes para serem soltas.
Eu me esforcei para mantê-la sob controle, impondo lógica sobre emoção.
Seguir em frente era o que eu podia fazer. Seguir em frente, eu tinha que
entender. Isso iria partir meu coração, mas eu entenderia. Este era um gigante
‘foda-se’ soletrado em letras brilhantes.
Forcei abrir minha boca. Minha voz soou plana. — Por favor, sentem-se.
Eles sentaram. Atrás deles, Ascanio nos encarou, seu queixo caído.
— Ascanio, você se importaria de pegar um café para os nossos
convidados?
— Preto, por favor, —disse Raphael, sua voz batendo como uma ponta
afiada em mim. — Creme e açúcar separados.
— Eu não bebo café, —Rebecca nos informou. — Mancha meus dentes.
— Você teve algum problema com os policiais? —Eu perguntei, meu
controle tão apertado que se eu relaxasse um pouquinho se quer, eu iria
quebrar.
Ele olhou diretamente para mim. — Apenas pequenas formalidades. Você
teve algum problema no local da escavação?
— Nenhum. Stefan me ajudou.
— Stefan, ele é um bom homem.
— Sim ele é. Quem é sua adorável acompanhante? —Soltei meu melhor
sorriso na direção de Rebecca. Raphael se inclinou para frente, deslizando o
braço esquerdo ao longo das costas da cadeira de Rebecca, seu corpo meio
virado para protegê-la.
Ele reconheceu o sorriso, era o tipo que significava que alguém estava
prestes a ser baleado.
— Eu sou sua noiva, —disse Rebecca.
Noiva? Noiva.
Os olhos de Raphael se arregalaram uma fração. Ele não queria que eu
soubesse, mas era tarde demais. Ela deixou o gato sair da bolsa.
— Que lindo, —eu disse, a doçura falsa pingando da minha voz. — Eu
não fiquei sabendo do anúncio do seu noivado.
— Estamos comprometidos em nos envolver, —disse Rebecca. —
Estamos aguardando até o final do ano físico para anunciar oficialmente.
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— Você quer dizer ano fiscal ? —Querido Deus, ela era uma idiota.
— Sim, é isso que eu quis dizer.
Raphael deslizou a mão sobre os dedos com unhas de acrílico rosa de
Rebecca.
Fechei meus olhos por um longo segundo. — Parabéns ao casal feliz.
— Obrigada, —disse Rebecca.
Raphael brincou com uma mecha de cabelo dela.
Isso, faça isso.
— Eu vejo que você atualizou para um modelo de luxo, —eu disse. —
Deve ter te custado um pouco.
— Vale cada centavo, —disse ele.
— Você sempre teve gostos caros.
— Ah, acho que não. —Ele encolheu os ombros musculosos. — Eu sou
conhecido de ter gostos simples de vez em quando.
Vou te matar. Eu vou te machucar, desgraçado, filho da puta. — Tenha
cuidado. Às vezes, o desleixo pode ser perigoso para você.
— Eu posso cuidar de mim mesmo, —disse ele e piscou para mim.
— Do que você está falando? —Rebecca perguntou.
— Meu carro, boneca. —Raphael pegou a mão dela.
Não. Não, ele não faria.
Ele beijou seus dedos.
Cada nervo do meu corpo explodiu em chamas.
— Vocês parecem um casal que se completam. —Eu sorri para eles. —
Fisicamente e intelectualmente. Rebecca é muito impressionante.
— Não se esqueça de leal, —disse Raphael. — E dedicada.
Então é um cachorro. — Tenho certeza que sua mãe está simplesmente
encantada com vocês dois.
Um músculo no rosto de Raphael se sacudiu. Meu Deus, gracioso, parece
que atingi um ponto delicado. Tia B, sua mãe e alfa do clã Bouda, era uma
lenda. Boudas eram selvagens, e ela os governava com sorrisos doces e
garras afiadas como navalhas. Um olhar para Rebecca e Tia B teria um
derrame instantâneo.
As sobrancelhas de Raphael se franziram. — A aprovação da minha mãe
não é necessária.
Aha! — Ela sabe disso?
Ascanio se aproximou, carregando uma xícara de café em uma bandeja,
com um pequeno pote de açúcar e uma xícara de creme.
— Ela é uma mulher terrível, —disse Rebecca.
Ascanio congelou.
Eu olhei para Raphael. Você vai deixar isso passar? É isso mesmo? Tia B
era sua mãe, mas ela também era sua alfa, e Ascanio era um membro do clã.
Raphael se inclinou para Rebecca, sua voz íntima, mas firme como o aço
embrulhado em veludo. — Querida, nunca insulte minha mãe em público.
— Ela me insulta. E você não faz nada sobre isso.
Ascanio se concentrou em Raphael, esperando por uma dica do que teria
que fazer a seguir. A Tia B dominava o clã, mas Rafael era o alfa masculino.
Raphael fixou um olhar de advertência para Rebecca, mas não teve efeito.
— Ela é rude e malvada.
Ascanio pegou o pote de açúcar e esvaziou na cabeça de Rebecca. O pó
branco se espalhou pelo cabelo e sua roupa.
Ela ofegou e pulou da cadeira.
— Ah não! —Abri os olhos arregalados. — Eu sinto muito. Os
adolescentes são muito desajeitados.
— Raf!
Raf? O que ele era, o poodle dela?
— Por que você não sai e me espera no carro, —disse Raphael.
— Mas ...
— No carro, Rebecca.
Ela saiu do escritório, fazendo beicinho. Os olhos de Raphael cintilaram
com um profundo brilho de rubi. Ele olhou para Ascanio, decidindo o que
deveria fazer com ele. O garoto abaixou a cabeça e não disse nada, seu olhar
firmemente fixado no chão.
Ascanio era um jovem metamorfo talentoso, mas eu lutei ao lado de
Raphael. Ele poderia passar por uma sala cheia de Ascanios em segundos e
não deixar nenhum deles vivo.
— Ascanio, —eu afundei tanta ameaça silenciosa na palavra que o
menino congelou, como se estivesse petrificado. — Seu alfa parecia que
precisava de ajuda?
A voz de Ascanio foi cortada. — Não senhora.
— Espere lá fora até eu te chamar.
Ascanio abriu a boca.
— Lado de fora. Fique no estacionamento dos fundos. Não fale com
Rebecca.
Ele fechou a mandíbula e saiu. Um momento depois, a porta dos fundos
se fechou.
Raphael tinha quebrado meu coração em pequenos fragmentos e eles
estavam me machucando. Nunca em todo o nosso tempo juntos ele tinha
sequer mencionado o noivado. E agora ele encontrara uma linda idiota de
cabeça vazia e ia se casar com ela. Porque ela? O que ela estava dando a ele
que eu não tinha dado?
A resposta veio a mim em uma explosão dolorosa. Ela estava lá por ele.
Eu não. Eu o afastei. Pensei que ele esperaria enquanto resolvia meus
problemas. Minha própria culpa.
Eu me inclinei para frente, minha voz firme. — Você está drogado?
— O que?
— Você fumou alguma coisa antes de decidir que era uma boa ideia
exibila na minha frente? Talvez você tenha comido cogumelos estranhos?
Ele sorriu para mim. Era um brilhante sorriso de Raphael, afiado como a
ponta de suas facas.
— Você sabe que eu poderia matá-la antes mesmo que você pudesse me
parar. —Disse olhando nos seus olhos.
— Nenhum perigo que isso acontecesse, —disse ele. — Isso significaria
que você teria que agir como uma metamorfo e todos sabemos que isso não
vai acontecer.
Ai!
— Minha memória deve estar com defeito. Não me lembro de você ser
tão cruel.
— As pessoas mudam, —disse ele. — Você esperava que todos parassem
suas vidas enquanto você estava tendo sua pequena festa de piedade? Eu
deveria sentar lá e esperar como um bom menino, até que você estivesse
resolvido tudo em sua cabeça?
Doía muito, eu estava começando a ficar dormente. — Eu não tranquei
minha porta. Meu telefone ainda funcionava. Se você quisesse entrar em
contato, você poderia ter feito.
— Por favor! Você acha que eu não tenho orgulho? Eu te amei, cuidei de
você, ofereci-lhe um lugar no Bando ao meu lado e você traiu tudo o que era
importante para mim. Como isso se resolveu para você, Andrea? Valeu a
pena?
Eu estremeci. — Não. Não valeu.
— Minha porta também não foi trancada.
Ele guardou tudo desde a noite em que lutamos. Agora tudo estava
saindo.
— Você me traiu, você deixou a Ordem te tratar como merda, e então se
escondeu em seu apartamento. Essa não era a Andrea que conheci. Eu pensei
que poderia contar com você. Pensei que você tivesse minhas costas. —Seu
rosto era uma máscara furiosa. — Eu teria feito qualquer coisa por você.
Eu teria feito qualquer coisa por ele também. Se tivesse sido ele naquela
casa do Clã dos Lobos, eu teria corrido lá tão rápido que toda a Ordem não
teria conseguido me impedir. Minha outra eu estava uivando nos meus
ouvidos, alto, tão alto ...
— Você cuspiu em tudo que sou. Escolheu os cavaleiros sobre o meu
povo, o que significa que você escolheu sua preciosa Ordem sobre mim.
Eu estava tremendo, esforçando-me para me conter. Meu corpo lutou para
neutralizar o estresse, me traindo.
— Vai me dizer qualquer coisa?
— Me perdoe, eu machuquei você.
— Um pedido de desculpas é pouco e é tarde demais. Estou cansado de
esperar que pare de fugir de quem você é. Você quer saber qual é a melhor
coisa sobre Rebecca?
Seus olhos eram puros rubis e eles queimavam. Eu estava pendurada por
um fio.
— Ela não é você.
Minha humanidade acabou e a outra se derramou.
Raphael olhou para mim, de repente em silêncio.
Os pedaços das minhas roupas tremulavam ao meu redor. Eu tinha essa
sensação curiosa de que estava assistindo tudo de algum ponto acima da
minha cabeça. Meus braços ainda estavam sobre a mesa, mas agora um pêlo
arenoso e macio, com manchas marrons espalhadas, cobria o músculo rígido.
Eu sabia como seria meu rosto: uma mistura de humano e hiena, com um
focinho escuro e meus olhos azuis e humanos acima dele.
A maioria dos metamorfos tinha duas formas, humana e animal. Os mais
talentosos de nós poderiam manter uma forma de guerreiro, a meio caminho
entre animal e humano. Eu não tinha uma forma animal. Havia apenas duas
escolhas: meu ser humano e minha outra eu, nem humano nem hiena, mas
uma estranha criatura no meio. Eu era uma bestial. Meu pai começou sua
vida como hiena, pegou o vírus Lyc-V e se transformou em humano. Por
isso, outros metamorfos me odiavam e alguns tentaram me matar por isso.
Eu me examinei sentada lá. Segurei esse meu lado por tanto tempo.
Tenho sido boa e correta por tanto tempo. Sempre fiz como foi esperado de
mim. Segui regras e regulamentos. Olha onde isso me levou? Ser boa tinha
me machucado.
— Eu não quis dizer isso, —disse Raphael.
Por que eu perdi todo o meu tempo fingindo ser alguém que eu não era?
Eu estava cansada, muito, muito cansada de me levantar das dificuldades da
vida sozinha. Agora me sentia ... certa. Eu me sentia livre. Não me sentia
assim desde que perdi o controle e dei um tapa na Tia B. Ela tinha me
derrubado em dois lances de escada, mas valeu a pena. Valeu muito a pena.
O que eu tenho a perder de qualquer maneira?
Respirei fundo e deixei a velha boa Andrea ir embora. Magia correu
através de mim, me deixando mais forte, mais firme. Aromas encheram meu
nariz, invadiram completamente minha boca e expandiram meus pulmões.
— Andrea?
Inclinei a cabeça e olhei para ele. Ele trouxe outra mulher para o meu
escritório. O que o fez pensar que eu iria suportar isso?
Abri minha boca e mostrei a ele meus dentes afiados. A maioria dos
metamorfos não conseguia falar em meia forma, mas eu não era a maioria dos
metamorfos.
— Você quis dizer cada palavra. Eu te disse que sentia muito. Eu assumi
a responsabilidade pelas minhas ações. Acabou agora.
Minha voz era mais profunda, permeada pelas notas ásperas de um
grunhido.
— Este escritório é meu território. Se você trouxer sua mulher aqui
novamente, considerarei um desafio.
Ele se inclinou para frente, inalando meu cheiro. Seu lábio superior
tremeu, traindo um flash de seus dentes. — Esteve estudando a lei do Bando?
Eu ri e ouvi uma estranha hiena gargalhar na minha voz. — Eu não tenho
que estudar. Eu conheço todas as leis.
— Então você sabe que não pode atacar um humano.
— Quem disse alguma coisa sobre atacar um humano? Se você trazê-la
aqui novamente, será sua culpa. Eu vou chutar a sua bunda e nem mesmo sua
mãe será capaz de me impedir.
Raphael se inclinou mais perto, seus olhos brilhando. — Promessas,
promessas, querida.
Eu estalei meus dentes para ele. — Eu não sou sua querida. Seu amor está
lá fora no estacionamento.
O começo de um rosnado reverberou em sua garganta, mas seus olhos
estavam confusos. Ele não sabia o que fazer comigo.
Eu queria morder alguma coisa. Queria rasgar e cortar coisas com minhas
garras e me livrar da minha mágoa. Queria que ele fosse embora. Mas se ele
fosse embora, teríamos que fazer isso de novo. Eu ainda tinha um trabalho a
fazer. Este filho da puta não me impediria disso. Eu pegaria as informações
que precisava e não deixaria que ele me incomodasse ainda mais.
Peguei a caneta com a mão com garras. — Acho seu cheiro perturbador.
Então vamos terminar com isso para que eu possa arejar o lugar e tirar você e
sua namorada da minha vida. O edifício Blue Heron. Como você comprou?
Ele olhou para mim.
— Temos quatro pessoas mortas. Seu povo. Tente se concentrar.
Raphael se inclinou para trás, me estudando. — Foi um leilão de lances
selados.
— Havia outros compradores?
— Sim. Era um prédio muito valioso.
— Você sabe quem eles eram? —Um leilão de lances selados significava
que cada um dos participantes enviava uma proposta confidencial para o
prédio, mas Raphael teria feito sua lição de casa e pesquisado outros
compradores para saber qual lance que daria contra eles.
— Eu posso dar-lhe os três primeiros, —disse ele.
— Sou todo ouvidos.
— Extração Bell. Kyle Bell está no ramo há muito tempo. Ele faz um
trabalho decente, mas é caro e lento. Eu geralmente posso oferecer menos que
ele.
Eu escrevi. — Qual é o seu relacionamento com ele?
Raphael deu de ombros. — Nós não gostamos um do outro.
— Ele estava ressentido que você superou ele?
— Kyle está em um estado permanente de ressentimento.
— Na sua opinião, ele iria apelar para assassinato?
Raphael sacudiu a cabeça. — Não. Kyle faz muito barulho e pisa ao
redor. Ele pode ser capaz de maltratar alguém, mas ele não iria entrar em
nada que exigisse ajuda externa, como cobras mágicas. Ele não confia em
ninguém.
Então Stefan já havia contado sobre minha visita. — Anotado. Próximo.
— Então há Jack Anapa da Input Enterprises. —Raphael se inclinou para
frente, descansando o antebraço na mesa. Seu cheiro estava raspando contra
mim como uma lixa fina. — Anapa é um idiota. Ele tem montanhas de
dinheiro e brinca com isso.
Eu olhei para ele. — Não gosta muito dele?
Raphael fez uma careta. — Ele brinca com o que ele quiser. Se envolveu
em construção, se interessou pelo transporte marítimo, agora quer a área de
extração. Ele vai ficar entediado e seguir em frente, para ele, é um jogo. Para
nós, é negócio.
— Ele estava chateado em perder a oferta?
— Inicialmente, ele ganhou, mas suas licenças legais não estavam
documentadas corretamente, então o prédio veio para mim como o segundo
maior lance. Um arranha-céu tem muito mercúrio. Está nos termostatos.
Quando um edifício cai, o mercúrio escorre para o fundo. Antes que você
possa recuperar um prédio, você tem que provar para a cidade ...
— Que você está qualificado para removê-lo com segurança, —concluí.
— Eu me lembro. —Eu estava com Raphael quando ele pediu as licenças. —
Você diria que Anapa é capaz de matar?
— Sim. Mas eu não acho que ele mataria meu pessoal. Ele não parece ter
motivação. Eu estava lá quando ele perdeu a licitação. Ele estava examinando
alguns papéis que seu assistente enfiou debaixo do nariz dele. Acenou com a
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mão e disse: — Sim, sim. C'est la vie . Ah, e ele me convidou para o
aniversário dele antes de sair.
Interessante. — O terceiro licitante?
— Garcia Construções. Eu conheço os Garcia há muito tempo. Eles
estavam no mercado há cerca de dez anos antes de eu começar. É uma
empresa operada por uma família. Eles fazem principalmente trabalhos de
extração de tamanho médio e não foram muito ambiciosos até cerca de dois
anos atrás, quando Ellis assumiu a empresa de seu pai. Foram muito rápidos e
compraram os direitos de um enorme complexo de apartamentos. —Raphael
fez outra careta.
— Era um prédio enorme. Eu não teria comprado isso.
— Muito caro?
— Não é muito caro para comprar, mas muito caro para extrair. A
maneira como ele caiu, você teria que deslocar uma tonelada de entulho antes
de chegar a qualquer coisa decente. Muitas horas de mão de obra. Ellis
começou em maio e em fevereiro do ano seguinte os Garcia ainda escavavam
quando uma secção do mesmo desmoronou. Matou sete trabalhadores.
Aparentemente, Ellis gastou todos os recursos no prédio e não pagou o
seguro. As companhias de seguros nos odeiam. Os Garcia fizeram a coisa
certa e pagaram os benefícios das mortes dos trabalhadores, de qualquer
maneira, do próprio bolso. A empresa faliu depois disso.
— Então, como eles poderiam pagar pelo Blue Heron? —Perguntei.
— A informação que corre é que eles conseguiram um investimento
substancial. Esta era a sua tentativa de retorno. Eles são pessoas decentes e
trabalhadoras, Andrea. Eles não matariam meus trabalhadores.
— Alguém fez, Raphael. E o vendedor?
— A cidade de Atlanta.
Isso era um beco sem saída, com certeza. — Você sabia sobre o cofre?
— Não. —Ele franziu o cenho. — Rianna, uma das guardas, acabou de
ter seu bebê há três meses. Era seu segundo dia de volta ao trabalho. Nick é o
marido dela. Você se lembra de Nick Moreau?
— Nick o carpinteiro? Aquele que refez nossa ... não, desculpe, sua
cozinha?
Raphael assentiu. — Sim.
Eu me lembrava de Nick. Ele contava piadas enquanto instalava os
gabinetes e me mostrava uma foto de sua esposa e me disse que ela era a
mulher mais maravilhosa da Terra. Ele disse que eles estavam tentando ter
um bebê e se fosse um menino, o chamariam de Rory, e se fosse uma menina,
a chamariam de Rory também.
Raphael o provocara sobre o nome da criança, que eles estavam
arrumando um bebê só para ser ridicularizado. Nick apontou seu martelo para
Raphael e disse que se ele quisesse nomear bebês, ele teria que fazer os seus
próprios.
— Foi uma menina? —Eu perguntei baixinho. — Bebê Rory?
— É um menino, —disse Raphael.
E agora a mãe dele estava morta. Eu pegaria esses bastardos. Eu os
encontraria e os faria pagar.
Levantei. — Obrigada pela sua cooperação. Já terminamos aqui. Eu te
informarei quando tiver alguma novidade. —Esta entrevista acabou. Saia do
meu escritório e da minha vida.
— Por favor, faça isso.
Raphael levantou-se e saiu.
O trabalho era a única coisa que me restava. Todo o resto se foi agora.
Encontraria os assassinos. Eu os encontraria nem que fosse a última coisa que
faria. Tinha que fazer isso para evitar que eles matassem qualquer outra
pessoa, para oferecer às suas vítimas vingança e consolo, e acima de tudo
tinha que fazer isso para provar a mim mesma que eu ainda valia alguma
coisa.
Peguei uma lista telefônica e localizei os três endereços dos licitantes.
Seu perfume ainda estava aqui. Rosnei com isso, mas ele se recusou a
desaparecer.
A mágoa e a frustração borbulhavam em mim. Eu estava muito agitada,
minha pele estava muito tensa, e eu queria atirar em algo só para desabafar
toda a dor que estava fervendo por dentro.
Então Raphael me substituiu por uma idiota de quase dois metros de
altura, e daí? Boa viagem. Eu estava melhor sozinha.
A porta dos fundos se abriu com um leve rangido. Ascanio entrou no
escritório e congelou.
— O quê? —Eu perguntei.
Ele abriu a boca, os olhos arregalados.
— Fale!
— Seios, —disse ele.
Metamorfos femininos não tinham seios na forma de guerreiro. Não havia
necessidade para eles. Elas tinham peito achatados ou tinham fileiras de tetas.
Eu tinha seios. Eles estavam cobertos de pêlo, mas eram seios femininos
adultos reconhecíveis.
— Não é a primeira vez que você vê um par de seios, não é?
— Hum. Não.
— Então, aja como se você não estivesse vendo nada aqui.
Ascanio fechou a boca com um clique.
— Não teste Raphael, —eu disse a ele. — Se você fizer isso, ele vai
cortar você em pedaços pequenos e deixá-los em uma pilha bonita no chão.
—Eu decidi que gostava da minha voz animal. Era mais profunda, mais
poderosa e soava melhor. Um tipo de monstro feminino atraente.
— Ah, acho que não. —Ele me deu um olhar impregnado de arrogância
adolescente. — Acho que posso com Raphael.
— Não, você não pode. Já lutamos com um cachorro do tamanho de uma
casa de dois andares. Raphael arrancou uma de suas cabeças.
Ascanio piscou. — Uma?
— Ele tinha três. —Levantei-me e tirei uma muda de roupa da minha
bolsa. Minha outra eu tinha um corpo maior, mas minha camiseta de mangas
compridas era de malha que se esticava. Vesti e coloquei minhas calças. Elas
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pareciam capris agora e estavam apertados em minhas panturrilhas. —
Estou saindo.
— Desse jeito?
Puxei minha faca e cortei a bainha da minha calça. Muito melhor. —
Quem vai me impedir?
— Mas você não está em forma humana.
Sim, e eu estava cansada de ter vergonha de quem eu era. Olhei para ele
por um longo momento. — Se eu mudar de volta para humana, vou precisar
de um cochilo. Eu não tenho tempo para sonecas. Se alguém tiver um
problema com a minha aparência, foda-se.
— Uhh ...
— E pare de parecer tão escandalizado. Eu cobri meus seios, não foi?
— Mas eu ainda sei que eles estão lá. Eu os vi.
— Guarde na memória. —Peguei minha bolsa fora da mesa.
Ascanio pulou na frente da porta. — Posso ir com você?
— Não.
Ele agitou seus cílios para mim. — Vou ficar muito quieto.
— Não.
— Andrea, estou cansado de ficar preso aqui sozinho. Por favor, por
favor, por favor, posso ir com você? Vou me comportar.
Ele ficou confinado no escritório nas últimas semanas, no começo era
porque estava ferido, mas depois era porque queríamos mantê-lo assim.
— Eu vou procurar por um assassino. Se você vier comigo, vai se
machucar quando nos depararmos com problemas no caminho. E então terei
que ter uma conversa muito desagradável com a Tia B, que será assim: —
Você não vai se juntar ao Clã Bouda, você terminou com o meu filho e
deixou que aquele menino precioso se machucasse.
Ascanio pegou minha mesa com uma das mãos e segurou a um metro do
chão.
— Não são com os seus músculos que eu estou preocupada. É o seu
cérebro. Ou falta dele.
Ele colocou a mesa no chão. — Por favor, Andrea.
Ele estava ficando louco e fazendo exercícios com a vassoura. Eu poderia
entender. Já estive assim também.
— Você pode dirigir? —Se eu empurrasse todo o meu assento para trás,
me encaixaria no jipe, mas dirigir com meu pé tamanho quarenta e quatro e
garras de oito centímetros seria um desafio.
— As pessoas navegam vampiros? Claro que posso dirigir.
— Bom.
Ele pulou no ar.
— Preste atenção, enquanto estiver comigo, você estará atuando como
representante da nossa empresa. Isso significa que será respeitoso e educado.
Se algum idiota te insultar, você vai chamá-lo de senhor. Mesmo que você
tenha que jogá-lo no chão e quebrar suas pernas, você ainda o chamará de
senhor enquanto estiver fazendo isso. Você segue meu exemplo e segue
minhas ordens. Isso significa não tomar a iniciativa e começar as lutas sem o
meu comando expresso. Você me entendeu?
— Sim senhora.
— Excelente. Vá pegar sua faca.
Ele correu para a sala de suprimentos e saiu com uma faca de bowie
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tática em uma bainha em seu cinto. O bowie, era um modelo exclusivo da
Associação dos Mercenários, ostentava uma lâmina preta de quarenta
centímetros e pesava quase dois quilos. Você poderia cortar pequenas árvores
com ela. Isso seria suficiente.
— Vamos.
Ele hesitou. — Carrie e Deb estão em nosso estacionamento. Eu as vi da
janela.
Fui para os fundos e olhei com cuidado pela janela. Duas boudas
esperavam por nós no meu jipe. A da esquerda, Carrie, uma mulher alta, de
aparência italiana, com pouco mais de 40 anos e cabelos escuros na altura dos
ombros, encostada no veículo, com as mãos nos bolsos do jeans. Com pele
morena, Carrie tinha uma espécie de dureza crua sobre ela que dizia que você
teria que rasgar os seus braços antes que ela parasse de vir atrás de você.
Deb, sua companheira, era cerca de dez anos mais nova, mais suave, seu
rosto mais redondo e uns cinco centímetros mais baixa. Seus cabelos ruivos,
cortados em um corte leve e despreocupado, destacava seu rosto bronzeado.
Seus olhos castanhos cheios de humor. Ela quebrava facilmente e geralmente
ia para o intestino em uma briga.
A Tia B usava-as para trabalhos leves de fiscalização. Aquela velha puta
estava nisso de novo. Tia B e eu nunca mais nos encontramos. Ela me ajudou
uma vez durante o surto, quando a magia me fez perder o controle sobre o
meu corpo, mas esse foi o único momento de bondade que eu já tinha visto
dela.
— O que vocês duas estão fazendo aqui? —Murmurei para mim mesma.
— Talvez elas tenham alguns panfletos que salvem nossas almas e nos
certifiquem de que estamos corretos nos caminhos do Senhor, —disse
Ascanio.
— As senhoras gentis da igreja vieram de novo aqui?
Ele assentiu. — Perguntei-lhes se um homem morresse e então a esposa
viúva decidisse se casar novamente, e os três se encontrassem mais tarde no
céu, seria um pecado para eles fazerem um trio, já que todos eram casados
aos olhos de Deus? E então elas lembraram que estavam atrasadas para outro
compromisso e saíram daqui correndo.
Um pouco de conhecimento era uma coisa muito perigosa.
No estacionamento, Deb cruzou os braços e chutou uma pedra pequena.
Ela saiu para a nossa vista como se tivesse sido disparado de um canhão. Deb
assistiu, estremeceu e se escondeu atrás do jipe. Carrie sacudiu a cabeça.
Qualquer metamorfo no território do bando tinha três dias para
apresentar-se ao bando, dessa forma eles obteriam uma permissão de
visitante, permitindo que eles realizassem seus negócios, ou eles pediriam
para se juntar ao grupo ou eram convidados a sair. Enquanto eu estava na
Ordem, a Tia B não fez nenhum movimento para me levar ao rebanho. Eu
pensei que ela não queria causar um problema com os Cavaleiros. Descobri
que estava errada, ela me deixou em paz porque Raphael tinha uma queda por
mim e então nos tornamos um casal. No momento em que nos separamos, ela
veio atrás de mim como um tubarão.
A Tia B queria que eu jogasse bola, se juntasse ao Clã Bouda e fosse uma
de suas garotas. Eu estive em um clã bouda uma vez.
Não, obrigada.
— Poderíamos sair pela porta da frente, —disse Ascanio.
Elas pensavam que poderiam me intimidar. Bem, deveriam ter trazido
muito mais pessoas, porque a boazinha Andrea não existe mais. — De jeito
nenhum. Nós estamos saindo pelos fundos. Aconteça o que acontecer, fique
fora disso ou eu nunca mais levo você comigo para qualquer lugar.
— Sim senhora.
Marchei pela porta dos fundos.
As boudas me observaram, pele e tudo. Seus olhos se arregalaram.
— Onde diabos você pensa que está indo assim? —Perguntou Carrie.
Coisa errada a dizer. Errada, coisa errada a dizer. — Onde diabos eu
quiser, com licença.
— Não entendi. —Carrie balançou a cabeça. — Você está tentando
provocar a Tia B? O que, sua vida é muito boa e você precisa de um pouco de
miséria?
Eu sorri para elas. Vejam os dentes? Observem bem, vocês vão vê-los de
perto, se não forem cuidadosas. — Posso ajudá-las, senhoras?
— Claro, —disse Carrie. — Você pode nos dizer como foi o encontro
entre você e Raphael.
— E por que eu faria isso?
— Porque a Tia B quer saber, —disse Deb.
Elas devem ter tentado ouvir, mas antes de Kate conseguir este escritório,
o mesmo Jim que me colocou neste caso o remodelou. Eu não sabia o que ele
colocava nas paredes, mas o lugar era à prova de som.
— Tia B está espionando seu próprio filho agora? —Eu perguntei.
— Isso não é da sua conta, —disse Carrie. — Olha, nós podemos seguir o
Plano A, onde todas temos uma boa conversa e seguiremos caminhos
separados, ou podemos fazer o Plano B, onde temos uma conversa mais
vigorosa e te pressionamos um pouco até você sentir vontade de
compartilhar. De qualquer forma, a Tia B vai conseguir o que quer.
— Que tal o Plano C? —Perguntei.
— Que plano seria esse? —Deb perguntou.
— Aquele onde vocês vão se foder. —Um rosnado rastejou em minha
voz. — Você vem aqui para o meu território e acha que pode me ameaçar?
Bem, vamos lá. Ameacem. Veja o que vocês podem pegar.
Deb piscou.
— Foda-se, sua cadela estúpida, —Carrie rosnou. — Você quer uma
lição, eu vou te dar uma.
O corpo de Carrie fluiu em uma nova forma: meio humano, meio animal,
envolto em pele esticada. Feixes grossos de músculos amarravam seu enorme
pescoço, apoiando sua cabeça redonda com mandíbulas gigantes e um
conjunto de presas afiadas encharcadas de baba. O músculo continuou a se
enrolar entre as omoplatas, formando uma protuberância. Um bíceps colossal
alimentava seus braços, a rede de veias saltando através de sua pele. Seus pés
e mãos tinham garras de oito centímetros que despedaçariam carne como uma
faca cortando uma fruta madura. Ela parecia com o material que os pesadelos
eram feitos. Se você não conhecesse melhor.
Eu dei alguns passos para frente, então teria muito espaço para manobrar.
Meu pêlo era proporcional: meus membros estavam devidamente formados,
minhas mandíbulas se encaixavam em um focinho limpo e, embora minhas
mãos e pés estivessem grandes e armados de garras, meus dedos não
estavam deformados. Manter essa forma não exigia nenhum esforço da minha
parte. Mas Carrie era um metamorfo comum e sua forma de guerreiro estava
no lado instável. Seus bíceps enormes saltavam de seus braços longos
demais, limitando seu movimento, enquanto suas pernas curtas mal tinham
carne suficiente para sustentar sua estrutura pesada. Ela se curvou, porque sua
coluna se encaixava em sua pélvis em um ângulo, e nenhum chute eficaz
estaria vindo em minha direção. Ela não se especializou em combate, o que
significava que lutaria como qualquer outro metamorfo civil: garras, dentes,
nada extravagante. Bom o suficiente para rasgar a maioria dos humanos
normais em pedaços.
Ao lado dela, Deb levantou os braços. Nenhuma forma de guerreiro, mas
ela era boa no boxe.
Os olhos de Carrie me encararam, brilhando com a luz de rubi. Ela pesava
muito mais do que eu e pensava que a luta estava ganha.
Dentro da minha cabeça, a voz esganiçada de Michelle zombava na
profundidade das minhas memórias: — Acerte-a novamente, Candy. Bata
nessa vadia bestial. Ela merece.
Nunca mais.
Carrie me atacou. Ela trovejou pela calçada e se lançou para mim,
passando com o braço direito na diagonal e para baixo, tentando cortar meu
peito. Eu me inclinei para trás. Suas garras cortaram o ar, a um centímetro do
meu peito. Eu peguei seu pulso, puxei seu enorme braço em linha reta e
esmaguei a palma da minha mão na parte de trás do seu cotovelo. A
cartilagem rangeu, a articulação estalou, deslocou-se e o braço dela inclinou-
se para o lado errado, com o cotovelo do avesso. Carrie uivou e caiu sobre
um joelho, a perna direita dobrada, a esquerda quase no chão. Eu pisei na sua
panturrilha. Afundei todo o poder do meu quadril e bumbum para dentro
dele. Como ser atingido por uma britadeira. A perna não teve chance. Carrie
gritou quando o osso se partiu.
Deb sacudiu seu corpo, de pé de lado, tentando se proteger o máximo que
podia. Suas mãos estavam levantadas, enroladas em punhos.
Dei um passo, girei e martelei uma rodada na parte de trás da coxa dela.
Minha canela bateu em sua perna.
Seu joelho dobrou, sua coxa repentinamente impotente. Ela engasgou,
baixando a guarda, e eu me virei, dando um soco e coloquei um golpe
arrasador ao lado de sua cabeça.
O golpe a derrubou. Ela voou, rolou e bateu na parede de pedra ao lado
do estacionamento. Nunca mais. Nenhum metamorfo iria bater em mim
novamente, nunca mais me enrolaria em uma bola no chão tentando me
proteger.
Especialmente algum bouda.
Carrie estava deitada de bruços na calçada, tremendo. A dor deve ter sido
demais e o Lyc-V a fechou enquanto fazia reparos. Deb gemia fracamente
próxima a parede. Ascanio ainda estava junto à porta, os olhos arregalados, o
rosto envolto em choque e algo suspeitosamente parecido com admiração.
Fui até Deb, peguei o cabelo dela e puxei seu rosto para cima. Ela olhou
para mim, seus olhos aterrorizados.
— Agora você me escuta, —eu disse. — Você diz a Tia B que vou até o
clã quando eu estiver bem e pronta. E se eu pegar você no meu local de
trabalho ou perto do meu apartamento, você vai se arrepender.
Eu a soltei e me endireitei. — Ascanio! Eu preciso desse motor
funcionando.
Ele correu para o jipe e começou a cantar. Quinze minutos depois,
saímos do estacionamento. Quando nós viramos, vi Deb se levantar e
cambalear até Carrie. Para melhor ou pior, ela entregaria minha
mensagem. Eu tinha certeza disso.

Capítulo 4
A Extrações Bell estava sediada em um robusto prédio de tijolos à beira
de um grande pátio industrial no lado sudoeste de Atlanta, todas as ruínas
feias rodeadas por uma vegetação viva. A natureza travou um ataque
implacável à cidade. As pessoas a queimava e a cortava, e ainda assim ela
voltava, alimentada por magia e crescendo mais rápido do que nunca.
Ascanio estacionou e não se incomodou em desligar o motor. Seria
preciso muita cantoria para religá-lo e considerando a pata, símbolo do
Bando, estampada na porta do carro e o fato de que eu saí dele mostrando
minhas garras e dentes, não haveria ninguém burro o suficiente para tentar
roubá-lo.
Ascanio e eu marchamos pelas portas da frente.
Uma recepcionista apressada levantou a cabeça dos papéis em sua mesa e
pulou um pouco em seu assento. Ela era de meia-idade e seu cabelo tinha
sido tingido de uma cor estranhamente vermelha.
— Bom dia, —eu disse, sorrindo.
Ela empurrou a cadeira para trás o máximo possível.
— Estamos aqui em nome do Bando para conversar com Kyle Bell.
— Ele está em um local de extração, —disse a recepcionista. Seus olhos
me disseram que ela iria responder qualquer pergunta apenas para nos tirar do
seu escritório.
— Onde é esse local?
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Ela engoliu em seco. — O extremo leste do Inman Yard .
Não ouvir isso. — Você quis dizer no Zoológico de Vidro?
A recepcionista assentiu. — Sim.
— Obrigada pela sua cooperação, senhora.
Voltamos para o nosso jipe.
— Kyle Bell é corajoso ou realmente muito estúpido. Provavelmente
ambos.
— Por quê? —Perguntou Ascanio.
— Porque fazer qualquer tipo de extração no zoológico de Vidro é
suicida. Especialmente com a magia. Também é ilegal. E agora temos que
48
passar pelo Burnout para chegar lá. Eu odeio o Burnout. É deprimente.
Voltamos ao nosso jipe.
— Pegue a direita, depois entre a direita novamente. Precisamos entrar na
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Hollowell Parkway e virar à esquerda.
— Qual o problema do Zoológico de Vidro? —Perguntou Ascanio,
dirigindo o jipe para fora do estacionamento.
Até onde eu sabia, o Zoológico de Vidro estava fora dos limites para
pessoas aventureiras com menos de dezoito anos. Por um bom motivo
também. — Você verá.
Quando a estrada subiu para o norte, a paisagem mudou. As ruínas de
armazéns e a vegetação ficaram para trás. Em torno de nós, velhas cascas de
casas queimadas se curvavam, acentuadas por pontos ocasionais de
vegetação.
Ficar presa no escritório da Ordem me deixou com muito tempo livre,
então li guias e me familiarizei com os mapas da cidade. No meu tempo livre,
corria por bairros aleatórios de Atlanta, na possibilidade de ter que visitá-los
em uma necessidade profissional. Meus guias mencionavam que anos atrás
um incêndio devastador varreu a parte oeste de Atlanta, removendo os bairros
50
residenciais mais antigos ao norte da 402 . O fogo laranja intenso queimou
de forma não natural durante quase uma semana apesar das fortes chuvas e de
muitas tentativas para apagar. Quando finalmente terminou, a terra havia
perdido sua capacidade de sustentar a vida das plantas. Em outras partes de
Atlanta, qualquer ponto de terreno fértil era imediatamente reivindicada pela
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vegetação que crescia como se estivesse tomado esteroides . O Burnout
permaneceu livre de ervas daninhas por uma década. As plantas finalmente
52 53
voltaram, kudzu cobria uma parede em ruínas aqui e ali, e dentes-de-leão
amarelos brilhantes e dândis cor de sangue, os primos alterados pela magia
do dente-de-leão, apareciam entre os tijolos caídos.
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Alguns meses atrás, durante o verão indiano , Raphael e eu fizemos um
piquenique sob um carvalho gigante em um campo fora da cidade. Eu sempre
quis fazer um desses piqueniques de cinema com um pano xadrez vermelho e
branco e uma cesta de vime. Comemos frango frito, tomamos cerveja preta e
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Cream Soda e colocamos na nossa toalha de mesa. Eu havia colhido um
monte de dentes-de-leão e dândis cor de sangue e fiz dois arranjos de flores.
Isso parecia tão idiota agora. Por que diabos fiz isso? Como um idiota
boba de dez anos.
— Por que você não lutou com Rebecca? —Perguntou Ascanio. — Você
ganharia.
— Claro que eu venceria. Mesmo que ela cuspisse granadas e suasse
balas, eu venceria. Ela é humana. Eu sou uma metamorfo com dez anos de
experiência em combate e tenho um pouco do melhor treinamento de artes
marciais que alguém pode ter.
— Na natureza você tem que lutar contra a concorrência.
Na natureza, né? Eu já ouvi isso antes. — Na natureza, os filhotes de
hiena nascem com os olhos abertos e um conjunto completo de dentes. Eles
começam a lutar desde o momento em que saem da mãe. Eles cavam túneis
no covil, pequenos demais para os adultos passarem, e eles lutam lá. Cerca de
um a cada quatro deles não chegam a idade adulta. Então, se assim fosse
como a natureza e você tivesse um irmão gêmeo, teria que matar seu irmão
recém-nascido. Devemos jogar todos os bebês bouda em um cercadinho e
deixá-los morrer de fome até começarem a matar uns aos outros?
Ascanio franziu a testa. — Bem, não …
— Por que não? É a seleção natural. Assim como é na natureza. —Eu
enruguei meu nariz. — Boudas ama este argumento, porque lhes dá uma
desculpa para fazer todas as coisas erradas. ‘Sinto muito ter fodido sua irmã e
ter prendido meu pênis no seu pastor alemão. É da minha natureza. Eu
simplesmente não pude evitar’.
Ascanio bufou.
— Não seja assim, —eu disse a ele. — É raciocínio besta. Nós não somos
animais. Somos pessoas. E isso é uma coisa boa também, porque não foram
as hienas que conquistaram o mundo. E sim, eu sei que é irônico como o
inferno, já que estou toda pêlo e garras nesse momento, mas a parte humana
de mim ainda está no comando. Todos nós sabemos o que acontece quando o
animal começa a dirigir o show.
— Nós nos transformamos em loup, —disse Ascanio.
— Exatamente.
O lupismo era uma ameaça constante. Ela reivindicava quinze por cento
dos filhos de metamorfos, alguns ao nascer, alguns na adolescência, forçando
a matilha a exterminá-los de forma mais humana possível. Para as boudas, o
número era ainda maior, quase um quarto. Ambos os irmãos de Raphael
tinham ido a loup e Tia B teve que matá-los. É por isso que qualquer
adolescente sobrevivente no clã bouda era tratado como um tesouro.
Se eu tivesse bebês com Ra ... o pensamento se retorceu em mim como
uma faca na ferida. Não haveria pequenos bebês bouda. Nenhum Raphael.
Essa porta se fechou e eu precisava tirar ele da cabeça. Nesta vida você tem
sorte se tiver uma chance de felicidade e eu falhei com a minha. O fato de
que foi uma falha dos dois doía mais.
Esses sentimentos tinham que passar, como água de baixo da ponte.
— Mas ela é burra, —disse Ascanio. — Insultou a Tia B!
— E por isso devemos arrancar sua garganta? —Eu olhei para ele.
— Bem, não.
— Supondo que eu batesse nela. O que eu iria conseguir? Na natureza, os
animais lutam para demonstrar superioridade. Quanto mais poderoso você é,
melhor é o seu material genético. Animais mais fortes, bebês mais fortes,
uma melhor chance de sobrevivência. Raphael já sabe que eu sou uma
lutadora melhor que ela, mas ele a escolheu ao invés de mim, de qualquer
maneira. Isso é uma lição para você, quando você tiver a chance de ser feliz,
você aceita e trata a outra pessoa da maneira que ela merece ser tratada, não
tome as coisas como garantidas.
Dar conselhos era fácil. Viver os praticando era muito mais difícil.
Nós entramos a direita na bifurcação, indo mais para o norte. As casas
carbonizadas continuavam. À direita, um grande cartaz pregado a um posto
de telefone antigo gritava PERIGO em enormes letras vermelhas. Embaixo,
em letras pretas nítidas, estava escrito: IM-1: Área Mágica Infecciosa.
Não Entre!
Apenas Pessoal Autorizado.
Um segundo sinal menor sob o primeiro, escrito em um pedaço de
plástico com marcador permanente, lia:
Mantenha-se longe, seu idiota.
— Nós não vamos embora, não é? —Perguntou Ascanio.
— Não.
— Maravilha.
Passamos por outra casa queimada. À esquerda, um grande fragmento
azul-esverdeado projetava-se do chão em um ângulo. À direita, junto à
carcaça de metal de um caminhão, uma outra tira, azul-claro, aguardava o
tornozelo de alguém desavisado. Os primeiros sinais do zoológico.
Aqui e ali, mais fragmentos perfuravam o solo e, à distância, muito à
direita, um iceberg irregular erguia-se em um ângulo íngreme de seis metros
de altura, brilhando de verde e azul translúcido ao sol da manhã.
Ascanio apertou os olhos. — O que é isso?
— Vidro, —eu respondi.
— Mesmo?
— Sim.
— De onde veio?
Mais adiante icebergs se aglomeravam, formando uma geleira. — Alguns
são da área da Estação Hollowell. Antes da Mudança, Inman Yard costumava
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ser de responsabilidade da Norfolk Southern . Era enorme. Mais de sessenta
e cinco linhas ferroviárias, exclusivamente deles. Não só isso, mas as linhas
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da Tilford da CSX trabalhavam em conjunto. Juntos eles lidavam com mais
de cem linhas de trem por dia. Então eles construíram a Estação Hollowell.
Era para ser um terminal novo e supermoderno e a maior parte era de vidro.
Adivinhe o que aconteceu quando as ondas mágicas começaram a aparecer?
Ascanio sorriu. — Foi destruído.
— Sim, exatamente. Havia colinas de vidro por toda parte. As ondas
mágicas continuaram causando acidentes, mas a ferrovia continuava
funcionando. Nos meses seguintes, alguns funcionários da ferrovia
começaram a entender que as colinas de vidro estavam se multiplicando. Mas
os responsáveis pela ferrovia não deram muita atenção a isso. Então, durante
o segundo surto, criaturas saíram do vidro e mataram metade dos
trabalhadores da estrada de ferro.
— Que tipo de criaturas? —Ascanio perguntou.
— Ninguém sabe.
Os Flares, terríveis ondas mágicas, vinham uma vez a cada sete anos.
Coisas que eram impossíveis durante ondas mágicas normais tornavam-se
realidade durante um surto. A magia do Flare manteve-se por três dias
seguidos e depois desaparecia por um longo tempo, mas suas consequências
eram muitas vezes mortais.
— Eventualmente, os militares voltaram para recuperar o pátio. Havia
cerca de duzentos trens lá, e alguns deles estavam cheios de mercadorias. Os
soldados descobriram que o vidro havia se expandido e encapsulado os trens.
Quando eles tentaram quebrar os vidros, foram atacados por criaturas.
Ninguém nunca descobriu que tipos de criaturas eram, mas elas causaram
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várias vítimas. Finalmente, a MSDU desistiu e isolou o Inman Yard com
arame farpado. O vidro nunca parou de crescer. Os helicópteros ainda
voavam de vez em quando naquela época, um dos repórteres olhou para o
lugar de cima e o apelidou de Zoológico de Vidro.
À frente, dois icebergs se encontravam acima da estrada, fundidos em um
arco maciço. Passamos por baixo entrando em um labirinto de vidro. Picos de
verde, azul e branco se elevavam acima de nós, alguns conectados, alguns
separados, alguns turvos, outros perfeitamente transparentes. A luz ficou
azul-turquesa, como se estivéssemos debaixo d'água. Os penhascos de vidro
enchiam a estrada em ruínas, pintando o chão com sombras coloridas.
A parte de trás da minha cabeça coçava, os nervos formigavam, como se
algum atirador invisível tivesse me visto do alcance de seu rifle. Alguém
estava nos observando das profundezas geladas. Ascanio ficou em silêncio,
concentrado e tenso.
Ele sentiu também.
A estrada à nossa frente brilhava.
— Pare, —eu disse.
O jipe parou.
A montanha de vidro cruzava a estrada. Alguns metros antes de chegar ao
asfalto, ela se quebrou em um monte de cacos. Uma pilha idêntica do outro
lado. Extrações Bell deve ter explodido esses. Kyle Bell estava tentando
recuperar os trens. Só o metal valeria uma fortuna, para não mencionar o
conteúdo deles. Uma vez recuperado, ele teria que transportar o metal e
precisaria de uma estrada viável. O problema agora é que havia vidro
quebrado para todo lado.
Saí do veículo e fui para a frente, com cuidado para não pisar em nada
muito afiado. Meus pezinhos de besta eram resistentes e o Lyc-V fecharia
qualquer corte no momento em que fossem feitos, mas ainda assim doeria.
Ascanio me seguiu.
As lascas cobriam o asfalto, grandes lascas de vidro nas bordas e pó de
vidro esmagado no centro. Eu me agachei para ter uma visão melhor. O vidro
esmagado corria em duas linhas paralelas.
— Entre no carro, —eu disse. — Eles estão usando um trator ou uma
retroescavadeira. —O vidro iria cortar nossos pneus em pedaços. —
Estacione o jipe. Vamos a pé.
Escondemos o jipe atrás da montanha de vidro e desligamos o motor. O
silêncio repentino fez meus ouvidos zunirem.
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Peguei uma besta e um arco longo do veículo.
— Por que dois arcos, senhora? —Perguntou Ascanio, colocando um
súbito sotaque inglês em suas palavras.
— A besta tem mais poder, mas demora mais para recarregar. —Eu
amarrei o arco longo. — Às vezes você tem que atirar rápido. E você pode
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ficar dez minutos sem dar um de espertinho? —Peguei a aljava .
— Eu não sei, nunca tentei, senhora.
Sacudi a cabeça, tentando não rir das palhaçadas de Ascanio.
— Essas flechas vão fazer cocegas nos monstros, —Ascanio disse.
— Estas não vão. —Eu tirei uma e mostrei a ele o encantamento escrito
na ponta da flecha. Um dos magos da Unidade Militar de Defesa
Sobrenatural não era avesso ao trabalho clandestino. Ele era caro, mas valia a
pena. — Mas se você tiver dúvidas, por que não vai até ali? Vou atirar em
você e vamos descobrir se dói.
— Não, obrigado.
Peguei flechas de reposição e uma segunda aljava, entreguei a ele. —
Então cale a boca e leve isto.
Comecei a avançar em uma corrida fácil, contornando a estrada. Ascanio
seguiu alguns passos atrás. O vidro engolia todos os passos e nós deslizamos
como duas sombras.
Um lampejo de movimento apareceu no canto do meu olho. Algo se
agachou em cima da montanha de vidro à esquerda. Algo com uma longa
cauda que se escondia nas sombras. Continuei correndo, fingindo que não vi.
Não nos seguiu. Um rugido abafado anunciava que os motores de água
estavam sendo bem utilizados. Passamos por baixo de outra saliência de
vidro, paralela à estrada. À frente, a faixa de asfalto fez uma curva, rolando
através da abertura entre os reflexos da luz do sol no vidro. Reduzi a
velocidade e caminhei em pés silenciosos até a borda mais próxima do
iceberg, a cerca de quatro metros e meio do chão. Muito liso para escalar. Eu
me agachei, dobrei os joelhos e pulei. Minhas mãos pegaram a borda de
vidro, e eu me levantei. Ascanio saltou ao meu lado. Nós nos arrastamos ao
longo da borda até ao centro.
Uma grande área à nossa frente, cerca de meio campo de futebol. À
direita, o chão subia ligeiramente, a encosta cravejada de pedregulhos de
vidro verde-claro. Um grande abrigo de construção empoleirado no topo do
chão elevado, o tecido resistente esticado sobre uma moldura de alumínio. À
esquerda, uma confusão de cacos de vidro que se erguia e se curvava, mais
fundo no labirinto de vidro. O final de um vagão de cabeça para baixo no
meio dos cacos.
Um motor de água encantado estava próximo, ligando uma enorme
britadeira que dois trabalhadores da construção civil com capacetes de
segurança e escudos faciais completos apontavam para o vidro incrustado no
vagão do trem. Oito outros trabalhadores, envoltos em equipamentos de
proteção similares, golpeavam o vidro com martelos e picaretas de
mineração.
Três guardas se amontoavam ao redor do perímetro, cada um armado com
um facão. O mais próximo de nós, um homem alto, de ombros largos, de
trinta e poucos anos, parecia que não hesitaria em usar o dele. Com a magia,
as armas não disparariam, mas a segurança parecia muito fraca para uma
reivindicação no Zoológico de Vidro. Eles devem ter algum outro tipo de
segurança escondido.
— Você vê o que eles estão fazendo? —Murmurei para Ascanio.
— Eles estão tentando recuperar esse vagão, —disse ele. — Por que isso
é ilegal?
É o que eu quero saber.
— Não pertence a eles? —Continuou Ascanio.
— Tecnicamente a ferrovia abriu mão desse negócio, então esta é
propriedade abandonada. Tente novamente, o que eles estão fazendo?
— Eu não sei.
— Em que estamos pisando?
Ele olhou para a superfície turquesa sob nossos pés. — Vidro mágico.
— O que sabemos sobre isso?
— Nada, —ele disse.
— Exatamente. Nós não sabemos o que faz esse vidro crescer e não
sabemos o que o faria parar.
— Assim, qualquer coisa que eles tirarem daquele vagão poderia produzir
vidro, —disse Ascanio.
— Precisamente. Eles vão vender o que quer que consigam tirar daqui e
não dirão ao comprador onde o conseguiram. E quando outro Zoológico de
Vidro brotar em algum lugar, será tarde demais.
— Não deveríamos fazer alguma coisa sobre isso?
Eu levantei minha mão vazia. — Sem distintivo. Podemos denunciá-lo
quando saímos daqui e ver se o PAD quer fazer algo a respeito. —Além
disso, não era nosso trabalho denunciá-los e eu estava definitivamente me
livrando de qualquer sentimento de responsabilidade cívica. Não era
problema meu.
— Eles devem saber que o que estão fazendo é ilegal, —eu disse. — E
esta área é perigosa, então devem ter mais do que três brutamontes com facas
enormes. Devem ter alguma outra segurança que não estamos vendo. Esteja
pronto para qualquer surpresa.
Os olhos de Ascanio se iluminaram com um estranho brilho de rubi. —
Posso me transformar agora?
— Ainda não. —A mudança levava muita energia. Mude sua forma duas
vezes em rápida sucessão, e você teria que ter algum tempo de inatividade.
Eu precisava de Ascanio descansado e cheio de energia, o que significava que
se ele não iria mudar, me olhei rapidamente, eu teria que ficar desse jeito.
Nós saltamos da borda e descemos a estrada direto para o guarda. Ele viu
meu rosto e recuou — O que diabos você é?
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— Andrea Nash, —eu disse. — Este é meu sócio, Robin de Loxley .
Ascanio saudou fazendo uma reverência exagerada. Felizmente não
colocou para fora suas frases em Latim.
— Estou investigando um assassinato em nome do Bando. Preciso falar
com Kyle.
O homem olhou para mim. Isto estava claramente fora de seus deveres
normais.
— Você tem algum tipo de identificação?
Entreguei a ele minha identidade, uma cópia em miniatura da minha
licença de Investigadora Particular endossada pela secretária de Estado da
Geórgia com minha foto nela.
— Como eu sei que é você? —Ele perguntou.
— Porque eu mentiria?
Ele refletiu sobre isso. — Certo, você tem algo que diz que pertence ao
Bando?
Ascanio tossiu um pouco.
Eu varri a mão da minha testa para o meu queixo, indicando o meu rosto.
— Parece que preciso provar que sou do Bando?
O guarda me avaliou. — Certo, tudo bem. Venha comigo.
Nós o seguimos até a tenda. Parecia maior de perto, quase doze metros de
altura. Dentro, um homem de meia-idade examinava alguns gráficos ao lado
de uma oficina, um homem mais magro com cicatrizes de acne em um rosto
estreito. Ambos usavam capacetes.
O homem de meia idade olhou para cima. Baixo, bem musculoso, ele
poderia ter sido rápido em algum momento de sua juventude, mas agora
provavelmente não era. Parecia um daqueles homens da linha de defesa que
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ficam em frente ao quarterback no futebol americano, exceto que agora
estava um pouco acima do peso e a maioria de seus músculos agora se
escondia atrás de uma camada de gordura. Seu cabelo era cinza e curto, mas
seus olhos escuros eram afiados. Ele não parecia amigável. Tive a impressão
que ele parecia o tipo de cara que poderia ordenar a morte de metamorfos.
Kyle me deu uma olhada e se concentrou no guarda. — O que diabos é
isso?
— Algumas pessoas do Bando querem falar com você, —disse o guarda.
— Sobre um assassinato.
Kyle se inclinou para trás, seu rosto azedo. — Tony, você se lembra do
que disse da última vez? Eu te disse para deixar entrar qualquer idiota aqui?
O guarda estremeceu. — Não.
— Sim, eu não lembro disso também. Felipe, você se lembra disso?
— Não, —o homem mais alto disse.
— Isso foi o que eu pensei.
Tony fez uma pausa, obviamente confuso. — Então o que eu faço?
— Coloque-os para fora. Se eu quiser falar com qualquer vadia feia ou
criança idiota, eu vou te falar. —Kyle olhou de volta para seus documentos.
Tony colocou a mão no meu antebraço. — Vamos.
— Tire sua mão de mim, senhor.
O guarda me puxou. — Não faça isso difícil.
— Última chance. Tire sua mão de mim.
Kyle olhou para cima. Tony tentou me puxar de volta. Levantei meu
braço fortemente e lhe dei uma cotovelada no rosto. O golpe o derrubou.
Tony deixou cair o facão. Ele beijou o chão e se levantou. O sangue jorrou de
seu nariz, o cheiro perfurou-me como um tiro de adrenalina.
— Sente-se nele, —eu disse a Ascanio.
Ascanio aproximou-se de Tony, empurrou-o de volta para o chão, de
bruços e apoiou um joelho nas costas. — Não se mova, senhor.
Aprendeu direitinho. Eu me senti tão orgulhosa.
Tony tentou se levantar. — Saia de cima de mim!
— Não lute, ou serei forçado a quebrar o seu braço.
Cala a boca Tony.
Kyle olhou para mim. Atrás dele, Felipe cuidadosamente deu alguns
passos para trás.
— Nós podemos falar sobre os assassinatos agora. —Eu sorri.
— E se eu não estiver com vontade de falar?
— Eu vou fazer com que você fique com vontade, —disse. — Tive um
dia desagradável e quatro dos nossos estão mortos. Tenho sentido uma
imensa vontade de me divertir.
— Vocês metamorfos estão ficando ousados, —disse Kyle. — Vocês
acham que pode comer em qualquer lugar e se divertir como pessoas
decentes normais.
— De fato, eu posso. —Eu olhei para ele.
— Os garotos do PAD vão adorar, —disse Felipe, o homem mais alto
atrás de Kyle.
Há sim! Ele estava me ameaçando com policiais. — Os garotos do PAD
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não vão dar a mínima. Esta área é designada como IM-1 . Vocês estão
violando no mínimo duas leis municipais, uma estadual e duas do Estatuto
Federal. Qualquer coisa que vocês recuperar aqui estará contaminada com
magia de origem desconhecida. Tirá-lo daqui é punível com uma multa de
não mais do que duzentos mil dólares ou prisão por mais de dez anos, ou
ambos. Vender isso lhe dará mais algumas multas e um tempo na
penitenciária.
Kyle cruzou os braços. — Sério?
— A ganância é uma coisa terrível, —eu disse. — Quando você extrair
seu metal e o vender para um construtor, uma nova escola ou hospital na
cidade começará a brotar vidros para todo lado, eles virão atrás de vocês. Mas
nesse momento, isso não é problema meu. Estou aqui para fazer perguntas.
Responda-as e eu vou agradecer e ir embora. Tenham em mente que se vocês
me irritarem, eu vou massacrar todos vocês e ninguém vai dar a mínima.
E eu podia. Poderia apenas quebrar seus pescoços e ninguém nunca
saberia. Este era o Zoológico de Vidro e se alguém morresse aqui os policiais
pensariam que foram atacados por algum desconhecido. Agora isso sim é que
era um pensamento interessante.
Uma criatura entrou na tenda, andando de quatro. Costumava ser humano,
mas toda a gordura tinha sido sugada, substituída por um músculo duro e
nodoso, a pele esticada, parecia pintada. Sua cabeça era careca, como o resto
de sua estrutura repulsiva e os dois olhos vermelhos e febris de sede, me
observava como duas brasas ardentes. Suas mandíbulas enormes se
projetaram e, quando abriu a boca, vislumbrei duas presas curvadas.
Um vampiro. O fedor revoltante de mortos-vivos girou em torno de mim,
levantando meus pêlos em arrepios de desgosto instintivo.
Eca. Bem, isso explicava quem estava fazendo a segurança por aqui. Eles
tinham um morto-vivo protegendo-os. E onde havia um vampiro, havia um
navegador.
A infecção pelo patógeno Immortuus destruía a mente de um humano.
Nenhum conhecimento permanecia. Vampiros eram governados apenas por
instinto e esse instinto gritava: ‘Alimente-se!’ Eles não se reproduziam, não
raciocinavam, só caçavam. Qualquer coisa com pulso virava comida para
eles. Suas mentes em branco eram veículos perfeitos para necromantes.
Chamados de navegadores, ou Mestres dos Mortos, se tivessem talento e
educação, os necromantes pilotavam vampiros, conduzindo-os
telepaticamente, como carros controlados remotamente. Eles viam através
dos olhos do vampiro, eles ouviam através de seus ouvidos, e quando mortos-
vivos abriam sua boca, eram as palavras do navegador que saíram.
A maioria dos navegadores trabalhava para a Nação. A Nação e o Bando
existiam em um estado de trégua desconfortável, pairando à beira de uma
guerra total. Se a Nação estava executando a segurança deste local, minha
vida ficaria muito mais complicada.
Um homem seguia o vampiro. Ele usava jeans rasgados, uma camiseta
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preta que dizia MAKE MY DAY em letras vermelhas e ostentava dezenas
de anéis enfiados em várias partes do seu rosto. Ele poderia ser um dos
funcionários da Nação, mas era altamente improvável. Primeiro, diferente dos
Navegadores da Nação, ele seguiu seu vampiro em vez de ficar em algum
lugar do lado de fora, sendo discreto, puxando as cordas do morto-vivo com
sua mente. Segundo, os Navegadores da Nação se vestiam como se estivesse
participando de uma audiência perante a Suprema Corte. Eles usavam ternos
bem cortados, bons sapatos e estavam impecavelmente arrumados. Não, esse
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idiota tinha que ser um freelancer , o que significava que eu poderia matá-lo
sem consequências diplomáticas, se ele não me matasse primeiro.
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— Onde diabos você esteve, Envy ? —Kyle disse.
Eu olhei para ele. — Envy?
Ascanio deu uma gargalhada.
— É por aí, —disse Envy.
— Quero que eles desapareçam daqui, —disse Kyle. — Faça o seu
maldito trabalho.
O vampiro assobiou. Envy sorriu, mostrando dentes estragados.
Ascanio se preparou. — Posso mudar agora?
— Não. —Eu me virei, aproximando-me do facão.
Tony ainda preso ao chão, olhou para o navegador. — Você tem a chance
de ir embora. Aproveite.
— Posso matá-los? — Envy perguntou.
— Você pode fazer o que quiser, —Kyle disse a ele.
Eu tinha que fazer isso rápido. Entrar em uma briga mano-a-mano com
um vampiro podia acabar mal. Preferiria lutar com os músculos enfurecidos
de um urso. — Vá embora. Última chance.
Envy sorriu. — Reze, vadia.
— Você tem alguma ligação com a Nação?
— Porra, não.
— Resposta errada.
Lá fora, o vidro se despedaçou. Um grito rasgou o silêncio, um grito
doloroso de um homem experimentando o puro terror. Mais dois seguidos.
— Que diabos está acontecendo agora? —Kyle rosnou.
Nós saímos da tenda.
O vagão se abriu no topo, como uma lata de feijões podres, e criaturas
saíram, subindo em seu teto. Uma pele grossa de couro cinza-pálida cobria os
corpos largos e achatados, apoiados por seis musculosas pernas de urso. No
lugar de mãos, patas inclinavam em cada membro, e os dedos longos e hábeis
deles carregavam garras de marfim curtas, mas grossas. Uma carapaça
estreita corria ao longo de suas costas e, quando uma das criaturas se ergueu,
vi um escudo ósseo idêntico protegendo seu estômago e peito. A carapaça
terminava em uma cauda longa e segmentada como um ferrão de escorpião.
Eles tinham grandes cabeças redondas com mandíbulas felinas e fileiras
duplas de olhos minúsculos, colocados profundamente em suas órbitas. Os
olhos olhavam para a frente, não para o lado. Isso geralmente significava um
predador.
As bestas correram pela superfície lisa, aderindo ao vidro como se
tivessem cola nas palmas das patas. O maior deles tinha cerca de um metro e
oitenta de comprimento e parecia pesar uns cento e quarenta quilos. O menor
era do tamanho de um cachorro grande. Isso significava que alguns deles
eram bebês. Bebês famintos e furiosos.
Os trabalhadores recuaram, sacudindo suas ferramentas. Apenas uma rota
de fuga na plataforma de vidro e ficava do lado oposto, quase diretamente
atrás do vagão e das criaturas.
A horda de monstros se concentrava nas pessoas, observando-as com a
intensa atenção de predadores famintos que tentavam decidir se algo era
comida. A maior das criaturas levantou a cabeça. Suas mandíbulas largas se
abriram, revelando um pequeno conjunto de presas tortas. Comedores de
carne. Claro.
Os trabalhadores pararam de se mexer.
A maior besta olhava para as pessoas abaixo, virando para a esquerda,
para a direita, para a esquerda... Músculos agrupados em seus ombros
— Afastem-se, —Kyle gritou. — Não provoquem essas coisas. Envy, vá
lá.
— Em um minuto, —disse o navegador.
As feras saltaram, apontando para o centro da multidão. As pessoas se
espalharam, dividindo-se em dois grupos: oito pessoas mais próximas a nós
correram em direção à tenda, enquanto o dobro correram na direção oposta,
em direção à parede de vidro.
As feras perseguiram o grupo maior e mais distante. Um dos guardas, um
homem de pele muito escura, atacou. Uma das feras gritou, como uma
enorme coruja, e estalou os dentes. O guarda se esquivou, girou e cortou o
pescoço da fera. O facão cortou o osso e a cartilagem como um cutelo de
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carne .
A cabeça da fera caiu para o lado, meio cortada. O cheiro de sangue me
atingiu, amargo e revoltante. Meus instintos predatórios recuaram, o que quer
que fosse aquilo, não era bom comer.
A criatura cambaleou e caiu. Sangue escuro, grosso e marrom-ferrugem,
derramado sobre o vidro.
A horda de feras explodiu em assovios alarmados.
— Não são tão difíceis de matar, —Felipe disse a Kyle, o alívio em sua
voz.
O chão tremeu. As paredes do vagão explodiram. Um gigante se
espalhou, enorme, grotescamente musculoso, seus membros anteriores
pareciam troncos de árvores. Eu já vi um cachorro tão grande quanto uma
casa. Isso era maior. Era maior que a tenda onde estávamos. Como diabos
essa coisa se encaixou ali embaixo?
Kyle xingou.
A fera avistou o filhote morto, abriu a boca e berrou. Ela parecia
exatamente com seus bebês, exceto pela carapaça óssea que embainhava a
maior parte de sua face superior como se alguém tivesse puxado seu crânio
para fora e colocado sobre sua cara feia. Seus quatro olhos mal eram do
tamanho de bolas de pingue-pongue. Tentar atirar neles com uma flecha seria
muito difícil.
— Tudo bem, —disse Envy. — Estou fora.
Os olhos de Kyle se arregalaram. — Eu paguei a você, seu verme!
— Não o suficiente para isso, —disse Envy.
O vampiro agarrou-o, balançando o navegador sobre as costas e correu
para longe, saltando sobre as pessoas e evitando os animais e rapidamente
desapareceram na floresta de vidro.
O rosto de Kyle ficou roxo em um ataque de raiva súbita. Eu tentei
duramente não dizer nada.
Ignorando o rugido da fera mais velha, as criaturas se lançaram em
direção ao grupo maior.
Felipe agarrou meu braço. — Ajude-nos!
— Por quê? —Não sou mais funcionária pública. Não era mais meu
trabalho salvar todo idiota das consequências de sua própria estupidez. Eles
entraram no Zoológico de Vidro sozinhos, sabendo dos riscos. Por que eu
deveria colocar minha vida em perigo para as pessoas que tentaram me
atacar com um vampiro? Eu não devia nada a eles. Só tinha que pegar as
informações que eu precisava de Kyle e me certificar de que Ascanio e eu
saíssemos inteiros daqui.
As feras circulavam o grupo maior. Os trabalhadores abraçaram a parede
de vidro. Não demoraria muito até que uma das criaturas fosse corajosa o
suficiente e atacasse.
— Por favor! —Os olhos de Felipe estavam desesperados. — Meu filho
está lá embaixo.
E daí? Todo mundo era marido de alguém, esposa, filho de alguém,
alguém de Rory ...
Ah, merda.
Olhei para o rosto de Felipe e vi Nick estampado lá. Suas feições não
eram nada parecidas, mas foi exatamente assim que Nick deve ter parecido
quando soube que sua esposa estava morta. Felipe olhou para mim com os
olhos arregalados, desesperado e aterrorizado, o rosto afiado, como se
estivesse prestes a estremecer de dor e gritar. Cada ruga afundou em sua pele
como uma cicatriz. Todas as regras que a sociedade impunha aos homens,
todas as obrigações de ser corajoso, nunca entrar em pânico, lidar com a
dignidade obstinada, todas foram embora, porque ele estava prestes a perder
o filho. Estava desamparado. Ele me implorou pela vida de seu filho e eu
sabia que ele trocaria de lugar com o rapaz sem um momento de hesitação.
Eu não podia ficar parada lá e observá-lo enquanto ser morto. Isso não
fazia parte de mim. A pessoa que não socorreria aquele homem não era quem
eu era ou queria ser.
Tirei a aljava do meu ombro e entreguei a Ascanio. — Flecha!
Peguei uma flecha e posicionei em na palma da minha mão. Encaixei no
arco. — Vou atirar rápido. Tenha a próxima flecha pronta.
A estiquei no arco.
O animal mais corajoso saltou, apontando para o trabalhador mais
próximo.
O arco e a flecha cantaram juntos num dueto feliz e cruel. A ponta da
flecha cortou a garganta da criatura. A primeira fera caiu, assoviando,
tentando arrancar o cabo da flecha com a pata. A flecha tremeu.
Uma luz azul acendeu na ferida e a fera explodiu.
Estendi minha mão e Ascanio colocou outra flecha nela.
O segundo animal também foi atingido. Um momento depois, a segunda
explosão arremessou pedaços de carnes e ossos por todo o lado. Eu não tinha
tempo para assistir. Continuei atirando, rápido e preciso, enchendo o ar com
flechas.
As feras entraram em pânico. Elas correram para lá e para cá em meio a
seus irmãos explodindo, mordendo e arranhando um ao outro. A Fera Mãe
rugiu, batendo suas mandíbulas enormes sem parar, incapaz de descobrir o
que estava matando seus bebês.
— Corram! —Eu gritei.
Os trabalhadores vieram em nossa direção, correndo ao longo da parede.
Os animais os perseguiram. O ar assobiava em um refrão fatal, enquanto
minhas flechas encontravam os alvos.
Felipe pegou uma picareta das mãos de outro homem e correu em direção
ao grupo. Uma mulher à minha esquerda e o guarda Tony atacaram também,
juntamente com outros dois.
Uma das operárias, uma mulher pequena, tropeçou, caiu e escorregou
pelo declive de vidro. Duas feras caíram sobre ela, rasgando a mulher com
rosnados molhados e borbulhantes. Eu afundei duas flechas neles, mas já era
tarde demais.
A mulher gritou, um pequeno grito gutural que foi no meio. O sangue
encharcou o vidro. Um momento depois, a flecha detonou e partes humanas e
de animais choveram sobre o vidro em um dilúvio sangrento.
O primeiro trabalhador que corria chegou à tenda e desabou atrás de mim.
O resto chegou depois. Finalmente Felipe e o guarda de pele escura entraram,
ambos respingados com sangue.
A Fera Mãe virou-se para nós. Por fim encontrou o inimigo, não é?
— Se espalhem no perímetro! —Eu ordenei. — Hora de lutar por suas
vidas! Use o que vocês têm.
Os trabalhadores correram para formar uma linha.
O monstro abaixou a cabeça e eu vi uma fenda estreita em sua carapaça,
localizada entre os olhos dela.
Tecido rosa suave expandia-se e contraiu-se. Olá, alvo.
A besta balançou a cabeça novamente e gritou em minha direção. A onda
de som me atingiu como o rugido de um tornado. Eu teria que acabar com a
mãe-fera ou nenhum de nós sairia vivo.
— Posso mudar agora? —Perguntou Ascanio.
— Agora pode.
A pele de Ascanio se rompeu. Um poderoso músculo cobriu seu
esqueleto, a pele embainhou-o e um pêlo cinza-acastanhado brotou através
dele. Uma crina escura cresceu em sua cabeça e escorria pela parte de trás do
seu pescoço, sobre sua espinha. Listras pálidas cortavam seus membros
anteriores, terminando em garras de doze centímetros. Seu rosto, como seu
corpo, tornou-se uma mistura de hiena listrada e humano. Seus olhos
brilhavam de vermelho.
A Besta Mãe ergueu uma pata dianteira colossal e deu um passo à frente.
O chão tremeu.
O bouda ao meu lado abriu a boca e rugiu de volta, transformando a
gargalhada de Hiena em algo colossal. Meus pêlos do corpo se arrepiaram de
orgulho. Este é meu lindo garoto.
— Mantenha-a ocupada! —Eu gritei. — Faça com que o rosto dela esteja
à vista.
Ascanio saltou sobre as cabeças dos trabalhadores e correu para o
monstro. Ele despachou uma fera pequena do caminho. O gigante balançou
em sua direção.
Estiquei meu arco. Ainda não.
Ascanio jogou o braço em outra criatura, mandando-o para longe.
Ainda não. Um pouco mais de tempo.
O gigante se abaixou, rosnando.
Ainda não ...
Os dentes enormes estalaram em Ascanio. Ele se abaixou, escapando por
alguns centímetros.
Eu deixo a flecha ir. Ela cortou o ar, impulsionada tanto pela corda
quanto pela minha vontade, e atingiu direto na área desprotegida de sua
cabeça. Sim! Acertei em cheio!
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A flecha tremeu e explodiu. Sangue saiu das narinas do beemote . Ela
balançou a cabeça ... e atacou Ascanio. Ele saltou e saiu, bateu no vidro e
pulou atrás dela, cortando a perna do gigante com as garras.
Droga. Isso nem sequer a perturbou.
Ascanio, minhas flechas e nem facões não estavam causando danos
suficientes. Poderíamos cortar ela o dia todo, e não adiantaria grande coisa.
O gigante perseguiu Ascanio. O menino pulava para frente e para trás,
correndo como um coelho louco. Ele não poderia manter isso para sempre. Se
ao menos tivéssemos algo, alguma arma, alguma coisa ...
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O monstro balançou o rabo, bem em cima de uma pesada britadeira que
estava abandonada no vidro. Ainda estava presa ao tanque pela mangueira
que bombeava água para dentro dela. A mangueira era muito curta para
alcançar a fera.
Eu me virei para Felipe. — Será que funciona sem a mangueira?
Ele levou um segundo para entender a minha pergunta. — Sim! —Eu
levantei a mão dele, espalhando os dedos. — Cinco minutos.
Joguei meu arco e corri para a britadeira. Minhas patas escorregavam no
vidro molhado com sangue da fera. Deslizei, pulei, parei na britadeira e a
ergui do chão. Um bastardo pesado.
Uma perna monstruosa do tamanho de um tronco de árvore apareceu na
minha frente. Eu pulei e escalei a fera em direção a sua cabeça, puxando a
britadeira comigo. A maldita coisa devia pesar cento e cinquenta quilos, e eu
tinha que arrastá-la com uma mão. Meu braço direito parecia que ia ser
arrancado do meu corpo. Continuei escalando, cavando na pele do monstro
com a minha mão esquerda e minhas garras traseiras.
A criatura se moveu, perseguindo Ascanio. Seus músculos se arquearam
embaixo de mim. Agarrei-me a ela como uma pulga e subi um pouco mais.
Passei por cima do ombro e corri em direção à sua cabeça. Ela rugiu
novamente e eu plantei a britadeira bem na base de seu pescoço, o único
ponto desprotegido pela carapaça.
70
Liguei o botão ON da britadeira.
Nada.
Abaixo as pessoas gritavam alguma coisa. Tentei ouvir.
— Cante! Cante para começar a funcionar!
Aaaa, não acredito. Comecei a cantar, rezando para que isso funcionasse
mais rápido do que os nossos carros.
Ascanio correu pelo local de trabalho, ganhando tempo. Abaixo, os
monstros menores atacavam a linha de trabalhadores.
Funcione, eu desejei, continuei catando. Funcione sua ferramenta
estúpida.
Funcione.
Anda, vamos.
A britadeira estremeceu em minhas mãos. Enfiei minhas garras do pé nas
costas da fera e mergulhei a britadeira profundamente na carne do beemote. A
ponta cortante da britadeira entrou no músculo da criatura. Sangue quente
encharcou meus pés.
A besta uivou em agonia, me deixando surda com o som de sua tortura. A
britadeira entrou um pouco mais em seu corpo, e me agarrei a ela, afundando.
O gigante balançou como um cachorro molhado. Segurei a britadeira e a
empurrei cada vez mais fundo. Isso me sugou e meus braços afundaram em
carne molhada. Respirei fundo e então meu nariz e meu rosto entraram em
contato com mingau de sangue e tecido vivo. Pressão me aterrou. Eu ouvi um
som rítmico sem graça e percebi que era o coração da fera batendo ao meu
lado.
De repente, senti o peso total da britadeira nos meus braços. Eu cai.
A britadeira bateu no chão, destruída e acabei aterrissando em cima dela,
o cabo impactando infelizmente com a minha caixa torácica.
Eita! Isso me deu uma costela quebrada com certeza.
Acima de mim a besta tropeçou, um buraco vermelho no peito pingando
sangue e carne destruída.
Disparei para longe, corri pela minha vida.
A criatura balançou, bloqueando o sol, e caiu com um baque
ensurdecedor. O chão de vidro da clareira se espatifou do impacto. As
fraturas corriam do vidro quebrado para os icebergs de vidro translúcido. Por
uma fração de segundo nada se mexeu, e então pedaços gigantes de vidro
deslizaram das paredes e caíram, explodindo em estilhaços afiados como
navalhas.
Eu me joguei atrás do tanque de água encantada.
Ao meu redor, o vidro caia com explosões de trovão, como se eu
estivesse agachada no meio de um tiroteio. Fragmentos cortaram minha pele,
picando como um enxame de abelhas. Eu cheirei meu próprio sangue. O chão
tremeu.
Gradualmente, as explosões diminuíram. O silêncio reivindicou a clareira.
Eu me endireitei.
Onde está o garoto?
A tenda estava destruída, esmagada sob um pedaço de vidro âmbar do
tamanho de um SUV. Um homem estava chorando, com a perna cortada. As
pessoas saiam lentamente dos seus esconderijos. Eu examinei os
sobreviventes. Felipe estava abraçando um jovem. Pelo menos seu filho havia
sobrevivido.
Cadê Ascanio.
Por favor, que esteja vivo.
Uma alta gargalhada de hiena ecoou no espaço aberto. Eu virei. Ele
estava em cima da fera. Sangue encharcando seu pêlo. Sua boca de monstro
aberta em um sorriso alegre e psicótico.
Respirei fundo.
Aos poucos observei a situação. A Fera Mãe estava morta. Eu a tinha
matado. O gosto do sangue dela queimava na minha garganta, um buraco
negro profundo perfurava o chão sob os restos do vagão ferroviário. Deveria
ser seu covil subterrâneo. Ela havia criado sua ninhada lá, segura e longe de
todos, até que a equipe de Kyle invadiu sua toca.
Um desperdício tão horrível. Nada disso era necessário. No mínimo uma
pessoa havia morrido, muitas outras ficaram feridas, e essa grande e
magnífica fera e sua ninhada perderam a vida porque Kyle Bell queria ganhar
dinheiro rapidamente. Ele estava ao lado dos restos da tenda agora, braços
cruzados, latindo ordens.
Marchei até Kyle. Ele me viu, abriu a boca e eu deu uma surra nele. Os
golpes o derrubaram no chão. — Isto é culpa sua. Você trouxe essas pessoas
aqui. Você sabia que esse lugar era perigoso. —Eu o puxei para cima e o
girei em direção à fera morta. — Olhe! Pessoas morreram por sua causa.
Você entende isso? Se não fosse por você, eu não teria que matá-la. Ela
estava apenas protegendo seus filhotes.
— Ela tentou nos matar!
Eu dei um murro nele novamente. — Ela tentou te matar porque você
invadiu a casa dela.
Os trabalhadores ficaram em torno de nós, com os rostos sombrios.
Ninguém fez qualquer movimento para ajudar seu chefe.
Eu olhei para eles. — Tudo o que vocês extraírem aqui estará
contaminado. Estar nesse local é um crime. Tomar qualquer coisa desta zona
é um crime. Vocês precisam saber disso.
Kyle ficou abaixado, até que eu agarrei sua camisa e o puxei para cima,
com o rosto a dois centímetros do meu. — Vou perguntar isso apenas uma
vez. O que havia no cofre dos destroços do Blue Heron?
— Que cofre?
— Você responde a ela, —disse Felipe. — Você diz tudo o que ela quiser
saber agora.
— Eu não sei do que diabos essa cadela está falando.
— Se você não me responder, eu vou te matar. —Balancei-o, minhas
garras ensanguentadas manchando sua camisa com o sangue do beemoth. —
O que estava no cofre?
— Eu não sei! —Ele gritou. — Não sei nada sobre qualquer cofre! Juro!
— Você tem algo a ver com os assassinatos nos destroços do Blue
Heron? Me responda!
Suas pupilas dilataram e ele estava pendurado em minhas mãos,
completamente flácido, paralisado pelo medo. Ele não estava mentindo.
Pessoas em estado de completo pânico congelam ou correm. A Mãe Natureza
desliga suas faculdades mentais, então seus filhos favoritos não precisam
sentir sua própria morte. Kyle estava apavorado demais para formular uma
mentira. Ele realmente não tinha ideia do que eu estava falando.
Eu o deixei cair e olhei para sua tripulação. — Ele é todo seu. Vocês
precisam ir embora. Estou denunciando este local para o primeiro policial que
eu encontrar.
Peguei meu arco de volta, coloquei no ombro e fui embora. Ascanio
pulou da fera e se juntou a mim. Sua voz era um grunhido profundo, cortada
por seus dentes. — Issssso, foirrr incrrrrível.
— Isso foi uma tragédia. —As pessoas chegaram aqui primeiro do que
esses animais. Eu sabia disso, mas quando você se transforma em um animal,
sua perspectiva é um pouco diferente.
— Sim. Mas tudo acabou bem.
Ele era só um garoto. O que ele entendia?
— Não dessscobrimoss naadaa?
— Isso não é verdade. Nós descobrimos que Kyle Bell não tem nada a ver
com os assassinatos. Podemos eliminá-lo do nosso grupo de suspeitos. Está
com fome?
— Morrrreendo de fome.
— Ótimo. Vamos encontrar algo para comer.

Capítulo 5
71
A melhor coisa sobre o churrasco do Big Papaw era a sua salmoura . O
Big Papaw guardava seu segredo a sete chaves, mas havia muito pouco que
você poderia esconder das papilas gustativas de um metamorfo. Aquela
72
salmoura tinha cerveja de raiz , colorau, alho, pimenta e sal, e depois que as
costelas de porco ficavam de molho por pelo menos um dia, Papaw as jogava
na grelha com alguns pedaços de madeira de nogueira. Eu podia sentir o
cheiro a um quilômetro de distância, dois se o vento fosse mais forte, e isso
me fazia babar.
O restaurante estava localizado em um antigo posto de gasolina
abandonado, com grandes churrasqueiras na parte de trás, do lado de fora.
Parei o jipe no estacionamento, meus pés de besta eram menores do que as
enormes patas de forma de guerreiro de Ascanio, então tive que dirigir.
Ascanio e eu entramos no restaurante.
Colleen, a filha mais velha de Big Papaw, ocupava os balcões. Ela me
deu um olhar maligno e manteve uma mão debaixo do balcão, que eu resolvi
não levar para o lado pessoal. Quando duas criaturas peludas e ensopadas de
sangue entram no seu lugar, qualquer um fica alarmado.
Cavei minhas calças e tirei duas notas de vinte. — Ei, Colleen.
Precisamos de tantas costelas quanto isso puder comprar.
Colleen levantou as sobrancelhas. — Eu conheço você?
— Sou eu, Andrea. Você pode parar de acariciar a espingarda agora. Nós
não somos uma ameaça a nada, exceto ao seu churrasco.
Colleen piscou. — Andy? Eu não sabia que você era uma metamorfo.
E ninguém mais. — Surpresa, surpresa.
— Somosss inofenssssivoss, —assegurou Ascanio piscando e sorrindo,
mostrando seus dentes enormes.
Colleen estremeceu, catou meu dinheiro do balcão, foi até o fundo do
estabelecimento e voltou trazendo uma chapa de metal com três enormes
costelas empilhadas sobre ela.
Ascanio pegou a chapa.
— Obrigada, —eu disse. — Vamos comer no estacionamento e trazer a
chapa quando terminarmos. Não quero alarmar seus clientes.
— Agradeço.
Nós nos dirigimos para o estacionamento e sentamos na parede baixa de
tijolos ao redor, com a chapa de costelas entre nós. Ascanio olhou para a
carne. Está certo, garoto. Eu era uma alfa e qualquer criança aprendia logo
cedo que no Bando ninguém come até que seu alfa lhe dê permissão.
Rasguei a costela ao meio e dei-lhe um pedaço. Ele pegou e rasgou a
carne, esmagando os ossos. Mordi minhas costelas, meus dentes de hiena
esmagando o osso macio. O gosto doce explodiu na minha boca.
Humm ... Comida. Comida deliciosa. Tão faminta.
Nós comemos duas costelas antes que qualquer um de nós decidisse
desacelerar o suficiente para conversar.
— Poossooo faazerrr uumma perrrguuunta desaaagradáveeel? —
Perguntou Ascanio.
Pensei em lembrá-lo de que ele prometera se comportar, mas depois de
tudo o que passou hoje, ganhou algum direito. — Pergunte.
73
— Como vocccccê se torrrrrnou uma bestial ?
Ele tinha que fazer essa pergunta, não é? Chupei um osso, ganhando
tempo. Dizer ao garoto que eu era muito covarde para falar sobre isso não era
uma opção. — Vamos pegar o Bando de Atlanta. Sete clãs, cada um separado
por tipo de metamorfo. Dentro dos clãs você tem uma estrutura hierárquica.
No topo estão os alfas, depois os betas, depois outras pessoas encarregadas de
coisas diferentes nomeadas pelos alfas. Os próprios alfas compõem o
Concelho, que é liderado pelo Senhor das Feras e pela Consorte. Para o
metamorfo comum, existem todos os tipos de proteções no Bando. Tem um
problema com alguém ou alguém está abusando de você, você pode levá-lo a
cadeia de comando todo o caminho até Curran e você será tratado de forma
justa. Você pode não gostar da decisão, mas será justa.
Ascanio assentiu.
— Jovens como você não sabem disso, mas esse tipo de estrutura é bem
recente. Curran só está no poder há cerca de quinze anos. Antes disso, cada
clã estava por conta própria, e alguns, como o Clã Lobo ou o Clã Rato, eram
divididos em pequenos bandos individuais. Cada bando refletia os valores de
seu alfa. Se o alfa era um idiota abusivo, você não poderia fazer muito para se
proteger.
Eu dei a ele outro pedaço de costela. — Minha mãe era uma metamorfa
de primeira geração. Ela cresceu em uma pequena fazenda no sul de
Oklahoma com sua mãe e seu pai. Um dia, um loup bouda entrou em sua
fazenda. Ele matou os cavalos, matou meu avô e atacou minha mãe e minha
avó. Minha mãe tinha quatorze anos e nunca tinha visto uma hiena antes,
muito menos um metamorfo hiena. Minha avó matou o loup, mas depois ela
mesma foi a loup. Minha mãe se escondeu no abrigo de tempestade no
subsolo. Quando os xerifes chegaram à fazenda, minha avó cavara um buraco
de quase dois metros de profundidade, tentando tirar minha mãe para matá-la.
Eles colocaram balas de prata em seu cérebro muito rápido.
— Então minha mãe tinha quatorze anos, sozinha, e não sabia nada sobre
ser uma metamorfa. Os xerifes fizeram algumas chamadas e descobriram que
havia um pequeno bando de bouda no leste do Texas. O alfa era do sexo
feminino e ela foi muito legal no telefone. Ela até se ofereceu para encontrá-
los no meio do caminho e tirar a pobre menina das mãos deles. Então eles
foram embora e entregaram minha mãe e os vinte mil dólares que sobraram
do seguro de vida de meus avós para Clarissa. Ignoraram toda a burocracia
dos Serviços Sociais para Crianças órfãs e entregaram sua guarda ao bando
de Clarissa. Eles pensaram que seria melhor para todos dessa forma.
Eu deixei meus ossos na chapa. — Clarissa era uma cadela sádica. Ela
não era loup, mas estava muito perto de ficar. Ela amava torturar. Era a
melhor nisso. Sua própria vida foi miserável também. Ela e suas duas filhas,
Crystal e Candy, comandavam o bando de duas dúzias de boudas. Minha mãe
era pequena como eu. No primeiro dia em que ela chegou, Crystal bateu nela
e depois urinou em seu rosto. Depois disso tudo só piorou.
Ascanio olhou para mim, as costelas esquecidas em suas mãos.
— O melhor foi descobrir é que meu pai era um animal de estimação
exótico. A matilha ouviu rumores de um traficante de drogas que possuía
uma quantidade grande de predadores e estavam sendo exibidos. Por fim, a
polícia conseguiu prender o traficante e, três dias depois, meu pai saiu do
mato. O Lyc-V rouba pedaços de seu DNA hospedeiro e na maioria das vezes
a transfere o DNA de animal para humano. Para que meu pai existisse, o
vírus tinha que ter infectado um humano, roubado o seu DNA e depois
transferindo para meu pai que era um animal. Isso quase nunca acontece
porque as pessoas não correm por aí mordendo animais.
Quando um metamorfo, que se encontra na forma de seu animal, por
acaso encontra um animal selvagem do seu tipo, a maioria desses animais
selvagens preferem ficar longe. Um lobo de cinquenta quilos olha para um
metamorfo lobo de mais de cem quilos e rapidamente decidi que é melhor
correr para as montanhas.
— Ninguém sabe como meu pai conseguiu se infectar. Ele não tinha
capacidade cerebral suficiente para explicar o que aconteceu com ele.
Clarissa achou que meu pai era a coisa mais engraçada que conheceu. Elas
colocavam uma coleira com pontas de ferro nele e o exibia por aí enquanto
ele estava em sua forma humana. Ele não conseguia falar, exceto por um
punhado de palavras como ‘não’ e ‘faminto’. Era mentalmente deficiente.
Clarissa achou muito engraçado o fato dele ter violado minha mãe. Ele não
sabia o que estava fazendo. Só sabia que uma fêmea foi oferecida a ele, então
ele se acasalou. Minha mãe mal tinha dezesseis anos. Eu nasci nove meses
depois e elas começaram a me bater quando eu ainda era um bebê. Para
minha mãe, sua principal torturadora era Crystal. Para mim, foi Candy, a filha
mais nova de Clarissa.
— Suua mãaee nãooo teeentooou prrroteeegê-la?
— Tentou, mas elas se uniam e a atacava. Ela costumava a atrair atenção
quando elas vinham para mim, dessa forma minha mãe apanhava no meu
lugar. Elas diziam a minha mãe que se ela fosse embora, os humanos nos
matariam. Ela não tinha dinheiro e nem um lugar para onde ir. No meu
décimo primeiro aniversário, Candy e suas lacaias colocaram fogo em mim.
Minha mãe percebeu que, mais cedo ou mais tarde, elas me matariam. Assim
que me curei o suficiente para me mexer, minha mãe me agarrou e fugiu. Nós
andamos por todo o país fugindo. Elas nunca nos encontraram.
Uma lembrança brilhou diante de mim, minha mãe e eu nos
aconchegando no banheiro em algum quarto de hotel, envolto em um
cobertor, nós duas tremendo de medo porque algum ruído estranho nos
lembrou a voz de Clarissa.
— Eeuu nãooo prretendia faazerr voocccê sse lembrarrr diiisso tuuudo.
— Eu sei. Termine sua comida.
Ele olhou para as costelas. — Nnnãaao eeesstooouuu maaaisss ccccom
foomeee.
— Está tudo bem, —eu disse a ele. — Não desperdice sua comida.
Ele mordeu a costela. — Vvvocêee jjáaa vvvoooltooou láaa?
Eu sorri para ele. — O que você acha?
Ele piscou.
— Aconteceu uma coisa muito interessante com esse bando, —eu disse.
— Alguns anos atrás, alguém foi até ele e o limpou da face da Terra.
Desconfiou que deve ter sido algum bom atirador, porque a maioria delas
foram baleadas a distância. Tiros muito certeiros, com balas de prata. —
Inclinei-me e toquei um ponto na base de seu crânio cerca de um centímetro
abaixo do lóbulo da orelha. — Bulbo. Também conhecido como medula
74
oblonga . É uma área do cérebro que controla funções involuntárias:
respiração, frequência cardíaca, digestão. É o único lugar no corpo do
metamorfo que garante a morte instantânea quando atingido por uma bala de
prata. Alvo muito pequeno. —Eu segurei meus dedos a pouco mais de dois
centímetros de distância. — Minúsculo. É preciso muita prática.
Os olhos de Ascanio estavam enormes em seu rosto de bouda.
Nem todo mundo teve uma morte rápida. Algumas foram mais pessoais.
Nem todos morreram também. Haviam ainda lá quatro crianças pequenas do
sexo masculino, duas meninas e um menino adolescentes que estavam
acorrentados. A próxima geração, novas vítimas do terno amor e cuidado de
Clarissa e de suas filhas.
— O qqquee acooonttteceeeu ccomm ssseuu ppai?
— Ele morreu cerca de dois anos depois que fugimos. Ele era uma hiena
e elas só vivem cerca de doze anos na natureza. Ele provavelmente viveu o
dobro disso. Se você acabou de comer, precisamos ir embora.
Ele pulou da parede.
Limpamos o rosto com a toalha guardada no jipe, devolvemos a chapa ao
restaurante e saímos.
— Paraa onde vamosss agoraa? —Perguntou Ascanio.
— Garcia Construções. —Eu duvidava muito que poderíamos até mesmo
entrar no escritório do Anapa em nossas formas atuais.
Garcia Construções tinha um endereço no lado leste da cidade, no
emaranhado de ruas recém-renomeadas, e levamos uma boa hora e meia para
encontrá-lo. O prédio ficava muito atrás de uma enorme cerca de arame, mas
o portão estava bem aberto. Estacionamos na rua e caminhamos para a
direita. O cascalho rangia sob minhas patas. Eu realmente odiava cascalho.
Era afiado, ficava preso entre os dedos dos pés e não fornecia exatamente
uma superfície estável.
Sujeira e lixo aleatórios cobriam o terreno de cascalho antes da estrutura.
O prédio em si não era nada especial: construído pós-mudança, com a magia
em mente. Apenas uma caixa de tijolos, com janelas empoeiradas e uma
porta gradeada, uma casa padrão para um mundo onde monstros surgiam do
nada e tentavam invadir sua casa para comer você. Outro cerca de arame à
direita do prédio e também aberto, levava ao terreno dos fundos. O lugar
cheirava abandonado: esquilos, o cheiro de urina de um gato à espreita,
excremento de cachorro se decompondo ao sol, ratos do mato. Nenhum odor
humano. Estranho.
Corri meus dedos ao longo da tábua de madeira pregada na porta dupla.
Poeira acumulada.
— Essstão fechadosss, —observou Ascanio.
— Parece que sim. Ou o prédio Blue Heron era seu grande retorno aos
negócios e eles não recontrataram ninguém até que conseguissem um novo
contrato, ou ...
— Ouuu?
— Ou alguém contratou-os especificamente para explorar o Blue Heron
e, quando o negócio não deu certo, o cliente os abandonou. Vamos lá, vamos
cavar o lixo deles.
— Oh garoto!
Espertinho.
A lixeira perto da cerca não nos deu nenhuma informação nova. Não
estava exatamente vazio também. No momento em que levantamos a tampa,
uma mamãe gambá muito chateada apontou sua bunda para nós e largamos a
tampa imediatamente.
Estúpido mês de maio, todo mundo estava tendo bebês.
Fui verificar a caixa de correio, enquanto Ascanio explorava os fundos. A
caixa de metal estava vazia. Nenhuma correspondência. Ummm.
— Eeeuu encontrei allllguma coiiiisa! —Ascanio gritou.
Caminhei para os fundos. O espaço estreito entre o prédio e a cerca abriu-
se em um enorme terreno, cheio de lixo aleatório de metal. Criaturas
minúsculas, confusas e rápidas, com longas caudas de chinchila, deslizavam
sobre o lixo. O cascalho estava desigual. Parecia que algo tinha sido arrastado
por ele.
Ascanio me cumprimentou pelas costas, segurando um pneu furado, com
um pedaço de metal cortante encaixado nele. Ele enfiou o pneu debaixo do
meu nariz. O aroma de lubrificante automotivo subiu. Fresco. O lubrificante
de carro mudava seu aroma com o passar do tempo ao ar livre. Este tinha um
cheiro recente.
Alguém tinha dirigido para cá, provavelmente, durante a última semana,
não mais do que dez dias atrás, com certeza. Levantei o pneu. Não foi apenas
um furo, deve ter explodido. O veículo ao qual esse pneu pertencia não foi
muito longe. Eu olhei de volta para as marcas de arrasto. Alguém foi
rebocado. Essa era a explicação mais provável.
A poeira acumulada na tábua que bloqueava a porta tinha meses que
estava ali. Magia quebrava a maioria dos telefones celulares, se você tinha
um, é porque provavelmente você estava no exército. Então, como essa
pessoa conseguiu sair dessa situação com o seu pneu furado? Como ele
chamou um reboque?
Eu corri para a rua, com Ascanio nos meus calcanhares. Duzentos metros
75
adiante, uma placa alta anunciava o Downs Motor Care . Arrá!
Eu apontei para o sinal. — Isso seria uma pista.
Ascanio, ao meu lado, deu uma gargalhada que parecia ter saído de um
pesadelo.
Nós caminhamos para Downs Motor Care, que consistia em um
estacionamento repleto de peças de carro e cheio de carcaças de carros
velhos, vários modelos de ambos motores, mecânicos e mágicos. Uma grande
garagem de metal estava na parte de trás. Duas das quatro portas da garagem
estavam abertas. Na primeira porta, um homem debruçado sob o capô de um
76
caminhão Dodge .
— Tarde! —Eu cumprimentei.
O homem se virou, nos viu e bateu a cabeça no capô do Dodge. Ele era
jovem, em boa forma, com um rosto que parecia que alguma coisa o
mastigou do lado esquerdo e o cuspiu.
O mecânico segurou uma grande chave de uma mesa próxima. — O que
vocês querem?
Eu segurei vinte dólares. Seis meses atrás eu mostraria minha
identificação da Ordem. Ele ficaria instantaneamente à vontade e eu teria
conseguido minhas informações sem problemas. Mas nos últimos dois meses
de trabalho com Kate. Aprendi que no setor privado pagava-se pelas
respostas às suas perguntas. Isso me irritava, mas eu precisava encontrar o
assassino.
— Procurando por uma informação, senhor, —eu disse.
Ascanio mostrou-lhe o pneu.
O mecânico nos estudou por um longo momento. — Coloque o dinheiro
no chão. Prenda-o com uma pedra e não chegue mais perto.
Eu provavelmente deveria repensar essa coisa de andar por aí em forma
de animal, especialmente se eu continuasse a precisar me sujar de sangue.
Todas as minhas testemunhas pareciam perturbadas com isso.
Coloquei os vinte sob a pedra. — Você rebocou alguém da Garcia
Construction na última semana ou um pouco mais?
O mecânico encostou a chave no peito dele. — Sim.
— Quem era?
— Uma mulher.
— Ela era alguém conhecido dos Garcia?
Ele balançou sua cabeça. — Nunca a vi antes.
— Como ela era?
Ele franziu a testa. — Cerca de quarenta anos, bem vestida, bons sapatos.
Elegante. Parecia uma empresária para mim.
— Ela mencionou o nome dela ou o que ela estava fazendo lá?
— Não. Troquei o pneu, ela me pagou e foi isso.
— Como ela pagou?
— Me deu um cheque.
Eu pisquei para ele algumas vezes, antes de me lembrar de que meus
cílios tremeluzentes não caiam bem na minha forma atual. — Você pegou um
cheque de uma mulher que você não conhecia?
— Era um cheque do negócio dela. Eu liguei para o banco, eles disseram
que tinha fundo.
— Que tipo de negócio?
— Não me lembro, —disse ele. — Loja de alguma coisa. Alguma coisa
com arte.
Interessante. — Alguma chance de você encontrar esse cheque?
— Eu tenho trabalho a fazer, —disse ele. — Estou ocupado.
Mostrei-lhe um cartão, abaixei-me e coloquei debaixo da pedra. — Se
acontecer de encontrar o cheque, há outros cinquenta dólares para você. O
endereço e o número de telefone estão no cartão.
— Vou ver, —disse ele. — Como eu disse, estou ocupado.
— Obrigada pelo seu tempo.
Eu saí.
— Agggooora o que fareeemoss? —Perguntou Ascanio.
— Agora vamos para o escritório e tomaremos um banho.

Eu estava sentada no escritório, com meus pés de pele de besta na mesa e


77
uma latinha de chá gelado da Georgia Peach , feito sob medida para mim
pela Burt’s Liquor, onde fiz uma parada estratégica antes de chegar ao
escritório.
Do lado de fora da janela gradeada, a noite escurecia o céu para um roxo
profundo. Ascanio estava atrás, tentando se limpar no chuveiro do escritório.
Ele tirou uma soneca no caminho de volta para cá, então eu esperava que ele
emergisse em sua forma humana e, pelo menos, semiconsciente.
Bebi meu chá. Somando tudo foi um dia produtivo. Muita emoção.
Passos. Contorci minha orelha redonda e peluda, ouvindo. Passos leves,
passos seguros ... Kate.
A porta se abriu e Kate entrou. Seus jeans e camiseta estavam salpicados
de sangue e ela carregava uma cabeça de vampiro decepada. A camiseta tinha
uma carinha sorridente.
Em meu estado natural não-bronzeado minha pele era muito clara. Se
você me colocasse em um quarto escuro como breu, meu rosto
provavelmente se iluminaria como a lua. É por isso que eu cultivei um hábito
ficar exposta de vez enquanto no sol, que resultou em uma leve formação de
pigmento na minha pele. Eu gostava de chamar isso de castanho dourado.
Minha empresa favorita de cosméticos, a Sorcière, que tinha uma tendência
ligeiramente canibalista de nomear as todos os tons das suas bases com nome
de comida, o meu tom bronzeado era ‘Creme’.
Creme era apenas um par de tom mais escuros do que o claríssimo
‘Leite’. Se eu realmente me bronzear com vontade, poderia chegar até no tom
‘Baunilha vermelha’, o que significava bege claro. Ebaaa.
Kate precisaria de ‘Mel escuro’ no mínimo. Eu sabia disso porque
algumas semanas atrás tive que explicar a ela o que era corretivo e por que
ela não podia usá-lo sozinho na estranha erupção de pele que tivemos depois
de limpar algumas porcarias estranhas de rato em um antigo armazém.
Colocar corretivo e base em Kate acabou sendo uma proposta perdedora,
porque depois dos primeiros cinco minutos a maquiagem a incomodou e ela
ficou esfregando o rosto até parecer um palhaço pintado no escuro.
Seu cabelo, preso em uma longa trança, era castanho chocolate e seus
olhos também eram escuros, emoldurados por cílios grandes, grossos e
negros, ligeiramente alongados com cantos curvos. A primeira vez que a vi,
eu a observei tentando descobrir qual diabos era a sua ascendência. Havia
traços da Índia ali, ou talvez da Arábia, ou talvez um toque da Ásia. Ela podia
ser de qualquer lugar, dependendo da maquiagem, que raramente usava.
À primeira vista você olhava para Kate e pensava ‘lutadora’, talvez
mercenária. Cinco centímetros mais alta que eu, ela era toda atlética, bem,
com alguns peitos de respeito, mas principalmente músculos. Se movia como
uma predadora e, quando ficava irritada, exalava agressividade, como o hálito
quente em uma noite de inverno. Ainda assim, os homens dobravam seus
pescoços para olhá-la, até que viam seus olhos. Os olhos de Kate eram
loucos. Era aquela loucura escondida que dizia que você não tinha ideia do
que diabos ela faria a seguir, mas o que quer que fosse, os caras maus não
iam gostar.
Kate olhou para mim por um longo segundo. — Ei.
Eu a saudei com minha latinha. — Ei.
Kate foi até a cozinha, pegou um prato de cerâmica debaixo da pia,
colocou a cabeça do vampiro dentro, colocou na geladeira e lavou as mãos.
Ela voltou, tirou a bainha de suas costas com a espada ainda dentro, pendurou
na minha cadeira de cliente e se jogou nela.
— O que você está bebendo?
— Georgia Peach. Chá gelado. Quer um pouco? —Ofereci a ela com
minhas garras.
— Claro. —Ela tomou um gole e tossiu com uma careta. — Do que
diabos é isso?
78
He, he, he. Fraquinha. — Vodka, gim, rum, açúcar, limão, e schnapps
de pêssego. Muitos schnapps de pêssego.
— Você realmente fica bêbada com isso?
— Mais ou menos. —O Lyc-V tornava muito difícil ficar bêbada. —
Dura cerca de trinta segundos ou um pouco mais e então ... preciso de outro
gole.
Kate se recostou na cadeira. — Onde está a maldição da minha
existência?
— No chuveiro, refrescando-se.
— Oh Deus, o que Ascanio fez agora?
— Não, não, ele estava coberto de sangue.
— Oh bom. —Ela suspirou e parou. — O garoto está coberto de sangue e
estamos aliviadas. Há algo errado com a gente.
— Nem me diga. —Tomei outro gole. — Não vai mencionar a minha
aparência de pele de hiena?
— Eu gostei, —disse ela. — As calças rasgadas e a camiseta manchada
de sangue são um toque agradável.
Eu mexi meus dedos dos pés. — Eu estava pensando em pintar minhas
garras com um tom delicado de rosa.
Kate olhou para os meus pés. — Isso precisaria de muito esmalte. E
quanto a alguns brincos dourados em suas orelhas?
Sorri abertamente. — É uma possibilidade definitiva.
— O que aconteceu? —Kate perguntou.
— Eu vi Raphael esta manhã. Liguei para ele ontem à noite, porque Jim
me colocou no caso dos assassinatos de metamorfos e eu precisava
entrevistá-lo. Queria uma chance para me desculpar.
Kate pegou minha latinha e bebeu dela. — Como foi?
— Ele me substituiu.
A latinha parou na mão de Kate, oito centímetros acima da mesa. — Ele o
quê?
— Ele encontrou outra garota. Ela tem dois metros de altura, seios do
tamanho de melões, pernas compridas, cabelo loiro descolorido até a bunda, e
sua cintura é desse tamanho assim. —Toquei minhas garras do indicador e
polegar fazendo um círculo. — Eles estão empenhados em se comprometer.
— Ele a trouxe aqui?
— Ela se sentou naquela cadeira bem ali. —Apontei para a outra cadeira
do cliente. — Estou pensando em queimá-la.
Kate colocou a latinha na mesa. — Você deu um soco nele?
— Não. —Tomei um longo gole. O álcool queimou minha língua. —
Depois que ele me disse que a melhor qualidade de sua nova namorada é que
ela não era eu, não parecia que um soco faria qualquer diferença.
— Ela é uma metamorfo?
Balancei a cabeça. — Uma humana. Não é uma lutadora. Não tem um
cérebro brilhante também. Eu sei o que você vai dizer, é minha culpa.
— Bem, você saiu da vida dele sem dar explicação, —disse Kate. — Saiu
da minha vida também por um tempo.
— Sim, sim. —Respirei fundo. Não havia o que fazer para acabar com a
dor agora. Nenhuma escapatória. A dor se instalou no meu peito e raspava em
mim com pequenas garras afiadas.
— Você vai lutar por ele? —Kate perguntou.
Olhei para ela. — O que?
— Você vai lutar por ele, ou você vai dar as costas e desistir?
— Olha quem está falando. Quanto tempo você e Curran ficaram
brigados depois daquela bagunça do jantar? Foram três semanas ou mais um
mês?
Kate arqueou a sobrancelha esquerda. — Isso foi diferente. Foi um mal-
entendido.
— Aha.
— Raphael trouxe seu novo caso aqui depois que você o chamou com
uma oferta de paz. Isso é um tapa na cara.
— Você não precisa me dizer isso. Eu sei. —Rosnei profundamente na
minha garganta.
— Então, o que você vai fazer sobre isso?
— Eu ainda não decidi.
— Nada vem de graça, —disse Kate. — Se você quiser, terá que lutar por
isso.
Vindo de uma mulher que havia lutado contra 22 metamorfos para ficar
ao lado de Curran, isso era uma afirmação baseada na experiência.
— Estou pensando sobre isso. —Pensando se eu queria lutar por Raphael.
O que ele fez para mim foi cruel. Me machucou e eu queria vingança mais do
que qualquer outra coisa. Mas, ao mesmo tempo, quem era eu para ficar no
caminho de sua nova felicidade? O que quer que Rebecca estivesse lhe
dando, ele claramente precisava disso, do contrário não teria feito planos para
um noivado. — Como foi o seu dia?
79
— Eu tenho um pouco de cabeça . É de vampiro, mas ainda assim valeu
a pena.
Eu olhei para ela. Kate era a última pessoa que eu esperava fazer essa
piada. Bem, alguém estava solta desde o acasalamento. — Que bom, hein.
— Sim.
— Eu tenho um cadáver de monstro de vidro para você. Está no freezer.
Kate deu um sorriso enlouquecido. — Você não precisava ter ...
— É um pagamento por aguentar minha ruptura psicótica.
Um motor de carro rugiu do lado de fora.
— Essa é a minha carona, —disse Kate.
A porta se abriu e Curran entrou todo o caminho. Musculoso, construído
como se lutasse por sua vida todos os dias, o que não era muito longe da
verdade, Curran se movia como uma fera que sabia que estava no topo da
cadeia alimentar. Quando entrava em uma sala, ele era o dono da verdade e
podia ter certeza que se você discordasse, ele faria você mudar de opinião. A
julgar pelo respingo de sangue em sua camiseta, ele já tinha feito isso hoje.
Eu me levantei. É educado dar à monarquia o devido respeito. Se não
fizer isso, eles podem ficar irritados.
As grossas sobrancelhas loiras de Curran se franziram. Nós não nos
dávamos muito bem, principalmente porque eu complicava a vida dele. Uma
boa parte dos metamorfos mais velhos acreditava em matar bestiais, e minha
existência significava que ele teria que resolver esse preconceito mais cedo
ou mais tarde. Além disso, eu era metamorfo e não estava no Bando. Ele
conseguia ignorar esse fato, provavelmente porque Kate e eu éramos
melhores amigas. No entanto, passei o dia inteiro galopando pela cidade em
minha forma de animal. Ignorar-me não era mais uma opção.
Kate deu um passo ao lado dele e o beijou. Ele se virou para ela, olhando-
a completamente, como se estivessem sozinhos no quarto. Isso é o que o
acasalamento significava. Machucou mais um pouco. Havia um tempo em
que também tive isso.
— Espere, deixe-me pegar a cabeça do vampiro. —Kate foi para o fundo.
O Senhor das Feras olhou para mim. — Vejo que você decidiu quem
você quer ser.
— Estou trabalhando nisso.
— Vou te ver em alguns dias, então.
Se eu não me apresentasse em três dias ou fizesse algum tipo de acordo,
ele veria isso como um desafio aberto. Para me apresentar, eu teria que
engolir meu orgulho, deixar de lado as lembranças da minha infância
atormentada e voltar para a Tia B, uma bouda e a mulher que eu tinha dado
uma bofetada. A mulher que havia enviado duas boudas para me bater. Eu
teria que curvar minha cabeça e pedir desculpas e pedir para ser admitida em
seu clã.
Preferia comer sujeira.
— Espero que sim, —eu disse
— O Bando não é tão ruim, Andrea, —ele disse baixinho. — E lealdade
vai nos dois sentidos.
— Eu sei, —disse. — Eu só … sinto que falhei. —O que diabos que eu
estava fazendo tendo um coração para coração com o Senhor das Feras? —
Trabalhei tanto na minha carreira anterior. Juntar-me ao Bando é o último
prego nesse caixão.
— A única coisa em que você falhou foi fingir ser algo que você não é. E
você ficou impune por muito tempo. —Curran encolheu os ombros. —
Ninguém no Bando vai te julgar pelo que você é ou pelo pai que teve. Você
tem a minha palavra.
Ascanio entrou no quarto e baixou a cabeça. Normalmente Kate ou Derek
davam uma carona a Ascanio. Ele não tinha seu próprio veículo. Hoje ele
teria o privilégio da companhia de Curran. Eu não invejei sua carona.
Kate saiu da cozinha carregando um saco de plástico. Ela acenou para
mim e os três entraram na noite, fechando a porta atrás deles. O carro se
afastou.
Estava sozinha.
Sentei e limpei o resto do meu chá Georgia Peach em um único e longo
gole.
Para reescrever minha vida, eu tinha que assumir todas as escolhas que fiz
e lidar com as consequências delas. Poderia ir embora e começar de novo em
outro lugar. Seria o mais fácil. Muito mais fácil do que dobrar meu joelho
para minha nova cadela alfa e ver Raphael e sua noiva felizes e todos os clãs
reunidos.
Eu ri do pensamento. Soou muito amargo, então parei de pensar e fui para
o chuveiro em vez disso. A noite ainda era uma criança. Passava das seis e
meia. Poderia terminar meu chuveiro e examinar minhas provas mais um
pouco.
Desde o momento em que nasci, aprendi que tinha duas opções: lutar ou
morrer. Eu não era o tipo que esperaria a morte.
Atlanta me respeitaria. O bando me valorizaria. E Raphael ... Bem,
Raphael iria se arrepender de ter me substituído, porque eu provaria a
ele que eu era uma escolha muito melhor.

Capítulo 6
Acordei no armário Novamente.
Chutei meu cobertor em desgosto. Sonhei que estava sendo espancada. A
lembrança do sonho flutuou na minha frente, ainda viva. Era meu décimo
primeiro aniversário, e as boudas mais velhas haviam me perseguido em uma
antiga loja de equipamentos agrícolas. Eu me escondi em um tambor de
80
metal, o tipo usado para alimentar os porcos . Elas me acharam, despejaram
querosene no tambor e me incendiaram.
Eu me lembrava do cheiro do meu cabelo queimando.
Puxei meus joelhos para o meu peito. Meu sonho não era apenas um
pesadelo, era uma memória real. Passei anos tentando esquecê-lo, mas o
estresse e toda a conversa com Ascanio deve ter feito isso ressurgir em meu
subconsciente. Eu me aproximei e toquei a parede do armário para me
lembrar que o sonho tinha acabado. A pintura polida parecia fria em meus
dedos. Desde que ando fazendo frequentemente visitas ao meu armário,
talvez eu devesse me mudar para cá de vez.
Instalar um banheiro, uma pia, fazer meu próprio covil ... não.
O dia estava começando do lado de fora. Era hora de continuar com a
vida. Eu precisava me vestir e visitar o escritório do Anapa. Na minha forma
humana. Pelo menos a magia estava de folga. Se eu ficasse irritada,
conseguiria me manter na pele humana, pelo menos.
Saí do armário. Do lado de fora da minha janela, passando pelas grades,
espessas nuvens cinzentas entupiam o céu, prometendo chuva.
Ao fundo do céu cinzento, montanhas de entulhos que um dia foram altos
edifícios agora não passavam de seus esqueletos escuros e retorcidos,
enfeitados com plantas verdes teimosamente tentando conquistar a cidade em
ruínas. À margem do cemitério do distrito comercial, brotavam novas
construções, construções robustas de madeira e pedra, não mais do que quatro
andares e construídas por pedreiros experientes. Mãos humanas, sem
máquinas.
Ao longe, as sirenes da polícia soavam. Apenas mais uma manhã
divertida na Atlanta pós-mudança.
Fiquei na frente do espelho no banheiro. A mulher que olhava para mim
parecia mais aguçada do que ela tinha sido ontem. Mais significante. Mais
forte. Muito ameaçadora para a maioria das coisas no meu guarda-roupa.
Normalmente eu usava jeans, calça cáqui, camisas brancas. Traje profissional
leve, com o objetivo de inspirar confiança e comunicar segurança aos
possíveis solicitantes para a assistência da Ordem. O lema era confiança, e
não ameaça.
Estava cansada de não ser ameaçadora. Tinha que haver algo no meu
armário que se encaixasse a nova eu.

A Input Enterprises ficava no sudeste, na Phoenix Street. Apesar das


condições arruinadas dos quarteirões vizinhos, está rua estava limpa de lixo e
entulhos, casas novinhas em folha ao longo de ambos os lados, como
soldados em desfile. Deve ter havido muito dinheiro por trás desse projeto de
reconstrução, porque as casas tinham sido enfeitadas com bom gosto com
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cornijas e suportes decorativos. Até as barras nas janelas das sacadas eram
elegantemente ornamentadas, com formas onduladas de metal. A área
claramente estava fazendo uma tentativa de se tornar um distrito comercial
respeitável.
Eu estacionei o Jeep em um lote pequeno e caminhei, olhando para os
números do prédio. O céu nublado finalmente decidi chorar no meu ombro. A
água da chuva tornava o asfalto escuro. Era bom que eu estava usando um
chapéu.
Quando encontrei o número certo, em vez de um prédio, vi um arco de
pedra com uma placa que dizia INPUT ENTERPRISES na parede, com uma
seta apontando para dentro do arco. Bem.
Andei pelo túnel longo e estreito e emergi em um espaço amplo. Um
grande pátio se estendia à minha frente, toda de pedra cor de areia, com
vegetação confinada a estreitos canteiros de flores retangulares, correndo em
duas linhas na direção do prédio nos fundos. A estrutura subia três andares,
mas os três andares eram superdimensionados, empurrando a altura do prédio
para um nível perigoso. Mais meio metro e a magia tomariam conhecimento
dele.
Na parte principal da estrutura ficava um escritório moderno: vidro, aço e
pedra branca imaculada, lisa e elegante. O topo do prédio de repente
mudava a sua estrutura e se transformava em uma cúpula de vidro e vigas de
metal entrecruzadas com um brilho dourado.
Andei pelas portas da frente. Um piso de azulejos de pedra polida ia de
onde eu estava até o balcão de mármore, este ocupado por uma recepcionista.
Ela tinha seus vinte e poucos anos, sua maquiagem era pesada, seu terno era
azul, e seu cabelo castanho claro estava organizado em um coque francês
perfeito. Atrás dela, uma grande faixa preta afixada na parede com letras
douradas dizia: FELIZ ANIVERSÁRIO, CHEFE!
Atravessei o chão de azulejos. A recepcionista olhou para cima e deu uma
segunda olhada. Eu usava um casaco comprido marrom claro. O casaco
estava aberto na frente e mostrava meu jeans azul, botas de combate,
camiseta preta e as minhas Sigs nos coldres de quadril. Um velho chapéu de
vaqueiro estava no meu cabelo.
Parei no balcão, inclinei meu chapéu e falei em minha língua nativa. —
Olá, senhora.
A recepcionista piscou. — Ééééé, olá.
— Estou aqui para ver o Senhor Anapa.
— Você tem hora marcada?
— Não. Estou investigando alguns assassinatos em nome do Bando. —
Entreguei a minha identidade de Investigadora Particular.
A recepcionista me deu um sorriso paciente e acenou para os sofás baixos
à direita. — Por favor, sente-se.
— Certo. Então o chefe está fazendo aniversário? Ele está dando uma
festa? —Raphael mencionou ter recebido um convite. Isso me incomodava,
então pensei em dar uma olhada.
— É hoje à noite, —a secretária me informou.
Ahh. Ou minhas armas tinham causado uma impressão, ou ninguém havia
explicado a essa moça que não se deve dar informações confidenciais a
mulheres estranhas. A maioria das recepcionistas não me daria nenhuma
informação particular de seus patrões.
— Maravilha. Quantos anos ele está fazendo?
— Quarenta e dois.
Fui aos sofás e me sentei. Minutos passaram, lento e entediante.
Um rangido silencioso de rodas de plástico rolando vieram do corredor.
Um homem latino surgiu, final dos seus cinquenta anos, início dos sessenta.
Empurrava um balde de limpeza industrial amarelo brilhante e andava
devagar, com os olhos cansados, os ombros inclinados para a frente.
Provavelmente parte da equipe de limpeza da noite, encerrando seu turno. Ao
passar pelo balcão, a recepcionista pigarreou.
Ele olhou para ela.
— Há uma bagunça na cozinha do segundo andar, —disse ela. —
Alguém derramou café.
— Meu turno acabou a mais de meia hora atrás, —disse o homem.
Ela olhou para ele. Minha opinião sobre a moça da recepção de Anapa
despencou. O quanto difícil era limpar seu próprio derramamento de café?
Pegue um pano e esfregue. Se o turno do homem acabou, deixe-o ir para
casa.
Ele levantou os ombros. — Está bem. Vou limpar.
Eu assisti ele rolar o carrinho para longe. O prédio ficou quieto
novamente.
Estudei os azulejos de pedra: marrons dourados com ligeiro tom de
carvão e castanho avermelhado. Bonito. Raphael tinha um tipo semelhante
de piso instalado em seu apartamento. Eu nunca consegui entender a aversão
do homem ao carpete. Sua casa parecia um castelo: piso de pedra no chão,
pintura de parede bege e cinza, bancadas de granito cinza azulado. Ele
chegou a contratar um artista para pintar blocos de pedra nas paredes da
entrada. Custou-lhe um braço e uma perna, mas ficou incrível, especialmente
82
quando comprei para ele uma videira de prata e instalei alguns pequenos
ganchos para mantê-la na direção certa do sol. Ele também pendurou armas
brancas nas paredes.
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Eu poderia imaginá-lo como um fidalgo , governando um grande castelo
84
como Alcazar , vestido todo de preto. Minha imaginação conjurou Raphael,
seu corpo musculoso abraçado por roupas pretas, encostado em uma sacada
de pedra, uma espada longa em sua cintura ... com uma loira barbe de dois
metros de altura ao seu lado.
Tinha que parar essa obsessão. Era como se minha mente estivesse presa
a ele, a cada momento que eu não estava pensando ativamente sobre o caso,
meus pensamentos voltavam para Raphael. Às vezes eu tramava vingança, às
vezes sentia vontade de bater a minha cabeça contra a parede. Esses acessos
de auto piedade ou de sonhar acordada fazendo-o se arrepender de ter nascido
tinham que parar.
Meus ouvidos captaram o som de passos distantes. Eu levantei. Três
pessoas saíram do corredor, uma mulher elegante em um terno bege na
liderança. Ela usava óculos e seu cabelo castanho claro tinha sido trançado
longe de seu rosto. Suas roupas e cabelos diziam ‘negócios’. Sua postura e
olhos diziam ‘agente de combate’.
Um homem e uma mulher em equipamento tático e roupas escuras
apareceram na retaguarda, segurando bastões de policial. Cada um ostentava
uma arma no quadril.
— Bom dia, Senhorita Nash, —disse a mulher, com a voz rouca. —
Senhor Anapa envia suas desculpas. Sua agenda está cheia e ele não pode ver
você.
— Eu estou investigando assassinatos em nome do Bando, —disse. — Só
tenho algumas perguntas.
— Senhor Anapa estará muito ocupado esta semana inteira, —disse a
mulher.
— Ele não é um suspeito.
— Se você suspeita dele ou não, é irrelevante. Você não é mais um
membro da aplicação da lei. Está aqui como uma civil particular. Por favor,
saia de nossas instalações. —Ela se virou, me encarando.
Se eu ainda tivesse meu distintivo da Ordem, teria feito ela engolir essas
palavras. Considerei minhas opções. Eu poderia passar pelos dois guardas,
mas a falsa executiva seria um problema. A maneira como ela continuava
medindo a distância entre nós duas me dizia que tinha algum tipo de
treinamento em artes marciais, e sua postura, reta, dizia que tinha experiência
em usá-lo. Ela usava um colete a prova de balas. A maioria dos atiradores
protegeriam seu corpo, minimizando a área alvo. Pessoas em coletes à prova
de balas tendiam a enfrentar o perigo.
Certamente a falsa executiva fazia parte da segurança do Anapa, isso
dizia que ela conhecia as regras e entendia exatamente o que eu podia e não
podia fazer. Se eu fizesse uma cena e entrasse para ver Anapa, ela soaria os
alarmes e os policiais estariam em mim como lobos em um cervo manco. Já
podia até ler as manchetes de notícias: Metamorfa aterroriza o empresário
local.
Uma parte de mim, a parte bouda, queria fazer isso.
Tive que recuar. Ela sabia disso e eu sabia disso. — Eu voltarei, —disse a
ela.
— Quando voltar traga um policial com um mandado, —disse ela.
Cheguei à porta.
— Senhorita Nash! —Ela chamou.
Eu virei. A ‘executiva’ sorriu. — Este prédio não é grande o suficiente
para nós duas, Senhorita Nash.
Levantei meu dedo indicador em forma de arma para ela e atirei. — Eu
vou lembrar disso.
Lá fora, a cobertura de nuvens começava a se dissipar, mas ainda chovia.
Olhei para a luz do sol e me virei para examinar o prédio.
Anapa não queria ser questionado, mas isso não o tornava culpado.
Poderia apenas fazer dele um idiota. Porém, ao longo dos anos, interroguei
centenas de suspeitos e isso estava longe de ser uma reação normal.
Normalmente, quando você ia a um local de trabalho e dizia aos funcionários
que estava investigando um assassinato, a curiosidade natural tomava conta e
todos queriam saber mais sobre o caso. As pessoas são naturalmente
85
voyeurs e a maioria de nós é fascinada por coisas mórbidas. Você diz a
alguém: ‘Estou investigando um assassinato’, a próxima pergunta de volta é:
‘Quem morreu?’ A recepcionista de Anapa não fez perguntas. Nem a
cavaleira em armadura bege de Anapa.
A mulher do terno bege deve ter tido tempo para pesquisar meu histórico
e me dar um soco com aquele ‘você não é mais um membro da lei’. É
verdade que a Ordem havia me excluído, mas antes disso minha carreira se
destacava e nada em meu currículo dizia que eu desistia facilmente. Ela não
me pareceu o tipo que não prestava atenção em detalhes. Teria sido muito
simples para Anapa conversar comigo por dez minutos e limpar o nome dele.
Ele estaria fora da minha lista de suspeitos e eu iria embora e pararia de
incomodá-lo. Mas ele usou seu pessoal de segurança para me expulsar. Todos
os tipos de bandeiras alarmantes surgiram. Por que todo o sigilo?
Quando eu estava treinando, meu instrutor, um ex-detetive grisalho e
cheio de cicatrizes chamado Shawna, me ensinou a eliminar suspeitos em vez
de procurá-los. Olhe para o seu grupo suspeito, escolha o mais provável e
tente provar que ele não o fez.
Até agora, esse processo de eliminação excluíra apenas Bell. Anapa ainda
permanecia na minha lista de possíveis suspeitos, e agora ele conseguira se
jogar para o topo dela.
Eu examinei o edifício. Janelas gradeadas, câmeras de vigilância, que
funcionariam apenas durante a tecnologia, e, se o resto da segurança fosse
realmente boa, provavelmente Boas Proteções mágicas nas janelas. Como um
metamorfo, eu tinha uma resistência natural às proteções, mas quebrar uma
delas realmente machucaria e criaria ressonância mágica suficiente para fazer
alguém no prédio com um pingo de sensibilidade mágica gritar feito louco.
Circulei o prédio. No lado norte, uma pequena janela de três andares não
tinha barras. As câmeras de segurança também estavam convenientemente
posicionadas para cobrir outras abordagens. Fiquei por um tempo e observei-
as se virar. Com certeza, o padrão das câmeras oferecia cerca de vinte
segundos de aproximação indetectável ao prédio. Eles construíram uma
armadilha em suas defesas. Eu ri para mim mesma. Esperto. Não é inteligente
o suficiente, mas iria enganar um idiota comum.
Precisava chegar perto de Anapa. Ele se recusou a me ver, seu prédio era
bem defendido e provavelmente havia armadilhas, e eu não tinha o poder
legal para forçá-lo a se encontrar comigo.
A porta se abriu e o velho Latino saiu, sem o balde de esfregão. Ele olhou
para o céu, com uma expressão comprida no rosto, suspirou e começou a
andar em direção à rua. Eu o segui a uma distância discreta. Nós passamos
pelo arco de pedra, viramos para a calçada, e eu corri para cima, alcançando-
o.
— Você precisa de algo?
Segurei uma nota de vinte. Está amarrada em sua investigação? Não tem
um distintivo? Ofereça dinheiro às pessoas. É assim que nós resolvemos.
— Fale-me sobre Anapa e seu escritório?
O homem olhou para os meus vinte. — Eu aceito seu dinheiro, mas não
há muito o que contar.
Balancei a cabeça para o pequeno restaurante do outro lado da rua, com
uma placa que dizia RISE & SHINE. — Está chovendo. Deixe-me comprar
algo para comer e uma xícara de café.
Entramos e nos sentamos em uma cabine. A garçonete nos trouxe café
quente. Eu pedi quatro ovos e meu novo amigo pediu algumas rosquinhas.
Nós dois ficamos longe das salsichas. A menos que você conhecesse bem o
restaurante e confiasse na cozinheira, pedir carne moída era uma má ideia,
porque em alguns lugares ‘carne’ era um código para carne de rato.
O café estava fresco, pelo menos.
— Então me fale sobre Anapa.
O homem encolheu os ombros. — Ele não está muito presente no
escritório. Entra e sai em horas diferentes. Eu só vi ele três ou quatro vezes.
Se veste bem.
— Onde é o escritório dele?
— Terceiro andar, lado norte. Não há muito lá. Eu limpo a poeira da mesa
dele uma vez por semana.
Interessante. — E os empregados dele?
O homem encolheu os ombros. — Há cerca de vinte deles, mas uma
farsa.
— O que você quer dizer?
— A empresa é uma farsa. É como se um bando de garotos se reunissem,
comprassem roupas boas e fingissem ser empresários. Eles se sentam,
conversam, bebem café e almoçam. Uma vez por semana, quando o chefe
aparece, todos se alinham em seu escritório para que ele se sinta importante.
Mas não há muito trabalho sendo feito.
A garçonete trouxe nossa comida e saiu. Começou a chover novamente
fora da nossa janela.
— Como você sabe disso? —Perguntei.
Ele mordeu sua rosquinha. — Papel. Eles não usam nenhum. Um negócio
de trabalho como esse faz resíduos de papel. Você sabe, cópias, notas,
documentos rasgados, caixas vazias de suprimentos de escritório que eles
pedem. Eu trabalho para uma empresa de zeladoria. Tenho outras empresas
na minha rota de trabalho que têm metade do tamanho dessa equipe e eles
gastam três a quatro vezes mais papel. Quando limpo a sala de cópias do
Input, as caixas de lixo estão vazias. Dois terços do tempo eu nem vejo papel.
Esta semana foi o meu maior lixo até hoje, e isso porque eles enviaram
memorandos sobre o aniversário de Anapa. —Ele terminou sua rosquinha. —
Eles enviam pacotes para casa dele às vezes por um mensageiro pessoal. Eu
vi recibos no lixo da recepcionista. Obrigado pela comida.
— Obrigada pela informação.
Ele saiu. Eu comi todas as gemas dos ovos e empurrei as claras para o
canto com as pontas do garfo. Se o homem estivesse certo, qualquer negócio
que Anapa realmente fazia acontecia em sua casa. Bem, havia uma maneira
de verificar isso.
Esperei até a garçonete chegar com a conta, paguei a refeição e deixá-la
ver que eu estava deixando uma boa gorjeta. — Tenho uma pergunta estranha
para você.
— Certo.
— Que dia os coletores de lixo esvaziam as lixeiras nesta rua?
— Sexta-feira.
— Obrigada.

Era quarta-feira. O contêiner de lixo do Input deveria estar quase cheio.


Sai com o meu casaco para a chuva, caminhei de volta para o prédio do Input
e circulei-o. Um beco estreito conduzia da parte de trás do terreno do prédio
para uma rua maior. Dois contêineres estavam no beco, contra uma parede de
tijolos, um azul e um verde. Eu abri as tampas. Como a invasão de magia
tornava a produção em massa de plástico uma coisa do passado, todo o lixo
tinha que ser dividido e separado. O lixo dos alimentos era empacotado em
barris de madeira ou tambores de metal reciclados, colocados no lixo verde e
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recolhidos pelo pessoal responsável em fazer a compostagem . O lixo
reciclável, madeira e metal, era simplesmente jogado na lixeira azul, junto
com o lixo de papel embalado em sacos de estopa.
O contêiner verde da entrada tinha um único tambor, meio cheio de restos
de almoços apodrecidos. O contentor azul continha um saco de estopa vazio.
Eu me arrepiei com isso. Muitas cópias do memorando sobre a festa de
Anapa, alguns rabiscos amassados, a maioria com peitos de vários tamanhos
e um homem feio, mas excepcionalmente dotado fazendo coisas
pornográficas com os ditos peitos, e um bloco de anotações meio encharcado
de café.
Abandonei o lixo e voltei para Rise & Shine.
Tinha que entrar na casa de Anapa.
A solução para o dilema apareceu em minha mente.
Não, não. Tinha que haver outro jeito. Qualquer outra maneira.
Outra maneira.
Outra maneira.
Cerrei meus dentes. Nada vinha na minha mente, nenhuma alternativa
brilhante.
Bem.
Entrei no restaurante, ofereci-lhes dez pratas para usar o telefone e liguei
para o escritório. Ascanio respondeu.
— Cutting Edge.
— Ascanio, sou eu.
— Não me levou com você esta manhã, —disse ele. — Eu me comportei
direitinho ontem.
Ah, não me aborreça, garoto. — Ascanio, você não pode vir comigo o
tempo todo. Alguma novidade para mim?
— Há um relatório de autópsia do Doolittle, —disse ele. — Raphael
ligou.
Pense no diabo. — O que ele queria?
— Ele perguntou quando você vai liberar a cena do crime do local de
construção para sua equipe, porque 'aquele maldito gato' não o deixa fazer
nada até você dizer que está tudo bem, mas Raphael disse que não é nenhum
maldito milionário. Eu achei que ele era. Disse a ele que você estava fora, e
ele perguntou com quem, e eu disse a ele que não tinha a liberdade de dizer.
Então ele gritou comigo.
Cristo. Apenas o que eu precisava. — Ele deixou um número?
— Ele disse que está em seu escritório principal. Também aquele cara da
oficina perto do escritório abandonado que fomos ontem encontrou o cheque
que ele recebeu por rebocar o carro daquela mulher. Ele diz que se você for
até a oficina depois das cinco, ele vai dar para você. Disse para levar o
dinheiro.
Bem, era pouco, mas pelo menos era alguma coisa. — Por favor, abra o
relatório do Doolittle e procure a hora estimada da morte.
O telefone ficou em silêncio. Eu bati meus dedos no balcão.
— Entre as duas e as quatro da manhã, —disse Ascanio.
— E a causa da morte?
— A morte resultou de choque anafilático devido a uma picada de cobra.
Os sintomas incluíram insuficiência respiratória, falência múltipla de órgãos
e insuficiência renal aguda ... O que significam equimoses graves?
— Isso significa acúmulo subcutâneo de sangue. Obrigado. —Desliguei e
liguei para o número de Raphael.
— Raphael.
Sua voz me levou a todos os lugares que eu não queria ir. — Não é o
suficiente você ter trazido a sua vadia para o meu escritório, agora você está
incomodando o meu estagiário.
— Estagiário, hein. Será o que ele anda aprendendo com você?
Mesmo? Ele realmente disse isso? — Você está bem? Primeiro, você me
substitui por uma bobona, agora está se sentindo ameaçado por um garoto de
quinze anos de idade? Aconteceu alguma coisa para lhe dar um complexo de
inferioridade?
— Esse menino tem um longo currículo de dormir com mulheres adultas
e você parecia um pouco desesperada da última vez que te vi.
Imaginei-me alcançando-o através do telefone e batendo em sua cara. —
Obrigada por sua preocupação, mas não tenha medo. Prefiro homens, não
garotos. Talvez seja por isso que eu não estou mais com você.
Ele rosnou para o telefone.
— Controle seu temperamento, ervilha doce. —Ervilha doce? De onde
diabos ela tirou isso? — Eu entendo que o seu compromisso com o prédio
Blue Heron estar atrasado um pouco e parece estar em extrema necessidade
de dinheiro, então você precisa de mim para liberar a cena do crime.
— Eu tenho dinheiro! Preciso que o local da extração seja liberado
porque é um desperdício de tempo os trabalhadores ficarem esperando lá.
— Duas condições, —eu disse. — Um, todos os itens do cofre serão
armazenados na Fortaleza até o final desta investigação. Eu os cataloguei.
— Feito, —disse Raphael. — Enviarei sob um comboio armado durante a
tecnologia. Dois?
— Você ainda tem o convite para a festa de aniversário de Anapa hoje à
noite?
— Sim.
— O convite é para você e uma acompanhante?
— Sim.
— Preciso ser essa acompanhante.
Raphael fez uma pausa. — Você desconfia da participação de Anapa nos
assassinatos?
— Possivelmente. Tentei falar com ele no seu escritório. Eles não me
deixariam passar pela porta. Ele tem um buldogue em um terno na equipe de
segurança e ela não se encantou com o meu doce sorriso.
— Você quer dizer que mostrou a ela suas armas e ela não desmaiou?
Ha-ha-ha. — Não, querido, você é o único que fez isso.
— Pelo que me lembro, foi exatamente o contrário.
— Eu já vi muitas armas. Você tem uma boa, mas não me fez desmaiar.
— Isso é o que você diz agora.
— Raphael, eu não possuo este telefone. Não me faça quebra-lo, porque
eu acabei de gastar meus últimos dez dólares para usá-lo.
Sua voz era doce como mel. — Querida, você precisa de mim para lhe
emprestar algum dinheiro?
— Eu nunca na minha vida precisei de você para me emprestar dinheiro.
Se eu estivesse morta, e o barqueiro da morte precisasse de uma moeda para
me levar do outro lado do rio da vida após a morte, e, você fosse o único por
perto com a moeda, eu diria para você enfiá-la no seu traseiro.
As pessoas começaram a olhar para mim na lanchonete. Isso não estava
indo bem.
— Andrea ...
— As próximas palavras que saírem da sua boca é melhor que sejam
relacionadas ao trabalho ou vou dirigir até seu escritório e atirar em você no
intestino. Repetidamente.
— Por que no intestino?
— Porque é doloroso e não ameaça a vida. —Ele era um metamorfo,
curaria as feridas de bala.
Ele riu. Ele realmente riu de mim ao telefone. Minha cabeça estava
prestes a explodir.
— Por que você quer conhecer Anapa? —Raphael perguntou.
— Conhecê-lo é a desculpa para entrar furtivamente em seu escritório e
tentar descobrir qualquer coisa podre que ele possa estar guardando lá.
Alguém sabia sobre o cofre, porque não foi um assalto aleatório.
— Mesmo? E eu aqui pensando que ladrões aleatórios passeiam por
buracos escuros e profundos guardados por pessoas que costumam crescer
dez centímetros de garras e de repente decidem: — Ei, acho que vou lá
roubar aquelas coisas.
Desgraçado. — É uma coisa boa que você é bonito, porque com certeza
você não é inteligente.
— Eu lidero um clã e um maldito negócio, —ele rosnou. — Sou
inteligente o suficiente.
— Sim, sim. —A indignação de Raphael era sua fraqueza. As pessoas
raramente o levavam a sério à primeira vista. Em vez de ouvir as coisas
espertas que saíam de sua boca, os homens o descartavam como um rosto
bonito e as mulheres se concentravam em não babar. Eu ouvi muitas coisas
serem ditas dele: um mulherengo, garoto fácil, cabeça de vento, gostoso e
assim por diante. Homem de negócios implacável e lutador letal geralmente
não eram os rótulos em que as pessoas o dava até conhecê-lo melhor. Era um
grande erro. Há algumas semanas, uma das executoras da Tia B esqueceu-se
disso e decidiu insultá-lo. Raphael revidou na mesma moeda e ela perdeu a
compostura e o atacou. Ele deu a ela três golpes mortais e ela morreu antes
que caísse no chão.
Raphael ficou em silêncio. Provavelmente fervendo do outro lado. Isso
não estava nos levando a lugar algum.
— Eu não quero brigar, —eu disse, mantendo minha voz profissional. —
Só quero resolver esses assassinatos. Eu sei que isso é difícil para nós dois.
Vamos nos concentrar nos assassinos. Eles vieram preparados, mataram seu
povo e sabiam como abrir o cofre. Tudo isso implica planejamento e
recursos. É muito provável que uma das três empresas de reclamação que
licitaram aquele edifício tenha algo a ver com isso. Eu eliminei Bell como
suspeito. Os Garcias são um beco sem saída por enquanto, pode ter algo aí e
eu saberei mais até hoje à noite, mas nesse momento, o local de trabalho
deles está abandonado e já está assim há algumas semanas. Isso deixa Anapa.
Quanto de papel as Extrações Medrano usa em uma semana?
— O suficiente para a cidade nos cobrar por coleta comercial, —
Raphael rosnou.
— Input produz quase nada. Amanhã é o dia de coleta de lixo deles e as
lixeira tem meio saco de lixo de papel, a maioria destes desenhos
pornográficos. Conversei com um zelador e ele acha que o negócio deles é
uma farsa. Aparentemente Anapa opera fora do escritório, em sua casa. Eu
não gosto disso mais do que você, mas a festa dele é a minha chance de dar
uma olhada nele e procurar em seu escritório. Acredite em mim, prefiro
comer vidro quebrado do que ir com você em qualquer lugar.
— Obrigado, —disse ele, com a voz seca.
— Não há de que.
87
— A festa é black-tie .
Claro que é. — O meu vestido azul é Black-tie?
— Nós arruinamos o vestido azul, lembra? —Ele disse. — Estávamos
fazendo sexo na cama e derrubamos a garrafa de vinho nele?
Voltei para aquela tarde ensolarada. Nós queríamos ir jantar, e eu tinha
colocado o vestido azul na cama, e então Raphael trouxe uma garrafa de
vinho para o quarto e fez sua coisa de Raphael, e nós acabamos na cama bem
ali, e o vestido no chão.
Raiva borbulhou dentro de mim, misturando-se com tristeza, e um
sentimento doentio de que eu estava caindo cada vez mais fundo, e em algum
lugar abaixo, um chão duro esperava por mim. Estava com raiva de Raphael.
Estava com raiva de mim mesma. Eu queria morder alguém ou alguma coisa.
— Foi mesmo. —Droga. — Certo, eu vou me virar em alguma coisa.
— Vou buscá-la às sete, —disse ele.
— Muito obrigada, —falei com o meu melhor sotaque do sul.
— Não faça sua coisa do Texas comigo, não vai funcionar.
— Eu fiz a minha coisa em você e você gostou muito disso na época.
— Não tanto quanto você gostou do que fizemos depois.
Eu não respondi e nem ele. Nós apenas ficamos lá, com a linha telefônica
entre nós. Tínhamos que parar de fazer isso um com o outro.
— Raphael, há outra coisa que eu queria mencionar. Eu pretendia te
contar isso ontem de manhã, mas a aparição da sua noiva me fez esquecer.
Quando falei com Stefan, ele me disse que havia seis pessoas, além de você,
quando o cofre foi descoberto no local de extração.
— Eu sei onde você quer chegar, —disse Raphael, — e posso dizer
agora, nenhum deles me trairia.
— Então isso será muito fácil. Me ajude a eliminá-los. Preciso saber de
todos os passos de cada um, a partir do momento em que eles saíram do local
até as quatro da manhã. Se eles fizeram ligações, precisamos saber. Se eles
foram a um bar e conversaram com alguém, precisamos saber. Você os
conhece melhor e eu preferiria que fosse você que fizesse isso, porque
minhas mãos estão cheias.
— Eu cuidarei disso.
— Stefan precisa ser verificado também.
— Eu disse que iria cuidar disso.
Ele faria. Raphael era enfurecidamente competente quando queria se. —
Eu vou te ver hoje à noite, então.
— Talvez.
Desgraçado. — Sete horas. Esteja lá ou o seu local de trabalho continuará
fechado.
— Você entende que, se formos pegos, o Bando será responsabilizado. O
PAD não vai se preocupar com sutilezas como o fato de você não ser um
membro oficial do Bando ou que estávamos investigando assassinatos. Eles
verão como dois metamorfos roubando a casa. Já temos muita má fama sem
fazer por merecer, imagine se nos pegarem.
— Estou ciente disso, obrigada.
— Só pensei em lembrá-la, —disse ele.
— Eu aprecio sua preocupação.
— Bom.
— Ótimo.
Eu desliguei. Senti vontade de tomar um banho frio. O relógio na parede
atrás do balcão mostrava dez e doze. Eu tinha até as três da tarde para
encontrar um vestido e ler o relatório do Doolittle. Então eu ia ver o
mecânico com o cheque da mulher misteriosa e seu carro rebocado.

Já que eu estava perto de um centro comercial, fui resolver o vestido


primeiro. Quando você é baixinha e cheia de curvas, sua escolha de vestidos
é limitada. Eu tinha seios decentes, panturrilhas musculares e pernas fortes e
bonitas. Havia uma altura perfeita a cerca de dois a três centímetros acima do
meu joelho, onde vestidos e saias pareciam ótimos em mim. Se não pudesse
ser nessa altura perfeita, tinha que ser até o chão, porque as pessoas
geralmente olhavam para mim de cima, e dependendo do comprimento da
barra fazia minhas pernas parecerem mais curtas e largas. Golas altas e
decotes altos que faziam meu pescoço parecer mais curto do que já era,
estavam fora de cogitação. Além disso, vestidos com um padrão ousado ou
mistura brilhante de cores me engolia completamente, sobrecarregando meu
rosto pálido e cabelos loiros.
Quando eu precisava de roupa formal, normalmente fazia compras na
Deasia, uma loja familiar administrada por Deasia Randall. A proprietária,
uma negra severa de uns cinquenta e poucos anos, tinha um gosto impecável.
Depois de uma hora no Deasia, tentando todas as opções de costume:
verde azulado, pêssego, azul ... até tentei um verde-limão, o que me fez
parecer um barril tingido de sopa de ervilha. Coisas que deveriam ter ficado
bem em mim, porque sempre ficaram, de repente, ficaram horríveis.
Deasia me examinou com o olhar crítico afiado por trinta anos de
experiência em moda. — Para que serve o vestido?
— Para uma festa de aniversário formal na casa de um milionário. —E eu
tinha que parecer apresentável o suficiente para passar pela porta.
— Quem está acompanhando você?
— Meu ex-namorado.
As sobrancelhas de Deasia se levantaram. — Ah. Mistério resolvido. Ele
já tem outra?
— Sim.
— E você quer fazer uma boa impressão?
— Eu quero que o queixo dele caia. Quero que ele veja que estou bem
sozinha. Eu quero estar deslumbrante.
— Deslumbrante ou escandalizante? —Perguntou Deasia.
— Eu vou querer escandalizante.
— Espere aqui.
Ela desapareceu entre as prateleiras de roupas. Eu examinei minha última
tentativa. Um modelo violeta de cintura alta, deveria ter ficado bom, mas não
ficou. Meu rosto também havia mudado. Eu costumava ser capaz de me
maquiar, isso deixava meu rosto mais suave e até delicado. A mulher que
olhava para mim no espelho agora parecia bem em um casaco comprido e um
par de armas.
Colocar esse lindo vestido violenta em mim era como colocar uma lâmina
cortante em um punhado de bombons. Me sentia muita agressiva, muita
afiada para a doçura do vestido.
Deasia reapareceu, carregando um cabide com algo preto e rendado.
— Eu aprecio isso, mas preto não fica bem em mim, —eu disse. — Isso
vai me fazer desaparecer.
Deasia fixou um olhar de cachorrinho em mim. — Tente.
Peguei o vestido e fui para o vestiário. Tirei a monstruosidade doce
violenta e tirei o vestido preto do cabide. Laço preto sobre tecido preto. Não
era meu gosto. Coloquei o vestido preto, saí e olhei para o espelho de corpo
inteiro.
O vestido preto me abraçou como uma luva, parando cerca de três
centímetros acima do meu joelho. Justo abaixo da cintura, o vestido
assimétrico subia diagonalmente pelo meu peito, por cima do meu ombro
esquerdo. O lado esquerdo tinha uma pequena manga, mas o ombro direito
estava escandalosamente nu. Uma longa forma de um dragão chinês foi
bordado no tecido preto do vestido. Sua cabeça descansava no lado esquerdo
do meu peito, seu longo corpo deslizando entre meus seios, quase estreito
demais para se tornar indecente, curvando-se para a direita e deslizando pela
minha coxa direita. Laços pretos e irregulares cobriam o contorno do dragão,
seu padrão imitando as escamas do dragão, dando um vislumbre sexy da
minha pele nua. Uma única pedra vermelha marcava o olho do dragão e,
quando me virei, brilhou com o puro brilho rubi dos olhos de uma bouda.
O preto nunca foi minha cor, até hoje.
Deasia colocou um par de sandálias pretas na minha frente. Eu pisei
nelas, ganhando dez centímetros de altura.
Puta merda! Eu parecia agressiva. — Este é um vestido malvado.
— O mal pode ser lindo, —disse Deasia. — Não sobrecarregue nos
acessórios. Par de brincos, nada muito grande e talvez uma pulseira. É isso aí.
Ah, e este vestido pede uma boca vermelha, Andrea. Vermelho intenso.
— Eu vou levar.
— Claro que vai. Você vai matá-lo!
Raphael não saberia o que o atingiu. Nem Anapa. E se qualquer evidência
da conexão de Anapa com as mortes dos metamorfos existisse, eu faria o meu
melhor para encontrá-lo.

Quando entrei nos escritórios da Cutting Edge, um homem estava sentado


na minha cadeira de cliente. Ele estava curvado, fazendo algo com os pés, e
quando ele virou a cabeça na minha aproximação, eu vi um assento de carro
para crianças. Um bebê estava ali, uma pequena mancha de branco e rosa
contra o tecido verde estampado com desenhos animados de dinossauros. O
rosto do homem parecia familiar. Demorei um segundo e depois o reconheci.
Nick Moreau.
A última vez que eu o vi, em junho, ele parecia dez anos mais novo. O
homem que estava sentado à minha frente agora parecia velho e cansado, e
quando ele olhou para mim, seus olhos estavam vazios de vida, como se
tivessem sido cobertos de cinzas.
— Eu disse a ele que você tinha saído, —disse Ascanio, da porta do
depósito. — Ele disse que não se importava em esperar.
Eu sentei na outra cadeira ao lado de Nick. Ele passou a mão pelo cabelo
castanho claro.
— Esse é meu filho, —disse ele.
— Ele é lindo, —eu disse a ele.
— Você gostaria de segurá-lo?
— Posso?
Nick pegou o bebê e colocou-o em meus braços. O bebê Rory olhou para
mim com olhos cinzentos escuros, intrigado e fascinado, a boca ligeiramente
aberta. Ele era quase careca, com o cabelo em uma penugem de pêssego na
cabeça. Seus cílios eram um louro alegre e ensolarado.
Tão pequeno. Uma vida tão frágil.
— Hey, você, —eu sussurrei.
O bebê Rory olhou para mim e eu não pude ver nenhum medo em seus
olhos. Sem tristeza, sem amargura, nada cansado.
O mundo era um grande brinquedo maravilhoso e o bebê Rory não fazia
ideia do quanto o machucara. Eu queria envolvê-lo em meus braços e fazer
tudo ficar bem. Eu queria dar a ele sua mãe de volta.
— Ele é lindo, —eu disse a Nick novamente.
— A mãe dele também era, —ele disse. — Ele ainda nem fala. Nunca se
lembrará dela.
Rory balbuciou e eu o abracei para mim, gentilmente. Como você diz a
um bebê que sua mãe morreu? Como você começa a explicar o porquê?
Nick enfiou a mão dentro da jaqueta, tirou a carteira e me entregou uma
foto. Nela uma mulher sorria.
Seu cabelo era uma massa de cachos de canela em volta do rosto. Ali
estava uma menina bonita com sardas no nariz.
O arquivo dela dizia que ela tinha vinte e seis anos, apenas dois anos mais
nova que eu. Ela não tinha ideia, mas Rianna Moreau estava vivendo meu
sonho. Ela tinha um marido que a amava sem reservas. Ela tinha um trabalho
gratificante que amava fazer. Ela tinha seu bebê. Eles eram uma família
juntos e seu futuro parecia brilhante até que algum idiota se aproximou e os
roubou.
Os olhos de Nick se encheram de lágrimas. Ele apertou a mão em um
punho. — Ele não vai saber que ela era gentil. Ele saberá que ela o amava
porque eu contarei a ele, mas ele nunca sentirá esse amor. Meu filho mal
nasceu e sua vida já está quebrada.
Desejei poder dizer alguma coisa, mas nada que saísse da minha boca
tornaria sua perda mais fácil de suportar.
Rory fez pouco barulho, alheio à dor do pai.
— Eu nunca mais vou ver minha esposa. —A voz de Nick vacilou. Ele se
recompôs. — Eu quero que você entenda. Eu quero que você saiba o que eles
tiraram de mim. Para mim, ela era tudo. Eu não posso mais chamar por ela.
Eu estendi a mão e descansei meus dedos em seu punho cerrado.
— Raphael disse que você é a melhor que ele conhece. Ele disse que você
iria encontrá-los.
O olhar de Nick procurou meu rosto e eu não tinha as palavras certas ...
— Você é um carpinteiro, —eu disse. — Constrói coisas bonitas porque é
isso o que você faz. Investigação é o que eu faço. Eu vivo e respiro, sou
treinada para isso e sou muito boa nisso. Sua esposa não é um nome no
relatório, Nick. Você e seu filho não virarão uma estatística sem sentido.
Rianna é real para mim, assim como vocês dois são. Eu sei o que você teve e
eu sei o que é perdê-lo. Compreendo.
Eu vi a fração de segundo quando Nick quebrou: algo em seus olhos
estalou, a linha de sua boca caiu, e ele chorou. Coloquei Rory de volta na
cadeirinha e abracei Nick. Ele estremeceu em meus braços, não soluçando,
mas espasmos, como se a dor dentro dele estivesse explodindo em rajadas
curtas.
— Eu não posso te prometer que vou pegá-los, —eu disse a ele,
acariciando suas costas. — Mas eu prometo a você que não pararei de
procurar. Nunca vou parar de procurar. Farei tudo o que puder para você e
seu filho ter resposta e sua justiça.
No canto, Ascanio nos encarou com olhos assustados.
Nick tremeu, rígido, sua voz um grunhido gutural baixo com palavras em
pedaços que tentavam sair dele. — … Tiraram-na de mim ...
— Eu prometo a você que quando eu encontrá-los, eles vão sofrer, —eu
disse a ele. — Não vai trazer sua esposa de volta, mas quando terminarmos
com eles, eles nunca mais vão roubar mais alguém da sua vida. Você deve ser
forte, Nick. Você deve ser forte para o seu filho. Ele ainda tem um pai, um
pai forte e feroz que o ama, que estará lá para ele.
Gradualmente, os tremores pararam. Nick se afastou de mim, de repente,
como se tivesse percebido que estava chorando. Ele pegou a cadeirinha da
criança. O bebê Rory bocejou.
— Você vai me dizer quando pegá-los? —Nick perguntou.
— Eu vou.
Ele saiu pela porta. Eu caí na minha cadeira.
Ascanio se aproximou e sentou na minha mesa. — Cara, isso foi pesado.
— Esse é o outro lado do trabalho, —eu disse a ele. — Você é
responsável pelas vítimas do crime que está investigando. Aceita a
responsabilidade por isso. Eles depositam sua confiança em você e esperam
que você lhes traga justiça. Nunca deve esquecer que é sobre pessoas. É sobre
sofrimento e perda.
— Isso é uma merda.
— Parabéns, você está começando a entender.
Ele franziu a testa. — Mas eu pensei que não podia se apegar. Que não
devia ser pessoal.
Suspirei. — Você não pode deixar que isso se apodere de você, porque
ainda precisa se concentrar no caso. Precisa de um pouco de distância para
ser objetivo. Mas é pessoal. É sempre pessoal. Você não pode esquecer que
há pessoas envolvidas. Você também não pode deixar que sua compaixão
prejudique seu julgamento, porque há coisas mais importantes em jogo do
que conseguir a vingança de Nick.
Ascanio me estudou. — O que pode ser mais importante que isso?
— Certificar-se de que os culpados nunca façam isso novamente. As
pessoas que mataram Rianna e os outros metamorfos quebraram a mais
sagrada das leis, eles assassinaram. Como eles fizeram isso uma vez,
provavelmente farão isso de novo. Em primeiro lugar, temos que nos
assegurar de que não tomem outras vidas.
Ascanio ponderou sobre isso. — Nick não vê desse jeito.
— Nick não precisa ver desse jeito. É nosso dever nos preocupar com
isso, não ele.
— Acho que ele queria que você dissesse a ele que encontraria o
assassino e resolveria tudo.
— Sim ele queria.
— Então, por que você não fez isso?
— Porque não faço promessas que eu não sei se poderei cumprir.
Agora saia da minha mesa e me traga o relatório do Doolittle.

Capítulo 7
O relatório do bom médico confirmou o que eu já sabia: os quatro
metamorfos, incluindo a esposa de Nick, haviam morrido de veneno de
cobra. Eu havia notado quatro tamanhos diferentes de mordida nos corpos e
Doolittle tinha encontrado mais um, o que significava cinco conjuntos de
presas e provavelmente cinco atacantes, a menos que nosso assassino fosse
88 89
uma hidra . Ou uma górgona . Não que alguém já tenha visto uma
górgona, mas você nunca sabia que atrocidades divertidas a magia cometeria
em seguida.
As cobras eram uma espécie de víboras e, com base na opinião relatada
de Doolittle, a maior mordida pertencia a algo com uma cabeça do tamanho
de um coco e uma pequena dose de seu veneno era letal para os seres
humanos e dose maiores poderiam matar metamorfos. Além do relatório
oficial, o envelope continha um pequeno pedaço de papel que dizia: ‘Se você
encontrar uma, me ligue imediatamente. Não tente enfrentar a cobra’.
Eu não a enfrentaria. Eu atiraria nela. Repetidamente.
Jim verificou as impressões digitais que tirei da porta do cofre pelo banco
de dados. Das oito digitais, sete pertenciam à equipe de Raphael. A oitava era
um mistério. Não constava em nenhum dos bancos de dados.
O relatório de antecedentes não teve resultado muito melhor. Nada
suspeito.
Eu peneirei os arquivos. Os funcionários de Raphael era um grupo muito
unido, todo do Clã Bouda e seus parentes.
Homens e mulheres de família, estevam sempre juntos. Visitavam os
mesmos lugares, iam para os mesmos churrascos e tomavam conta dos filhos
uns dos outros. Raphael era muito seletivo em seus hábitos de contratação e
ele não havia contratado mais ninguém por onze meses, muito antes de o
Blue Heron ficar à venda.
Das quatorze pessoas atualmente no quadro de funcionários, seis estavam
acasaladas, com marido e mulher trabalhando para as Extrações Medrano,
outras três estavam acasaladas com pessoas que trabalhavam em outro lugar,
dois eram filhos de outros funcionários, e os três metamorfos restantes já
trabalhavam com Rafael durante anos. Eles levavam uma vida tranquila,
trabalhavam, voltavam para casa, passavam tempo com os filhos.
A checagem de antecedentes dos trabalhadores que Jim fez estava
impecável. Esse tipo de ambiente familiar não fornece exatamente um terreno
fértil para transgressões secretas. Ninguém era um jogador viciado. Ninguém
pediu dinheiro emprestado de fontes perigosas. Ninguém parecia ter espaço
em suas vidas para chantagem, assassinato e casos tórridos. E se um caso
extraconjugal tivesse ocorrido, a maior preocupação deles teria sido com os
seus companheiros. Os boudas eram selvagens até se acasalarem, mas assim
que o acasalamento ocorria, eles entravam de cabeça no território possessivo
e ferozmente ciumento. E seus escândalos eram notoriamente públicos. Nós
amávamos um drama.
Eu liguei para uma amiga minha que trabalhava na MSDU local. Durante
o tempo que passei com a Ordem, Ted havia me enviado para trabalhar junto
às forças armadas algumas vezes, e eu ganhei bastante respeito para merecer
um favor ou dois. Lena, meu contato na MSDU, fez uma rápida checagem
nos antecedentes criminais do Anapa para mim. Ele não tinha nenhum. Ou
ele e sua corporação eram repugnantemente cumpridores da lei ou ele sabia
como cobrir seus rastros.
Finalmente, olhei para cima e acenei para Ascanio. — Pegue a sua arma.
Ele pegou sua faca. — Onde estamos indo?
— Para a biblioteca.
Seu entusiasmo visivelmente diminuiu e ele emitiu um suspiro trágico. —
Mas biblioteca e diversão são dois conceitos que normalmente não andam
juntos.
— Essa é a natureza do negócio. Cinco por cento do tempo você está
matando monstros. O resto do tempo, estamos escavando a terra por um
pequeno pedaço do pêlo pubiano do agressor.
— Ecaaa.
Eu estava com dois problemas ao mesmo tempo. Um deles, ele era um
garoto de quinze anos, equipado com o corpo de um monstro e inundado de
hormônios. Ele estava desesperado por uma oportunidade de deixar escapar
alguma energia. Dois, ele era um bouda. Nós éramos uma espécie facilmente
entediada. Na natureza, as hienas confiavam mais na sua visão do que no
cheiro de sua caça. Nós não fazíamos perseguição como os lobos, não
viajamos em fila indiana, e nós normalmente não rastreamos.
Seguir o rastro de migalhas de pão era contra o instinto natural de
Ascanio. Mas como eu já havia falado para ele, a sua parte humana deveria
sempre prevalecer. Ele tinha que está no comando e não a besta.
— Você sempre pode ficar aqui e praticar exercícios com a vassoura.
— Não, obrigado, —disse ele e produziu um sorriso deslumbrante. O
garoto era realmente uma coisa. — Posso dirigir?
— Sim, você pode. —Eu tive que dar-lhe algo como um prêmio de
consolação.
Nós trancamos o escritório e seguimos nosso caminho.
— Então, por que estamos indo para a biblioteca? —Perguntou Ascanio.
Eu me inclinei contra o meu assento. — Não vá pela Magnolia. Pegue o
caminho pela Redberry em vez disso.
— Por quê?
— A Redberry tem uma espécie de vinhas amarelas estranhas crescendo
nos prédios. Eu quero dar uma olhada. Para responder à sua pergunta,
estamos indo para a biblioteca porque é o único lugar acessível ao público
onde podemos acessar o projeto da Biblioteca de Alexandria.
— O que é isso?
— Anos atrás, antes de você nascer, as pessoas tinham acesso a uma rede
de dados chamada Internet. Se você precisasse de um endereço, por exemplo,
você poderia digitá-lo em seu computador e ele apareceria, com instruções de
como chegar lá. Se você precisasse procurar algo como o ponto de ebulição
do ácido clorídrico, você poderia fazer isso. Conhecimento instantâneo ao seu
alcance.
— Uau.
— Sim. Bem, quando ficou óbvio que a magia destruiria as redes de
computadores, as pessoas tentaram preservar partes da Internet. Eles fizeram
cópias de seus servidores e enviaram os dados para um banco de dados
central da Biblioteca do Congresso. O projeto ficou conhecido como a
Biblioteca de Alexandria, porque nos tempos antigos dizia-se que a biblioteca
de Alexandria continha todo o conhecimento humano, antes que algum idiota
a queimasse até o chão. Como a tecnologia está em alta agora, vamos
explorar esse banco de dados.
— O que estamos pesquisando?
— Informações. Vamos ver o que achamos. Primeiro, Raphael compra
um prédio altamente disputado, deixando todos os outros interessados na
poeira. Então a equipe de Raphael encontra um cofre secreto que não estava
em nenhum dos documentos que eles tinham. Alguém foi ao local de
Raphael, atacou os metamorfos que o guardavam e abriu o cofre. Em seguida,
eles saíram do local, deixando a maior parte do conteúdo do cofre intocada. O
que isso lhe diz?
Ascanio franziu a testa. — Não foi aleatório.
— Certo. Há lugares mais fáceis para roubar e a segurança de um túnel
vigiado não é como um banco. Ninguém imagina que algo valioso pode estar
escondido ali. Também um ladrão aleatório teria esvaziado o cofre.
Ascanio olhou para mim. — Então o ladrão tinha que saber sobre o cofre
e o que havia nele.
Havia esperança para esse garoto ainda. — Exatamente. Temos dois
caminhos de investigação: um, descobrir quem sabia sobre o cofre e poderia
acessá-lo, e dois?
— Descobrir o que eles estavam procurando, —disse Ascanio.
Eu sorri para ele. — Bom. Sabemos que o edifício era de propriedade de
Jamar Groves. Se o Blue Heron tivesse um cofre secreto, Jamar tinha que
saber sobre isso, porque ele era o único que tinha colocado lá. Sabemos que
Jamar Groves colecionava arte e antiguidades. É lógico supor que o cofre
secreto continha o estoque pessoal de Jamar. Também temos a lista do
conteúdo do cofre, que eu fiz no local. Vamos pesquisar nos arquivos por
qualquer menção a Jamar e sua coleção e compará-los com a lista de itens no
cofre.
Ascanio colocou seu rosto bonito em uma expressão martirizada.
— A Biblioteca Central fica na beira do Parque Centenário, —eu disse a
ele. Ao longo dos anos, o parque explodiu em tamanho, engolindo outros
quarteirões da cidade, e a biblioteca foi uma das vítimas.
— E? —Perguntou Ascanio.
— O Parque Centenário é de propriedade dos feiticeiros. Eles fornecem
segurança para a biblioteca, porque é um depósito de conhecimento.
Ascanio se acendeu. — Garotas bruxas?
— A maioria deles, sim. Se trabalhar sério, eu vou deixar você paquerar.
O adolescente bouda sorriu.
— Não fique todo cheio de esperanças, —eu disse a ele. — As bruxas são
muito sérias.
Desde a Mudança, o momento em que nosso lento apocalipse começou,
as plantas decidiram que era hora de atacar todas as coisas humanas. A magia
alimentou o crescimento das árvores, e o Parque Centenário foi um exemplo
brilhante disso. Na última década desde a mudança, o parque triplicou de
tamanho, invadindo os quarteirões vizinhos. Uma vez que os clãs de bruxas
de Atlanta o haviam comprado da cidade como ponto de encontro, o parque
parou de se expandir para os lados, direcionando todo o seu crescimento para
o alto. Enquanto nos dirigíamos, uma densa parede de verde nos
cumprimentou, os troncos das árvores amarrados com trepadeiras espinhosas,
como se uma floresta de trezentos anos de idade houvesse brotado no meio da
cidade.

O prédio quadrado marrom da Biblioteca Central estava incrustrado no


90
verde. Dois maciços freixos a abraçavam de ambos os lados, com galhos e
raízes trançando juntos, deslizando sobre as paredes e às vezes através deles,
como se a própria biblioteca fosse um estranho cogumelo crescendo de seus
troncos gêmeos. As árvores protegiam o prédio da biblioteca e, enquanto seus
vizinhos haviam caído e se desintegrado há muito tempo, a biblioteca parecia
intacta.
Nós paramos em um grande estacionamento, que costumava ser a rua
Forsyth, e fomos para as portas. Lá dentro, uma jovem morena de menos
quinze anos entrou em nosso caminho. Ela carregava um cajado, usava jeans
e uma camiseta branca com babados, e o lado esquerdo do rosto ostentava
uma tatuagem de alguns símbolos arcanos acima de sua sobrancelha e sobre
sua bochecha.
— Por favor, entregue suas armas! —Ela disse em voz alta e acenou para
o carrinho cheio de caixas de plástico.
Os olhos de Ascanio se iluminaram.
Eu removi minhas Sig-Sauers e os coloquei em uma caixa de plástico. As
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duas facas seguiram. Coloquei o meu pequeno frasco de pó de acônito nela.
— Obrigada! —A bruxa disse e olhou para Ascanio.
O garoto ofereceu-lhe a faca com um sorriso encantador. — Oi! Qual o
seu nome?
— Meu nome é ‘Coloque a faca na caixa’, por favor!
Ascanio depositou a faca na caixa e me seguiu.
— Desistindo? —Eu perguntei.
— Ela não está interessada, —disse ele. — Bonitinha, mas não
interessada.
Essa era uma coisa que eu poderia dizer honestamente sobre as boudas de
Atlanta: os homens sempre entendiam a diferença entre não e talvez.
Nós atravessamos o chão até uma mesa pesada, ocupada por uma
bibliotecária feminina. Ela sorriu para mim. — Posso te ajudar?
— Precisamos de acesso à Biblioteca de Alexandria.
— Você já tem um cartão?
— Não, mas eu gostaria de ter.
— Andrea? —Uma voz masculina familiar disse.
Eu virei. Um homem alto e de ombros largos estava à direita, junto às
estantes de livros de referência, olhando para mim.
Ele usava uma túnica preta com bordados de prata ao longo da bainha e
mangas, presa por um cinto de couro em torno de sua cintura estreita. Seu
cabelo preto estava raspado nas laterais de sua cabeça em uma aparência de
crina de cavalo. Suas feições eram ousadas e duramente desenhadas: ele tinha
um grande nariz aquilino, uma mandíbula quadrada, maçãs do rosto
proeminentes e uma boca cheia que podia ser sensual ou cruel.
Suas sobrancelhas eram pretas e seus olhos, cheios de humor, eram
negros também. Ele parecia realmente gostar dessa cor, o que era
compreensível, já que ele era um Volhv. Os Volhv eram druidas de origem
russa, e eles adoravam, como Kate chamava, ‘Todo Mau e Cruel’ Chernobog,
um deus eslavo. Se você consultasse um dicionário em ‘bruxo das trevas’,
você teria uma foto desse deus. Exceto que ele estaria de pé sobre uma pilha
de crânios e segurando um cajado com fogo mágico atirando nela.
— Oi, Roman.
O Volhv abaixou o livro e andou até nós. Eu tinha que admitir, o manto, o
cabelo e a altura combinavam em um todo bastante ameaçador. Ele sorriu,
mostrando até os dentes brancos. — Você se lembrou do meu nome.
Ele tinha uma das melhores vozes masculinas que eu já ouvi. Rouco,
ressonante e um pouco de um toque sexy sugestivo. Ou talvez era eu que
achava isso. A primeira vez que o vi, ele estava em uma gaiola de loup em
nosso escritório, porque atacou Kate e ela não gostou. Ele fez alguns
comentários para mim, o que poderia ter sido considerado um flerte. De um
jeito feiticeiro sombrio e terrível.
Eu também me lembrei que ele tinha um sotaque russo. Não era muito
acentuado, mas agora ele estava falando como se tivesse nascido e crescido
em Atlanta. Talvez ele tivesse sido.
— Ainda o mesmo estilo de roupa, eu vejo. Você alguma vez se veste
diferente?
— Na minha casa, —disse ele. — Devo manter toda a imagem de ‘senhor
das trevas e sombras’.
— Trevas e sombras não são a mesma coisa? —Perguntei.
Ele abanou as sobrancelhas para mim. — Aaa, você acha que sim, mas
não é. Sombra implica a presença de luz. Eu não sou todo ruim, entendeu?
Partes de mim são boas. Na verdade, partes de mim são excelentes.
Ascanio revirou os olhos para trás.
— Então, —disse Roman. — O que te traz aqui?
— Estamos tentando ter acesso à Biblioteca de Alexandria.
— Posso te ajudar. Deixa comigo, Rachel. —Roman acenou para nós. —
Me sigam
Nós o seguimos por uma escada alta cinza e marrom. — Você vem aqui
com frequência? —Perguntei.
Ele revirou os olhos escuros. — Eu moro praticamente nesse lugar
miserável. Papai está me fazendo rastrear uma lenda obscura. A Bruxa
Oráculo previu algumas coisas há algumas semanas atrás, e eu tenho
pesquisado desde então.
— Você poderia simplesmente dizer não a ele? —Perguntou Ascanio por
trás.
Roman olhou para ele e soltou um suspiro dramático. — Meu pai é o
Volhv Negro. Minha mãe é uma das bruxas Oráculo. No meu lugar, você tem
que se perguntar se dizer não vale a pena os problemas, os incômodos, as
acusações de não ser um bom filho, as palestras de meus pais e a história de
como minha mãe ficou em trabalho de parto por quarenta horas, eu posso
recitar essa história da memória. É mais fácil apenas fazer o que eles querem.
Além disso, se a profecia for um sinal de algo terrível que pode acontecer,
podemos estar preparados.
— Que tipo de profecia foi? —Perguntou Ascanio.
— Isso é confidencial. —Roman piscou para ele. — Eu até poderia dizer
a você, claro. Mas então teria que matá-lo e aprisionar sua alma, assim você
seria meu fantasma servo por toda a eternidade. Venham, é por aqui.
Roman virou à esquerda, entre as estantes, indo mais fundo no segundo
andar da biblioteca.
Os olhos de Ascanio se arregalaram. Ele se virou para mim. — Ele pode
fazer isso?
Eu encolhi meus ombros. — Eu não faço ideia. Por que você não o
provoca, vamos descobrir?
— Não, obrigado.
Roman nos conduziu através do estreito túnel entre estantes de livros até
a parte de trás da biblioteca, onde cinco monitores brilhavam fracamente. Ele
tirou um cartão do bolso e passou-o pelo leitor de cartões dos dois terminais
mais próximos. O logotipo da Biblioteca de Alexandria, um livro envolto em
chamas, apareceu nas telas.
— Aqui está.
— Obrigada. Muito obrigada. —Foi muito legal da parte dele.
— De nada, posso fazer uma pergunta? Em particular?
— Claro. —Eu apontei para o terminal esquerdo. — Ascanio, comece a
procurar informações do nosso homem. Fique atento a qualquer coisa que
tenha a ver com sua coleção de arte.
Nós caminhamos ao longo da parede fora da distância de audição de
Ascanio, o que nos levou quase todo o caminho até o final da seção.
Os olhos escuros de Roman ficaram sérios. — Você tem laços com o
Bando, não é?
— Alguns.
Ele franziu a testa, aproximando-se de mim, todo alto e moreno. — Você
ouviu alguma coisa … alarmante? Qualquer coisa sobre eles tomando conta
da cidade, por exemplo?
— Não. Isso não aconteceria de forma alguma. Curran é um separatista,
—eu disse a ele. — Ele acredita em manter uma distância entre os
metamorfos e todos os outros. O Bando adora onde ele pisa. Não fariam nada
sem o seu comando. Mesmo se eles fizessem, como eles manteriam essa
ação? Todos os outros se uniriam e os esmagariam, deixando de lado
qualquer ação do governo.
Roman acariciou seu queixo. — Verdade, verdade …
— Por que você pergunta?
— A profecia. Algumas profecias são assinaladas. Esta não foi. As bruxas
viram uma sombra caindo sobre a cidade e depois houve uivos. Um uivo
ensurdecedor e assustador. Elas não têm certeza se é um cachorro ou um lobo
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ou qualquer outra coisa. Também viram um espiral de argila .
— Então o que isso significa?
Roman sacudiu a cabeça. — Não sabemos. Deve ter parecido apavorante,
porque minha mãe ficou abalada depois disso.
Eu conheci Evdokia. Qualquer coisa que conseguisse chocá-la tinha que
ser tratada como uma séria ameaça.
— Você está livre amanhã à noite? —Roman perguntou. — Eu adoraria
conhecer suas perspectivas sobre as coisas.
— Você está me convidando para um encontro? —Flertando ou não
flertando?
Roman apoiou um dos braços na estante de livros. — Quem eu? Eu não
namoro. Eu só seduzo virgens para os sacrifícios.
Flertando. Descaradamente flertando. — Hmm, então eu não sirvo para o
seu propósito. Eu não sou uma virgem.
Ele sorriu. — Este seria um encontro profissional.
— Aha.
— Completamente profissional, —disse Roman, voltando a acentuar o
sotaque russo.
Ele era encantador e engraçado e um pouco assustador, o que sempre era
um ponto a menos para mim. Mas cada nervo em meu corpo ainda doía. Se
havia uma coisa que eu aprendi, era que saltar de um relacionamento para
outro era uma má ideia.
Ainda assim ... minha vida não precisava estar ligada a Raphael. O mundo
não estava limitado a um bouda idiota. Aqui estava um cara, um cara
engraçado e bonito, que provavelmente me achava interessante. Poderia
gostar dele. Não, não poderia. Tentar com outra pessoa não resolveria esse
assunto. Eu poderia ficar perfeitamente bem sozinha.
— Estou investigando quatro assassinatos de metamorfos, —eu disse a
ele. — Você já ouviu alguma coisa sobre isso?
— Não. Mas eu posso ouvir de você.
— Bom, olha, eu não sou uma boa ideia para você nesse momento,
porque não sou virgem e você não é uma boa ideia para mim porque você não
sabe nada sobre os assassinatos. Talvez outra hora?
Ele estendeu a mão para mim. Um segundo, a mão dele estava vazia e, no
dia seguinte, um pequeno cartão preto com um número de telefone branco
apareceu como que por mágica. — Pode pegar o cartão? —Ele perguntou,
piscando. — Vamos, pegue um.
— Será que vai brotar presas quando a magia vier?
— Você não vai descobrir a menos que você tenha ele. Ou você é uma
galinha covarde?
Eu peguei o cartão. — Apenas um aviso, se isso tornar algo desagradável,
eu vou me vigar.
Roman riu baixinho.
— Você quer um meu? —Perguntei.
— Cinco, cinco, cinco, vinte e um treze.
O número do escritório. Ele deve ter conseguido de Kate.
— Bem, eu tenho que ir, —eu disse.
Roman olhou para cima e disse em uma voz conspiratória. — Se eu
desaparecer em um pilar dramático de fumaça preta, você acha que os
aspersores vão disparar?
Eu me inclinei para ele e mantive minha voz baixa. — Provavelmente.
Mas estou disposta a fechar meus olhos por um segundo e fingir que você fez
de qualquer maneira.
Fechei os olhos por um longo momento e quando os abri, ele se foi.
Quando voltei aos monitores, Ascanio me entregou um bloco de
anotações com algumas coisas escritas. — Eu encontrei alguns artigos e ...
também o Volhv gosta de você, —ele disse, seu olhar fixo na tela.
— Sim, ele gosta. —Eu examinei suas anotações. Ele fez uma lista dos
leilões de arte que Jamar tinha visitado.
— Isso significa que você terminou com Raphael?
Eu dei a ele meu olhar de atirador. — Se você quiser pisar fora do
escritório novamente e me acompanhar, vai ter que parar de se interessar pela
minha vida amorosa. Não é da sua conta.
Ele se virou para mim com uma expressão de remorso que poderia ter
feito os anjos chorarem. — Sim, senhora.
Como uma criatura vai de um doce bebê como Rory para um Ascanio?
Pensar que um dia eu poderia ter filhos e, dado que eu era meio bouda, eles
provavelmente seriam iguais a ele. O pensamento incomodava.
— Aqui diz que Jamar comprou um assento de vaso sanitário por
cinquenta mil dólares, —disse Ascanio.
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Eu olhei na tela. — Diz que é de Amarna , da décima oitava dinastia do
antigo Egito.
— É um assento de vaso sanitário, —disse Ascanio.
— Tem quatro mil anos de idade.
Ele olhou para mim, incrédulo. — Alguns antigos egípcios sentaram-se
nele e fizeram o número dois lá.
— Eu suponho que sim.
— Ele pagou cinquenta mil dólares por um assento usado.
— Talvez tenha sido banhado a ouro, —eu disse a ele.
— Não, aqui diz que é feito de mármore, então se você usar isso, você
congela o seu rabo quando se sentar nele.
— Não é frio no Egito. É quente. Sua compreensão da geografia é
instável, meu amigo. —Sentei-me na frente de um monitor ao lado dele de
Ascanio e digitei Jamar Groves na janela de busca.
— Você pode comprar um carro com cinquenta mil dólares. Um carro
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muito legal. —Os olhos de Ascanio se iluminaram. — Um Hummer .
Poderia comprar um Hummer convertido.
— Você não precisa de um Hummer, —eu disse.
— Gatinhas gostam de Hummer.
— Você não precisa de nenhuma gatinha também.
Ele me deu um olhar ferido. — Eu tenho necessidades.
— Eu também tenho necessidades e agora preciso que você se concentre
em rastrear a coleção de antiguidades de Jamar. Vamos lá.
Nós ficamos na biblioteca por três horas quando a onda súbita de magia
apareceu e acabou com nossa pesquisa. Nós identificamos trinta e sete itens.
Considerando que minha lista do conteúdo do cofre incluía apenas 29, isso
nos deu pelo menos oito artefatos pelos quais não pudemos contabilizar. Uma
faca de Creta, dois colares da civilização etrusca, que aparentemente era uma
espécie de cultura pré-romana na Itália, uma estátua com cabeça de gato do
Reino de Kush, uma cabeça de bronze de Sargon, o Grande, que era algum
tipo de rei em Akkadia, uma lança do mesmo país, e duas tábuas de pedra
com antigos escritos hebraicos. Nenhum desses acendeu alguma suspeita
quando os encontramos. Quer gostasse ou não, era hora de sair e ir para casa.
— Aquele mecânico disse que encontrou o cheque da mulher que ele
rebocou, —disse Ascanio.
— Sim? —Ele ia ser a minha próxima parada.
— Eu posso pegar o cheque para você, —Ascanio ofereceu.
Eu olhei para ele. — Prometa que não vai se matar.
— Eu prometo.
— E se houver alguma ameaça, você vai correr como um coelho
assustado.
Ele assentiu.
— Ok. —Eu dei a ele o dinheiro. — Não mate, não morra, não estrague.
Vá, fiel aprendiz!
Ele me deu um sorriso e partiu. Bem, isso o manteria longe de problemas
por um tempo. Esperançosamente.
Eu olhei para o monitor de computador agora morto. Esta noite Raphael e
eu iríamos para a casa de Anapa.
Se tudo corresse bem, não nos mataríamos.

Capítulo 8
Raphael chegou na hora. Ele sempre chegava na hora. Às sete, uma
pequena pedra bateu na janela do meu quarto e rebateu nas barras de proteção
com um tinido alto. Eu olhei através do vidro. Raphael estava abaixo,
vestindo um smoking.
Como se fôssemos adolescentes indo ao baile do final do ano.
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Peguei minha enorme clutch da cama e me examinei pela última vez no
espelho. O vestido era malvado, impressionante e foda. Meu cabelo loiro
flutuava ao redor da minha cabeça em uma nuvem lindamente desordenada
que levou meia hora para arrumar e convencê-lo a ficar no lugar. Eu tinha
feito minhas sobrancelhas em uma forma perfeita, apliquei uma linha estreita
de delineador em volta dos meus olhos para fazê-los sobressair, passei uma
leve camada de cor nas minhas pálpebras e terminei com uma camada dupla
de rímel. Meus lábios eram vermelhos, cintilantes e intensos, combinando
com o rubi do olho do dragão.
Coloquei uma pulseira no meu pulso: pedras vermelhas misturadas com
safiras brancas. Era a única joia valiosa que eu possuía. Minha mãe comprou
para mim quando me formei na Academia da Ordem. Eu sempre achei que
me trouxe sorte.
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Eu chequei minha clutch para ver se o contorno do meu Ruger SP101
aparecia através do couro preto. Não aparecia, certo.
Tudo certo. Com a magia, nem sequer dispararia, mas me confortava tê-la
comigo. Eu não levaria uma faca. Poderia contar com Raphael levando
várias.
Por alguma razão, quando um metamorfo normal entrava em briga, a
natureza acionava um interruptor na cabeça que mandava criar garras e presas
e rasgasse as coisas em vez de atirar nelas à distância ou cortá-las com facas
como pessoas inteligentes fariam. Eu sempre dei crédito a Raphael que ele
era a exceção a essa regra.
Ele estava esperando. Não há mais o que enrolar aqui. Eu estava tão sexy
quanto conseguiria.
Dei de ombros e saí do apartamento com meus saltos pretos de dez
centímetros. Um passo, outro passo, desci as escadas e saí pela porta.
A brisa da noite girou em torno de mim, jogando aromas em meu rosto.
Raphael esperava por mim na calçada. Meu cérebro levou um segundo para
processar o que eu estava vendo e ficou paralisado. Minha coordenação
motora foi embora.
Eu parei.
Raphael usava um smoking preto. A luz do começo da noite brincava em
seu rosto, pintando o lado esquerdo dourado, enquanto a direita permanecia
na sombra. Ele parecia perfeitamente equilibrado entre a escuridão e a luz.
O terno elegante mapeava a força de seus ombros largos e a elasticidade
flexível de sua cintura estreita, trazendo à tona a beleza natural de seu corpo e
seu lado perigoso. Seus olhos azuis pareciam duros e focados que te avisava:
não cruze a linha, seria extremamente imprudente.
Ele não usava o smoking como um cavalheiro acostumado a usar um
terno, nem o usava como um cavaleiro usa sua armadura. Raphael usava da
mesma forma que um assassino usa couros e capas. Ele era um punhal
vestido em uma bainha preta. Eu queria agarrá-lo, mesmo sabendo que ele
cortaria minha alma em pedaços.
Meu coração martelou no peito. Isso era uma ideia muito ruim. Mas era
minha única chance com Anapa e seu escritório, e eu tinha uma dívida para
pagar com Nick e com as famílias dos quatro metamorfos mortos.
Raphael estava olhando para mim e eu apenas fiquei lá, incapaz de me
mover. Eu tinha que fazer alguma coisa. Diga algo.
Triste, triste Andrea triste, embalando seu coração partido e miserável.
Patética.
Eu me recompus, entrando nos eixos de novo. O mundo parou de girar,
minha mente entrou em ação e finalmente registrei o significado da expressão
de Raphael. Ele parecia em branco. Completamente em branco, como se
estivesse olhando para algo que havia destruído seu cérebro.
— Raphael?
Ele abriu a boca. Nada saiu.
— Você está bem?
Os lábios de Raphael se moveram. Ele xingou.
Ah! Peguei você! Morra, querido. Onde está sua noiva de dois metros de
altura agora?
— Há algo errado com o meu vestido? —Passei minha mão pelo meu
corpo.
Raphael finalmente conseguiu formular uma palavra. — Não. Apenas
imaginando onde você escondeu sua arma.
Mostrei-lhe minha clutch gigante.
— Ah, —ele disse. — Não vi isso.
Claro que ele não viu. Estava muito ocupado olhando para mim. Era uma
pequena vingança boba, mas tinha um gosto tão doce.
Raphael me levou ao seu Jeep do Bando que cuspia e rugia, arrotando
magia. Ele abriu a porta para mim. Quando cheguei perto, seu perfume
deslizou pela minha pele, cantando para mim.
Companheeeeiro. Companheiro, companheiro, companheiro.
Droga.
Sentei no meu lugar. Em vez de fechar a porta, ele se inclinou para mim,
um olhar de intensa concentração no rosto, como se estivesse prestes a dizer
ou fazer algo imprudente.
Minha respiração ficou presa na minha garganta. Se ele se abaixasse para
me beijar, eu iria dar um soco na cara dele. Eu não seria capaz de me
controlar.
Raphael se afastou de mim e fechou a porta.
Bom. Foi melhor assim. Isso mesmo.
Raphael entrou no jipe, fechou a porta, abafando o rugido do motor de
água encantada e nós decolamos.
Ele alcançou o compartimento lateral em sua porta, pegou uma pasta e a
deixou cair no meu colo. Eu abri. Uma linha do tempo dos movimentos de
seus trabalhadores na noite do assassinato. — Ótimo. Obrigada.
— Não há de que.
Analisei as linhas do tempo.
Vinte minutos depois, ficou claro que nenhuma das pessoas de Raphael
teve tempo de voltar ao local e assassinar seus amigos e colegas. Raphael era
o único homem sem um álibi sólido. De acordo com sua agenda, ele foi para
casa, aparentemente sem sua noiva. Conhecendo-o, eu esperava que fossem
como coelhos, mas acho que até coelhos tinham um dia de folga de vez em
quando.
Bati no papel. — E quanto a Colin? O arquivo de Jim disse que ele está
com dívidas.
— Ele está com dívidas porque sua casa pegou fogo. Ele pegou um
empréstimo de emergência do Bando. Ele trabalha duro e sabe que, se estiver
em apuros, pode vir até mim.
Eu inclinei minha cabeça para trás, mas não muito forte, não faria nada
para bagunçar meu cabelo contra o encosto da cabeça.
— Nós concordamos em compartilhar informações, —disse Raphael.
— Eu não tenho muito o que compartilhar. Passei o dia todo na biblioteca
tentando localizar a coleção de arte de Jamar. Encontrei oito itens que não
estavam no cofre, algumas com fotos. Nada se destacou. Tem um conjunto de
impressões que não pertencem a ninguém da sua folha de pagamento, e que
não está em nenhum dos bancos de dados que Jim pesquisou. Analisei uma
tonelada de evidência de antecedentes sem quaisquer pistas conclusivas.
— Você vai resolver isso, —disse ele. — Se Jim não tivesse lhe atribuído
esse caso, eu teria chamado por você.
— Obrigada pelo voto de confiança. Então ninguém pode confirmar que
você foi para casa?
Raphael deu de ombros. — Não. Se eu soubesse que teria que fornecer
um álibi, teria feito questão de não passar a noite sozinho.
— Estou surpresa que você passou a noite sozinho.
Ele não pegou a isca. — Já faz quarenta e oito horas e não temos
nenhuma pista.
Seu tom me disse que ele não estava criticando. Seu povo estava morto.
Raphael estava zangado, frustrado e sofrendo. — Eu não diria isso. Você
sabe como são essas coisas, lento e firme, vence a corrida.
— Eu sei. —Ele olhou para a estrada. — Eu tive que assinar os papéis
dos seguros por morte hoje.
Isso deve ter o abalado. — Nick veio me ver. Ele está passando por um
momento difícil.
— Ele não é o único, —disse Raphael. — Eu deveria saber sobre o cofre.
Deveria saber que estava lá.
— Não se culpe, —disse a ele. — Eu pesquisei as notícias de imprensa de
Jamar durante todo a tarde e não vi o cofre ser mencionado. Você não perdeu
isso. A informação simplesmente não estava lá para começar.
— Você realmente acha que Anapa tem algo a ver com isso?
— Não sei se ele tem. Ele não tem antecedentes criminais. Não tem
multas de estacionamento. Sua empresa está completamente limpa, embora
eu não tivesse tempo para cavar muito fundo além disso. Tentei que ele me
recebesse, ele sabe que está sendo observado. Sua segurança sabe que eu sou
também.
Raphael olhou para mim.
— Sua porta-voz fez questão de me lembrar que eu não tinha mais a
Ordem do meu lado.
— Ah.
Ah o que? Ah, isso é muito ruim? Ah, eu entendi? Ah, bem feito para
você? — Eles sabem quem eu sou, sabem que sou capaz de fazer. Por que
não gastou dez minutos respondendo minhas perguntas? Então eu ia embora e
todo mundo ficava feliz.
— Você acha que ele está escondendo alguma coisa?
Suspirei. — Eu não sei. Estou coletando informações e encontrei um
obstáculo. Pronta para encenar um arrombamento, esta festa é a minha
melhor chance.
Raphael bufou. — Um arrombamento. Você?
— Eu pensei sobre isso, —eu disse. — Acho que ele tem o teto
fortemente protegido e há muitas câmeras de vigilância. As câmeras são
fáceis, elas deixam um caminho que dá para você se movimentar de várias
maneiras. Entraria facilmente no prédio do seu escritório. Mas, invadir lá não
faz muito sentido já que ele quase não fica no escritório.
Raphael olhou para mim. Eu gostaria que ele parasse de fazer isso. Toda
vez que ele se virava para mim, meu coração tentava sair para fora do meu
peito em piruetas em uma tentativa fútil de se jogar a seus pés. Enquanto isso,
minhas mãos queriam envolver sua garganta e estrangulá-lo. Era bom que
meu cérebro estivesse no comando.
— Quem é você e o que você fez com Andrea?
— Eu sou a versão nova e mais complicada. Ou muito melhor,
dependendo da maneira como se olha para isso.
Ele olhou para frente. — Eu sempre soube que estar fodido era algo que
tínhamos em comum.
— Não, eu sempre fui a fodida. Você é o mimado.
A linha do maxilar de Raphael endureceu. — Trabalho desde os dezesseis
anos, seis dias por semana. Construí minha empresa a partir do nada, com dez
mil dólares de capital inicial emprestado do Bando, assim como todo mundo,
e paguei cinco vezes mais. Eu estou liderando o Clã Bouda inteiro agora.
Ninguém me deu nenhum tratamento especial. Como exatamente eu sou
mimado?
Eu pisquei para ele. — Sério?
— Sim. Por favor me esclareça.
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— Você se lembra no ano passado que queria tirar as férias nas Keys
por uma semana?
Ele olhou para mim. — Você vai jogar na minha cara nossas férias contra
mim? Você adorou.
Eu adorei. Era só eu, ele e o oceano. — Você se lembra que uma família
bouda queria se juntar ao clã na mesma época? A família De La Torre?
Um metamorfo individual que se juntava ao bando era um assunto
relativamente simples. Ele se apresentava para os alfas de seu clã, e se eles
dissessem sim, os alfas fariam a entrada do metamorfo ao Bando.
Com famílias e pequenos bandos, o processo tornava-se complicado.
Depois de várias verificações de antecedentes e entrevistas individuais, uma
data em especial tinha que ser definida, e alfas ou betas de outros clãs tinham
que estar presentes.
Raphael deu de ombros. — E o que tem os De La Torres?
— A Tia B tinha a data marcada e você tinha que estar lá para apresentá-
los ao resto do Bando com ela.
— Sim.
— E você disse a sua mãe que ela podia fazer o que quisesse, mas você
estava tirando suas férias.
— Eu trabalhei sete dias por dois meses sem parar.
Eu mostrei meus dentes para ele. — Você vai me deixar fazer o meu
ponto ou eu tenho que te morder para impedi-lo de interromper?
— Se você me morder, eu vou morder de volta. E eu tenho dentes
maiores.
Ah, é assim então. — Mas estou muito mais motivada.
Ele rosnou. Eu rosnei logo depois e estalei meus dentes humanos para ele.
Uma pequena luz louca acendeu nos olhos de Raphael, mas eu não consegui
entender o que isso significava. Eu costumava ser capaz de lê-lo melhor.
Costumava saber exatamente o que ele estava pensando, isso que se
registrava em seu rosto, eu não sabia. Ele estava mais fechado agora,
misterioso. Havia uma determinação de aço e uma sugestão de perigo sob a
superfície.
Raphael se tornou imprevisível. Era excitante e excitação não era a
emoção que eu estava procurando.
— O que, não vai dizer mais nada? —Ele perguntou.
— Estou esperando para ver se você vai fazer alguma coisa ou apenas
mostrar seus lindos dentes.
— Não me tente.
Eu dei um suspiro de zombaria. — Oh, eu faria. Mas então eu teria que
levar seu corpo maltratado para sua noiva e eu odeio histeria. Ou você queria
dizer o outro tipo de tentação?
Raphael riu. Foi uma risada selvagem que prometia todos os tipos de
coisas más. Diversão e coisas malvadas.
Algo apareceu na nossa frente.
— Ônibus! —Eu gritei.
Ele olhou para o para-brisa e desviou, evitando por alguns centímetros
um ônibus parado e tombado.
Pequenas agulhas de adrenalina arrepiavam minha pele. Estremeci,
tentando afastá-las. Os cabelos na minha nuca se arrepiaram. Manchas fracas
da minha besta apareceram sob a pele dos meus braços.
— Qual foi o ponto de trazer o episódio das férias? —Raphael perguntou.
— Sua mãe remarcou tudo. Ela trocou um favor com Curran por uma
autorização especial para que a família pudesse ficar por mais uma semana no
território do Bando. Convenceu Valência a remarcar o recital de balé,
quarenta alunos tiveram que mudar seu horário para coincidir com a nova
data. B planejou e embaralhou as coisas. Não importava quantas pessoas
ficariam incomodadas, mas o bebê dela teria as férias dele, por Deus. —Eu ri.
— Encontrei ela brigando com Valência. Quase chegaram ao sangue. Eu me
ofereci para mudar as férias. Ela olhou para mim como se eu tivesse crescido
uma árvore de Natal na minha cabeça. —Imitei a voz da Tia B. — Oh não,
querida. Você sabe o quanto Raphael trabalha muito. Vocês dois vão lá e se
divirtam.
Raphael olhou severamente através do para-brisa, dirigindo pelos buracos
no asfalto com precisão cirúrgica.
Nenhum comentário, né?
— Você cresceu protegido e nem sabe a sorte que tem. Sua mãe te ama
mais do que a própria vida. Ela celebra o fato de que você existe. —
Considerando que ambos os irmãos de Raphael tinham ficado loups na
infância e B teve que matá-los, eu não podia julgá-la. — Você é inteligente,
bonito e respeitado. Você é um lutador perigoso e se tornou rico ...
— Confortável, —disse ele com os dentes cerrados.
— Certo, confortável. As mulheres se jogam em seu caminho. Aposto
que quando você trouxe sua noiva para a Tia B, ela nem piscou um olho,
quando qualquer outra pessoa teria sido expulsa do Clã Bouda.
— Existe algum motivo para você estar acariciando meu ego?
— Não estou acariciando. Estes são fatos simples, querido. Raphael, você
é adorado. Você tem tudo.
— Nem tudo, —disse ele.
— Tudo, —repeti. — Se você não for mimado, não sei quem é. É por isso
que você nunca pode se colocar no meu lugar. Toda essa boa sorte lhe deu
certas proteções. Para você, ‘bouda’ significa pessoas que pensam que você é
um semideus. Para mim, ‘bouda’ significa pessoas que quebraram meus
ossos por diversão.
Ele se virou para mim novamente, seus olhos azuis escuros. — Meu clã
bouda nunca abusou de você. Este Bando ofereceu proteção a você e lhe
convidou para fazer parte dele. Você os traiu.
E voltamos à estaca zero.
— Chegamos. —Raphael assentiu à frente. No final da rua, uma mansão
espaçosa erguia-se contra o céu, toda de pedra branca esculpida e detalhes em
ouro. Bonita.
Um estacionamento fechado esperava por nós, completo com um
98
atendente em uma cabine pequena, armado com uma arbalest .
Se estacionássemos nesse estacionamento fechado, estaríamos presos.
— Não no estacionamento, —eu murmurei.
— Sim. Podemos precisar sair rápido. —Raphael virou na rua lateral. Boa
ideia. Se tivéssemos que sair com pressa, seria mais rápido do que sair de um
estacionamento.
Eu apontei para o prédio meio arruinado. — Isso parece bom e escondido.
Ele estacionou atrás da ruína e desligou o motor, matando o barulho
constante que fornecia o pano de fundo para a nossa conversa. Nós nos
sentamos mergulhados no súbito silêncio.
Eu enfrentei ele. — Continuamos voltando a esse problema de novo e de
novo, então vamos resolver de uma vez por todas, porque eu não quero mais
falar sobre isso. Digamos que a Clã Bouda fosse atacado e incendiado, e
então algum cavaleiro da Ordem ligasse pedindo minha ajuda. Sua mãe te
proibisse de sair, porque ela precisa de você lá. Sua casa do clã está em
ruínas, mas eu quero que você venha comigo para ajudar a Ordem. Você iria?
— Isso é exatamente o que você não entende. —O rosto de Raphael
estava decidido. — Se minha mãe colocasse esse tipo de condição em mim,
eu teria dito a ela para se foder. Qualquer pessoa que lhe der um ultimato de
‘escolha-me’ ou ‘salve o seu amigo’ não vale a sua lealdade.
Ele tinha alguma razão. — Você está certo. Mas a minha pergunta
permanece. A Ordem era tudo para mim, Raphael. Era o meu bando, minha
família. Todos os dias eu me levantava e ia trabalhar, me orgulhava do que
conquistei, porque eu era um cavaleiro. Eu ajudava as pessoas. Eu não era
mais uma criatura patética e louca que todos chutavam e socavam sempre que
queriam. Eu não queria ser mais essa criatura. Talvez tenha sido covarde
rejeitar a realidade de eu ser um metamorfo e fingir que eu era humana. Eu
não sei. O que sei é que enquanto eu fosse um cavaleiro, eu não seria uma
vítima. Eu era importante para alguém, você entende isso?
— Sim, —disse ele.
— Você acha que foi fácil para mim? Porque não foi. Às vezes, não
importava o que eu fizesse, eu tinha escolhas ruins para lidar, e eu fiz o meu
melhor que pude. Então me diga, Raphael, você teria se afastado da sua mãe
e do seu clã para ajudar a Ordem?
— Não, —disse ele.
Seu tom me disse que finalmente entendeu. Ele não gostou, mas
entendeu. A Ordem tinha sido minha família. Eles me maltrataram, mas você
não abandona sua família só porque eles fazem algo que você não gosta. Nós
finalmente chegamos a um entendimento. Infelizmente, era tarde demais para
nós dois.
— Então eu considero este assunto encerrado. —Abri a porta do meu lado
e saí para o ar frio. Um momento depois ele se juntou a mim. Nós
caminhamos pela rua em direção à mansão.
— Sinto muito sobre o episódio no seu escritório, —disse Raphael. — Eu
não deveria ter levado Rebecca. Foi mesquinho.
— Águas passadas. —Acenei minha mão para ele e dei-lhe um sorriso
doce. — Mas se você fizer isso de novo, eu vou matar vocês dois.
Ele riu baixinho. Foi uma deliciosa risada sedutora que conhecia tão bem.
— Tenha cuidado, alguém pode confundir você com uma bouda imunda.
— Eu gosto de boudas. Eles são divertidos na cama.
— Eles? —Uma borda afiada repentina penetrou na voz de Raphael.
— Eles. Já que você é oficialmente um homem compromissado, não se
importará se eu testar alguém do clã.
— Como quem?
Nós passeamos pelos portões. O guarda na cabine verificou meu vestido e
ficou olhando. Eu dei a ele um sorriso amigável.
Raphael levantou o convite. O guarda examinou e acenou para nós.
— Aproveitem a festa.
— Nós vamos, —Raphael respondeu em uma voz que sugeriu que o
inferno iria congelar antes que ele pudesse aproveitar qualquer coisa.
Passeamos pela calçada.
— Quem? —Raphael exigiu.
Para um homem a um fio de distância de se acasalar com outra mulher,
ele estava muito interessado em minhas aventuras sexuais.
— Eu ainda não decidi. Sempre quis ter uns três.
Raphael parou.
— Dois caras ou talvez um cara e uma garota. Desde que você é mais
experiente do que eu, o que você acha? Qual deles é mais divertido?
— Por que só dois parceiros? —Raphael disse, enunciando as palavras
muito claramente. — Por que não meia dúzia? Você poderia distribuir
números para manter a ordem. Cada um recebe uma placa bonitinha escrito
nela: — Pode vir, agora.
Ah, o bouda mimado não gostou disso. Nem um pouco. — Não seja bobo.
Isso seria brega. —Parei ao lado do vidro e da porta de ferro forjado,
esperando que ele abrisse.
— Brega?
— Sim.
Raphael abriu a porta. Lá dentro, um salão de azulejos nos esperava,
banhado pelo brilho das lâmpadas elétricas feitas para parecerem com velhas
lanternas a gás. Eu passei e acenei para uma mulher mais velha em pé ao lado
da porta. Ela usava um vestido da cor do vinho tinto e sua maquiagem era
impecável. Dois homens estavam perto dela. Ambos pareciam que
mastigavam rochas e cuspiam cascalho para ganhar a vida.
— Seu convite, —disse a mulher.
Raphael entregou-lhe o convite e soltou um sorriso. Uau. Ascanio não
sabia, mas ele tinha um longo caminho a percorrer.
O rosto da mulher suavizou-se. Ela escovou o convite com os dedos bem
cuidados e sorriu de volta.
— Bem-vindo à festa.
Dezesseis ou sessenta anos, isso não importava. Raphael sorria e a
mulherada suspiravam. E ele ainda se perguntava por que eu achava ele
mimado.
Raphael colocou a mão nas minhas costas, gentilmente me escoltando até
a sala ao lado. Uma sala espaçosa se estendia à nossa frente. Suas paredes
cremes subiam alto, sustentando um teto de seis metros. O piso de granito era
polido em brilho quase espelhado. Janelas enormes de quatro metros de
altura, emolduradas por cortinas brancas delicadas e cortinas douradas mais
grossas, derramavam a luz fraca do entardecer na sala. Molduras corriam ao
longo do teto. À nossa direita, uma escada branca curva conduzia ao andar de
cima. O lugar inteiro parecia um palácio, gracioso e de alguma forma
atemporal.
O ar cheirava a vinho, canela e outro aroma estranho, mas familiar ...
orégano? Não. Manjerona, misturado com a doçura exuberante e fumegante
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da mirra. — Escolha interessante para pot-pourri .
— Picante. —Raphael se inclinou para mim, aquele sorriso arrojado
ainda em seu rosto. — Com esse perfume forte eu não consigo sentir se esse
cheiro está encobrindo o cheiro de algo desagradável ou não.
Ficamos parados por um longo segundo, nossas narinas se agitando,
tomando respirações rasas e tentando separar as fragrâncias uma das outras.
— Eu sou um fracasso, —disse. — Se houver algum odor oculto sob essa
mistura de ervas e resinas, eu não consigo dizer.
Raphael franziu as sobrancelhas. — Eu também.
À nossa volta, pessoas caminhavam por todos os lugares, homens de
smokings e ternos sob medida, mulheres em vestidos caros e pedras
brilhantes, parecendo servos de algum antigo tirano. A música emanava de
algum lugar acima, suave, exótica e discreta, como uma sugestão de um
perfume intrigante pairando no ar.
— Por que tenho a sensação de que estou em uma corte? —Murmurei.
— E essa corte parece ter seu próprio rei, —disse Raphael.
Os convidados se separaram e eu vi um homem. De estatura média, ele
tinha uma riqueza de cabelos ondulados da cor de âmbar claro. Um terno caro
cinza claro desenhava sua figura magra. Ele virou.
Hããã. Anapa era lindo.
Ele estava em seus trinta e tantos anos, aproximando-se dos quarenta. Seu
rosto estreito, com maçãs do rosto pronunciadas e um queixo forte, era
masculino, mas era uma masculinidade civilizada, refinada, aristocrática e
cuidadosamente preparada. Alguns homens ricos exageravam nos cuidados
com a aparência, faziam as sobrancelhas e raspavam o rosto até parecerem
ligeiramente femininos. Anapa equilibrou muito bem isso. Seu cabelo estava
perfeitamente cortado, mas ligeiramente despenteado. Suas sobrancelhas
ainda mantinham algum desalinho. Seus lábios eram cheios e bem feitos, mas
suas bochechas e queixo sugeriam uma barba rala. Seus grandes olhos azuis,
com cílios curvos, escondiam um intelecto vivo e uma centelha de humor.
Sua pele, bronzeada do sol e escura para um loiro, sua imagem refletia o
litoral, sol brilhante e da água azul. Ele não parecia um nórdico era mais
100
como um mediterrâneo .
Ele nos viu e sorriu, fazendo linhas de riso nos cantos de seus olhos se
destacarem. Era um sorriso caloroso e amigável, como se achasse algo sobre
nós incrivelmente divertido e não pudesse esperar para compartilhar.
— Nós fomos descobertos, —disse Raphael, começando em direção a
Anapa.
Nós passeamos pela multidão em direção ao nosso anfitrião. — Como
vamos representar isso? —Perguntei.
— Eu sou um homem de negócios e você é meu delicioso doce de
101
braço , sem cérebro.
Delicioso doce de braço? — É bom que Rebecca não esteja aqui ou ela
ficaria com ciúmes.
— Ela não saberia o que significa doce de braço, —disse Raphael, seu
rosto neutro.
— Oh, ela não é o tipo ciumenta?
— Não, ela realmente não saberia o que a expressão significava.
Ah!
A mulher de vestido azul à nossa frente deu um passo para o lado e
Anapa se aproximou de nós.
— Senhor Medrano. —Anapa ofereceu sua mão.
Raphael sacudiu. — Feliz Aniversário.
Eu bati meus cílios e fiz o meu melhor para parecer burra como uma
prancha.
— Obrigado, obrigado. —Anapa olhou para mim, ainda sorrindo, uma
apreciação em seus olhos. Não havia nada de sexual em seu olhar. Ele me
examinou mais da maneira como se examinaria um raro cão de boa
aparência. Ou um cavalo. — E você seria sua adorável acompanhante.
Eu escorreguei na minha língua do Texas e ofereci minha mão. — Boa
noite. Prazer em conhecê-lo.
Anapa levou meus dedos aos dele. Levantou minha mão, como se para
beijá-la, e fez uma pausa, inalando o cheiro, saboreando-o. — Mmm. —Ele
riu baixinho. — Você tem um corpo muito interessante.
Ceeerto, isso foi esquisito.
Raphael se moveu, sutilmente se inserindo entre mim e Anapa. Sua mão
cobriu a minha e o outro homem soltou. — Querida, diga adeus ao Senhor
Anapa. Ele tem outros convidados para conhecer.
— Adeus. —Eu balancei meus dedos para ele.
Anapa sorriu para nós novamente. — Por enquanto.
Raphael me guiou para a multidão.
— Que diabos foi aquilo?
— Eu não sei, —ele rosnou. — Ele parecia normal quando o conheci.
Aparentemente, eu tinha um dom especial para arrancar a loucura nos
homens.
Nós caminhamos para a mesa de bebidas e nos viramos, examinando a
sala.
Um homem na escada à nossa direita. Dois caras na saída, uma mulher na
sacada, mas não havia guardas nos corredores que irradiavam da sala
principal. Peguei um pequeno pedaço de torrada com pinhões e cogumelos
empilhados na bandeja do aperitivo e dei uma mordida. Hmm. Gostoso.
— Segundo andar, —eu murmurei.
— Exatamente, —concordou Raphael.
Se o escritório estivesse no primeiro andar, teria um guarda restringindo o
acesso a ele.
— Pronta? —Raphael perguntou.
— Pronta.
Nós caminhamos para a direita em uníssono e começamos a tecer nosso
caminho de um grupo de pessoas para o próximo. O segundo andar teria que
esperar. Nós tínhamos acabado de entrar e os guardas ainda estavam nos
observando, e se eles fossem bons, eles provavelmente teriam pedido minha
identidade agora. Tínhamos que circular até que eles se concentrassem em
outra pessoa.
Quarenta minutos depois, fizemos um circuito completo pela sala. O
velho Rafael costumava ser especialista em conversa fiada. Ele falava com os
homens sobre negócios, dizia elogios sutis às mulheres e todos o amavam.
O novo Raphael ao meu lado parecia mais sério e menos disposto a bater
papo. Apesar de sua aparência linda, mas sombria ao meu lado, conseguimos
descobrir a localização do escritório através de um casal mais velho. O covil
da ruína de Anapa ficava no segundo andar, no lado sul da casa.
Coincidentemente, um dos banheiros do primeiro andar ficava do lado sul
também, fato que descobri quando fui arrumar o cabelo.
A música ficou mais alta. Casais dançavam no meio do salão, balançando
para frente e para trás. O álcool estava indo tão rápido quanto os garçons o
trazia. Algumas pessoas pareciam já pareciam bem embriagadas para o estilo
sofisticado da festa de Anapa. A conversa fiada e fofoca inofensiva
acabaram, dando lugar aos tópicos mais apimentados e olhares significativos
enquanto a bebida abaixava as inibições.
Raphael pegou minha mão e me levou para o meio do salão.
— O que você está fazendo? —Perguntei através do meu sorriso.
— Se eu tiver que ouvir outra vez de como Malisha, da contabilidade,
ficou com Clayton, do departamento jurídico, vou enlouquecer. —Ele me
virou, ainda segurando minha mão, manobrando-me para uma pose de dança
clássica. Seu braço deslizou ao redor da minha cintura e eu tremi.
— Então você pensou que dançar seria melhor?
— Sim. —Ele começou a balançar. — Finja que estar aproveitando.
— Um homem bonito, uma grande festa, comida adorável. O que não é
pata aproveitar? Oh espere, o homem é você. —Eu comecei a dançar
também. Eu era muito boa em dançar. Ele se arrependeria de me puxar para
este salão. — Você gosta de foder comigo, não é?
— Bem, já que decidimos que você é minha acompanhante, tenho que me
divertir de alguma forma.
Já que estamos jogando esse jogo ... inclinei meu rosto para ele e dei-lhe
um olhar apaixonado.
— Você precisa espirrar? —Ele perguntou.
— Fique quieto. Estou fingindo gostar da sua companhia, assim como
você disse.
— Tente não parecer forçado.
— Oh, eu não vou. Eu sou muito bom em fingir.
Isso calou a boca dele.
Nós continuamos balançando. Estar perto dele assim, embrulhada em
seus braços, era pura tortura. Eu me inclinei para mais perto dele e fiz um
pequeno ruído, não um rosnado, nem um ronronar, um suspiro de desejo e
luxúria. Raphael se concentrou em mim, como um gato faminto em um rato.
— Você deveria me levar ao banheiro e me beijar, —eu disse a ele.
Um lampejo de fogo rubi explodiu em suas íris e derreteu. Ele se inclinou
mais perto, me puxando para ele. — O que disse?
— Você deveria me levar ao banheiro e me beijar, —repeti em seu
ouvido. — Não há como subir pelas escadas. Podemos usar a janela do
banheiro para chegar ao segundo andar.
A mão de Raphael escorregou da minha cintura até a minha bunda. Um
pequeno choque elétrico correu através de mim.
— Uau, direto para as mercadorias, hein?
— Não pode simplesmente sair do nada. —O sorriso de Raphael era puro
mal.
Nós nos inclinamos um pouco mais.
Raphael apertou minha bunda.
— É sério isso?
Ele ignorou. — Fingindo, querida, você se lembra.
Eu passei meus braços em volta do pescoço dele, estiquei contra ele,
como um gato preguiçoso querendo um carinho.
No outro extremo da sala alguém quebrou um copo. A sala virou-se
coletivamente em direção ao som.
Raphael pegou minha mão e nós silenciosamente escorregamos para o
corredor da esquerda. Estava quase deserto. Dois caras encostados na parede,
concentrados em uma discussão que envolvia frases como ‘idiota’ e ‘como se
ele estivesse no maldito lugar’. Eles não nos deram atenção.
Uma pequena placa na porta à direita dizia BANHEIRO.
Raphael tentou a porta. A alça não girou na mão dele. Ocupado.
Um sujeito da segurança saiu do quarto no corredor, um homem sério,
sem sorrir, em um terno preto completo com um fone de ouvido.
Raphael me empurrou contra a parede e apoiou meu corpo no dele,
pegando meu braço direito acima da minha cabeça e prendendo-o contra a
parede com a esquerda. O clichê mais antigo da cartilha.
Ele estudou meu rosto por um segundo, curvou-se ... seus lábios tocaram
os meus.
Eu queria beijá-lo. Eu o queria tanto que o desejo bloqueava todo o
resto. E por que diabos eu não poderia beijá-lo? Então, e se ele tivesse uma
futura noiva? Eu não lhe devo nada. Ser boa era superestimado.
Raphael lambeu meus lábios, exigindo, seduzindo. Seus dentes pegaram
meu lábio inferior, puxaram levemente. Ele era, neste momento, inteiramente,
completamente meu, só meu.
Eu abri minha boca.
Ele demorou, beijando meus lábios, devagar, certeiro, como se
tivéssemos todo o tempo do mundo e não houvesse necessidade de nos
apressarmos. Pequenos choques elétricos dispararam do meu coração até as
pontas dos meus dedos.
Sua língua deslizou em minha boca e tocou a ponta da minha. Ele tinha
gosto de Raphael: tempero, fogo e necessidade embrulhado em um só. Eu o
lambi, convidando-o para entrar. Nós nos beijamos, cada golpe de sua língua,
cada toque de suas mãos acariciando meu corpo, ampliado para uma sensação
quase dolorosamente intensa. O calor se espalhou através de mim, meu corpo
pronto para mais. Eu queria que ele me tocasse. Eu queria as mãos dele nos
meus seios. Eu queria puxar sua roupa e correr meus dedos pelo músculo
duro de seu peito. Eu o provoquei, seduzindo-o, em seguida, puxando para
trás, deixando-o pensar que ele poderia recuperar a minha boca e tomar o seu
lugar.
Parecia voltar para casa. Parecia um remédio acalmando uma ferida crua.
Eu o amava tanto, e o beijei, bebendo no coquetel de doces lembranças e
amargo futuro.
A porta do banheiro se abriu ao nosso lado, o som muito alto em meus
ouvidos.
Eu parei e instantaneamente Raphael se endireitou. Um homem baixo que
havia saído do banheiro deu um sinal de positivo com um sorriso de ‘Vai lá!’
E seguiu pelo corredor. O segurança não estava à vista.
O beijo havia rasgado um buraco dentro de mim. Eu queria Raphael.
Queria segurá-lo e saber que ele era todo meu. Queria fazer amor com ele. Eu
precisava de um banho frio.
Eu tinha que me recompor e precisava decidir o quanto seria ruim, porque
fazer amor com ele neste banheiro agora seria muito, muito ruim.
Raphael segurou a porta do banheiro aberta para mim. Eu entrei. Ele
seguiu e trancou.
Controle-se. Você consegue. Foi apenas um beijo estúpido de qualquer
maneira.
Ele tinha o olhar muito satisfeito em seu rosto. Ele sabia que tinha me
derretido ali mesmo, e agora se sentia satisfeito por ter me excitado.
Aparentemente eu era um brinquedo.
Seu desgraçado. Certo, vamos ver como você gosta disso.
Eu o empurrei contra a porta e o beijei novamente, deslizando meu corpo
contra o dele, mordiscando, lambendo, ronronando em seus braços. Fui para
ele com todas as armas que eu tinha. Deixei que ele começasse a tirar o paletó
e me separei.
— Eu acho que as barras na janela têm prata nelas, não é?
Ele parou, seu paletó na metade dos ombros.
— É bom que eu trouxe luvas.
— Andrea!
— O que foi? Ah, sobre o beijo? Me desculpe, eu não estava
completamente satisfeita. Mas agora estou e não se preocupe, —dei um
tapinha no peito dele. — Sua virtude está intacta. Você não precisa contar
nada para Rebecca. Foi apenas um beijo. Não significou nada.
Seu grunhido era música para meus ouvidos.
Eu me virei para a janela que ficava perto do teto e era apenas do
tamanho suficiente para passarmos. As barras formavam uma grade
retangular que brilhava fracamente à luz da lua, muito pálida para não ser
uma liga de prata. Prata significava mãos queimadas. Eu segurei barras de
prata com as mãos nuas antes. Parecia pegar algo mergulhado em ácido.
Abri minha clutch e peguei meu cortador de vidro e minha arma, uma
camisa preta e um par de luvas de tecido.
Atrás de mim, Raphael andava de um lado para o outro no banheiro como
um tigre enjaulado.
Todos os meus hormônios ainda estavam acesos, e todo o meu corpo
estava zumbindo. Minhas mãos tremiam um pouco.
Dentro da clutch havia um zíper cuidadosamente escondido. Abri o zíper
e, onde uma clutch normal teria um forro, está tinha alças finas e material
extra que permitia que elas fossem desdobradas em uma mochila maior. Eu
tinha adaptando-a há algum tempo.
— Interessante. —Raphael comentou.
— Estou feliz por ter gostado. Agora sei o que te dar para o seu
aniversário.
— Eu quero o meu azul, —disse ele. — Para combinar com meus olhos.
— Tudo o que você quiser. —Coloquei as luvas. — A janela está
trancada. Você poderia me levantar, por favor?
Ele passou as mãos em volta das minhas pernas e me pegou sem uma
palavra. Ele não apenas me levantou, ele me abraçou, acariciando-me sem
mexer as mãos. Eu ainda estava nervosa, e quando ele me tocou, eu quase
gemi.
Oh, mais essa. Nós estávamos jogando um joguinho sádico, e eu não
perderia para ele.
Eu agarrei a grade. Firme. Apoiei um joelho contra a parede e puxei com
força, empurrando contra Raphael. A grade soltou. Raphael me abaixou no
chão. Deslizei a grade atrás da penteadeira, ao lado da lata de lixo, tirei meus
sapatos e virei de costas para ele.
— Você poderia abrir para mim?
Ele tocou meu pescoço e puxou meu zíper para baixo, lentamente. Um
pequeno e delicioso arrepio tomou conta de mim. Eu não fazia ideia de que
tinha tanto bouda em mim.
Saí do vestido. Por baixo eu usava um minúsculo sutiã preto e shorts de
bicicleta de lycra. Coloquei a camisa, rolei meu vestido, guardei meus
sapatos, meu bracelete da sorte na minha bolsa, e apertei o coldre da minha
arma diagonalmente no peito.
— Bolsa do Exército suíço, —observou Raphael. Eu ouvi as notas
brincalhonas familiares em sua voz. O beijo deve tê-lo desequilibrado, mas
ele já estava recuperado agora, e estava tramando algo. — Alguma algema aí
dentro?
— Não, porque, você acha que eu vou precisar de alguma?
— Depende do que você está planejando fazer e com quem.
E ele tinha que ir lá. A velha Andrea teria lhe dado uma olhada. Eu me
inclinei para ele com um sorriso doce. — Eu não preciso de algemas para
manter um homem na minha cama. Acho que nós dois sabemos muito bem
disso. Se eu realmente quisesse fazê-lo trair a sua noiva, eu iria. Sorte para
ela, que não estou ansiosa em fazer algo que vou me arrepender depois.
Eu coloquei o cortador de vidro na minha boca, pulei para cima e deslizei
pela janela, segurando os tijolos com as pontas dos dedos antes dele descobrir
minha mentira. Eu ouvi Raphael destrancar o banheiro. Um momento depois,
ele puxou-se pela janela com graça fácil.
Subimos como dois lagartos, subindo apressadamente a parede. Raphael
alcançou a janela do segundo andar e arrancou a grade com um puxão casual.
Eu cortei um semicírculo no vidro da janela, estendi, passei a mão pela
abertura e soltei o trinco. O segundo trinco seguiu, e eu deslizei a janela para
cima e mergulhei, as pernas entrando primeiro. Raphael seguiu, colocando a
grade de volta no lugar.
Olhei ao redor do quarto escuro. Os contornos de uma grande cama de
dossel erguiam-se da escuridão à direita.
Raphael roçou minhas costas. Meu corpo pedia por sexo, por favor.
Minha mente dizia: ‘Não até que o inferno congele.’
— Você está me tocando, —eu o repreendi.
Ele acariciou minhas costas, deslizando a mão para baixo, atingindo todos
os pontos sensíveis que eu nem sabia que tinha.
— Não, não estou. Foi apenas um contato acidental.
— Oh? Bom saber. Se você me tocar de novo e eu quebrar seu braço,
você pode ter certeza que será completamente acidental.
Ele se aproximou, sua coxa roçando minha bunda. Eu lhe dei uma
cotovelada nas costelas. Não foi um empurrãozinho gentil.
Ele riu.
— Eu sei que é difícil, desde que eu tenho uma boa bunda e tudo, mas
tente se concentrar em nosso assalto ilegal.
— E existe assalto legal?
Aff ...
Escapei para a porta e abri-a. O corredor estava vazio. Ahhh. Finalmente
as coisas estavam melhorando. Saí pela porta e desci até o final do corredor,
onde uma enorme porta de madeira se erguia.
Supostamente o escritório estava por trás dela. Saí do corredor e corri
para a porta. Raphael me seguiu.
Peguei a maçaneta. Aberta.
— Muito fácil, —Raphael murmurou.
Se fôssemos pegos, o Bando teria o inferno para se explicar.
— Não tem outra escolha agora. —Entrei no escritório.
O aroma de mirra apimentou o ar. Filas de prateleiras marrons olhavam
para mim, cheias de volumes e objetos variados. Uma miniatura de
102
bergantim com detalhes surpreendentes. Um vaso antigo, uma estátua de
um homem musculoso ajoelhado. Ao lado das prateleiras, uma pesada
escrivaninha retangular estava em cima de um tapete com os cantos
adornados com detalhes dourados. Três cadeiras esperavam que alguém se
sentasse, uma atrás da escrivaninha e duas nos cantos da sala. Cortinas
douradas cintilantes emolduravam as duas janelas. Decorações de metal
retorcido pendiam das paredes negras, sendo as mais proeminentes escamas
de metal com uma lua acima delas, na parede em frente à mesa. Os olhos
estilizados da lua estavam fechados para meras fendas e sua boca sorria.
O lugar estava vazio.
Raphael passou por mim e checou as janelas. Eu tranquei a porta e
deslizei para trás da mesa. Deste ponto de vista, a sala assumiu uma nova luz.
Cada objeto dentro do escritório tinha sido colocado em uma posição precisa
orientada pela mente da pessoa por trás da mesa. A mesa era o centro desse
pequeno cosmo e, no momento em que me sentei atrás dele, tornei-me o
ponto focal da sala, como se tivesse assumido um lugar no centro de alguma
convergência invisível de poder. Se objetos inanimados pudessem adorar, os
adornos do escritório de Anapa teriam se ajoelhado diante de mim, porque eu
me sentei no lugar do deus deles.
Os pequenos cabelos na parte de trás do meu pescoço se levantaram. Seja
qual for a inteligência que estivesse em ação aqui, não poderia ser humana.
As pessoas não pensavam assim.
Raphael se afastou da janela e ficou ao meu lado. — O que foi?
Eu acenei com a minha mão. Ele se aproximou e eu o peguei pelo ombro
e o puxei para o meu nível. — Olhe para a sala.
Ele inspecionou o escritório. Seus olhos se arregalaram.
— Não sou só eu que acho, não é? —Eu sussurrei.
— Não. —Ele mostrou os dentes. — Quanto mais cedo sairmos daqui,
melhor.
Eu tentei a gaveta de baixo. Ela abriu facilmente. Vasculhei tudo.
Documentos, declarações comerciais mensais do banco... nada de
interessante. Eu tentei a de cima. Trancada.
Raphael puxou uma chave do bolso e enfiou na fechadura. Ele torceu e a
fechadura estalou.
Raphael deslizou a gaveta aberta. Uma pasta de couro marrom. Eu
peguei, coloquei na mesa e abri. Uma pasta com folhas de plástico
transparente protegia uma fotografia: um jarro esculpido de marfim com
figuras em alto relevo de pessoas engajadas em combate e embarcações
compridas com pequenas cabines navegando sobre o mar de homens
afogados.
— De que país você acha que é a origem disso?
Raphael estava analisando o escritório. — Inferno se eu sei.
Eu queria ter Kate comigo agora. Ela teria me dito quando e onde foi feito
e para que deus.
Eu me virei para a próxima página de plástico. Esta fotografia mostrava
uma jarra antiga feita de argila marrom com um longo bico cônico. A ponta
do bico havia quebrado.
— O que você acha que é isso?
— Um pinico.
— Isso não é um pinico. Você vai levar isso a sério?
— Estou levando isso muito a sério, —disse ele em voz baixa.
Passei para a próxima página de plástico. Um punhal de ponta para o alto
com cabo de marfim ... espere um minuto.
— Eu sei o que é isso. —Bati no plástico. — Eu vi hoje na biblioteca.
Jamar comprou essa faca. É de Creta e ela não está no cofre agora.
Olhei para a faca. Era muito simples, com uma lâmina curva de 30
centímetros de comprimento e um simples cabo de marfim em
surpreendentemente boas condições.
Raphael se concentrou na lâmina. — É cerimonial.
— Como você sabe?
— A lâmina nunca foi afiada. —Ele desenhou o dedo ao longo da borda
curva da faca. — Está vendo? Nenhuma marca no metal. Além disso, o
desenho está errado. É muito curva para golpear em um movimento para a
frente, mas se eu cortar com isso posso desenhar um corte do tamanho que eu
103
quiser. Quase parece uma faca de tourné .
— O que é isso?
— É uma faca de cozinha para descascar. Você se lembra, nós temos uma
no conjunto em nossa caixa de açougueiro.
Ele teria que parar de dizer ‘nosso’ algum momento. Mas chamar a sua
atenção sobre isso agora iria interromper o fluxo de informações sobre facas,
e eu precisava de sua perícia. Eu conhecia armas, mas Raphael conhecia
facas.
Ele continuou. — Se fosse afiada e mais curta, poderia ser uma variação
104
de um karambit , uma faca curva das Filipinas. Em forma de garra de tigre.
Eu nunca vi muita vantagem no uso dela, muita pequena e minhas próprias
garras são maiores. Onde isso foi encontrado, você disse?
— Creta.
Raphael franziu a testa. — Facas e espadas cretenses eram tipicamente
105
estreitas e afiladas, como os kopis gregos . —Ele virou a foto. Voltei
novamente. — Humm.
— O que foi?
Ele levantou a foto com a faca apontando para baixo. — Picareta. É disso
que isso me lembra. A única maneira de obter o efeito máximo dessa lâmina
é esfaquear alguém com ela diretamente. Ele levantou o punho e fez um
106
movimento de martelar. — Como com uma picareta de gelo .
— Como se alguém estivesse amarrado e você tivesse que esfaqueá-lo no
coração?
— Possivelmente. E Anapa matou quatro pessoas por isso? —A voz de
Raphael gotejou de escárnio e raiva.
— Nós não sabemos disso. —Eu não conseguia manter a emoção fora da
minha voz. — Tudo o que sabemos é que Anapa sabia sobre a faca e a sua
utilidade. Não sabemos por quê. —E não havia nada que nos desse uma pista.
Um pequeno cartão com seu nome e poderes especiais teria sido legal. —
Mas já é alguma coisa para começar a procurar.
Eu olhei para o final da pasta. Mais artefatos. Não reconheci mais nada. A
faca tinha que ser a chave.
— Você é importante para mim, —disse Raphael. — Você sempre foi, e
não porque você era um cavaleiro ou um metamorfo.
De repente, a brincadeira não era mais engraçada. — E se importa tanto
que em vez de esperar que eu me recompusesse, você encontrou outra
mulher. Vamos ser honestos, Raphael, uma boneca com uma peruca loira e
eu temos a mesma importância para você. Inferno, a boneca pode ainda ser
melhor do que eu. Ela não iria falar. —Cristo, eu parecia tão amarga.
— Eu não quero mais brincar, —disse ele. — Eu te amo.
Isso machucou. Acho que vou ficar dormente agora.
— Muito tarde. Você está prestes a se casar.
— Rebecca não importa, —disse ele.
— Raphael, ela é uma mulher viva que respira. Alguém que você sentiu-
se atraído fortemente ao ponto dela ser sua noiva. Claro que ela importa.
— Rebecca não é minha noiva.
Congelei. — Repita?
— Eu disse que Rebecca não é minha noiva, —ele repetiu.
— O que você quer dizer com ‘ela não é ‘minha noiva’? Quero dizer, sua
noiva.
Raphael deu de ombros. — Ela é uma interesseira que eu encontrei em
um compromisso de negócios. Alguém deve ter falado para ela que eu era um
bom partido, então ela se aproximou. Minha mãe tem ficado nervosa demais
com suas rebeldias e, como precisei ir ao clã Bouda para um churrasco, levei
Rebecca até lá. Depois que ela disse à mamãe que era muito empolgante que
todos nós virássemos lobos, expliquei para minha mãe que se ela não me
deixasse em paz, alguém como Rebecca seria minha próxima companheira.
Rebecca deve ter me ouvido.
Isso não estava acontecendo.
— Você me deixou, —disse Raphael. — Nenhuma explicação. Tivemos
uma briga, depois fomos todos para a batalha contra Erra e, depois que ela
nos incendiou, você desapareceu. Eu pensei que você estava morta. Eu fui a
todos os hospitais. Eu me sentei em salas de espera. Toda vez que eles
traziam um novo corpo carbonizado, eu parava de respirar porque pensei que
poderia ser você debaixo de toda aquela carne queimada. E o que eu ganhei
depois de tudo isso? Uma nota no correio. Cinco dias depois. Cinco dias
depois, Andrea!
‘Não procure por mim, tenho que fazer algo pela Ordem,
voltarei em breve’.
Nenhuma explicação, nada. Você me dispensou da sua vida e foi à sua
cruzada. Agora, semanas depois, de repente decide me ligar, como se eu
fosse apenas um vira-lata que sempre estará lá esperando por você.
Eu abri minha boca.
— Eu a trouxe porque queria que você soubesse como era. Você passa a
vida tão ligada em ajudar as pessoas que mal sabe que machuca as pessoas
que realmente se importam com você. Você quer a verdade sobre Rebecca?
Bem. Eu mal a conheço. Ela era um meio para um fim. Eu nem dormi com
ela. Eu até pensei que poderia ...
Havia muitas palavras que eu queria dizer de uma só vez.
— Por vingança, —disse Raphael. — Ela me beijou, mas não senti nada.
A resposta correta finalmente se acumulou em minha mente. Eu fiz minha
boca se mover.
— Eu te odeio.
Ele abriu os braços. — Isso é novidade?
Tudo o que agitava dentro de mim, tudo que doía e torcia, como um
redemoinho de vidro quebrado no meu peito, rasgou, destruindo meu
orgulho. — Você quebrou meu coração, Raphael! —Eu gritei. — Chorei por
horas quando cheguei em casa ontem à noite. Parecia que minha vida tinha
acabado, seu filho da puta egoísta. E você, você me fez passar por isso só
para me ensinar uma lição? Quem diabos você pensa que é? Você tem
alguma ideia do quanto isso doeu?
— Sim, —ele disse. — Eu sei exatamente o quanto.
— Há uma diferença! Eu era um daqueles corpos carbonizados em uma
cama de hospital. Fiquei inconsciente por três dias e acordei em um hospital
militar, acorrentada à minha cama. Havia um advogado da Ordem sentado ao
meu lado. Eu não tive escolha: ou eu ia com ele voluntariamente ou eu seria
levada em custódia pela Ordem algema em grilhões de prata na perna.
Consegui escrever duas notas, parei no meu apartamento por dez minutos
para pegar minhas roupas e fomos embora. Eu nem tive a chance de fazer
arranjos para Grendel. Eu tive que levar o cachorro comigo e eles
concordaram com isso só porque eu preferiria lutar com eles do que deixar o
cachorro morrer de fome dentro do meu apartamento. Eu não te machuquei
de propósito, mas você me machucou deliberadamente. Eu sou um brinquedo
para você?
Seus olhos brilharam de vermelho. — Eu poderia te perguntar a mesma
coisa.
— Você … seu idiota! Você é um bebê mimado!
— Idiota egocêntrica.
— Filhinho da mamãe!
— Arrogante, orgulhosa, hipócrita.
— Estou tão cheia de você, —eu disse a ele com os dentes cerrados.
— Quer saber? Estou cansado de fazer as coisas do seu jeito, —disse
Raphael preguiçosamente. — Não espere que eu aceite mansamente o que
você quiser essa noite. Não vai ser mais do seu jeito.
Minha voz poderia cortar aço. — Se fizer isso, eu vou atirar em você.
Ele estalou os dentes. — É melhor você atirar de jeito. Um tiro será tudo
que você conseguir.
Esse desafio durou até o fim das minhas defesas. Minha outra eu se
derramou do meu corpo humano em uma confusão de pele e garras, exalando
fúria. Eu bati meus dentes monstruosos para ele, minha voz bestial um
grunhido irregular. — Eu vou arrancar seu coração. Você vai se arrepender
do dia em que nasceu. De todos os bastardos idiotas e egoístas...
— E você me quer. —Ele sorriu. — Você não pode esperar para subir de
volta na minha cama.
— Deixe de ser criança!
— Olha quem está falando.
A magia bateu em nós, como um enorme dilúvio. As Proteções
apareceram no topo da moldura da porta e das janelas em cortinas cintilantes
de laranja translúcido. Símbolos azuis se acenderam nos cantos da sala.
A lua na parede abriu os olhos com um grito metálico.
Mergulhei embaixo da mesa e Raphael se encostou na parede. Atrás das
cortinas.
— Boudas, —disse a lua na voz saturada de diversão de Anapa. — Tão
previsível.
— Não foi possível resistir a bisbilhotar, não é?
Merda! Merda, merda, merda.
Raphael puxou uma cortina da janela e jogou-a sobre a lua.
— Isso não vai ajudá-los, —disse Anapa. — Não saiam. Eu estarei logo
aí.
Eu saí de debaixo da mesa e bati na Proteção mágica da janela mais
próxima. Dor queimou através de mim, eu pisquei e Raphael me puxou do
chão. Meus dentes chocalharam no meu crânio.
— Ah-ah-ah, —disse a Lua Anapa. — Eu lhes avisei para não sair.
Raphael se atirou na Proteção da janela. Sua resistência às Proteções
mágicas era maior que a minha.
O feitiço defensivo se agarrava a ele, afiados chicotes de raios alaranjados
ardendo em sua pele. Seu corpo estremeceu rígido. Seus olhos reviraram em
seu crânio.
Eu peguei ele e o puxei de volta. O raio laranja me beijou e eu quase
desmaiei de novo. Nós caímos no chão.
— Fi-fi-fo-fum, —a lua cantou. — Eu sinto o cheiro do sangue da hiena e
estou subindo as escaaaaadas.
Os olhos de Raphael se abriram. Ele se levantou e olhou para cima.
Se nós quebrássemos o piso, cairíamos no abraço de boas-vindas de seus
seguranças. Atravessar o teto era a nossa melhor aposta.
— Me pegue! —Disse.
Ele me agarrou e me empurrou para cima. Eu soquei o teto, colocando
toda a minha força nisso. O painel quebrou com o impacto do meu punho, e
eu bati no feixe de madeira embaixo dele.
— O que vocês dois estão fazendo? —A lua se perguntou.
Martelei o teto com o meu punho de novo e de novo, alargando o buraco.
A madeira quebrou sob a insistência dos meus socos. Rasguei a parte
quebrada do feixe, jogando-a para o lado e esmurrei a escuridão. Ele rasgou e
o céu noturno piscou para mim através da abertura estreita. Não há sótão. Nós
iríamos sair direto para o telhado. Raphael me colocou de pé, deu um pulo e
pulou, girando no ar, chutando a abertura que eu havia feito. Ele caiu em um
rolo quando uma chuva de tábuas de madeira bateu no chão.
Cruzei meus braços sobre a cabeça e pulei. Madeira e telhas atingiram
meus antebraços, e eu agarrei o telhado e me levantei. A borda do telhado
brilhava com magia. No chão, enormes símbolos laranja se estendiam pelo
gramado luminescente, um brilho amarelo pálido cobrindo cada folha de
grama em uma camada de magia. O quintal inteiro ao redor da casa era
protegido e era um inferno de uma Proteção. Ótimo.
Raphael forçou seu caminho através do buraco atrás de mim.
Pousar no gramado não era uma opção. A magia poderia nos fritar ou
fazer algo pior. Eu me virei procurando por uma árvore, uma torre, uma
parede, qualquer coisa perto o suficiente para saltar do telhado.
Na extremidade do telhado, um longo cabo descia até a parede que
cercava a casa de Anapa.
— Linha de energia, —nós gritamos um ao outro ao mesmo tempo.
Corremos pelo telhado. Subi na linha de energia e corri ao longo dela,
equilibrando-me nos meus pés enormes. Um, dois, três, inclinar, inclinar …
Eu pulei no baixo muro de pedra que separava a casa de Anapa e o quintal da
rua. Raphael tirou os sapatos, arremessou-os para a noite, deu um pulo e
saltou, pegando a linha de força com os braços. Levantou-se de novo e se
movimentou devagar, com os braços abertos, suspensos entre a relva laranja
brilhante e o céu negro.
Segurei minha respiração.
A porta lateral da mansão se abriu. Um rugido estrondoso reverberou
durante a noite, feito por uma boca cavernosa. Meus pêlos se levantaram.
Raphael balançou, correu os próximos três metros e pulou, limpando a
distância restante em um salto poderoso. Ele navegou pelo ar e caiu na
parede, ao meu lado.
Um clarão de luz amarelo brilhante e anormal explodiu no gramado. Eu
não esperei para ver o que era. Nós pulamos da parede para a rua e corremos.
O rugido nos perseguia. Com o canto dos meus olhos, vislumbrei uma
enorme sombra saltando sobre a parede como se não fosse nada. A criatura
caiu na rua atrás de nós, do tamanho de um rinoceronte, com uma cabeça
enorme e uma enorme juba armada e com longas mandíbulas de crocodilo.
Seu odor me atingiu, um odor pungente e oleoso, reminiscente de peixe
podre, sangue velho e suor em decomposição, atravessado por um fedor não
natural. Um cheiro revoltante, violento, terrível, me atacou, prometendo a
morte. O medo se contorceu através do meu corpo. Meus instintos me
fizeram correr o máximo que eu podia.
Nós corremos pela rua.
A coisa atrás de nós rugiu novamente e nos perseguiu. Ela bateu atrás de
nós, enorme, mas estranhamente rápida.
Eu olhei para trás. A distância estava diminuindo.
O ar virou fogo na minha garganta. Uma dor espetou meu lado.
Corre. Corre mais rápido. Mais rápido!
Eu olhei por cima do meu ombro novamente. A fera estava ganhando.
Nós estávamos correndo e ela estava se aproximando.
Dobramos uma esquina a uma velocidade vertiginosa. Um prédio
arruinado apareceu à nossa frente, uma grande e escura montanha de
escombros com um buraco negro aberto no piso inferior. Raphael apontou
para ele. Nós viramos para a direita e saltamos através da abertura para a
escuridão.
No interior, o prédio era vasto e vazio, uma concha cercada por paredes
externas. Colunas altas de sustentação erguiam-se, não suportando nada, os
últimos andares tinham desmoronado há muito tempo, e a lua brilhava
através dos buracos no telhado de vidro empoeirado, pintando o chão em
manchas aleatórias de luz azul. Nós voamos sobre ele como dois fantasmas,
silenciosos e rápidos, e afundamos nas sombras profundas e escuras contra a
parede oposta. Raphael estendeu a mão e apertou minha mão. Eu apertei de
volta.
Talvez a fera passasse por nós.
Uma silhueta escura apareceu na abertura na parede através da qual
havíamos entrado. Não tivemos essa sorte.
A besta deu um passo à frente. Metade do corpo desceu, baixou a cabeça.
Eu a ouvi cheirar. Pequenas nuvens de poeira deslizaram pelo chão. Estava
nos seguindo. Se fugíssemos, seria mais rápido do que nós. Se nós fossemos
para os telhados, nós acabaríamos em ruínas e teríamos que pousar, e estaria
esperando. Tínhamos que matá-lo.
Ao meu lado, Raphael tirou o paletó do smoking. Ele usava bainhas de
couro duplo embaixo. Tirou duas espadas e as passou para mim. Eu as
segurei enquanto ele tirava a camisa. Suas calças em seguidas. Ele pegou as
espadas de volta e eu aliviei minha mochila dos meus ombros.
A besta deu um passo à frente. Garras gritaram no concreto. Passo, risco.
Passo, risco. Seu cheiro revoltante se aproximou de nós, cobrindo-me como
uma chuva de lodo frio.
Eu me enrolei em uma bola apertada.
A fera se moveu em um raio de luz e meu pulso acelerou. O que eu tinha
confundido com uma juba de cabelo grosso era uma juba de pequenos
tentáculos marrons. Eles se contorciam e se contorciam, esticando-se e
enroscando-se como um ninho de minhocas minúsculas de um metro de
comprimento. Tire o pescoço da lista de possíveis alvos. Cortar ou arranhar
a massa de carne contorcida levaria muito tempo.
A besta baixou a cabeça novamente, apoiando-se nas pernas poderosas
embainhadas em pêlo amarelo. As longas garras de suas patas dianteiras
arranhavam a poeira. Sua estrutura robusta parecia construída para ser usada
em demolição. Se isso começasse a correr, ele se chocaria contra a parede e
nem diminuiria a velocidade. Eu não via fraqueza. Por que coisas assim
sempre aconteciam comigo quando eu não tinha um rifle à mão?
A besta levantou a cabeça. Grandes olhos amarelos de coruja olharam
diretamente para nós.
Teríamos que ir no intestino e nos olhos. Essas eram as nossas únicas
opções.
Toquei em Raphael e apontei para os meus olhos. Ele assentiu, curvou-se,
contraindo os músculos e saltou.
Sua pele estourou no meio do salto quando seu corpo se transformou em
uma forma nova e mais forte. Um homem havia começado o salto, mas um
bouda em forma de guerreiro terminou: um híbrido letal de dois metros de
altura de animal e homem, armado com garras mortais e dentes perversos
presos em mandíbulas enormes que poderiam esmagar um fêmur de uma
vaca como se fosse uma casca de amendoim.
Eu corri para o lado.
Raphael pousou em cima da fera e cortou suas costas com as espadas. O
sangue encharcou os cortes. A criatura berrou e caiu no chão, rolando.
Raphael saltou para a escuridão. A besta se levantou de um pulo e girou,
tentando se lançar atrás dele.
Eu bati de lado, cortando a testa da fera com minhas garras. A criatura
bateu de volta, muito rápido.
Os dentes roçaram minha pele. Eu pulei para trás e a besta se lançou
contra mim, estalando os dentes. Eu pulei para trás de novo e de novo,
ziguezagueando enquanto me perseguia. Porra, era rápido.
Raphael saiu da escuridão e cortou o lado da besta com suas espadas.
A besta não lhe deu atenção. Os tentáculos em sua cabeça brilhavam com
uma cor laranja profunda. A luz laranja pulsou para fora e pegou meu braço.
Uma dor intensa queimou meu ombro, uma queimadura fria, como se alguém
tivesse aberto meu braço e jogado nitrogênio líquido sobre o músculo.
Eu gritei e cortei o focinho com minhas garras, arranhando a carne
sensível.
A besta se lançou para mim. O brilho pulsou e me agarrou. A dor
explodiu na minha cabeça. Eu não conseguia me mexer. Eu não consegui
fazer um som. Apenas estremeci no aperto da magia, a agonia tão intensa,
parecia que meus ossos estavam se despedaçando.
Alguém cortou minhas pernas, as paredes deram cambalhotas e eu caí na
sujeira.
Atrás da besta, Raphael se transformou em um redemoinho de aço,
lançando sangue para a noite.
A besta uivou.
Eu tentei me levantar, mas eu ainda não conseguia mexer minhas pernas.
Eu podia vê-las ali mesmo, mas elas não me obedeciam.
Raphael deu um chute enorme nas costelas da criatura.
A abominação girou em direção a ele, sua cabeleira faiscando.
Raphael correu.
A criatura gritou, um som terrível e sobrenatural. Sangue dos cortes que
eu causei gotejou em seus olhos, tornando-o meio cego. Ele levantou seu
focinho, inalou e atacou Raphael.
Eu só tinha que me levantar. Eu tinha que me puxar para cima.
Raphael correu ao longo da parede, saltando sobre as pilhas de lixo. A
criatura correu atrás dele, devorando a distância entre eles em grandes saltos.
O chão tremia com cada baque de suas patas.
Eu rolei de joelhos, desajeitada como uma bêbada, e me forcei a ficar de
pé.
A crina da criatura ficou laranja brilhante.
— Magia! —Eu gritei.
Raphael olhou por cima do ombro.
O brilho laranja ao redor da crina da fera uniu-se e chicoteou da criatura
em raios duplos brilhantes. Raphael ziguezagueou, mas já era tarde demais. O
raio esquerdo pegou seu tornozelo, estilhaçando-se em uma dúzia de
pequenas garras que morderam a carne de Raphael o derrubando.
O mundo parou. Tudo que eu podia ver era o rosto de Raphael, torcido
pela dor. O medo apertou em mim e me estimulou em uma ação desesperada.
Por um segundo, ele pareceu flutuar sem peso, suspenso alguns
centímetros do chão e depois desabou, rolando na terra.
Por favor não morra. Por favor, por favor, não morra.
Havia quinze metros entre mim e a fera. Parecia que eu estava correndo
por uma eternidade, presa em algum tipo de inferno, observando o homem
que eu amava morrer em câmera lenta.
A besta bufou em alegria viciosa.
Vou chegar aí, querido. Aguarde mais meio segundo.
As mandíbulas gigantescas se abriram largamente, dentes prontos para
rasgar.
Eu bati na besta de lado, enfiei minhas garras embaixo dela e afundei-as
no intestino da criatura.
O sangue me encharcou. As entranhas escorregadias deslizaram contra
meus dedos. Eu agarrei-as e puxei.
A besta girou, tentando me morder. Afundei minhas garras na ferida e
segurei. O raio laranja me atingiu, fogo e gelo envoltos em dor. O luar no céu
se ofuscou.
Raphael apareceu do outro lado da fera e arranhou-a. Ele estava vivo. Eu
quase chorei do alívio.
A magia nos feriu novamente.
Meu Deus. Isso machuca.
A magia não nos mataria. Apenas machucaria.
Feridos.
Raphael e eu nos encaramos sobre a coluna da fera através da névoa de
dor e rimos. Nossos estranhos gritos de hiena ecoaram pela ruína.
Ele queria jogar o jogo de dor contra duas boudas. Não tinha chance.
Nós espancamos a fera.
Ele nos arremessou com suas patas traseiras e nos chocou com sua magia,
e nós a arranhamos e a arranhamos, aguentando e rindo através da dor. Eu
provei sangue na minha boca e agarrei ainda mais, cavando o estômago da
fera, arrancando vísceras e ossos para fora. Nós esculpimos e entalhamos,
saindo e voltando da dor, jogando sangue e úmidas entranhas.
A besta estremeceu.
Não tínhamos outra opção. Era a criatura ou nós, matávamos ou
morreríamos.
A besta tropeçou, inclinou-se para o lado e desabou.
Olhei para cima, respirando com dificuldade. Em minha frente, Raphael
estava de pé, coberto de sangue. Seu peito peludo e musculoso arfava. Entre
nós, a besta jazia, os ossos da caixa torácica descobertos. Nós tínhamos quase
tirado sua carcaça. Ele deveria ter morrido há muito tempo, mas a magia a
manteve vivo.
Afundei no chão. Meu corpo estava vermelho de sangue da besta e o meu.
Longos arranhões das garras da fera cortavam meu lado direito, do quadril
para baixo, pela minha perna. Os cortes queimavam. Se eu fosse humana,
precisaria de centenas de pontos.
Nós ganhamos. De alguma forma, vencemos e ambos sobrevivemos. Foi
algum tipo de milagre. Eu estava com ossos cansados. O chão parecia tão
bom. Talvez se eu me deitasse aqui por um minuto e fechasse os olhos ...
— Andrea.
Os olhos de Raphael brilhavam com fogo de rubi. Seu rosto, uma mistura
de humano e hiena, não refletia bem as emoções, mas seus olhos me
encaravam com uma determinação arrepiante.
— O que foi? —Eu perguntei.
— Estou levando você para casa.
Minha mente mastigou suas palavras, tentando quebrá-las em pedaços.
Me levando para casa? Me levando para casa …
Casa. Com ele.
Meu cansaço evaporou em um instante. — Não.
— Sim. Você vem para casa comigo. Nós vamos tomar um banho, comer
e fazer amor, e tudo ficará bem.
Levantei minha bunda do chão. — Acho que não.
— Acabou de fazer as coisas do seu jeito. Seu jeito significa não falarmos
por meses. Você vem para casa comigo.
— Você me machucou, de propósito, mas está tudo bem agora, porque
você não dormiu com Rebecca e nós podemos ir para casa.
— Sim!
— Não funciona assim. Eu não vou para casa com você. Você e eu
terminamos.
— Você é minha, —ele rosnou.
Que diabos. Talvez a luta tenha arrancado algum parafuso em seu
cérebro.
— Você sempre será minha. —Ele pisou na carcaça e começou andar em
minha direção. Olhei em seus olhos e vi um bouda insano olhando para mim.
A luta tinha tirado o equilíbrio entre pensamento racional e paixão
enlouquecida. O freio de emergência de Raphael estava com defeito e ele e eu
estávamos em rota de colisão. — Você sabe disso e eu sei disso. Nós nos
amamos.
— Somos ruins um para o outro.
— Você não vai me deixar de novo! —Ele rosnou.
A adrenalina ainda correndo através de mim subiu. Ele estava me
desafiando! Marchei em direção a ele, coloquei meu focinho o mais perto
dele que podia e disse devagar, pronunciando claramente cada palavra: —
Estou deixando você. Você não pode brincar comigo. Eu não sou seu animal
de estimação e você não vai me machucar de novo só por achar que eu devo
ser punida Provocá-lo era idiota. Eu sabia disso, mas não consegui evitar. O
coquetel louco de hormônios e magia que essa luta me fez passar me tirou a
sanidade. Eu sabia que deveria parar, mas era como se houvesse duas de
mim, uma Andrea racional e uma louca bestial comandada pela emoção e
agora a Andrea racional estava sendo arrastado por um rio caudaloso de
hormônios, enquanto a Andrea bestial acenava adeus próximo a um
penhasco.
Eu gritei as palavras. — Você partiu meu coração e agora eu estou
deixando você. Olhe.
Ele me machucou. Ele pagaria.
— Está sou eu indo embora. —Eu me virei e dei alguns passos. — Você
está assistindo?
Ele pulou em mim e caímos, rolando na terra, braços sobre pernas.
Minhas costas bateram no chão e Raphael me prendeu em uma posição
clássica, sentado no meu estômago. Uma das piores posições em que você
pode ficar preso.
— Não vai a lugar nenhum agora, —disse ele.
Eu dobrei meus joelhos, plantei meus calcanhares no chão e fiz uma
ponte sobre ele. Ele se inclinou para frente, sua mão direita caindo no chão.
Entendi o que ele ia fazer. Deixei cair meus quadris, peguei seu braço direito,
puxando-o contra o meu peito, pisei meu pé direito sobre o dele, capturando-
o, e empurrei bruscamente para a direita. Raphael se inclinou e eu rolei em
cima dele. Ele apertou meus ombros com as mãos.
— Estou me levantando e saindo daqui. Você terá que lutar comigo para
me impedir. Sua escolha.
Raphael abriu os braços. Ele estava me deixando ir. Eu sabia que ele
faria.
Fiquei em pé e fui embora. Uma parte de mim estava gritando: O que
você está fazendo, sua estúpida? Corre de volta. Eu continuei andando,
segurando a memória de Raphael me dizendo: ‘Eu sei exatamente o quanto
doeu’.
Essa coisa entre nós era muito complicada e doía muito. Eu não tinha
mais nada em mim e não conseguia lidar com isso.
Atrás de mim, Raphael rugiu, sacudindo a ruína. Continuei andando. O
som de sua frustração me perseguiu até que finalmente comecei a correr. Meu
corpo está doendo. Febre aqueceu meu rosto, o Lyc-V estava tentando
consertar meu corpo machucado. Se apenas consertasse coração quebrado
fosse assim tão fácil.
Corri mais rápido, corri pela parede, pela abertura e saí para a noite
enluarada. Pulei para o telhado mais próximo e corri e corri, o ar queimando
em meus pulmões, gotas de sangue da besta caindo do meu corpo, deixando
uma trilha horrível.
Continuei até a fadiga se transformar em uma dor nos meus membros. Eu
estava em um telhado em algum lugar. Os prédios ao meu redor não pareciam
mais familiares. Eu diminuí, depois parei. Atrás de mim a cidade se estendia,
mergulhando em magia. Na frente, um rio corria, como uma serpente
prateada brilhando ao luar. Árvores altas ficavam de guarda na margem
distante. Pequenos pontos de luz, verde e turquesa, flutuavam suavemente
entre seus galhos. Eu havia percorrido toda a cidade até a Floresta Sibley, um
dos novos bosques pós-mudança, sobrecarregados de magia e cheios de
coisas famintas que viam os humanos como lanches saborosos e divertidos.
As árvores me chamavam. Elas pareciam tão pacíficas e mesmo eu
sabendo que não eram, não pude resistir.
Mergulhei do prédio para o rio. A água fresca espumava ao meu redor
com um milhão de bolhas. Eu emergi e nadei, deslizando pelas profundidades
frias como se estivesse voando. O rio terminou cedo demais, e eu saí na
margem oposta, encharcada, mas sem sangue. Subi e fiz meu caminho
através do mato. A floresta cantou para mim em uma dúzia de vozes
diferentes e me provocou com uma infinidade de cheiros.
Inalei o aroma picante das ervas da floresta, o almíscar de um guaxinim e
o cheiro levemente amargo do gambá. Meus ouvidos se contraíram, captando
os sons de camundongos correndo na vegetação rasteira, o canto distante de
uma coruja e o chilrear das cigarras, remexendo na escuridão reconfortante.
Enquanto caminhava, a grama roçava minhas pernas, fazendo cócegas no
meu pêlo. Acima de mim, uma densa vinha coberta de minúsculas flores
brancas tremia na brisa da noite. As minúsculas flores se destacaram,
brilhando de verde pálido e flutuando ao meu redor, como luzes de fadas.
Fascinada, agachei-me na grama e observei uma das flores brilhantes se fixar
em uma folha. Tão linda.
Eu andei pela floresta, pensando em nada. Se eu pudesse ter mudado para
uma hiena, eu teria. Eu só queria me acalmar, cheirar coisas, ver animais se
movimentando e fingir que fazia parte desse mundo, em vez do lugar do
outro lado do rio. Minhas escolhas eram mais simples aqui: Deitar na grama
ou em um tronco caído? Observar os ratos ou tentar pegar um? Ouvi a coruja
piando ou escutar os sapos cantando? Simples e fácil.
Finalmente, subi em uma grande árvore, enrolei-me em seus galhos
e adormeci.

Capítulo 9
Dormir em uma árvore parecia uma ótima ideia em teoria. Na prática,
acordei pouco antes do nascer do sol, toda dolorida, meu pêlo úmido de
orvalho matinal e cheirando a sangue em decomposição. Aparentemente nem
tudo tinha sido lavado no rio. A magia tinha ido embora, com a tecnologia
mais uma vez segurando as rédeas do planeta, e a floresta mágica de ontem
era um lugar encharcado, lamacento e desagradável. Confrontado com a
adorável escolha de permanecer em minha forma de animal ou trotar pela
cidade nua, decidi que o pêlo era preferível. Atravesse o rio e pulei nos
telhados.
Tinha planejado quebrar a lei com meu ex-namorado, que eu professava
odiar, quebrei a lei, matei o cão de guarda/criatura mágica do dono da casa,
vítima do meu assalto, em um ataque de frenesi assassino, e depois fugiu pela
cidade, perambulei pela floresta e adormeci em uma árvore na minha forma
de animal.
Quando resolvi saí dos trilhos da lei, não o fiz de maneira suave. Não, eu
capotei algumas vezes, voei pelo ar e explodi em uma bola de fogo.
Cheguei ao meu prédio, subi as escadas para o meu apartamento e olhei
para a minha porta. As chaves estavam na minha bolsa, que eu havia largado
no chão antes de combatermos o monstro no armazém. As barras de metal
nas minhas janelas eram soldadas, embutida na parede de tijolos.
Provavelmente poderia arrancá-las, se eu me esforçasse o bastante e
envolvesse alguma coisa em torno de minhas mãos, já que as barras tinham
prata nelas, mas tiraria um pouco da parede com elas. Como diabos eu ia
entrar sem quebrar a porta?
Passos vieram de baixo. Um momento depois e a Sra. Haffey subiu as
escadas, carregando algo enrolado em um pano de cozinha.
Maravilha.
A Sra. Haffey viu minha bunda peluda e parou. Por um longo segundo
nos entreolhamos, ela em um roupão rosa e eu, um metro e oitenta de altura,
peluda, ensanguentada, e cheirando como um cachorro molhado que rolou
em um pântano.
Não grite. Por favor, não grite.
A Sra. Haffey pigarreou. — Andrea? É você?
— Sim, senhora. Bom Dia.
— Bom Dia. Aqui, fiz-lhe um bolo de cenoura na noite passada. —Ela
entregou o objeto enrolado no pano para mim.
Eu peguei e cheirei, enrugando meu nariz preto. — Obrigada. Cheira
maravilhosamente bem.
— Eu só queria te agradecer por Darin. Nós estamos juntos há tanto
tempo. Eu só não sei o que faria sem ele. —Ela deu um passo em minha
direção e me abraçou.
Oh meu Deus, o que eu faço?
Abracei-a de volta, tão gentilmente quanto pude, com um braço.
— Se cuida, agora. —Disse a senhora Haffey sorrindo e descendo as
escadas.
Ela abraçou minha eu peluda, fedorenta e manchada de sangue. Ela não
fazia ideia, mas eu correria de volta para aquele porão e lutaria contra uma
centena daqueles insetos só porque ela não tinha gritado quando me viu.
Eu precisava entrar e mudar para a minha forma humana, pronto. Antes
que qualquer vizinho decidisse ligar para a polícia porque havia um monstro
invadindo o apartamento da ‘boa garota texana’.
Agarrei a maçaneta da minha porta. Ele virou na minha mão, mas meu
cérebro não processou imediatamente e eu bati meu ombro nela. A porta se
abriu com um baque estrondoso e eu entrei no apartamento, agachando-me.
Meu apartamento cheirava a Raphael. Se ele ainda estivesse aqui, não
havia como não ter me ouvido.
Chutei a porta, rosnei um pouco para que ele soubesse que eu estava
falando sério e comecei a procurá-lo. Um rápido olhar me disse que Raphael
não estava em minha sala. Meu quarto também estava vazio e meu armário
também. Fiz um círculo completo, cheguei à cozinha e parei. Minha bolsa
estava no meio da mesa da cozinha, com meu vestido e sapatos ainda dentro
dela. Minha toalha de mesa estava faltando e arranhões longos e irregulares
cobriam a superfície da mesa. Os arranhões pareciam suspeitosamente com
letras.
Eu subi em uma cadeira e olhei para ela de cima.
MINHA
Oh isso era ótimo. Fantástico. Muito maduro. Talvez ele puxaria minhas
tranças para o lado ou me deixaria grudada na minha cadeira.
Eu empurrei a mesa. Quem ele achava que era, invadindo meu
apartamento e vandalizando meus móveis? Eu nunca fiz isso com ele. Nunca
arruinei nenhuma de suas coisas.
Fui tomar banho e me limpei.
Só me faltava essa, o que diabos eu deveria fazer com essa coisa de
MINHA? Um momento ele estava empurrando outra mulher debaixo do meu
nariz, no próximo ele decidiu que estávamos de volta e não conseguia
entender por que eu não estava concordando com ele. Uma velha canção
107
surgiu em minhas memórias. Love is all you need . Talvez, mas na vida real
o amor raramente é tudo o que você precisa. Raphael e eu também tínhamos
orgulho, culpa e raiva, ciúme e mágoa, e tudo isso estava misturado a esse
108
gigantesco nó górdio . Desembaraçar parecia impossível.

Fedorento, feio, estúpido bouda idiota. Eu deveria ter esvaziado um pote


de pulgas em seu carro. Seria bom rir. Não resolveria nada, mas me faria
sentir melhor.
Coloquei minhas roupas, sentei à mesa da cozinha, experimentei o bolo
de cenoura, estava delicioso, e olhei para MINHA um pouco mais. Isso era
tão diferente de Raphael. Os ecos de seu rugido flutuaram da minha memória.
Raphael era sutil. Ele seduzia e encantava, e era muito bom nisso. Tão
bom que me apaixonei por ele, apesar de ter jurado que o inferno iria
congelar antes que eu me apaixonasse por alguém. Isso era muito diferente
dele. Ele estava mesmo tão desesperado para me recuperar?
Eu queria ter nascido em outro tempo. Em algum lugar no passado, antes
da mágica, antes dos metamorfos, quando eu poderia ter sido apenas uma
policial e fazer o meu trabalho. Quando Raphael teria sido um cara normal e
eu teria sido uma garota normal, e nenhuma das metamorfoses complicadas
teriam ficado no caminho. Ou melhor ainda, desejei que a magia nunca
tivesse existido. Mas isso significaria que eu não teria experimentado a
floresta mágica. Eu seria mais lenta, mais cega, mais insensata. Mais fraca.
Não, a magia estava aqui para ficar e assim era a outra eu. Eu a tinha
reprimido por tanto tempo, e agora ela havia pegado o volante e estava rindo
loucamente enquanto me atirava do penhasco.

Quando cheguei ao escritório, Ascanio abriu a porta com uma expressão


de profundo alarme no rosto.
— Me leve com você. Por favor. Eu farei qualquer coisa.
Entrei no escritório e vi a fonte de seu pânico atrás da mesa de Kate.
Tinha cabelos loiros dois tons mais claros do que o meu, usava uma camiseta
azul e uma saia preta com camadas de babados, e tinha um olhar de quem já
viveu muita coisa para uma linda garota adolescente. E ela só tinha catorze
anos de idade. Julie era fofa e muito consciente de sua posição como filha
adotiva de Curran e Kate. Na maioria das vezes, ela era uma princesa perfeita
do bando, educada e equilibrada, exceto quando Derek, o ajudante de Kate ou
Ascanio estavam na sala.
Derek recebia respostas gélidas cravejadas de espetos e se Ascanio
estivesse presente, ela se transformaria em um demônio sarcástico de boca
suja.
Era difícil ser uma adolescente. Eu tinha sido uma e não desejava repetir a
experiência.
— Leve-me com você, —Ascanio implorou.
109
— Ele não pode ir. Falhou no teste da ‘Epopeia de Gilgamesh ’, —
disse Julie, sua voz congelada. — Kate disse a ele para se sentar aqui e
estudá-lo.
Ascanio se virou para ela e disse duas palavras encharcada de escárnio.
— Dedo duro.
— Bebê chorão, —disse Julie.
— Chata, —disse Ascanio.
110
Julie lançou-lhe um olhar de desprezo concentrado. — Bichano .
Ascanio olhou para ela.
Julie cruzou os braços.
— Onde Kate foi? —Perguntei.
— Para a Associação dos Mercenários, —disse Julie.
Provavelmente ainda tentando resolver a disputa sobre quem iria
comandar a Associação. Eles estavam com alguns problemas na liderança dos
Mercenários e Kate, como um dos veteranos, tinha algum poder de decisão.
— Você pegou o cheque do mecânico? —Eu perguntei. — O que a
mulher pagou pelo pneu concertado?
— Está na sua mesa. —Ascanio virou-se para Julie e murmurou: —
Vadia.
Ele não poderia deixar isso sem resposta, poderia?
— Sou só eu ou algo cheira mal aqui? —Julie acenou com a mão na
frente de seu nariz.
Oh não, ela não fez. Acusar um metamorfo de fedorento era o maior
insulto.
— Você está imundo, Ascanio. —Julie fez uma careta. — Tenha cuidado,
pode pegar pulgas se continuar assim.
Ascanio mostrou os dentes para ela. — Tenha cuidado para não pegar
piolhos. Eles vão te deixar careca.
Julie revirou os olhos. — Não é necessário raspar a cabeça se você tem
piolho. Você simplesmente usa uma solução contendo um extrato de
piretrina ou qualquer outro da grande variedade de compostos à base de
plantas e depois penteia os piolhos para fora dos fios. Sua ignorância é
desconcertante. Às vezes me pergunto como você sobreviveu aos dezesseis
anos de idade. Estou curiosa, você viveu a maioria deles enrolado em plástico
bolha?
Essa garota esta cada vez mais e mais parecida com Kate.
— Eu não tinha ideia de que você sabia tanto sobre piolhos, —disse
Ascanio. — Falando por experiência própria?
— Sim eu estou. Vivi na rua por um ano. Lembro agora, onde você
morava? —Julie bateu com o dedo nos lábios, fingindo pensar. — Ah, sim,
morava em uma comunidade religiosa, abrigado e mimado, onde passou o
seu tempo tentando foder qualquer coisa que se movesse.
Isso já era o suficiente. — Calem-se! —Eu gritei.
Duas bocas se fecharam.
Olhei para o cheque. Era um cheque de negócios da ‘Gloria's Artes &
Antiguidades’. Antiguidades? Por que um antiquário visitaria uma empresa
de extração? As empresas de extração não negociavam antiguidades; eles
negociavam metal e pedra, porque não muito mais do que isso sobrevivia a
um prédio caído. A menos que ela soubesse que eles estavam fazendo lances
em um prédio que continha um cofre cheio de antiguidades.
— Aqui está o endereço. —Ascanio me entregou um pedaço de papel. —
Pesquisei para você.
— Obrigada. Bom trabalho. —Olhei para o endereço. Rua White, o
antigo bairro onde Julie ficava. Bem na entrada do Warren, onde uma parte
pobre de Atlanta, mendigos, gangues de crianças sem-teto e criminosos
oportunistas fizeram sua casa. A maioria deles não sabe o que significa
‘antiguidades’, muito menos poderiam comprá-los. Este caso ficava cada vez
mais estranho.
— Por favor, não me deixe aqui com ela, —murmurou Ascanio.
Eu olhei para ele. — Kate disse para você ficar aqui?
— Sim.
— Então fique aqui. Estude sua epopeia, passe no teste e levarei você
comigo da próxima vez.
Eu me virei e saí de lá antes que ele implorasse mais.
111
A rua White recebeu seu nome quando uma neve não natural caiu,
cobrindo-a com quase um metro de gelo.
A neve recusou-se a derreter por dois anos e a maioria dos moradores
decidiu chama-la assim. Se a magia de uma rua pudesse sustentar quase um
metro de neve no meio do escaldante verão de Atlanta, não havia como dizer
o que mais ela poderia fazer. Quando a neve finalmente derreteu, a maioria
das pessoas que moravam em seus edifícios havia fugido. Enquanto dirigia
pelo asfalto em ruínas, as casas abandonadas me encaravam com as suas
retângulas janelas escuras, vazias, como os buracos negros das órbitas de um
crânio. Se eu não fosse um ex-membro experiente da lei, admitiria que o
lugar me deixava arrepiada, dando meia volta no carro e gritando como uma
garotinha.
O Gloria’s Arte & Antiguidades ocupava um grande edifício retangular.
A fachada frontal de dois andares eram de tijolos amostra, mas a estrutura
tomava boa parte do quarteirão da rua. Espaço suficiente lá para armazenar
um monte de antiguidades. Ou uma pequena frota de tanques de guerra. Ou
alguns elefantes mágicos cruéis ...
Chequei minhas Sig-Sauers e empurrei a porta. Destrancada. Abri. Um
pequeno sino soou quando entrei. Na minha frente, uma sala estreita se
estendia, emoldurada por duas vitrines de vidro.
O chão era de madeira polida, os balcões de vidro e aço, as paredes de um
cinza prateado. O lugar todo era a antítese exata da antiguidade.
O ar cheirava a jasmim, não o aroma purificado do perfume, mas o
verdadeiro jasmim: escuro, ligeiramente narcótico, com uma pitada de
112
indol . Havia algo antigo e selvagem nesse perfume que deixava meus
nervos à flor da pele.
Fui até o balcão à direita e examinei o conteúdo da vitrine de vidro. Uma
lupa com um cabo de metal ornamentado. Um carro de brinquedo de metal
com tinta verde desbotada e meio descascada. Uma pequena caixa redonda
cheia de pedrinhas de vidro azuis e brancas. Um relógio de bolso barato.
Algumas moedas, uma variedade de facas surradas, um conjunto de óculos
antigos, vermelho-escuro na parte inferior e amarelo-ouro na parte superior,
uma taça de ponche de vidro com um desenho de uma uva ao lado e uma
estranha pintura amarela ... isso era uma porcaria. Você poderia encontrar
coisas mais caras em um mercado de pulgas. Ela tem um armazém cheio
desse lixo?
Uma mulher alta saiu das profundezas da loja. Ela usava um terno
marrom e bege. Seu cabelo castanho claro estava enrolado em um arranjo
complexo em sua cabeça. Seus olhos atrás dos óculos de aro preto estavam
escuros e calmos. Agradável, limpa, profissional.
— Olá, —ela disse. — Posso ajudá-la a encontrar alguma coisa?
— Oi. Você é Gloria?
— Sim. —A mulher assentiu.
— Meu nome é Andrea Nash, —eu disse. — Estou investigando
múltiplos homicídios em um dos locais de trabalho do Bando.
Gloria deu um passo atrás do balcão esquerdo e caminhou em direção à
porta. Eu tive que me virar para ficar de frente para ela.
— Múltiplos homicídios?
Ela estava tramando algo. — Sim.
— Quem morreu? —Gloria colocou uma grande caixa de plástico no
balcão.
— Alguns metamorfos. Eles eram funcionários de uma empresa de
extração.
— Isso é muito trágico. —Gloria me ofereceu um sorriso. — Mas eu não
sei o que isso tem a ver comigo.
Ela ficou de pé, uma mão no cesto, os músculos tensos. Normalmente eu
faria a entrevistas mais lentamente, tirando informações dela um pouco de
cada vez, mas ela estava muito nervosa. Tempo de decisão estratégica. Anapa
provavelmente estava atrás da faca cerimonial. Ela também poderia estar.
Poderia, até mesmo, estar trabalhando para ele. Fiz uma aposta. — Me dê a
faca, Gloria.
Ela atirou o conteúdo da lata em mim. Eu me abaixei, mas não rápido o
suficiente. Um monte de fitas me atingiu no peito e se desfez em duas dúzias
de cordas escorregadias em volta dos meus pés.
Cobras.
Os corpos empolados da tripulação de Raphael brilharam diante de mim.
Ser mordido significava morte. Pulei para cima e para a direita, tentando
colocar alguma distância entre mim e o nó de cobras aterrorizadas, aterrissei
no chão limpo e peguei minhas Sigs. Atrás de mim, uma grade de metal
pesado prendeu a porta.
Presa.
Eu girei e vi Gloria agachada no balcão. Mas que diabos está
acontecendo agora?
Gloria abriu a boca. Suas mandíbulas se desencaixaram e se partiram ao
meio, abrindo-se ainda mais. Seus lábios se curvaram para trás, mostrando os
dentes e transformando o rosto em uma máscara grotesca. Presas gêmeas
deslizaram dos recessos em suas gengivas, acima de seus caninos humanos.
Uau.
Gloria se agachou.
— Não! —Gritei. Eu não podia ser mordida e eu precisava dela viva,
porque o que ela sabia iria morrer com ela.
Gloria saltou. Não foi um pontapé de artes marciais. Ela apenas saltou
para mim como se houvesse molas em suas pernas, boca aberta, presas
expostas.
Eu atirei. Dois tiros acertaram seu estômago, o terceiro e o quarto a
pegaram no peito, e então ela bateu em mim. Suas mãos esmagaram meus
braços, prendendo-os ao meu lado. Quatro balas e ela não tinha diminuído a
velocidade. Deveria estar morta ou sangrando.
Tentei arrancar meus braços do seu aperto, mas ela me segurou, suas
mãos como pinças de aço, tentou me morder, apontando para a minha
garganta. De jeito nenhum. Esmaguei minha testa em seu rosto. Ela
cambaleou para trás, seu nariz uma bagunça quebrada de carne e cartilagens
ensanguentadas. Soltei meu braço esquerdo, a segunda Sig ainda em meus
dedos. Gloria mordeu meu braço direito, perfurando a pele diretamente em
minha camisa, e eu coloquei a Sig no ouvido dela e dei três tiros no seu
crânio.
O sangue espirrou no chão, espalhando pedaços de tecido cerebral e ossos
do crânio quebrado. Gloria despencou aos meus pés.
Bem, isso era ótimo. Gloria e seus segredos estavam mortos, me mordeu
e eu estava prestes a me juntar a ela. Como no mundo isso poderia dar mais
errado?
Meu braço queimava. Rasguei minha manga com cuidado, mantendo meu
braço direito imóvel. Um único furo de presa marcava a carne perto do
cotovelo, mas um era suficiente. O tecido ao redor da mordida ficou
vermelho brilhante. O início de um inchaço quente esticou a pele.
Endurecendo-a.
Se os funcionários de Raphael fossem alguma indicação, eu tinha minutos
antes do veneno me matar.
O melhor método para prevenir a disseminação do veneno de cobra veio
da Austrália e envolvia a aplicação de um torniquete apertado, com uma tala
113
grande no braço . O veneno viajava pelo corpo através do sistema
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linfático antes de entrar na corrente sanguínea. A ideia era comprimir o
tecido, impedindo que a linfa se movesse do membro lesionado para o
restante do organismo.
Eu não conseguia me enfaixar sem mexer o braço afetado e, mesmo
assim, não conseguiria fazer direito e com firmeza. Tudo o que eu podia fazer
era um torniquete e esperar que meu braço e eu sobrevivêssemos.
Puxei um lenço do bolso e amarrei o braço acima do local da mordida,
cortando o fluxo de sangue e linfa para o meu braço. Isso teria que ser o
suficiente.
Gloria ainda estava muito morta no chão. A parte racional e controlada de
mim assumiu. Primeiro, Gloria tinha presas gigantes. Segundo, ela era
venenosa. Terceiro, ela estava conectada a uma empresa de extração que
participou do lance no leilão do prédio de Raphael. Se ela não fizesse parte
do grupo que matou os funcionários de Raphael, definitivamente os
conheceria o suficiente para um café da manhã. Eu finalmente tinha uma
grande pista. O problema é que eu estava morrendo. Se o veneno me matasse,
os policiais nunca liberariam a cena do crime para o Bando. Eu não era um
membro oficial do Bando, e eu não estava registrada como um metamorfo na
cidade, o que fazia com que a cena do crime da minha morte caísse na
jurisdição do PAD. O Bando, e quem quer que fosse que assumisse a
investigação depois de mim, não entenderia qualquer evidência que o corpo
de Gloria oferecesse. Eu tinha que preservar qualquer evidência que pudesse.
Peguei a câmera Polaroid do bolso no meu cinto, puxei o lábio da mulher
para trás e tirei uma foto. A câmera imprimiu a fotografia. Virei, escrevi
‘Propriedade de Jim Shrapshire’, enfiei dentro da minha camisa e deslizei a
câmera de volta. Se eu morresse, os policiais encontrariam e perguntariam a
Jim sobre o assunto, o que significaria que ele veria e tiraria suas próprias
conclusões. Espero que eu não morra.
Andei pelo chão em direção ao telefone. Um par de cobras atingiu minhas
botas de combate enquanto eu passava, mas nenhuma delas me machucou.
Estendi a mão e pressionei a alavanca na parede, erguendo a grade de metal
sobre a porta, destrancando-a, subi no balcão para sair do alcance de qualquer
uma das cobras, peguei o telefone e liguei para o escritório.
— Cutting Edge! —Julie atendeu o telefone.
— Dê isso para mim, —Ascanio rosnou.
— É Andrea. Coloque-me no viva-voz.
— Está bem, —disse Julie.
— Me escutem com muita atenção. Estou no Gloria's Artes &
Antiguidades na rua White. Eu fui mordida por uma cobra venenosa,
provavelmente uma víbora, do mesmo tipo que matou os funcionários de
Raphael. Estou morrendo. Ligue para os paramédicos, dê-lhes o endereço de
Gloria, diga-lhes para trazer o soro antiveneno. Em seguida, chame Doolittle
e repita o que eu acabei de dizer. Então liguem para Jim e diga a mesma
coisa. Diga a ele que os paramédicos foram chamados. Não abra a porta do
escritório para ninguém, exceto Kate. Vocês me entenderam?
— Sim, —disse Julie, sua voz neutra.
— Bom. —Desliguei.
Meu metabolismo era provavelmente duas vezes mais rápido que o de um
humano normal. Quanto mais rápido o metabolismo, mais rápida seria a
propagação do veneno através do corpo. Eu tinha que manter a calma.
Quanto mais eu me preocupava mais me movia e mais rápido morreria.
Deitei de costas, quieta, serpentes deslizavam pelo chão, suas escamas
fazendo o mais leve dos sussurros contra as tábuas do assoalho. Meu braço
queimava. Minha testa ficou pegajosa. O suor irrompeu ao longo do meu
couro cabeludo. Náusea veio, se contorcendo do meu estômago para a minha
garganta.
Eu me concentrei em respirar. Para dentro e para fora. Calma.
Dentro.
Fora.
Eu sobreviveria a isso. Sem pensamentos negativos, sem
arrependimentos, sem me preocupar com coisas que eu deveria ter dito e
feito.
Eu sobreviveria a isso.
Dentro.
Fora.
Queria correr para rua, pular no carro e dirigir-me para a sala de
emergência. Mas se fizesse isso estaria indo para a minha morte.
Dentro.
Fora.
Provei o gosto metálico de sangue na minha boca.
Dentro.
Fora.
Uma febre começou queimando lentamente, logo abaixo da minha pele.
Dentro.
Eu posso fazer isso. Vou sobreviver a isso. Vou conseguir justiça para as
quatro famílias. Vou resolver as coisas com o Raphael. Eu tenho muito para
viver.
Apenas não tinha que me mexer.
Minha respiração estava vindo em suspiros curtos. Concentrei mais ainda
na calma da minha respiração. Eu não queria morrer.
A dor perfurou meu peito. Meu coração acelerou. Eu estava quente, muito
quente ...
Um homem vestido com roupa amarela arrombou a porta e xingou. —
Cobras! Porra, há cobras aqui!
Eu fechei meus olhos.

— Poderia explicar para mim de novo? —O detetive Collins, um homem


alto e em boa forma, caucasiano, com quarenta e poucos anos, inclinou-se
para mim. — Ela pulou em você e você atirou quatro vezes em meio
segundo?
— Sim. —Eu me enrolei mais um pouco no cobertor que os paramédicos
tinham me envolvido. Estava sentado na cadeira, no balcão do qual Gloria
havia saltado em mim. Os primeiros socorristas afundaram quinze frascos de
soro no meu corpo e, quando isso não resolveu, me deram mais cinco. Minha
cabeça girava e sentia frio. Em qualquer outro momento eu seria infeliz, mas
agora estar doente e tonta só confirmava que eu estava viva.
— O que aconteceu depois?
— Ela cresceu presas e me mordeu.
— Com suas presas?
— Sim.
A detetive Tsoi, uma mulher asiática morena de trinta e tantos anos,
arqueou as sobrancelhas para mim. — Espere. Você está dizendo que ela era
como uma cobra?
Eu olhei para ela. Atrás de Tsoi, O Controle de Animais empacotava as
últimas das cobras em caixas.
— Eu só quero ter certeza de que estamos na mesma página, —disse
Tsoi. — Estamos falando de pessoas cobras?
— Sim.
Tsoi e Collins se entreolharam.
— Todo mundo sabe que não existem metamorfos reptilianos, —disse
Collins.
— Eu não disse que ela era um metamorfo. —E isso não era estritamente
verdadeiro também. Havia metamorfos reptilianos, eles simplesmente não
eram o produto do Lyc-V.
Tsoi me ponderou. — Seu arquivo diz que você foi dispensada da Ordem
devido a estresse pós-traumático. Você falhou com sua avaliação
psicológica?
— Eu não sou maluca. —Minha cabeça doía e eu ainda queria vomitar.
Cada palavra era como um martelo na minha cabeça.
— Ninguém aqui esta dizendo que você é, —disse Collins. — Ninguém
sequer mencionou a palavra ‘maluca’.
Respirei fundo, tentando manter o pouco de líquido que restava no meu
estômago parar de dar voltas. Eles sabiam que eu estava enfraquecida e
estavam tentando espremer tudo o que podiam de mim, na esperança de que
eu escorregasse. Não os culpo. Em seu lugar, eu teria feito a mesma coisa.
Obtenha o máximo que puder enquanto puder.
115
Eles leram os meus direitos assim que voltei da inconsciência, o que
significava que eu estava detida e esta não era uma conversa de rotina.
— Ela não é maluca, —disse o médico, endireitando-se de onde estava
examinando o cadáver. — Tenho duas presas retráteis aqui. Também algo
aconteceu com sua articulação da mandíbula. Olhe para isso. —Ele puxou a
mandíbula de Gloria para baixo. Sua boca estava aberta, não tão larga quanto
a boca de uma cobra, mas muito mais larga do que qualquer crânio humano
tinha o direito de abrir.
— Pessoas cobras. —Collins olhou para ele. — Você tem que estar
fodendo comigo.
O Médico Legista abriu os braços. — Hey, eu os chamo como eu os vejo.
Eu tenho aqui presas e uma mandíbula que abre cem graus. Você pode tirar
suas próprias conclusões daí.
— Não existe algum tipo de culto secreto que acredita em pessoas
cobras? —Disse Tsoi.
— Não, esses são reptilianos, —disse o médico. — Eles são mais como
lagartos.
— Eu atirei nela quatro vezes, —eu disse. — E isso não a parou.
116
— EnGarde Deluxe , —disse o Médico Legista. — Colete à prova de
balas tático escondido. Ela está vestindo um sob o casaco.
Bem. Isso explicava algumas coisas.
Collins soltou um suspiro e se virou para mim. — O que você está
fazendo aqui?
Três dias atrás, teria respondido sem problemas, por hábito, e porque
quando eu estava ligada a Ordem costumava cooperar com o PAD. Mas
agora eu estava trabalhando para o Bando e eu ficaria sentada aqui e de boca
fechada, até que eles enviassem meu apoio, esperançosamente na forma de
um advogado. — Nada a comentar.
Collins me fixou com um olhar pesado. — Não me diga que você dirigiu
até a rua White para fazer compras.
— Nada a comentar,
— Sério? Você vai mesmo fazer isso? —Ele parecia pessoalmente
ofendido.
— Sim.
Collins sacudiu a cabeça. Tsoi colocou seu rosto em uma expressão
simpática. — Ouça, todos nós aqui sabemos que isso está ligado aos quatro
assassinatos no local de extração do seu ex-namorado. Colabore com a gente.
Somos todos bons mocinhos aqui. Estamos todos do mesmo lado.
Esses dois eram bons. Fazia menos de duas horas que os policiais
uniformizados do PAD, que haviam aparecido logo após os paramédicos,
detiveram-me na cena do crime. Collins e Tsoi, que tinham aparecido há meia
hora, já sabiam quem eu era. Eles sabiam o meu histórico de trabalho, sabiam
da minha conexão com Raphael, e eles estavam obviamente ressentidos por
perderem o caso da morte dos funcionários de Raphael para a jurisdição do
Bando.
Aposto que eles eram os detetives responsáveis pela cena do crime no
prédio de Raphael.
Eu entendia a frustração deles. Quatro assassinatos no meio da cidade, de
metamorfos, não menos, que eram mais fortes e mais rápidos do que a
maioria, não ficaram bem com o público em geral. Não porque éramos
populares, mas se essa ameaça desconhecida pôde atingir quatro metamorfos
ao mesmo tempo, um João ninguém comum não teria chance.
As pessoas tendiam a entrar em pânico facilmente hoje em dia, e o PAD
estava menos do que satisfeito por ter sido impedido de investigar.
— Vamos lá, Nash, —disse Collins. — Ajude-nos aqui. O que você
estava fazendo aqui?
— Nada a comentar.
Eles me encararam. Eu conhecia esse olhar. Tinha usado algumas vezes.
Ele dizia: — Pegamos você e você não está indo embora, mas estamos
dispostos a ouvir e, se falar conosco, tudo vai acabar bem.
Os leigos acham que os policiais são estúpidos. Eles olham, acha que tem
cara de buldogue e assumem que ele é burro e que eles podem se livrar de
qualquer problema em que se meteram. Mas aquele policial com cara de
buldogue tem um currículo, trezentas investigações de homicídio em suas
costas e mais de três mil horas na sala de interrogatório. Você não está
ganhando essa luta. Se você simplesmente parasse e pensasse sobre isso,
ficaria de boca fechada. Mas quando você é confrontado, quer explicar o seu
lado da história. Você quer que alguém entenda, quer simpatia, quer que tudo
acabe.
Explicar o seu lado da história é um impulso poderoso. Eu tinha visto
pessoas preparadas, advogados, policiais experientes e até mesmo cavaleiros
da Ordem, que estavam sob pressão, dizerem coisas estúpidas apenas para se
explicar. Eu não estaria seguindo o exemplo deles.
— Nash, não me engane. Preciso definir obstrução da justiça para você?
— Nada a comentar.
— Andrea, nenhuma outra palavra. —Um homem musculoso e ágil abriu
caminho até nós, movendo-se como um acrobata: gracioso, seguro e leve. Ele
estava perto dos trinta anos, bonito, com olhos verdes e afiadas
características. Seu cabelo curto, vermelho-alaranjado brilhante, tinha sido
escovado para cima e espetado, levantando-se como agulhas em um ouriço
assustado. Barabas. Tecnicamente, ele era um membro do Clã Ágil, mas
cresceu no Clã Bouda. Ele era o conselheiro legal de Kate no Bando e do que
Raphael havia me dito, desagradável e cruel em uma briga.
— Talvez eu precise definir obstrução da justiça para você, detetive. —O
rosto de Barabas assumiu uma expressão perigosamente focada. —
‘Obstrução da justiça' é uma tentativa de interferir na administração e no
devido processo legal. Para ser acusado de obstrução da justiça, uma pessoa
deve intencionalmente e provocativamente obstruir ou impedir um oficial da
lei no cumprimento legal de seus deveres oficiais por meio de violência,
destruição de provas, suborno, corrupção ou mentira. Observe a ênfase na
mentira. Portanto, para acusar minha cliente de ‘obstrução’, você deve provar
que minha cliente foi enganosa. Minha cliente não está mentindo. Ela está se
recusando a responder, como está de acordo com a Constituição, que, da
última vez que verifiquei, ainda era a lei suprema desta terra. Mas foi boa sua
tentativa.
Uau. Eu esperava algum apoio, mas Jim enviou as grandes armas e o
apoio aéreo.
O médico legista acenou para Barabas. Barabas acenou de volta. — Ei,
Mitchell. Há quanto tempo.
— Quem é você? —Tsoi exigiu.
— Barabas Gilliam. —Um cartão de visita se materializou nos dedos
longos e elegantes de Barabas. — Eu sou o advogado dela.
Tsoi olhou para o cartão. — Você é um advogado do Bando. O que você
está fazendo aqui?
— Trabalhando. —Barabas sorriu, mostrando dentes brancos afiados. —
Veja só, até mesmo nós, advogados sujos do Bando, temos que passar pela
catraca dos estudos como todo mundo. Se você verificar, verá que sou um
membro em situação regular. Estou licenciado para exercer a advocacia no
adorável Estado da Geórgia e em vários de seus ilustres estados vizinhos, o
que significa que Nash pode me contratar para representá-la.
Tsoi apontou para mim. — Ela é um membro do Bando?
— Não, a Senhorita Nash é uma cidadã civil, que contratou meus
serviços. Eu faço questão de acompanhar a legislação atual, mas talvez tenha
perdido alguma coisa, existe uma nova lei que afirma que um advogado do
Bando não pode praticar advocacia fora do Bando? Se sim, muito obrigado
por chamar minha atenção, detetive.
— Você acha que isso é algum tipo de comédia acontecendo aqui? —
Collins deu-lhe seu olhar duro.
Uma pequena faísca vermelha flamejou nos olhos de Barabas. — Com
licença.
Ele atacou com rapidez sobrenatural e puxou uma cobra de um metro e
meio do balcão, a alguns centímetros de distância do cotovelo de Tsoi. Tsoi
pulou, percorrendo metade da sala em um único salto.
O corpo da cobra se agitou no punho do meu advogado. Barabas puxou a
cobra para a boca e mordeu o pescoço.
— Jesus Cristo! —Collins deu um passo para trás.
Tsoi apertou a mão sobre a boca.
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Barabas cuspiu a cabeça no balcão. — Jararaca , minha favorita. Onde
nós estávamos? Ah sim. Você estava tentando me intimidar. Peço desculpas
pela interrupção. Por favor, retome o seu olhar intimidador.
— Essa cobra era evidência, —Collins rosnou.
— Eu ficarei feliz em entregá-la a você. Considerando que acabei de
salvar sua parceira de ser mordida, esperava mais gratidão
Barabas ofereceu a cobra sem cabeça de volta a Collins. O detetive fez
uma careta e pegou.
— Que tipo de metamorfo é você? —Tsoi exigiu.
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— Ele é um metamorfo mangusto, um suricato , —o médico disse a
eles.
Barabas sorriu para mim. — Estamos indo embora.
— Não, vocês não vão! —Disse Tsoi.
— Vocês não podem segurá-la. Todos nós aqui sabemos disso. Mas só
para ter certeza, vamos rever os fatos, —disse Barabas.
— Minha cliente, uma pobre mulher indefesa ...
Collins quase engasgou com o próprio cuspe.
— … que veio aqui para ver a mercadoria desta loja, foi atacada por um
monstro e a matou em autodefesa. Ela não falará mais com vocês, porque,
como todos sabemos, qualquer coisa que ela disser a você pode e será usada
contra ela em um tribunal. No entanto, como está previsto na lei, que nos diz,
nada que ela disser será usado em sua defesa, porque qualquer coisa que ela
pronunciar para você será uma declaração extrajudicial que a prejudicará.
Então, falar com você não traz nenhum benefício para ela, seja o que for. —
Barabas se virou para mim. — Você pode andar?
— Talvez, —eu disse a ele. — Ainda não tentei.
Barabas me pegou, como se eu não pesasse nada. — Há mais alguma
coisa, detetives?
— Ela não é do Bando, então nem pense em afirmar que esta é uma cena
de crime pertencente ao Bando, —Tsoi rosnou.
— Não sonharia com isso. —Barabas saiu pela porta e na luz do sol.
Ele desceu a rua. — Estacionei do lado para que eles não pudessem me
bloquear. É uma tática divertida que usam, eles estacionam atrás de você e
tentam arrancar o que puder de você enquanto eles levam seu tempo
prendendo seu veículo. — Você está bem?
Eu assenti. Estava tão feliz por estar fora de lá. — Barabas, se você não
jogasse no mesmo time que eu, me casaria com você.
Ele sorriu. — Se eu não jogasse no mesmo time que você, eu aceitaria sua
proposta. Você me conquistou no ‘Nada a comentar’. Se todos os meus
clientes fossem tão inteligentes, minha vida seria muito mais fácil. Muito,
muito mais fácil.
Ele parou junto a um Jeep do Bando, abriu a porta do passageiro e
cuidadosamente me carregou para dentro.
— Onde estamos indo?
— Para o seu escritório. Está mais perto do que o seu apartamento e
melhor fortalecido. Doolittle já está lá e ele está esperando sua chegada com
todos os tipos de agulhas e dispositivos de tortura.
— Ótimo, —eu murmurei.
— Ele está muito animado. Vai ser divertido, —Barabas prometeu e ligou
o motor.
Quando saímos do estacionamento, meu estômago fez uma pirueta dentro
de mim. — Você não vai contar a ninguém sobre ter me carregado no colo,
vai?
— Será o nosso segredo especial, —disse ele.
— Obrigada.

Capítulo 10
Doolittle era um homem muito bom. Parecia ter cinquenta e poucos anos,
embora provavelmente fosse mais velho, metamorfos viviam mais e pareciam
mais jovens do que a maioria das pessoas comuns. Sua pele era escura, quase
azulada, cinza prateado salpicava seu cabelo curto e escuro, falava em voz
baixa com um suave sotaque sulista; e os óculos, que insistia em usar,
combinavam com uma expressão ligeiramente distraída, faziam com que se
parecesse com um bom professor universitário, alguém especializado em
história ou antropologia e que passava a vida num escritório cheio de livros.
Você meio que esperava que ele sentasse ao seu lado e trocasse uma ideia
franca sobre uma civilização há muito esquecida e assegurá-la de que
realmente aquele oito em sua prova não foi tão ruim.
No entanto, no momento em que qualquer tipo de lesão, por mais trivial
que fosse, se manifestava, Doolittle se transformava em um tirano teimoso e
desagradável, que tratava você como se tivesse seis anos de idade. Ele era
como um curandeiro do bando. Consertava ossos quebrados, removia prata e
outros objetos estranhos, costurava feridas, e geralmente passava cada minuto
acordado, certificando-se de que os metamorfos do bando continuassem
respirando.
Sua persistência obstinada confirmava a fama que a sua contraparte
animal tinha. Se houvesse leis da natureza, uma delas certamente diria que
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discutir com um texugo era inútil.
No segundo em que pisei na soleira da porta, Doolittle me colocou em
uma cadeira. Ele tirou meu sangue e examinou o local da picada no meu pé,
que eu não havia percebido, e a maior no meu ombro, que adquirira um
inchaço roxo-amarelado. Barabas contou a cena, enquanto Julie e Ascanio
pairavam ao fundo, quietos como dois ratos.
— Víboras? —Perguntou Doolittle, checando meus olhos.
— Aparentemente sim. Pelo menos a que eu peguei era. Não uma
cascavel, no entanto. —Barabas deu de ombros. — Presas de oito
centímetros.
— Náusea? —Doolittle me perguntou.
— Sim. —Eu ainda estava suando também. O suor encharcava meu rosto
e minhas costas, úmido e frio, e meu coração batia rápido demais. A mordida
no meu braço também não se fechava. Isso era um mau sinal. O Lyc-V
fechava a maioria das feridas em minutos.
Alguém bateu na porta do escritório. Barabas foi até a porta, deslizou
para o lado a portinhola de metal que cobria a estreita janela do espião e
olhou através dela.
— É o seu namorado.
— Barabas, abra a maldita porta, —rosnou Raphael.
Barabas deslizou desbloqueou a fechadura. — Você quer que eu o deixe
entrar?
— Estou pensando sobre isso.
Barabas deslizou bloqueou a fechadura novamente. — Ela está pensando
sobre isso.
— Andrea, —Raphael chamou. — Me deixe entrar.
— A última vez que eu vi vocês dois juntos, estavam tão felizes, —disse
Barabas. — Só por curiosidade, Raphael, como diabos você conseguiu foder
isso?
A voz de Raphael ganhou a qualidade perigosa de quem estava prestes a
ficar louco. — Olha que interessante do que me lembrei, como estão as coisas
com você e Ethan?
— Não é da sua conta, —disse Barabas.
— Deixe-me entrar e eu não vou arrancar sua cabeça.
— Você não vai arrancar a minha cabeça de qualquer maneira, —disse
Barabas. — Nós somos amigos.
— Deixe ele entrar, —eu disse. Se não o deixássemos entrar, ele não iria
embora. Apenas ficaria no pé da porta gritando com Barabas obscenidades
um para o outro. Minha cabeça doía o suficiente sem a gritaria.
Barabas abriu a porta e Raphael entrou. Ele me viu e ficou pálido.
— Não a agite, —advertiu Doolittle.
— Não sonharia com isso. —Raphael puxou uma cadeira e sentou-se ao
meu lado.
Doolittle olhou meus olhos com uma lanterna, escutou meu batimento
cardíaco e colocou um copo de líquido escuro na minha mão. — Beba isso.
Eu tomei um pequeno gole. Tinha gosto de mistura de querosene com
120
terebintina . — Isso é horrível.
Doolittle olhou para mim através dos óculos. — Agora, minha jovem,
você vai tomar todo esse copo. Se eu pude largar tudo e correr para cá, no
mínimo, você pode me pagar pela minha gentileza tomando o remédio.
Engoli a bebida. Queimou minha garganta e eu tossi. — Doutor, você está
tentando me matar ...
— Beba um pouco mais, —disse Raphael.
Apontei para ele. — Você ouviu o que o médico disse. Não me agite.
Bravamente tomei outro gole do material desagradável, tentando forçá-lo
para o estômago e mantê-lo lá.
— Muito bom, —Doolittle aprovou. — Lembro que eu te avisei para não
confrontar essa cobra.
— A cobra me atacou. Ou melhor, a mulher com presas de cobra me
atacou.
— Se você terminar o copo todo, eu vou te dar um pirulito.
Havia algo profundamente absurdo em toda essa conversa. — Pare de me
tratar como uma criança.
— Eu vou se você se acalmar e tomar o seu remédio. —Doolittle olhou
para Barabas. — Suponho que você não viu a mulher cobra em questão?
Barabas sacudiu a cabeça. — No segundo em que entrei, o médico cobriu
a cabeça dela.
— Que vergonha.
Tomei outro gole, eu nunca provei nada mais ruim. Preferia leite morno
com bicarbonato de sódio ao invés disso.
Tirei a Polaroid do meu sutiã.
— Aqui.
Raphael pegou a Polaroid dos meus dedos e entregou a Barabas sem uma
palavra.
Os olhos do meu advogado se arregalaram. — Por que diz 'Propriedade
de Jim Shrapshire'?
— Porque esse é o nome verdadeiro de Jim.
— Isso não explica nada, —disse Barabas.
— Se eu morresse, o PAD reivindicaria a cena e o bando ficaria fora da
investigação. Havia uma boa chance de que eles não deixassem o bando
examinar o corpo de Gloria. Mas quando eles encontrassem a Polaroid no
meu corpo, eles mostrariam para Jim e perguntariam a ele sobre isso. Ele
saberia procurar em suas fontes de seus conhecidos por criaturas com presas
retráteis.
— Você foi mordida e sua prioridade era tirar fotos? —Disse Barabas.
— Não a agite, —disse Raphael a ele.
— Parecia importante na hora.
Barabas olhou para Raphael. — Como você aguenta isso?
— Primeiro o trabalho. É assim que ela funciona, —disse Raphael.
Doolittle emitiu um longo suspiro de sofrimento. — Você sabia sobre
procedimentos de emergência de picada de cobra. Você nem pode alegar
ignorância. Isso foi apenas uma desconsideração deliberada de sua vida, isso
é exatamente o que foi O metamorfo texugo e o metamorfo suricato olharam
para a fotografia.
— Presas retráteis, —disse Barabas. — Como uma cascavel.
121
— Ou uma víbora Saw-scaled . —Doolittle franziu a testa. — Onde
esse mundo vai parar?
— O que há de tão especial sobre uma víbora Saw-scaled? —Perguntei.
— É uma cobra interessante, —disse Barabas. — Pequena, mal-
humorada, ativa depois de escurecer. Você anda por ela, te morde, você acha
que não é nada demais. Vinte e quatro horas depois você desenvolve
sangramento interno espontâneo. Mata mais pessoas do que qualquer outra
espécie de cobra na África. Também é deliciosa e tem um aperto de
mandíbula forte.
Bebi meu remédio desagradável e contei os detalhes para eles: Garcia
Construções, marcas de um veículo rebocado, mecânico, cheque com o nome
de Gloria e Gloria me atacando quando mencionei a faca.
— Então é a faca que vimos quando invadimos o escritório de Anapa, —
disse Raphael.
Barabas enfiou os dedos nos ouvidos. — Lálálálá, eu não estou ouvindo
nada sobre qualquer invasão.
— Sim, —eu disse a Raphael. — Eles estão todos envolvidos nisso.
Ele franziu a testa.
Terminei o último gole do remédio e coloquei o copo na mesa. — Eu
quero meu pirulito. Mereço.
Doolittle enfiou a mão na bolsa e ofereceu-me uma escolha: uva,
melancia ou laranja. Fácil. Peguei o de melancia e enfiei na boca. — Então,
como ela tem presas?
— É uma espécie de acréscimo de magia, —disse Doolittle. — Talvez
seja uma criatura que nunca vimos antes.
— Seu padrão de presas é semelhante aos ferimentos nos funcionários de
Raphael.
Doolittle assentiu. — Semelhante, mas infelizmente não podemos ter
certeza, porque não temos a cabeça dela.
— Além disso, havia várias mordidas de tamanhos variados em seus
corpos, —eu disse.
— O que significa que seus amigos ainda estão foragidos, —terminou
Raphael.
— Pessoas andando por aí com presas venenosas, —eu interrompi. —
Como isso é possível?
Doolittle olhou para mim com um sorriso irônico. — Como é possível
que apareçam em nós pêlos, presas e garras?
Touché.
Doolittle verificou meu sangue no tubo de ensaio e tirou um kit de couro
da bolsa. — A coagulação de sangue ainda é anormal. —Ele desenrolou o kit
de couro na minha mesa. Instrumentos estranhos de metal brilhavam, cada
um em um bolso de couro elegante. Parecia o tipo de kit de ferramentas que
um torturador medieval carregaria.
A mão de Doolittle parou no bisturi.
— Você vai me cortar, não é?
Doolittle assentiu. — Esse inchaço roxo em seu braço é o acúmulo de
Lyc-V morto combinado com veneno aprisionado. Temos que tirá-lo do seu
sistema. Você se lembra de como empurrar a prata do seu corpo?
— Sim. —Não é algo que você esqueceria.
Doolittle puxou uma cadeira e sentou ao meu lado, então nossos olhos
estavam nivelados. — Eu preciso fazer um corte no seu braço e inserir uma
agulha no músculo afetado pela picada. A agulha é feita de uma liga de prata.
Isso machucaria. Aí sim. E doeria como o inferno.
Raphael se aproximou e cobriu minha mão com a dele.
— Devemos dar alguns minutos para o seu corpo reagir, —disse
Doolittle. — Então eu quero que você se concentre em empurrar a agulha de
prata para fora. Isso irá estimular o fluxo sanguíneo e linfático direto na
ferida e expulsar o veneno. Se limparmos o veneno, suas chances de
sobrevivência serão significativamente maiores.
Os pelos da minha nuca se arrepiaram. Eu estava cansada, muito cansada,
e meu corpo parecia ter sido espancado com um saco de pedras. O simples
pensamento de agulhas de prata me fez querer encolher.
— Você pode fazer isso, —disse Raphael. — Pare de ser um bebê sobre
isso.
— Foda-se.
— Isso mesmo, —disse ele. — Vamos lá, mulher corajosa. Mostre-me o
que você tem.
Eu apertei os braços da cadeira. — Faça.
Raphael colocou as mãos no meu ombro direito, me prendendo na
cadeira. Barabas me segurou na esquerda.
Doolittle pegou um bisturi. Sua mão piscou, rápido demais para ver. A
dor me picou, rápida e afiada. Sangue negro jorrou da ferida e Doolittle
limpou-a com gaze. — Isso vai doer.
Uma agulha incandescente se empurrou em meu braço. Meu corpo inteiro
gritou em alarme. Parecia que alguém tinha feito um buraco no meu músculo
e derramado metal derretido nele.
— Aguente firme, —Doolittle me disse, sua voz suave. — Você está indo
muito bem. Maravilhoso. Segure isso. Um pouco mais …
Eu rosnei e agarrei o braço com a mão esquerda. Barabas me segurou
firme.
— Você gostou da minha mensagem na mesa? —Raphael perguntou.
— Adorei, —disse através dos dentes cerrados. — Vou ter que retribuir o
favor mais tarde.
A dor cresceu cada vez mais, queimando meu braço. Meus membros
tremiam sem controle.
— Não se transforme, —disse Doolittle. — Você está indo bem. Você
está indo muito bem. Só mais um pouquinho. Um pouco mais, Andrea.
A dor percorreu meu músculo até o osso e raspou-o com dentes
serrilhados afiados.
Eu rosnei.
— Quase lá, —Doolittle cantou. — Quase.
— Nós estamos aqui, —Barabas me disse. — Nós estamos aqui com
você.
Eu não ia aguentar. Eu não ia aguentar nem mais um segundo. Meu corpo
torceu, procurando uma maneira de escapar. Manchas leves apareceram na
minha pele.
— Não se transforme, —retrucou Raphael.
— Cale a boca.
— Seja boazinha ou eu vou te beijar na frente de todo mundo.
— De jeito nenhum, —eu rosnei. Tinha que aguentar e continuar viva
para que eu pudesse dar um soco no rosto dele. Era um grande objetivo.
— Espere, —disse Doolittle. — Mais dez segundos.
Aaah. Isso dói. Dói, dóii, dóiiiiiiii ...
— Expelir, —replicou a voz de Doolittle.
Eu concentrei cada centímetro da minha vontade na dor.
O calor se espalhou através de mim, penteando minha carne com dedos
pontiagudos.
Saia do meu corpo. Dê o fora!
A agulha estremeceu.
Eu gritei.
— Expulse, —insistiu Doolittle.
— Você pode fazer isso, —Barabas me disse.
Eu empurrei. A agulha deslizou livre e o sangue escaldante jorrou pelo
meu braço. Ele ficou cinza, roxo e, finalmente, vermelho brilhante. Raphael
soltou meu braço e eu lhe dei um soco no peito. Era a parte mais próxima
dele.
— Boa menina. —Doolittle exalou. — Muito bem.
Limpei as lágrimas dos meus olhos e vi Ascanio. Ele olhava para mim.
Seus olhos eram enormes e aterrorizados.
— Que seja uma lição para você, —disse Doolittle. — Não se deixe ser
mordida. Peguem alguma comida na geladeira. Andrea precisa comer.
É incrível o quanto um bom sanduíche, ou três, podem fazer por você.
Minha cabeça parou de girar e eu não sentia mais como se minhas pernas
fossem de geleia. Olhei para o presunto cada vez menor, do qual Julie tinha
esculpido a carne para os meus sanduíches. Não cabia mais nada no meu
estômago, mas eu ainda estava com fome.
Doolittle colocou uma pequena caixa de plástico na minha frente e abriu
o topo. Seis pequenas ampolas em uma fileira ordenada.
— Antiveneno, —ele disse e me mostrou um objeto que parecia uma
arma. — Uma ampola entra aqui. Depois de ouvir um clique, pressione-o
contra a pele e puxe o gatilho. Não use em humanos. Está na forma de uma
arma, então você não deve ter dificuldades em usá-la.
Uma pistola de antiveneno, carregue, ouça o clique, aperte o gatilho.
Tudo bem, eu poderia fazer isso.
— Infelizmente, isso é tudo que posso fazer até saber mais, —disse
Doolittle. Ele se aproximou e olhou nos meus olhos. — Eu aconselho
fortemente contra qualquer atividade física pelas próximas vinte e quatro a
quarenta e oito horas. Nada extenuante. Sem relações sexuais, sem corrida e
sem luta. Você me entende?
— Perfeitamente.
— Eu não sou ingênuo o suficiente para acreditar que você seguirá meu
conselho.
— Eu juro solenemente atender a pelo menos um terço disso. ‘Nenhuma
relação sexual’ não será um problema.
Barabas riu baixinho.
Doolittle sacudiu a cabeça. — Se você sentir que vai desmaiar, tome
outra dose de antiveneno e se deite.
— Sim senhor.
Doolittle balançou a cabeça novamente e foi arrumar suas ferramentas.
Barabas entrou em seu lugar e se encostou na minha mesa, com os braços
cruzados sobre o peito. — Como seu advogado, sou forçado a aconselhá-la a
ficar longe da cena do crime. Nós dois sabemos que você não vai, mas se for
pega, haverá repercussões.
— Obrigada pelo aviso. —Agora eu tinha o conselho de um médico e um
advogado. Tentei lutar contra um bocejo, mas ele ganhou. — Eu
definitivamente vou levar isso em consideração.
Eu tinha que voltar para a cena do crime. Todos na sala sabiam disso.
— Há outra coisa e você não vai gostar de ouvir, mas como seu
advogado, estou acostumado com isso. Sua posição com o Bando é
indefinida. Isso torna as coisas muito mais complicadas do que precisam ser.
Torne-se um membro oficial.
Acertar as coisas com a mulher que enviou duas boudas para me bater.
Certo.
Barabas olhou para Julie. — Por favor, pegue sua bolsa. Estamos
voltando para a Fortaleza.
Julie cruzou os braços. — Mas …
— Julie, —Barabas disse calmamente. — Por favor, pegue sua bolsa.
Julie foi para a cozinha e voltou com a mochila.
Meus olhos estavam aparentemente produzindo cola em vez de umidade,
porque eu tinha dificuldade em mantê-los abertos.
— Leve Ascanio com você também, —eu disse. O garoto parecia
realmente abalado.
— Não, —disse Raphael.
Eu me virei para ele. — Você não pode dar ordens aqui.
— Eu ainda sou o Alfa dele. Ascanio ou eu, um de nós vai ficar aqui com
você e ficar de guarda enquanto você dorme. Gloria está morta e agora seus
amigos e parentes podem estar procurando por você. Você mal consegue
manter os olhos abertos. Eu não me importo com o quão bom é essa porta,
você precisa de alguém acordado e alerta caso eles apareçam. Isso pode ser
Ascanio se você preferir, mas eu estou mais do que feliz em ficar na cama
com você e te abraçar enquanto você dorme. É a sua escolha.
Chega um ponto na vida de todo mundo que você está cansado demais de
discutir. Eu abri minha boca e percebi que tinha atingido esse ponto. Se eles
não saíssem no próximo meio minuto, eu adormeceria sentada. — Eu vou
ficar com o garoto.
Ascanio piscou. Julie pisou no pé quando passou por ele e ele lhe deu
uma cotovelada nas costelas.
— Ligue para mim se acontecer alguma coisa, —Barabas me disse.
— Certo.
Um momento depois, o advogado e o médico foram embora. Raphael e
eu nos entreolhamos.
— Vá embora, —eu disse a ele.
— Por enquanto, —disse ele. — Eu voltarei.
— Eu não vou deixar você passar pela porta.
— É o que vamos ver. —Raphael se virou para Ascanio. Proteja-a.
— Sim, Alpha.
Ele saiu. Ascanio fechou e trancou a porta atrás de si.
Ponderei se valeria a pena me forçar a subir para a cama ou se eu deveria
simplesmente deitar no agradável e confortável piso de madeira. Minha
dignidade ganhou. Eu sou durona, deus, que droga. Poderia encarar doze
degraus. Venceria esses doze degraus.
Eu me arrastei até a cama armada no andar de cima e desmoronei de
bruços. Tentei tirar meus sapatos, mas o mundo escorregou pelos meus dedos
antes que eu tivesse a chance de levantar minha cabeça do travesseiro.
— Andrea? —Ascanio sussurrou ao meu lado.
Eu abri meus olhos.
Ele estava agachado ao lado da cama. — Sinto muito em te acordar.
Minha mãe está do lado de fora. Posso deixá-la entrar?
— Claro que você pode deixá-la entrar.
— Obrigado.
Ele foi embora. Esfreguei meus olhos e me sentei. O relógio de corda na
mesa de cabeceira perto da cama dizia sete da noite. Todas as células do meu
corpo doíam. Lá embaixo, a tranca tiniu, Ascanio estava abrindo a porta.
Forcei-me a ficar em pé, atravessei o sótão e sentei-me no topo da escada.
Ascanio abriu a porta e ficou de lado. Martina entrou. Ela tinha um raro
olhar, uma espécie de beleza régia que misturava severidade e sensualidade,
mas não muito inclinada a qualquer um deles. Seu cabelo escuro coroava sua
cabeça em uma trança enrolada. Sua pele bronzeada era impecável. Suas
feições eram bem definidas, e ela se mantinha com grande equilíbrio, tão
autocontrolada com uma confiança silenciosa que as pessoas gravitavam para
ela. Barabas a chamava de rainha Martina. Ela usava jeans e uma blusa cor de
azeitona, mas o apelido ainda se encaixava.
Ascanio fechou a porta, trancou-a e ficou ali sem jeito. Eu nunca o tinha
visto estranho antes.
— Como você está? —Martina estendeu a mão para tocar sua bochecha,
mas parou antes do contato real, como se tivesse pensado duas vezes.
— Eu estou bem ... obrigado.
— Eu trouxe-lhe o seu favorito, —disse ela, entregando-lhe uma cesta.
Ascanio tirou a toalha da cesta e sorriu. Era um sorriso tímido de criança,
tão em desacordo com a sua personalidade adolescente de Don Juan. Fiquei
olhando, tentando entender.
— Experimente esses aqui, —disse ela.
Ascanio olhou para mim.
— Tudo bem, —disse Martina. — Vá. Eu vou conversar com Andrea.
Ascanio pegou a cesta, inclinou-se e beijou a mãe na bochecha. Então ele
se virou e foi para a cozinha.
Martina subiu as escadas e sentou-se ao meu lado.
— O que há na cesta? —Perguntei.
122
— Cannoli , —disse ela. — Ele realmente gosta deles.
E ela veio até aqui, a uma hora da Fortaleza, apenas para trazê-los. Algo
não estava certo.
— Raphael já contou a nossa história? —Ela perguntou.
— Não. —Sabia que por algum motivo Ascanio não viveu todo a sua
vida com o clã, mas era só isso que eu sabia.
Ela assentiu. — Eu era jovem e morava no meio-oeste. Não fui mordida,
eu nasci uma bouda. Minha mãe também era bouda, meu pai era um
metamorfo lobo. Eu tinha uma família maravilhosa, Andrea. Era muita
amada.
— O que aconteceu? —Perguntei. Engraçado, eu pensei que toda a sua
autoconfiança criaria uma distância, mas ela parecia muito legal. Sua voz me
deixou à vontade.
— Tivemos uma inundação, —disse ela. — Uma daquelas inundações
insanas que às vezes atinge estados como Iowa. O rio transbordou e destruiu
nossa cidade. Estávamos sentados no telhado e minha mãe viu nossos
vizinhos flutuando no carro, seus filhos no banco de trás. O carro afundava e
todo mundo estava gritando. O carro afundou, sumiu. Minha mãe era mais
forte que meu pai, então ela entrou logo depois atrás do carro e não voltou.
Meu pai mergulhou para tirá-la, mas ele também não voltou. Eu sentei lá no
telhado e chorei e gritei e gritei e implorei a Deus para deixá-los voltar, mas
não havia nada além de rio lamacento.
Eu podia imaginá-la sentada no telhado, chorando. — Isso é horrível.
— Obrigada. Meus avós me acolheram, mas não era a mesma coisa. Saí
assim que pude e viajei por aí, fazendo bicos aqui e ali, trabalhando em bares,
servindo de garçonete em lanchonetes. Eu era selvagem. Se um cara tivesse
olhos bonitos e belos bíceps, eu entrava no jogo. —Ela sorriu, uma pequena
faísca em seus olhos. — Procurando por amor em todos os lugares errados,
mas me diverti.
— Você achou o Senhor Certo?
— Eu encontrei muitos Senhores Certos Temporários. Nenhum deles
durou muito tempo. Não sabia disso na época, porque era jovem e estúpida,
mas o tipo de grande amor que eu estava procurando não poderia ter
acontecido comigo naquela época. Eu nem sabia que tipo de pessoa queria
ser, muito menos o que queria de um cara. Mas eu queria esse amor que
perdi, então tive essa brilhante ideia: engravidaria e teria um bebê. Um bebê
me amaria não importa o que, porque eu seria sua mãe. Nós seríamos uma
pequena família juntos. Seria como era antes de perder meus pais.
— Nunca é como antes.
— Eu sei disso agora, mas naquela época eu era egoísta, ferida, e muito
jovem. Conheci o pai de Ascanio. John era lindo. Homem bonito. E um
bouda como eu. Um pouco passivo demais, mas ele era gentil e muito
adequado. Seduzi-lo foi muito divertido, ele fazia tudo o que eu pedia. Eu
gostava em estar no comando. Ficamos juntos por dois meses quando
engravidei. Estava tão feliz. Eu disse a ele e ele chorou.
— Ele chorou? De alegria?
— Mais como de pavor.
— Ah não.
Martina assentiu. — Sim, isso deveria ter sido uma alerta para mim.
Aparentemente, John cresceu em um culto religioso adorando algum deus
inventado, e ele foi enviado ao mundo para uma peregrinação de um ano. Ele
chegou a um acordo sobre ‘pecar’ comigo, provavelmente porque eu era
muito boa em ‘pecar’ e ele gostava disso, mas uma criança o trouxe de volta
a realidade fanática. Nós não poderíamos ter um filho em pecado, e ele se
recusou a casar comigo a menos que eu voltasse com ele e seu profeta nos
casasse. O problema era que eu teria que dormir com o tal profeta para
purificar meu corpo.
— Não, —eu disse. — Foda-se isso.
— Essa foi a minha reação. É o meu corpo e eu não seria abusada dessa
maneira. John também me avisou que não seria um bom marido e nem um
bom pai. Eu disse que ele estava livre para pegar a estrada. Eu e meu bebê
ficaríamos bem. Mas John teve uma mudança de coração e ficou por perto.
Eu deveria ter arrancado a cabeça dele naquele momento, mas me iludi,
pensei que ele tinha ficado porque me amava. Entrei em trabalho de parto. O
hospital nunca tinha recebido uma metamorfo para dar à luz antes e o meu
parto foi uma coisa longa e terrível. Então eu consegui dá à luz a Ascanio e
valeu a pena. Ele era tão lindo. Eu estava lendo um livro francês na época
sobre um escultor e ele tinha um aprendiz ridiculamente bonito, cujo nome
era Ascanio. Eu sabia exatamente que nome meu bebê. O hospital me sedou
depois disso para me deixar descansar. Quando acordei, meu lindo bebê tinha
ido embora. John o levou.
— Ele o quê?
— Ele o levou de volta ao culto. Ele me deixou uma nota, o nojento.
Dizia que ele não podia deixar seu filho ser criado em pecado, e já que
Ascanio era um inocente, ele o levaria embora, mas eu não poderia ir, porque
eu estava maculada pelo nosso pecado.
— Eu o teria matado. Eu o teria assassinado ali mesmo.
— Eu tentei, —disse Martina. — Procurei por ele durante anos. Estava
amarga e quebrada até então, e é quando a Tia B me encontrou. Ela estava em
algum tipo de viagem. Eu estava ... bom, o termo apropriado seria fodida.
Não havia mudado para a minha forma animal por anos. Não parecia que isso
fazia sentido. E isso só me trouxe miséria. Ela foi atrás de mim. ‘Venha ficar
com sua própria espécie. Não precisa se comprometer com nada. Apenas
venha morar conosco um pouco e, se você não gostar, está livre para ir’.
Eventualmente, eu fui com ela. Não importava de um jeito ou de outro. Então
vim para cá e aos poucos, pouco a pouco, me recuperei. Então a ligação veio.
O profeta do culto decidiu que meu filho estava competindo demais e estava
estragando seus planos de harém, então ele nos chamou para ir buscá-lo. Nós
fomos — E John?
— Ele morreu há um tempo atrás. Uma coisa boa também, porque eu o
teria matado. Então, como você pode ver, é difícil para nós dois, —disse
Martina. — Ascanio nunca teve uma mãe e eu nunca tive um filho. Nós
tentamos o melhor que podemos e quando encontramos algo que pode fazer
um de nós feliz, nós dois suspiramos aliviados. Eu faço a ele cannoli e ele me
compra sabonete perfumado com seu dinheiro do estágio. Eu tenho duas
gavetas cheias desse sabonete. —Um pequeno sorriso feliz iluminou seu
rosto. — Se você alguma vez ficar sem sabonete, me avise. Eu tenho o
suficiente para manter o Bando inteiro limpo por uma semana.
Realmente gostei dela. Não imaginei que iria, mas gostei. Ainda assim,
algumas coisas precisavam ser esclarecidas. — Você não veio aqui para me
contar essa história, não é?
—Não. Eu vim aqui para falar sobre o clã e a Tia B.
— Eu não quero ser rude, —disse. — Mas não há nada que você possa
dizer para me fazer jogar bola com a Tia B. Eu não vou lá e não vou implorar
e me arrastar para ser admitida no clã só para ser uma das garotas de recado
dela. Isso não vai acontecer. E acho que é covardia da parte dela mandar você
para essa conversa. Executoras não funcionaram, nem você, então me
pergunto qual será seu próximo passo. Quem mais ela enviará?
— Ela não me enviou, —disse Martina. — Foi meu filho que pediu.
— Ah.
— Você sabe o que eu faço pelo clã? —Ela perguntou.
— Não.
— Sou uma terapeuta licenciada, —disse ela. —Especializei-me nas áreas
de terapia familiar, controle da raiva e de estresse, ajustamento de
adolescente e aconselhamento sobre perda e luto. Eu sou uma das dez
conselheiras da Bando.
— Eu não estou no Bando, —disse a ela.
— Eu sei. —Ela sorriu. — Este é um presente.
— Eu não preciso de terapia. —Soou hipócrita no momento em que saiu
da minha boca. — Certo, então talvez eu precise, mas eu não ... eu não sei.
— Isso não tem que ser uma sessão de terapia, —disse ela. — Isso
poderia ser apenas nós duas conversando. Poderíamos falar sobre Deb e
Carrie e sua conduta no estacionamento.
Eu olhei para ela. — Quanto Ascanio lhe contou?
— Ele não disse nada sobre o seu passado, se é isso que te preocupa, —
disse ela. — Exceto que você teve dificuldades, e houve abuso e isso esta
relacionado aos boudas. Ele queria que eu fosse até a Tia B e explicasse a ela
que as boudas não poderiam continuar invadindo seu território, porque elas
iriam te levar longe demais. As palavras exatas foram ‘Elas estão tentando
fodê-la em seu próprio território.’ Ele está preocupado que você acabe
matando alguém.
— Ele está certo, —eu disse a ela.
Martina tirou um pequeno gravador. — Eu fiz isso para você.
Ela apertou o botão. A voz da Tia B soou no pequeno alto-falante.
— … Eu disse para ir lá e descobrir o que eles conversaram. Pedi que
fossem espertas. Eu disse para alguém ser grosseira?
— Não, senhora, —disse Carrie calmamente.
— Então, por que você se decidiu improvisar?
— Nós pensamos ... —Deb começou e ficou em silêncio.
— Eu não faria muito disso, se eu fosse você, querida. Quando você
pensa, você acaba com ossos quebrados. Além disso, fico muito feliz quando
você me deixa pensar por você. Quer me fazer feliz, não é?
— Sim senhora, —duas vozes femininas em coro.
— Vou explicar as coisas para vocês agora, porque não quero que se
sintam excluída. Vocês achavam que, como Andrea é bestial, poderiam
facilmente dominá-la? Andrea é uma sobrevivente. Nunca subestimem isso.
Ela aprendeu a matar, treinou para isso, praticou. Você luta por diversão e
dominação. Ela luta em todas as batalhas como se fosse pela vida dela. Se
você atacá-la, ela vai te rasgar como um vestido mal costurado. Andrea
também entende como as leis que defendem o direito humano funcionam. E
todos nós sabemos o quanto isso é importante, não é?
Outro coro. — Sim, senhora.
— Vocês entendem agora porque ela seria uma vantagem para o clã?
— Sim, senhora.
Eu era uma vantagem ativo. Isso era novidade para mim.
— Eu não me importo se ela é bestial, elefante ou ornitorrinco,
precisamos dela. Ela é como um pinheiro. Não vai dobrar, quebra, mas não
dobra. Passei meses tentando convencê-la de que se juntar a nós era do
interesse dela e vocês duas decidiram passar uma chave nos meus planos.
— Eu sinto muito, —disse Carrie.
— Eu também, —Deb ecoou.
— Vão embora e tentem ficar longe de mim por um dia ou dois, certo?
— Sim, senhora.
A porta se fechou. Um grito terrível seguiu-se, o som do metal sendo
torturado.
— Era um suporte de livros muito bom, —disse a voz de Martina.
— Bem, agora é um pedaço muito legal de lixo, —disse a Tia B.
Eu olhei para Martina. — Aquele em forma de coruja? —Era um lindo
par de suportes para livros, de metal, com acabamento em bronze claro, com
123
grandes cristais de âmbar Swarovski para os olhos. A Tia B usava-as em
sua mesa para evitar que os arquivos caíssem do porta-arquivos.
Martina parou a gravação e assentiu. — Ela apertou um na mão. Sabe
quando você esmaga um donut de geleia no seu punho e o recheio derrama?
Isso é o que parecia. —Ela apertou o botão.
— ... Ascanio falou sobre o que Andrea e Raphael falaram? —Perguntou
Tia B.
— Não. Ele levou Rebecca lá.
O gravador ficou em silêncio.
Tia B suspirou. — Por que é que nos sacrificamos e trabalhamos duro
para impedir que nossos filhos cometam os mesmos erros que nós, e eles
insistem em ignorar tudo o que dizemos?
— Provavelmente porque eles são nossos filhos e na idade deles nós
ignoramos nossos pais também.
Tia B suspirou novamente. — Você vai vê-la?
— Sim.
— Você vai me dizer como foi?
— Você sabe que qualquer coisa que ela diga é confidencial, —disse
Martina.
— Eu sei. Apenas me diga se correu tudo bem ou não. Precisamos dela.
Martina desligou o gravador e colocou-o entre nós.
— Isso não muda nada, —eu disse a ela.
Martina olhou para mim. — Qual é a alternativa, Andrea? Como você vê
esta situação? Você bateu nela, em público.
— Ela me desceu o braço em mim nas escadas.
— Aquilo foi um tapinha amoroso comparado ao que ela poderia ter feito.
Você a desafiou. Ela não podia ignorar. Você não iria, no lugar dela.
Não, eu não faria. Teria feito a mesma coisa. Rápido também.
— Você pode ir embora, —disse Martina.
— Eu não vou embora. Esta é minha casa agora. Por que eu deveria sair?
— Então, juntar-se ao Bando é sua única escolha. Você não pode ser
avulsa, Andrea. É a nossa lei e você está sujeita a ela, porque você é uma
metamorfo. Você é um de nós.
Eu cerrei meus dentes. — Eu poderia desafiá-la.
— Você perderia. Mas suponha que você ganhasse, —disse Martina. —
Então o que? Eu não vou seguir você, Andrea. Você não lutou ao meu lado,
não me provou que merece me liderar. Não conheço você e não confio em
você. Se você tivesse sucesso e matasse a Tia B, todos seríamos obrigados a
seguir você. Eu não sei onde a lealdade de Raphael estaria, mas ele teria que
escolher entre a mulher que ama e sua família. É uma cruel escolha para se
fazer.
— Raphael e eu estamos em um lugar complicado.
— Eu não duvido disso. Somos boudas, afinal de contas. —Martina
encolheu os ombros. — Se uma mulher vê seu namorado em um restaurante
com outra mulher, ela pode marchar e confrontá-lo lá. Ela pode esperar e
confrontá-lo mais tarde. Mas se uma bouda vir outra mulher com seu
companheiro, ela jogará a bebida na cara dele, depois a mesa e talvez um
membro infeliz da equipe do restaurante, se por acaso estivesse por perto.
Nós fazemos declarações dramáticas, na luta e no amor.
— A vida seria mais fácil sem o drama, —eu disse a ela.
— Não para nós. Temos que desabafar, Andrea. É assim que
funcionamos. Mas de volta ao clã. A atual segunda de B não é adequada para
ser a responsável pelo clã. Ela é beta, porque ninguém mais quer o emprego e
a responsabilidade. Nós ficaríamos sem líder e teríamos que lutar. Você
realmente seria tão egoísta, Andrea?
Ela estava certa. Eu estava errada. Não queria ser governada pelas leis dos
Metamorfos, e uma parte muito esquisita de mim queria pisar nos meus pés e
gritar que não era justo. Mas era. Um cidadão do país estava sujeito às suas
leis, e mesmo que algumas pessoas achassem que isso era injusto, elas ainda
tinham que obedecê-las. Quando não o fazia, pessoas como eu os prendiam.
Eu não queria ser tratada como especial porque eu era bestial. Mas eu
estava sendo, porque eu tinha empurrado a situação para o canto, e agora todo
mundo estava fazendo concessões especiais para mim.
O que realmente tenho a perder juntando-me ao clã? B estava certa, eu
tinha as ferramentas adequadas. Poderia juntar-me, assumir uma posição de
responsabilidade, provar a mim mesma e, quando chegasse a hora, tiraria as
boudas da Tia B.
Esse pensamento me intrigou, virando-o de um jeito e de outro na minha
mente. — Logicamente, sei que você está certa. Tudo o que você disse faz
sentido. Mas parece que estou desistindo de alguma forma.
Martina assentiu. — Você sente que estar sendo forçada, e tem que se
juntar ao Bando não porque quer, mas porque deve fazer isso para sobreviver.
Esta é a sua casa e você quer morar aqui nos seus termos, não nos do Bando.
— Sim.
— O que é quer fazer na vida, Andrea?
Olhei para ela. Eu não tinha ideia de como responder.
— Cada um de nós escolhe um propósito, —disse Martina. — O meu é
ajudar as pessoas a se curarem. Qual é o seu?
— Eu não tenho certeza, —disse a ela.
Martina sorriu. — Algo para se pensar.
Eu era uma metamorfo. Ninguém poderia tirar isso de mim. Ninguém
poderia me forçar a me aposentar cedo e as boudas precisavam de mim. Mas
eu não tinha ideia de qual era o meu objetivo na vida. Nunca havia pensado
nisso em termos grandiosos.
— Obrigada por ter vindo, —eu disse. — Você vai dizer a Tia B que eu
vou visitá-la em um ou dois dias?
Martina assentiu. — Eu vou deixá-la saber.

Enquanto dormia mais um pouco depois que Martina e Ascanio saíram e


ouvi o telefone tocar durante o meu sono. Quando cheguei no andar de baixo,
a secretária eletrônica tinha entrado em ação.
— Andi, sou eu, —disse Raphael.
Eu me afastei do telefone.
— Fui ver o Senhor Garcia, —disse ele. — Ele disse que foram
abordados por Gloria Dahl e solicitados a participar da licitação do Blue
Heron. Acho que talvez Gloria e Anapa não estão juntos nesse crime. Faz
sentido: ele faria uma oferta e ela faria o segundo lance mais alto, então, caso
algo desse errado com sua oferta, ele ainda conseguiria o prédio. Mas Garcia
disse que o lance de Gloria era quase oitenta mil abaixo do meu, o que
tornaria cento e quinze mil abaixo do de Anapa. Basicamente, ela não tinha
chance. Se eles estivessem trabalhando juntos no leilão, seus lances
deveriam ter sido mais próximos. Anapa deu um lance muito alto e ela não
pode acompanhá-lo.
Hãã. Já imaginava que Gloria poderia não ser uma lacaia de Anapa. Bem,
eu tinha que provar isso ainda.
— Espero que você tenha ido para casa, —disse Raphael. — Eu vou até
lá mais tarde. Não faça nada estúpido sem mim.
Não faça nada estúpido sem ele. Eu não estaria fazendo nada com ele,
estúpido ou não.
Chequei o mundo fora da janela. Passavam um pouco das nove e o céu da
noite era vasto e escuro. Perfeito.
Eu tinha que voltar para a cena do crime de Gloria. Era altamente
provável que Gloria, ou seja, lá o que ela fosse, e seus amigos assassinaram
os funcionários de Raphael. Isso explicava tanto o padrão de presas quanto a
localização das feridas de mordida. Mas eu não tinha a prova concreta. Não
tinha acesso ao cadáver de Gloria, então não conseguia medir a distância
exata entre suas presas e ainda não sabia onde estavam seus parceiros ou o
que ela queria.
Tinha uma boa suspeita de que a faca na foto que eu vi no escritório de
Anapa estava envolvida. Na verdade, eu tinha certeza disso, mas novamente
precisava de provas. Eu tinha que descobrir o que era a faca e para o que era,
e a única maneira de esclarecer essa situação seria invadir a cena do crime e
teria que fazer isso sozinha. Se eu fosse pega, eu seria presa, mas eu era
apenas uma cidadã civil. Se alguém do Bando fosse detido comigo, o assunto
tomaria uma luz completamente diferente.
Tudo dentro de mim doía. Senti como se tivesse sido mastigada por uma
fera com pequenos dentes afiados. Meus ossos pareciam tão pesados,
pareciam que eram feitos de chumbo.
Eu não queria ir a lugar algum. Só queria ficar aqui e dormir, então não
me machucaria mais. Mas havia pessoas que dependiam de mim para
respostas e eu não conseguiria essas respostas tirando um tempo para
descansar. Além disso, com a magia para baixo, agora era a melhor hora para
procurar na loja. Quem sabia quanto tempo duraria a tecnologia?
Vamos lá, Senhorita Nash. Coloque sua bunda em marcha.
Eu me forcei a sentar. Doolittle dissera sem atividade física, mas o tempo
era essencial. Eu só tinha que pegar leve.
Dirigi para o Pucker Alley a duas quadras da rua White e escondi o carro
na sombra de uma ruína. Um vasto céu sem nuvens se estendia acima de
mim, e a noite estava clara com um luar prateado. Sorte minha. Peguei minha
mochila do banco de trás e a abri. Continha o meu kit de emergência:
fósforos em um saco plástico, gaze, pomada antibiótica, band-aids, faca, rolo
de fita adesiva, garrafa de álcool, garrafa de água, uma refeição rápida
desidratada, cortesia do Exército dos Estados Unidos, faca de pano, corda,
luvas, chapéu e uma toalha. Eu já havia lido um livro que dizia que um
viajante deveria sempre ter um e fazia muito sentido.
Coloquei as luvas, escondi meu cabelo sob o chapéu, fechei a mochila e
parti.
Minha testa imediatamente começou a suar embaixo do gorro de algodão.
Chapéus e a úmida primavera de Atlanta não eram exatamente legais. Mas eu
sofreria um pouco de suor para não deixar os cabelos perdidos no local para
serem encontrados pelos técnicos forenses da PAD.
A rua em frente ao Gloria's Antiguidades parecia a mesma de mais cedo,
deserta e sinistra. Nenhum sinal da presença dos policiais nela. Eu tinha
imaginado isso. Atlanta era uma cidade movimentada e o PAD tinha poucos
oficiais. Eles provavelmente retomarão o processamento da cena amanhã.
Meus ouvidos não captaram ruídos próximos. A rua White estava vazia.
Eu me aproximei da porta. Um grande selo de papel, que tomava toda a
porta, foi fixado nela com um grande vermelho não entra nele. A maioria dos
departamentos de polícia não tinha o orçamento para a infame fita amarela da
cena do crime. Noventa por cento do tempo, um adesivo era a única
indicação de premissas fechadas.
Não era para impedir fisicamente que alguém entrasse em cena. Era para
dar aos policiais a prova de sua invasão, apesar do selo.
Puxei o meu cadeado do bolso do colete, cortei o adesivo com a lâmina
mais grossa e deslizei uma lâmina mais fina na fechadura.
Um, dois, trê ... Clique.
Abri a porta, entrei e a tranquei atrás de mim. A luz da lua se derramava
através das janelas, dando mais do que suficiente iluminação para examinar a
cena em que eu quase havia morrido. A mulher cobra tinha desaparecido e as
cobras também. As manchas escuras do sangue de Gloria ainda pintavam o
chão.
Além deles, a porta dos fundos esperava por mim. Passei pelas manchas
ao longo do balcão. Os policiais provavelmente tinham varrido a cena, mas
eu não queria contaminar se eles não tivessem ainda.
A porta dos fundos parecia ser reforçada. Eu bati meus dedos na porta.
Aço. Grande trava, com alguns arranhões de aparência fresca no metal. O
PAD deve ter chamado um chaveiro para abri-la. Tentei a maçaneta da
porta. Ele virou-se facilmente na minha mão. A porta se abriu, revelando a
escuridão. Entrei, fechei a porta atrás de mim e deslizei minha mão ao longo
da parede, procurando o interruptor de luz. Meus olhos se davam bem com
pouca luz, mas isso era uma completa escuridão. Nenhuma luz do luar
significava nenhuma janela, então ninguém me veria. O ar cheirava a jasmim,
aquele mesmo cheiro escuro, fascinante e ameaçador que eu já havia sentido
antes. Meus ouvidos não pegaram nada. Nenhum som perturbava o silêncio,
exceto pela minha própria respiração.
Meus dedos tocaram o interruptor de luz. Uma fileira de luzes embutidas
se acendeu no teto. Visualizei um longo quarto retangular. À minha frente,
quatro filas de prateleiras pesadas estendiam o comprimento do espaço, quase
todo o caminho até a outra porta na parede oposta. As quinquilharias enchiam
as prateleiras. Uma coleção de esferas de pedra bege, variando do tamanho de
uma maçã ao tamanho de uma bola de basquete. Uma estranha engenhoca de
metal com uma haste de metal alta no centro e anéis de metal de sessenta
centímetros de largura enfiados nela. Uma dúzia de garrafas vazias, verdes,
amarelas, marrons e claras, foram empurradas através de furos em anéis,
suspensas de cabeça para baixo em um ângulo. Uma lança com uma flor de
metal estilizada. Uma lanterna envolta em correntes. Uma rede de pesca
pendurada em um gancho na prateleira. Relógios, um busto de um macaco
esculpido em alguma madeira escura, um antigo capacete submarino, um
violino, um gato egípcio ao lado de balanças de latão, vestes de sacerdote
católico com uma estola roxa...
Não havia rima ou razão para isso. Nenhuma organização por tipo, sem
marcações na prateleira.
Uma miscelânea de lixo, protegida por uma porta de metal de três
centímetros de espessura. Isso significava que o lixo era provavelmente
mágico.
Olhei para a porta na parede oposta. Uma corrente de metal a selava,
trancada com um cadeado pesado. O PAD deve ter ficado sem tempo ou
especialistas, porque de onde eu estava, o cadeado não parecia ter sido
tocado. Andei na ponta dos dedos entre as duas prateleiras em direção ao
quarto dos fundos.
O cadeado continha uma pequena roda preta. Baseada em combinação.
Ótimo.
Agarrei a corrente e puxei. Pequenos pontos negros nadavam na frente
dos meus olhos. Meu nariz estava molhado, como se estivesse sangrando.
O metal deu um guincho torturado e os elos da corrente se romperam.
Eu limpei meu nariz na minha manga. Nenhum sangue.
Puxei a corrente das alças da porta e a abri. Um pequeno escritório
aguardava dentro: uma escrivaninha com um computador e um telefone,
prateleiras cheias de arquivos e um armário alto de vidro. Dentro do
armário, um cajado descansava, presa entre dois ganchos de metal. Tinha
pelo menos um metro e oitenta de altura, a haste de madeira marrom
envelhecida polida até um brilho suave. Com cerca de um metro e meio de
altura, a madeira deu lugar ao marfim que se transformava em uma forma
complexa que parecia estranhamente familiar. Um feroz rosto masculino com
um longo bigode tinha sido esculpido no marfim, seguido por fileiras de
124
escrita cirílica gravados na madeira.
Cirílico. Eu me perguntei como deveria estar Roman agora.
Fui para a mesa e liguei o computador. Tudo começou com um zumbido
silencioso. O código foi rolado para cima na tela, algum tipo de absurdo
matemático, e a tela de login entrou, solicitando uma senha.
Vamos ver. ‘123456’.
O PC apitou e o login foi atualizado com um aviso em vermelho. Negado.
‘12345678’?
Outro sinal sonoro.
Senha.
Bip.
Certo, tudo bem. Que tal ‘senha 1’?
A tela piscou e o Windows inicializou.
Héé. Uma das senhas mais comuns, ao lado de ‘Jesus’, ‘Me deixe entrar’
e ‘Eu amo você’. Aposto que ela pensou que era brilhante.
Abrir os documentos recentes. Dois cliques e eu olhava para a foto da
faca da fotografia no estúdio de Anapa.
Eu me inclinei para trás. Essa faca era algo de vital importância. Se
Raphael estivesse certo e Gloria e Anapa eram parceiros, essa faca tinha que
ser realmente algo especial. Parecia tão simples, desgastada pelo tempo e
quase quebradiça.
Peneirei o conteúdo da pasta. Arquivos PDF. Recortes amarelados de
artigos de notícias sobre a coleção de Jamar. Uma entrevista com o arquiteto
do edifício e parentes próximos depois que o Blue Heron caiu. Eu não tinha
visto essa entrevista antes.
Quando perguntado sobre o desastre, Samuel Lewinston, que
autenticou a maioria dos artefatos adquiridos por Jamar Groves,
afirmou: ‘É uma grande perda. A cidade perdeu um dos seus melhores
filhos e o povo de Atlanta perdeu uma coleção que era um verdadeiro
tesouro. Os objetos que antes eram nossa ligação com o passado agora
estão enterrados com Jamar em seu cofre. Talvez, um dia, a história se
repita e eles serão novamente descobertos’.
Tem razão, eles foram descobertos.
Magia me deu um soco forte e repentino. O mundo floresceu em uma
explosão de aromas mais nítidos e cores mais brilhantes. A tela do
computador ficou escura. Levantei minha cabeça para o céu e xinguei. Havia
momentos em que eu realmente odiava magia. Este era um deles.
Uma pequena teia prateada brilhava no teto acima de mim. Epa, epa.
Pulei, fiquei em pé e me afastei. Outra teia floresceu na parede de tijolos,
expandindo-se. Uma terceira florescia à direita e acima, ainda outra à
esquerda e abaixo ... ao meu redor, teias reluzentes brotavam como flores
silvestres, esticando e crescendo. Em poucos segundos, todo o escritório
estava coberto por uma rede de lodo perolado, desenhado em padrões de fios
de tecido nas paredes e no teto.
Eu me movi em direção à entrada e olhei através do depósito principal.
As teias iridescentes pendiam em camadas do teto ao chão, formando cortinas
sobre as prateleiras, as paredes e a outra porta.
O escritório estava bem fechado e eu estava presa no meio dela.
Ficar presa aqui não era uma opção. Amanhã o PAD apareceria e eu seria
detida.
Eles não se sentiriam inclinados a ter calma. Se eu fosse detida demoraria
ser solta, e Jim perderia um bom tempo tentando retomar minha investigação
de onde parei. Os assassinos ficariam impunes, a justiça não seria feita e Nick
não conseguiria a vingança pelo assassinato de sua esposa.
Eu precisava dar o fora dessa armadilha.
Peguei uma caixa de lápis de madeira da prateleira e a coloquei na mão.
Se essa coisa explodisse, eu teria que me abaixar e cobrir.
Joguei os lápis na teia. Por um segundo, a pequena caixa grudou no lodo
e, em seguida, a teia que a rodeava estremeceu e envolveu-a, torcendo-se e
enrolando-se, repetidamente, até que os lápis desapareceram de vista e apenas
um espesso casulo de lodo permaneceu. O resto da cortina perolada fluía,
substituindo a teia que havia sido usada pelo casulo.
Se eu tentasse abrir caminho através das paredes ou correr pelo lodo, eu
estaria enrolada como uma múmia, pronta para o enterro mais rápido do que
eu poderia piscar.
Novo plano. Puxei minha faca e cortei um quadrado no chão de madeira.
Concreto. Ótimo. Ótimo. Essa é a segunda vez que ficava presa depois de
invadir e entrar. Talvez Deus estivesse tentando me dizer que eu deveria
desistir da minha vida de crimes.
Procurei em minha mochila e tirei o pequeno frasco de álcool. A cadeira
rendeu uma perna, o kit médico me deu a gaze e, uma vez que a embebesse
em álcool, eu tinha uma tocha. Atirei fogo e levei a tocha até a parede. A
chama lambeu o lodo. A teia mordeu a tocha, sacudindo-a e soltei uma fração
de segundo antes que o lodo tocasse meus dedos.
A tocha grudou na parede, encapsulada pela teia. O fogo não funcionou.
Fogo praticamente funcionava sempre.
Olhei em volta. Arremessar algo pesado também não resolveria, havia
muita teia e as paredes eram sólidas o suficiente para que eu tivesse
dificuldade em quebra-las.
Pense, pense, pense ...
Meu olhar ficou preso no cajado.
Andei até a mesa e peguei o telefone. Telefones eram estranhos. Às vezes
eles funcionavam durante magia e às vezes não. O telefone clicou uma vez,
duas vezes e recebi um sinal de discagem. Peguei um cartão da minha carteira
e disquei o número.
— Olá, —uma voz familiar com sotaque russo disse, gotejando fadiga. —
125
Esli eto ne catastrophe …
Bem, aqui do meu lado parecia uma catástrofe. — Oi, —eu disse. —
Aqui é Andrea.
— Oh, olá. —Uma nova vida entrou na voz. — Como você está?
— Eu estou bem. Nunca estive melhor. Ei, escute, eu tenho um cajado
aqui e pensei que você poderia ficar interessado nele. É cerca de um metro e
oitenta de altura, parte madeira e parte marfim. Há escritas no eixo e um rosto
com um bigode. Tem interesse?
Roman ficou em silêncio por um segundo. Quando ele voltou na linha,
sua voz estava calma. — Você pode ler a escrita?
126
— Algumas delas parecem runas e outras são cirílicas. Vejamos, a
parte de cima no rosto parece com o número quatro invertidos, depois E,
depois um p, então algo que parece com H maiúsculo, exceto que é pequeno
...
— Você está segurando o cajado agora? —A voz de Roman ainda estava
muito calma.
— Não, estou investigando um caso.
— Não toque no cajado. É um cajado muito ruim.
— Anotado.
— Onde você está?
— Estou no fundo de um depósito. Invadi ilegalmente e agora estou presa
por uma Proteção estranha. Parece teias de aranha feitas de lodo. Se você me
ajudar com a teia, o cajado é seu.
— Me dê o endereço.
Recitei o endereço.
— Estarei aí. Não toque no cajado. Não toque na teia. Não toque em
nada até eu chegar.
Desliguei. O sombrio e assustador servo de todo o mal estava a caminho
para me resgatar. De alguma forma, esse pensamento não conseguia me
aquecer e confortar.

Eu tinha acabado de olhar a última pasta de documentos, quando a porta


do outro lado do armazém se abriu, e Roman gritou: — Andrea?
— Aqui, —gritei. — Não toque nas teias!
Levantei e caminhei até a porta do escritório. O grande espaço do
armazém com as prateleiras estendia-se diante de mim, envolto nas cortinas
de teia. Eu mal podia vê-lo. De onde eu estava, ele era apenas uma silhueta
cinza na porta oposta.
— Certo, certo, vou resolver isso. —A silhueta murmurou algo em russo.
Um rugido surdo saiu da direção de Roman.
A voz de Roman se elevou, cantando, misturando-se ao rugido.
As teias estremeceram. As cortinas se inclinaram na direção de Roman,
tornando-se côncavas, como se fossem puxadas para trás.
O canto de Roman ganhou poder, sobrenaturalmente alto, palavras
saindo, chicoteando e girando através do rugido como uma corrente viva de
poder.
A cortina de teias se esticou e quebrou. Roman estava na brecha, com os
braços bem abertos, o manto preto queimando como se fosse tomado por um
vento fantasmagórico, agarrado a sua mão direita um cajado de madeira com
uma ponta superior em forma de um monstro pássaro. O bico do pássaro
estava escancarado, grotesco e cheio de escuridão, tão grande que a teia cor
de pérola estava em enrolada em um nó do tamanho de uma melancia, sugada
naquela boca cavernosa.
O chão do armazém estremeceu. Roman olhou para cima, um canto
borbulhava de sua boca, cada palavra vibrando com poder. Salpicos de pura
escuridão rodeavam suas botas negras. Algo me olhou através daquela
escuridão. Algo antigo, malévolo e frio.
A temperatura na sala caiu. Estremeci e vi uma nuvem de vapor escapar
da minha boca.
Um coro de vozes masculinas profundas cantou em sintonia com o canto
de Roman. A teia continuava sendo sugada pela boca do cajado.
Minhas mãos coçaram, querendo liberar garras. Todos os pêlos do meu
corpo estavam em pé.
O armazém tremeu.
Um enorme sino tocou, uma nota grave ameaçadora se juntou ao coro e
ao canto. O desespero rolou sobre mim como uma onda espessa e viscosa.
Imagens flutuaram diante dos meus olhos: uma colina de cadáveres contra o
crepúsculo, penas pintadas de sangue vermelho brilhante em um frio intenso
e uma figura escura primitiva sobre o monte de cadáveres ...
Com o canto do olho, vi a teia na parede tremer atrás de mim,
estendendo-se em direção a Roman.
Eu caí e abracei o chão.
A teia arrancou a parede e voou sobre minha cabeça. Por um segundo, ela
ficou presa à porta do escritório, ondulando como uma vela de barco em um
forte vento, e então foi puxada em direção ao cajado.
A última parte da teia desapareceu no bico escuro. O canto de Roman
mudou, recuando de irresistível para reconfortante. A escuridão se derreteu,
levando consigo o sombrio coro e o sino. O topo do cajado de Roman fechou
o bico e encolheu.
Eu me sentei devagar.
Roman levantou os braços, como se aceitasse uma ovação, e sorriu para
mim, mostrando os dentes brancos. — E aí? Eu sou bom ou não?
Eu aplaudi. Roman se curvou.
Levantei-me do chão e caminhei até o bruxo das trevas.
— Recebo um abraço por ser um herói? —Ele balançou as sobrancelhas
negras para mim. — Talvez um beijo?
Para quem era um sacerdote maligno de um deus maligno e sombrio,
Roman parecia surpreendentemente normal. Ou ele estava escondendo sua
maldade muito bem, ou realmente era apenas um trabalho para ele. Sacerdote
das trevas, das nove às cinco. É o negócio da família.
— Nenhum beijo? —Roman parecia triste.
Por que não? Não é como se Raphael tivesse me reivindicado ou
estivéssemos juntos. Poderia ser muito mais simples com alguém como
Roman. Nós poderíamos começar uma nova história. Olhei para o bruxo das
trevas. Realmente olhei para ele. Ele tinha os olhos mais perversos, escuros e
cheios de um fogo estranho que já tinha visto. Lá vou eu.
Eu me inclinei e o beijei. Seus lábios cobriram os meus. Ele era bom em
beijar, não realmente reivindicando ou exigindo, mas sedutor, quase
encantador. E eu não senti nada. Nada, nadica, nem um pouquinho. Sem
calor, sem faísca. Nada.
Raphael estúpido. Queria tanto me livrar dele, mas quando ele me
beijava, eu queria jogá-lo na cama e deixá-lo louco. Quando Roman me
beijou na boca, pareceu um beijo na bochecha.
Nós nos separamos. Roman sorriu. Bem, pelo menos um de nós tinha
gostado.
O olhar de Roman se fixou em algo sobre meu ombro. Eu olhei para trás
e vi a rede de pesca pendurada no gancho.
— Isso pode matar você, —disse ele. — É melhor você ficar mais perto
de mim.
— Mais perto do que isso e estaremos esfregando um no outro.
— Isso sim é uma boa ideia ... isso também pode matá-la. —Ele apontou
para o busto de macaco. — Também isso. —A ampulheta. — E aqueles, —
ele apontou para as esferas de pedra, — Todos eles podem matar, se usados
corretamente. Isto é como um arsenal para um mago.
Roman se empurrou da prateleira, um braço protetoramente ao redor do
meu ombro. — Eu acho que preciso ver esse cajado agora.
Eu o levei até o escritório. — Está em uma vitrine de vidro aqui. Eu não
toquei nele. —Percebi tardiamente que Roman não estava mais próximo, me
virei o procurando. Roman estava na porta, o olhar fixo no cajado, a boca
aberta.
— Kostyanoi posokh, —ele sussurrou.
— O que?
— O Cajado de Ossos. Aqui, segure isso! —Roman empurrou seu cajado
para mim.
Eu balancei a cabeça. — Não. Isso morde as pessoas. Já vi ele fazer isso.
— Ele vai se comportar, —prometeu Roman.
Eu segurei o cajado. Ele se virou e olhou para mim com seus olhos
ferozes. Seu bico se abriu uma fração de centímetro. Eu arregalei meus dentes
e fiz um gesto como se fosse mordê-lo. O bico se fechou.
Roman enfiou a mão na bolsa da cintura, retirou um punhado de terra
preta e úmida e jogou-a no chão em frente ao cajado. Ele se ajoelhou na terra,
disse algo em russo e fechou os olhos com força.
Nada aconteceu.
Roman cautelosamente abriu um olho e depois o outro.
— Nenhum grande boom, —eu assegurei a ele.
O Volhv sombrio levantou. — Você tem mais dessas luvas?
Puxei um par da minha mochila e passei para ele. Ele colocou as luvas,
abriu a vitrine e tirou o cajado com cuidado. O topo do cajado fluiu como
cera derretida formando um contorno de uma boca de serpente com duas
presas brilhantes. O Cajado de Ossos assobiou. O cajado de pássaro na minha
mão gritou.
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— Shhh, —Roman murmurou. — Tiho, tiho , calma.
A serpente retrocedeu de volta no osso. Um momento depois, o pássaro
percebeu que estava gritando sozinho e fechou o bico.
— Estamos procurando por isso há oitocentos anos. —Roman sacudiu a
cabeça. — Como veio parar aqui? Quando você descreveu, eu pensei que
poderia ser uma cópia que alguém podia ter feito, mas isso? Essa é a coisa
real. Eu posso sentir o poder até mesmo através das luvas.
— Então isso é algum tipo de artefato? —Perguntei. Eu me senti muito
cansada de repente. Teria certeza daqui para frente de não ser mordida de
novo. O veneno da cobra estava me transformando em uma velha mulher
decrépita.
— O Cajado de Ossos pertencia ao Volhv Negro, o sacerdote chefe do
nosso deus, —disse ele. — Está sumido há séculos, desde que os mongóis
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invadiram a Rússia. Finalmente, a Horda chegou à cidade de Kitezh , no
Lago Svetloyar. Era o último dos grandes redutos pagãos. Mas a magia já era
fraca, e os mongóis eram muitos, então o Volhv Negro decidiu fazer um
último feitiço para manter as relíquias sagradas protegidas das mãos da
Horda. Eles afundaram a cidade.
— O que você quer dizer com afundou? —Eu perguntei.
— Enterrou-se no lago. Toda a cidade. O Cajado de Ossos deveria ter
sido perdido junto com a cidade, mas anos depois um respeitado senhor
idoso, que era apenas um menino quando Kitezh afundou, alegou em seu
leito de morte que o cajado e outras relíquias haviam sido contrabandeadas
para fora da cidade por ele e mais dois outros antes do lugar afundar.
— Então esta é uma relíquia sagrada?
— Sim. Os ossos pertencem a um Culto de Adoração da Serpente Negra.
Meu pai vai enlouquecer.
Ele era uma enciclopédia ambulante de perícia mágica. Exatamente o que
eu precisava, exceto que a foto da minha faca estava presa em um
computador que não funcionava. Peguei um pedaço de papel e uma caneta da
escrivaninha e desenhei a faca com uma das mãos, ainda segurando o bastão.
— Você sabe alguma coisa sobre uma faca? Parece um pouco assim?
Roman olhou para o meu desenho. — Isso é uma presa de morsa?
— Não. —Obviamente minhas habilidades de desenho não existiam.
— Então não. Não que eu me lembre agora. Facas mágicas não são
exatamente difíceis de achar.
Maldição.
— É melhor você me devolver ele. —Roman tocou o cajado pássaro e eu
soltei. O Volhv pegou e sorriu. — Dois cajados. É como ter duas mulheres.
Eu revirei meus olhos. Homens.
— Obrigada pela ajuda.
— Não há de que. Você terminou aqui? Se não, eu vou esperar.
Eu não encontrei nada de útil nos jornais. A única coisa que tinha alguma
informação valiosa era o computador. Eu me agachei, desconectei o gabinete
e o peguei. — Terminei.
Lá fora a noite estava agradavelmente quente. Nós viramos a esquina e eu
tirei meu chapéu. Ufa! A brisa da noite esfriava meu cabelo molhado de suor.
Agora eu só tinha que chegar ao carro e esperar não desmaiar enquanto
dirijo. A exaustão se instalou profundamente em meus ossos. Parecia que eu
estava arrastando um bloco de cimento preso a meus pés a cada passo e
carregando outro em meus braços. Olhem para a grande e mau metamorfa.
Era bom que a noite tivesse caído e não havia borboletas se agitando por aí,
porque se uma delas caísse em mim, seria um nocaute perfeito.
Roman andou ao meu lado, com passos rápidos, parecendo fresco como
uma margarida. Uma margarida negra muito ameaçadora.
— Eu posso me virar a partir daqui, —eu disse a ele esperançosa.
— Por favor, —ele disse, como se eu o tivesse ofendido. — Eu vou levá-
la ao seu carro. As ruas não são seguras à noite.
Eu mudei o gabinete de braço. — Você percebe que eu me transformo em
um monstro?
— Quando você se transformar em um, vamos conversar. Agora você não
é um monstro. Você é uma dama muito atraente. E esta é uma vizinhança
ruim.
Hééé. Sempre o cavalheiro. — Então, se alguém criasse problemas, você
o transformaria em um sapo?
— Eu não transformo ninguém em sapos. Isso é coisa da minha mãe. A
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transmogrificação nunca funciona completamente. Mudar a forma de algo
contra sua vontade requer muita energia, aí, você transforma alguém em um
sapo e então falha e ele se transforma em um humano de novo e vem atrás de
você com uma arma.
— Falando de experiência pessoal?
— Não, mas eu já vi isso acontecer.
Nós viramos outra esquina. Roman limpou a garganta. — Assim. Você
vem aqui com frequência?
Soltei uma gargalhada.
— Eu gosto quando você ri, —disse ele. É sexy.
Eitaa! — Obrigada, senhor feiticeiro.
— Oh não, não sou um feiticeiro. —Ele balançou a cabeça. — Mago
talvez. Eu poderia viver com mago, mas o termo apropriado é Volhv, na
verdade. Nós somos sacerdotes.
Eu abaixei o gabinete no chão e parei. Meu jipe estava em cima de quatro
blocos de madeira. Alguém havia roubado meus pneus. Eles levantaram meu
jipe e roubaram meus pneus, as rodas e tudo mais!
Foda-se, beco fodido.
Roman sacudiu a cabeça. — Algo me diz que esta não é uma vizinhança
segura.
Exalei raiva através do meu nariz, como um touro irritado. Levaria trinta
minutos para chegar ao escritório em um dia rápido. Em um dia ruim como
hoje, eu estaria andando por algumas horas.
— Está tudo bem. —Roman soltou um assobio estridente.
Um baralho de cascos se aproximou de uma distância rapidamente. A
noite se abriu e uma enorme égua trotou em nossa direção. Escura, com o
pêlo liso e macio, como a meia-noite, a égua se aproximava, batendo no
asfalto a cada passo. Ela parou perto de Roman e acariciou seu ombro, sua
juba longa e luxuosa caindo em uma onda preta para baixo de um lado.
Uau.
Roman colocou o cajado pássaro na dobra do cotovelo e acariciou o nariz
dela. — Boa menina. Veja, nós podemos montar.
— Nós dois no cavalo?
Ele sorriu.
— Você é um Volhv obsceno, —eu disse a ele.
— Certo, certo, eu vou andando.
— Não, é o seu cavalo. Além disso, sou uma menina grande. Posso
chegar em casa sozinha.
— Não. —Ele balançou a cabeça. — Se insistir em ir sozinha, vou
acompanhar você. Quero ter certeza que chagará em segurança em casa.
Seus músculos do maxilar estavam fixos, dando a seu rosto aquela
expressão teimosa e reveladora. Ótimo. Meu Volhv sombrio acabou se
revelando um cavalheiro sulista. Eu havia despertado algum tipo de instinto
exclusivamente masculino em sua alma. Em sua cabeça, abandonar-me
sozinha em uma rua de noite claramente não era aceitável.
— Há algumas mulheres que se ofenderiam no meu lugar, —eu disse a
ele. — Eu não sou impotente e me transformo em um monstro.
— Talvez eu esteja com medo e quero companhia. —Ele fingiu tremer.
— Posso precisar de um grande monstro forte para me proteger. Você não
deixaria um homem indefeso e atraente nas ruas sozinho, não é?
Eu ri. — Certo. Você ganhou.
Os dois cajados foram colocados seguramente em um suporte de couro
preso à sela e meu gabinete colocado em um alforje. Nós andamos, Roman
com a mão nas rédeas de couro preto do cavalo, bordadas com fios de prata e
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eu ao lado dele, carregando um arco composto e um alforje de flechas que
eu tinha pegado do carro.
— Então, por que o Chernobog? —Perguntei. — Tenho certeza de que os
russos têm outros deuses, além da divindade do frio, do mal e da morte.
— É o negócio da família. Nosso panteão tem tudo a ver com equilíbrio.
Onde há luz, deve haver trevas. A vida é seguida pela morte e a
decomposição nutre uma nova vida. Belobog, o deus branco, e Chernobog,
são deuses irmãos, veja você. Meu tio é um voluntário branco, um de seus
filhos provavelmente também será um voluntário branco, e nosso lado são o
Volhvs negros. Então é por isso que eu sou um sacerdote de Chernobog. —
Ele se virou para mim e sorriu. — E também para impressionar as garotas.
Ah! — As garotas?
— Hum rum. —Ele assentiu, completamente sério. — As mulheres
gostam de um homem de preto.
Eu ri.
— Admita que você ficou impressionada, —disse ele.
Eu continuei rindo.
— Um pouquinho? —Ele ergueu o dedo indicador e o polegar a cerca de
um centímetro de distância um do outro. — Nem um pouquinho?
— Fiquei impressionada.
— Sério?
— Você é engraçado e descontraído.
— Eu faço o suficiente para manter dez quarteirões da cidade acordados à
noite, envolvidos em pesadelos. Não preciso manter uma imagem. Pelo
menos não o tempo todo. —Ele olhou para mim. — Sou realmente uma boa
companhia no meu tempo livre. Até cozinho.
A rua terminou. Abaixo de nós, um vasto cemitério de prédios quebrados
se estendia, alguns nada mais do que montes de pó de concreto, outros ainda
em seus formatos reconhecíveis. O luar brilhava em um milhão de cacos de
vidro. Pontes de madeira cobriam os destroços. À esquerda, atrás das conchas
vazias dos edifícios, subia a névoa azul-turquesa e alaranjada, como uma leve
aurora boreal que caíra do céu. Unicorn Lane, o lugar onde a magia se
rebelou e resistiu como um cavalo selvagem enfurecido. Teríamos que estar
muito atentos.
Apenas tolos visitavam o Unicorn quando a magia estava em alta.
Nós começamos a atravessar a longa ponte.
— Então e você? —Roman perguntou. — Você parece diferente.
— Como?
— Você era toda tensa e séria antes. —Ele colocou a mão sobre o rosto,
tornando a expressão sombria.
— Muito séria. Robô Andrea.
Robô, né? Mostrei-lhe a borda dos meus dentes. — Você gostou de mim
de qualquer maneira.
— Bem, como não se pode gostar disso? —Ele apontou para mim com as
mãos. — Eu sou somente um homem.
— Você é um sem vergonha.
Ele sorriu. — Mas não, sério. Algo aconteceu? Ou é só porque Katya
estava lá?
— Katya?
— Kate. Sua amiga.
— Oh. Não, não é por causa dela. —Encolhi os ombros. — Passei muito
tempo trancando uma parte de mim muito profundamente. Achei que seria
melhor suprimir o meu lado animal. Você sabe, a parte ruim.
Ele assentiu.
— Mas essa parte não era ruim. Eu estava sufocando algo essencial
dentro de mim. Aleijando. Passei pela minha vida mancando como um
prisioneiro acorrentado pelos pés por ferros, me arrastando heroicamente pela
vida. Quando penso em toda a diversão que eu poderia ter tido, todas as
chances que perdi, isso me deixa um pouco doente. Mas agora estou livre.
Talvez um pouco livre demais, mas estou gostando.
— Se divertir é bom, —disse ele.
— Você entende sobre deixar livre, não é? —Perguntei. Ele
provavelmente não conseguia se livrar muitas vezes da corrente também.
Seu rosto ficou sombrio. — Eu deixo livre, a vida acaba. Pessoas como
eu têm muitos nomes. Volhv, kudesnik, que significa ‘mago’, charodei, que
significa ‘encantador’, mas o termo mais comum na história é ‘sábio’. Um
homem sábio. As pessoas dizem que a sabedoria é adquirida com a
experiência, que é apenas uma maneira educada de dizer que você vai sofrer
muito, as pessoas vão te machucar e você vai machucar alguém, e em seus
sonhos, sua culpa vai roer você por dentro. Bem, eu ganhei minha sabedoria,
cada gota disso. Vamos falar de outra coisa. Vamos falar de como quando
chegarmos ao seu escritório, você vai me oferecer uma xícara de chá. Você
bebe chá, certo?
Eu assenti. Talvez eu lhe oferecesse uma xícara de chá. Por que não?
— Que tipo de chá?
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— Earl Grey , se eu achar algum.
— Você coloca açúcar nele?
— Não.
Ele parou, uma expressão chocada no rosto. — Sem açúcar?
— Não.
— Você tem que colocar açúcar. E limão.
A brisa da noite girou em torno de mim e eu senti um fraco toque de
jasmim, seguido pela mesma camada de perfumes em que eu cheirei no
escritório de Gloria. Peguei uma flecha e girei, examinando as ruínas.
— O que foi?
— Estamos prestes a ser atacado.
— Por quem?
— Pessoas com presas de serpentes venenosas em suas cabeças.
As ruínas estavam desertas, sem movimento. Pelo menos oitocentos
metros nos separavam da rua e restava mais um ou dois quilômetros de ponte.
Roman tirou o cajado do pássaro do suporte de couro. — De onde eles
estão vindo?
— Eu não sei.
— Quantos são?
— Eu não sei.
Atrás de nós, algo batia contra a madeira. Eu me virei. Uma mulher subia
pela borda e rolando para a ponte, agachando-se, segurando uma lâmina
tática de combate. Um homem se levantou atrás dela.
Nenhum estresse e desgaste físico por pelo menos vinte quatro horas.
Sem combates, sem correr, sem … Bem, eu estava ferrada.
Um estalo seco, como vidro rachando, perfurou meus tímpanos. Uma
nuvem de fumaça negra explodiu do outro lado da ponte, nos cortando.
— Teletransporte. Hum. Certo. Eu posso com isso, —Roman murmurou
e enfiou a mão nas bolsas em seu cinto.
A mulher sibilou para mim, mostrando as presas.
Certo. Chega disso.
Eu atirei. A corda do arco vibrou e a flecha se encaixou no olho esquerdo
da mulher.
O homem me atacou.
Flecha, preparar, apontar, fogo, tudo no espaço de um segundo.
A segunda flecha cortou a garganta do homem, rasgando um grito agudo.
Ele vacilou, tropeçou e se inclinou para o lado.
A fumaça negra se fundiu em um homem careca. Ele usava um estranho
manto pregueado de tecido vermelho-tijolo e um avental de aparência
estranha. Segurava um pequeno cajado na mão. Várias pequenas esferas de
barro pendiam do cajado, suspensas por um fio como um cacho de uvas.
Outro mago. Ótimo.
Roman tirou uma bolsa do cinto e jogou pó avermelhado no ar. Os
pequenos grânulos de poeira pendiam, imóveis, balançaram, tornaram-se
negros e brotaram asas. Um enxame de moscas negras correu em direção ao
homem.
Mais pessoas subiram na ponte.
Flecha, preparar, apontar, fogo. Flecha, preparar, apontar, fogo.
Dois caíram, mais continuaram chegando.
Fogo, fogo, fogo.
O homem uivou uma única palavra. Magia me deu um tapa, quase
arrancando o arco dos meus dedos. As moscas caíram em uma nuvem de
cinzas.
O homem acenou com o cajado, arrancou uma pequena vasilha e jogou
no chão. A ponte estremeceu e escorpiões brancos deslizaram sobre as
tábuas, indo em nossa direção.
Enviei outro homem voando da ponte com minha flecha no peito. Mais
dois se arrastaram para ocupar seu lugar. Eles estavam clonando esses caras
debaixo da ponte?
— É assim então? Certo. —Roman gritou algo maligno e traçou uma
linha com seu cajado, e cuspiu. Os escorpiões alcançaram a linha e se
fundiram em goma fervente.
O homem soltou uma série de sílabas desconhecidas e tirou uma faca de
aparência estranha. O luar brilhou na lâmina grosseiramente cortada e o
homem se cortou em seu peito. Sangue derramado. Ele arrancou todo o grupo
de esferas de seu cajado e as esmagou no chão.
Linhas onduladas e escuras se formaram sobre as tábuas das pontes e se
aglutinaram em cobras. Centenas de cobras.
De novo não.
— Eu posso comandar cobras também, —Roman gritou. — Isso não vai
ajudá-lo.
— Vamos ver! —O homem gritou de volta.
As cobras deslizaram para nós.
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— Imenem Chernoboga ! —Roman empurrou seu cajado nas tábuas e
abriu suas pernas, segurando o cajado diretamente na frente dele com as duas
mãos. A ponte tremeu. O cajado abriu o bico e piou.
O vento girou em torno de Roman, agitando seu manto. As cobras
pararam, inseguras.
O outro bruxo sacudiu o cajado. As cobras tentaram o seu melhor para
deslizar para a frente, mas atingiram uma parede invisível da magia de
Roman.
O Volhv preto cerrou os dentes. Os músculos do rosto dele tremiam com
a tensão. O suor irrompeu em seu couro cabeludo.
As cobras inverteram seu curso, mas fizeram apenas alguns metros antes
de bater na magia do outro bruxo. Os répteis começaram a empilhar umas sob
as outras. Cabeças erguidas, e as cobras se morderam em um frenesi.
Eu tinha cinco flechas sobrando.
Quatro.
O enxame de cobras se multiplicou a partir delas mesmas. As cobras
machucadas dividiram-se ao meio, aumentando a quantidade de cabeças e
caudas e multiplicando-se com uma velocidade chocante.
Roman empurrou o nó de quase um metro de altura de cobras para o
outro bruxo.
O bruxo arrancou sangue da ferida no peito e jogou-o no enxame,
empurrando-o para trás.
Duas setas.
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— Você não vai passar ! —Roman trovejou.
Ótimo. Agora ele decidira que ele era Gandalf.
O enxame de mais de um metro agora de serpentes oscilou em direção ao
bruxo. Eles continuavam empurrando as cobras para lá e para cá com suas
magias, e enquanto isso o enxame crescia cada vez mais. Era uma torre agora,
uma torre de carne réptil fervente e escorregadia.
— Eu vou acabar com a sua coragem! —O bruxo gritou. A torre da cobra
recuou em direção a Roman.
Última flecha. Eu tinha que fazer valer a pena.
— Se eu te disser que o seu pau é maior, você vai matá-lo? —Eu rosnei.
— Estou tentando, —Roman espremeu as palavras através dos dentes
cerrados. Sangue jorrava do nariz dele.
Eu me virei para o monte de cobras pingando, corri para o lado da ponte e
pulei sobre o trilho de madeira, equilibrando-me na ponta dos pés. A torre de
serpentes balançava de um lado para o outro e, através da abertura,
vislumbrei o rosto tenso do bruxo.
Atirei.
A flecha perfurou a metade esquerda do peito dele. Ele engasgou,
apertando os dedos no eixo da flecha.
Roman gemeu e a torre da cobra se espalhou, enterrando o bruxo.
Eu me virei. Havia sete pessoas na ponte e eles pararam de avançar,
boquiabertos com o nó das serpentes.
O nó não mostrava sinais de ficar menor. Na verdade, estava crescendo,
expandindo-se como um tornado de cobra.
— Eita! —Disse Roman.
— O que você quer dizer com ‘eita’?
Ele olhou para mim. — Corra! —E então ele se virou e correu pelo
comprimento da ponte, levando seu cavalo pelas rédeas.
Aprendi que não é uma coisa boa quando o Volhv negro diz ‘Eita’ e
depois corre por sua vida. Eu corri atrás dele, ignorando as manchas pretas
flutuando diante dos meus olhos e a dor retornando aos meus músculos.
Nós passamos pelos nossos atacantes. Um momento depois, viram o
porque estávamos correndo e nos seguiram. Nós atravessamos a ponte. Atrás
de mim algo rugiu. Eu não olhei para trás.
O ar virou fogo em meus pulmões. Meu estômago revirou. Náusea veio,
seguida de vertigem.
Roman caiu de joelhos, respirando como se houvesse uma bigorna no
peito. Eu me virei.
Uma torre de dez metros de serpentes surgia atrás de nós. Ela oscilou,
balançando para frente e para trás, pingando corpos serpenteantes e explodiu.
Répteis caíram sobre as ruínas, revelando uma única criatura. Seu longo
corpo serpentino estava enrolado em uma mola apertada. Asas douradas e
âmbar brilhantes flanqueavam sua cabeça triangular de serpente. Eu já tinha
visto cobras aladas antes. Elas eram minúsculas. Uma de um metro era
considerado grande para sua espécie.
A serpente levantou sua boca aberta para os céus. Asas escarlates se
abriram ao longo de seu peito. Ela se ergueu, desenrolando seu corpo de três
metros de comprimento e subiu ao céu.
— Bem, isso não é bom, —disse uma mulher atrás de mim.
— Martinez se transformou nisso ou elas o comeram? —Perguntou um
homem.
— Como eu vou saber? Ele era o sacerdote.
Eu me virei. Nós nove nos entreolhamos. Roman se levantou do chão.
Nenhuma flecha, me sentia meio morta, e meu Volhv estava todo
esgotado. Havia apenas uma coisa que eu poderia fazer.
Uma mulher grande e loira puxou sua espada e me atacou. Eu a encontrei
no meio do caminho, mudando de forma enquanto me movia. Minhas garras
cortaram seu estômago, rasgando o músculo frágil. Suas entranhas
escorregadias deslizaram em meus dedos. Agarrei um punhado de intestinos,
arranquei a massa encharcada e atirei-a ao resto da tripulação. Uma
gargalhada de hiena de gelar o sangue se soltou da minha boca com os lábios
negros. Eu ataquei.
Um homem entrou no meu caminho. Sua lâmina cortou meu lado, mas eu
não me importei. Segurei seu braço direito e arranquei a lâmina dele.
A névoa de sangue permanecia na área como um perfume exótico e
fascinante. Dancei através dela, bêbada, mutilando, matando, esculpindo a
carne flexível em pedaços quentes e suculentos. Eles caíram diante de mim e
eu adorei. Raiva cantou em minhas veias, combustível para o meu inferno
interno. Dentro de mim uma pequena voz distante gritou uma advertência, eu
estava usando a última das minhas frágeis reservas, mas me sentia tão bem e
não queria parar.
Outro homem entrou na minha frente. Eu o empurrei para fora do
caminho. Ele voou e caiu. Diversão! Eu o persegui e prendi-o ao chão. Meus
dentes a um fio de cabelo da garganta dele. Olá, presa!
Um cheiro familiar passou pelo meu nariz. Eu conhecia esse cheiro.
Fiquei paralisada por alguns momentos, segurando o homem para baixo.
Um nome flutuou até a superfície da minha memória: Roman.
A realidade bateu em mim, repentina e forte. Eu me afastei da beira da
loucura. Minha mente registrou a expressão tensa no rosto de Roman e
minhas garras perfurando seus ombros.
Oh Deus.
Balancei para trás, liberando-o, tropecei em algo escorregadio e caí contra
um prédio em ruínas. A rua estava cheia de corpos. O sangue se acumulava
nos recessos do pavimento destruído, seu cheiro era como o corte de uma
navalha na minha língua. Uma coisa que costumava ser uma mulher estava a
poucos metros de distância. Metade do seu estômago estava faltando e seu
crânio era uma bagunça de ossos esmagados. Eu fiz isso.
— Você está bem? —Perguntei suavemente. Minha voz estava rouca.
— Sim. —Roman lentamente levantou. — Que porra foi isso?
— Raiva de Bouda. Acontece às vezes quando estamos no nosso limite.
Ficamos em alguns minutos de raiva furiosa. É o último mecanismo de defesa
de um corpo esgotado. Eu fui mordida por uma víbora mais cedo. O medi
mágico do Bando me encheu de antiveneno. Isso me fez fraca, então quando
eu me virei, meu corpo reagiu. Eu não queria te machucar.
Roman sacudiu a roupa e se levantou. — Não se preocupe. O preto não
mostra sangue.
— Eu sinto muito. —Ele não tinha ideia de quão perto eu tinha chegado
de matá-lo.
— Não se preocupe. Olhe. —Ele ergueu os braços, indicando a cena, os
corpos desmembrados, sangue e seu cavalo preto no começo da ponte. —
Todos os nossos inimigos estão mortos, sobrevivemos, o cavalo sobreviveu, o
cajado sobreviveu. Eu até consegui dizer a melhor frase do meu livro
favorito. Tudo está bem.
Eu me afastei da ponte. Roman abriu a boca para dizer algo e não fechou.
— O que é isso?
— Seios.
— Oh pelo amor de Deus!
Roman fechou os olhos e se afastou de mim. — Eu tenho uma capa na
minha bolsa.
— Estou confortável com o meu corpo dessa forma, —eu rosnei.
Ele se virou para mim um pouco e abriu um olho, depois se virou
totalmente e olhou para mim. Ou melhor, para os meus seios.
— Não olhe.
— Você disse que estava confortável.
Confortável era uma coisa. Estar no final de um olhar muito masculino
era outro.
— Que tal fazermos um curativo nos seus ombros, —sugeri.
— Realmente não está tão ruim assim.
Nós caminhamos em direção ao cavalo.
— Por que você pulou na minha frente de qualquer maneira? —Eu
perguntei.
— Você pegou aquela cadela de cabelos escuros pela garganta e bateu a
cabeça dela contra o chão por quase três minutos, —disse ele. — Eu fiquei
preocupado ...
Uma silhueta vermelha e dourada despencou do céu. Mergulhou no
cavalo, mordeu o Cajado de Ossos, arrancou-o do couro e subiu para as
nuvens.
Puta merda!
Roman caiu de joelhos. Ele abriu a boca e soltou um grito sem palavras
de pura raiva.
— Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!
— Vai ficar tudo bem, —eu disse a ele.
— Eu tinha isso! Estava em minhas mãos! Ele me mostrou as mãos,
como se esperasse que o cajado se materializasse em seus dedos. — Nas
minhas mãos! Oitocentos anos!
— Eu sei, —eu disse a ele. — Eu sei.
Ele caiu para frente. — Eu tive e perdi. Eu perdi isso!
— Vamos, —eu disse a ele. — Vamos chegar em casa antes que
desmaiamos.

Subimos as escadas para o meu apartamento. Eu teria desmaiado na rua


quando meu corpo finalmente cedeu se não fosse o cavalo de Roman, que
acabamos montando, afinal. Roman se movia como um zumbi. Desanimado
nem começava a descrevê-lo. Se o desespero fosse líquido, ele estaria
pingando baldes a cada passo.
— Eu tinha em minhas mãos, —ele me disse tristemente, na metade das
escadas.
— Eu tenho certeza que tenho um pouco de mel na minha despensa, —
disse a ele. — E suco de limão. Podemos tomar uma boa xícara de chá
quente.
A escadaria cheirava a pão fresco de banana. A Sra. Haffey estava
assando de novo. Coloquei a chave na fechadura e abri a porta.
Um par de botas pretas familiares estava na sapateira do meu armário,
entre minhas botas pretas e minhas botas amarelas de trabalho.
Só pode ser brincadeira comigo. Ele não fez isso.
— Algo errado? —Roman perguntou.
À direita, uma fileira de ganchos estava presa à parede, eu geralmente
pendurava minhas jaquetas molhadas de chuva para secar antes de levá-las ao
armário. Uma jaqueta de couro preta grande estava pendurada no gancho do
meio.
Entrei no resto do o meu apartamento. O que deveria ser um conjunto
extra de chaves de Raphael estava no prato redondo de plástico onde eu
normalmente deixava a minha. Na cozinha, um pote pendurado havia sido
instalado sobre a mesa da minha sala de jantar. As panelas de fundo de cobre
de Raphael estavam penduradas, e no canto, seu armário de vinho estava ao
lado das minhas prateleiras de especiarias.
Corri para fora da cozinha, quase derrubando Roman. Na sala de estar,
três espadas premiadas da coleção de Raphael estavam penduradas nas
paredes. Uma foto da Tia B em um quadro escuro estava na estante ao lado
da foto da minha mãe. O tapete bege e marrom de Raphael cobria o chão. Ele
empilhou meus DVDs de mídia e adicionou os seus próprios filmes pré-
135
mudança que ele amava: toda a coleção Rocky , O Poderoso Chefão I e
136 137 138
II , Comando para Matar , Trovão Tropical …
Corri para o quarto de hóspede. Eu o usava para armazenamento de
armas. Uma nova escrivaninha estava na janela com um computador e um
arquivo alto próximo a ela. Ele fez um escritório! No meu quarto de hóspede!
Uma foto de Raphael e eu sentados, na mesa ao lado do teclado. Ele tinha os
braços em volta de mim. Eu estava sorrindo.
— Você tem um namorado? —Roman perguntou.
— Não, —rosnei.
— Um companheiro de quarto masculino?
Empurrei a porta do meu quarto. Uma segunda mesa de cabeceira estava
do outro lado da minha cama, a combinação perfeita com a que eu tinha.
Com o mesmo abajur. E seus romances de espionagem em uma pilha no topo.
Abri a porta do armário. As roupas de Raphael estavam penduradas no lado
esquerdo, com os sapatos em uma fileira. Abri a cômoda. Suas cuecas.
Preservativos. Suas meias.
Ele havia se mudado para o meu apartamento. Ele entrou e fez parecer
que morava aqui nos últimos dez anos. Seu perfume estava em toda parte,
flutuando pelo meu território.
Palavras me faltaram. Apenas fiquei no meio do meu apartamento,
tremendo de raiva.
Arrombar e entrar era uma parte essencial do namoro metamorfo. A ideia
era invadir o território de seu parceiro em potencial e sair sem ser detectado,
provando que você era habilidoso o suficiente para acasalar.
Alguns clãs deixavam presentes. Boudas faziam piadas divertidas. Mas
isso? Isso era ir longe demais.
Ele me deu um soco. Ele esperava que, depois de tudo o que aconteceu,
eu achasse isso encantador? Achava que me desafiar era engraçado? Eu
arrancaria sua cabeça.
— Eu acho que você tem um namorado.
Eu inalei e exalei devagar. — Não, só conheço alguém com um senso de
humor muito doentio.
— Mesmo? Porque há uma foto sua e dele no escritório. —Roman
apontou o polegar por cima do ombro.
— Ele é um ex-namorado. Está tendo problemas para entender a palavra
‘acabou’.
— Então, o que? Ele mudou as coisas dele enquanto você estava fora?
— Sim. —Chega.
— Corajoso.
Não, isso não era coragem. Isso não passou nem se quer perto de
coragem. Estava em seu próprio pequeno universo com a palavra ‘lunático’
estampada nele. Ele deveria ser trancado em um quarto acolchoado e nunca
mais sair.
— Devo ir embora? —Roman perguntou.
— Não. Eu te prometi uma xícara de chá, vamos beber esse chá, porra.
Fiz um bule de chá na cozinha. Nós nos sentamos na mesa da minha
cozinha com MINHA arranhada nela e bebemos uma xícara, até que Roman
não aguentou mais o próprio cansaço e acabou indo embora.
No segundo em que ele saiu pela porta, peguei meu telefone e disquei o
número de Raphael.
— Ei, amor, —disse ele ao telefone.
Amor, amor! — Você quer agir como psicótico? Você ainda não viu o
que é uma psicose.
— Eu não estou preocupado, —disse ele. — Para ficar louca, você teria
que tirar esse pau da sua bunda e nós dois sabemos que isso não vai
acontecer.
Eu abri meus dentes. — Você vai se arrepender disso.
— Amo você, amor.
O receptor de plástico chiou na minha mão e o telefone ficou mudo. Olhei
para o telefone. Tripas eletrônicas esmagadas espiavam através das aberturas
no plástico quebrado. Larguei o destroço do telefone na mesa e entrei no
banheiro.
Uma lâmina e um creme de barbear estavam na pia ao lado da minha
loção hidratante. Uma segunda escova de dentes idêntica a minha me saudou,
exceto que a minha era verde e a dele era azul. Ele invadiu meu território.
Colocou suas coisas nele. Ele, ele, ele… Aaaaaaaaa! Ele fez o meu
apartamento cheirar como ele!
Peguei a escova de dentes. Queria quebrá-la em pequenos pedaços e
depois colocá-la no lixo.
Não. Não lhe daria essa satisfação. Não juntaria todas as suas coisas em
uma lata grande de lixo de metal, não jogaria gasolina nelas, e não colocaria
fogo nelas. Não, nada tão previsível.
Isso merecia uma retaliação especial.
Eu teria que pensar em algo. Aí sim. Ele iria se arrepender disso.
Desejaria de ter sido atropelado por um tanque do PAD.

Capítulo 11
Acordei cedo e fiquei na cama por alguns minutos, olhando para o teto,
antes que meu cérebro finalmente registrasse que havia um novo candelabro
sobre ele. Eu não devo ter notado isso na noite passada, quando finalmente
caí na cama, exausta e enfurecida. Um disco de prata brilhante de cerca de
quarenta e cinco centímetros de diâmetro estava preso diretamente ao teto.
Longas folhas de cristal onduladas, modeladas com nervuras de várias
texturas em cascata, suspensas por correntes escondidas dentro de contas de
cristal. Finas gavinhas de cristal, como os brotos curvados de uma videira,
penduradas entre as folhas, translúcidas com luz, e entre elas, em correntes
mais reluzentes, esferas de cristal texturizadas, cobertas de prata, brilhavam
suavemente na brisa leve das janelas abertas. Era maravilhosamente
romântico, mas moderno, uma espécie de lustre que uma sereia do século
XXI poderia ter em sua caverna submersa ou uma Rainha do Gelo de um
conto de fadas poderia estar pendurada em seu palácio de gelo.
Era exatamente o tipo de candelabro que eu adoraria ter. Elegante,
feminino, romântico, mas sem um traço de fofura brega. E eu queria arrancá-
lo do meu teto. Ele me deixou tão brava.
Eu me empurrei para fora da cama. A fadiga ainda insistia nos meus
ossos, mas estava ficando melhor.
Sem náusea. Sem dor. Meu corpo deve ter vencido a guerra com veneno
de cobra. Agora, se eu pudesse ganhar a guerra comigo mesma.
A magia estava baixa e eu estava profundamente grata por não ter que
recorrer ao fogão a querosene. Entrei no escritório, confisquei o monitor de
Raphael e liguei o gabinete de Gloria na mesa da minha cozinha. Enquanto o
computador ligava, preparei dois pedaços de torrada do Texas, uma fatia de
pão grosso, com manteiga em ambos os lados e frito um pouco na frigideira,
e um bife pequeno, quase queimado dos dois lados. Eu precisava de calorias.
139
Fiz um café chocantemente forte em um ibrik , uma pequena cafeteira turca
que Kate me deu de presente e sentei-me com o meu café da manhã. Humm,
café, o café da manhã dos campeões. Delicioso e nutritivo.
Estava na metade da minha primeira xícara e nos arquivos de Gloria,
quando alguém bateu na minha porta.
O olho mágico revelou um homem negro carrancudo de trinta e poucos
anos, vestido de preto e parecendo que queria morder a cabeça de alguém.
Jim. Havia outras pessoas no corredor atrás dele. Que diabos?
Eu abri a porta. Jim estava na minha porta. Ele tinha mais de um metro e
oitenta de altura, cabelo curto e o tipo de constituição muscular resultado das
inúmeras lutas pela sua vida. Ele parecia mau, e ele trabalhava muito duro
para continuar parecendo assim. Jim gostava de ser subestimado.
Quando cheguei a Atlanta pela primeira vez, fiz questão de ler os
arquivos confidenciais que a Ordem mantinha sobre os metamorfos. Antes do
pai de Jim ser preso e morrer na prisão na mão de outro prisioneiro, Jim fazia
aulas avançadas e tirava notas excelentes. Poderia ter sido o que quisesse.
Um médico, como o pai dele. Um cientista. Um engenheiro. Mas a vida
entrou em seu caminho. Ele era o alfa do Clã Gato agora e supervisionava os
oficiais de segurança do Bando, o que significava que todos os dias ele
investigava, descobria e eliminava ameaças ao Bando. Jim amava seu
trabalho.
Atrás dele, oito pessoas lotaram o patamar: Sandra e Lucrezia, do clã
Bouda, ambas oficiais de combate, Russell e Amanda do Clã Lobo, dois
caras que eu não conhecia, Derek, o terceiro empregado da Cutting Edge, e
meu advogado, Barabas.
— Se isso é uma gangue de linchamento, você não trouxe pessoas
suficientes, —eu disse.
— Você não atende o seu telefone, —disse Jim. Sua voz estava em
desacordo com seu rosto: seu rosto dizia ‘ossos quebrados’, mas sua voz
dizia ‘cantora de balada romântica’.
— Eu o esmaguei.
— Por quê? —Perguntou Barabas.
— Estou tendo problemas de relacionamento, —eu disse a ele.
Derek sorriu. Ele costumava trabalhar com Jim antes de ingressar na
Cutting Edge. Aos dezenove anos, ele ainda era surpreendentemente bonito,
mesmo depois que alguns monstros derramaram metal derretido em seu rosto.
Nós tínhamos matado os filhos da puta, mas o rosto de Derek nunca curou
muito bem. Ele não estava desfigurado, mas tinha cicatrizes e agora parecia o
tipo de homem que você não gostaria de encontrar em um beco escuro. Eu o
vi entrar em um bar e parar a conversa só com as feições do seu rosto.
Jim, Derek, Barabas e dois boudas de combate, sem contar os outros
caras. Ou eles esperavam que eu lutasse com eles, ou algo pesado estava
prestes a acontecer.
— Podemos entrar? —Jim perguntou.
E ver o trabalho de Raphael? Infelizmente, dizer ao chefe de segurança
do Bando para ir embora parecia extremamente insensato, para não
mencionar um ponto negativo para a minha investigação. Ótimo. Os
metamorfos fofocavam mais que senhoras da igreja entediadas. Antes de hoje
à noite, o Bando inteiro saberia sobre o golpe de Raphael. — Claro.
Eu os assistir eles analisarem meu apartamento. Os dois boudas acenaram
para mim. Isso foi interessante.
Os oito metamorfos se espalharam pela minha sala e cozinha e de repente
meu apartamento parecia pequeno demais.
— Eu pensei que você e Raphael não estavam mais juntos, —disse
Barabas.
Fique calma. — Na verdade, nunca moramos juntos no meu apartamento.
Eu vivi com ele, —eu disse. Eu não morderia Barabas. Isso não era certo.
— Ele veio aqui ontem à noite enquanto ela estava fora, —disse Jim. —
Ele e um grande caminhão de mudanças.
— Oh. —Barabas pensou sobre isso. Seus olhos se iluminaram. — Oh!
Dá uma surra em meu advogado também não era interessante. Eu me
virei para Jim. — Você colocou um espião no meu apartamento?
— No segundo que você se tornou um alvo, —disse ele.
Bem, isso era a cereja do bolo. Eu inclinei minha cabeça. — Teria sido
muito bom você me deixar saber, gato. Odiaria confundir minha babá com
uma ameaça e, acidentalmente, atirar nele.
Jim piscou. Ah! Eu consegui surpreender o mestre espião.
— Então esses são móveis novos? —Barabas disse, seu rosto pura
inocência.
— Não me tente, Barabas.
As duas mulheres bouda abriram grandes olhos para o retrato da Tia B na
minha prateleira.
— Belas decorações, —Sandra ofereceu e mordeu o lábio, obviamente
esforçando-se para não rir.
— Sim, a maneira como a luz aqui toca no rosto da Tia B é muito boa, —
acrescentou Lucrezia.
— Foda-se, Lucrezia, —eu disse a ela.
Sandra gemeu e a risada explodiu de sua boca. Ela se dobrou. Lucrécia se
dissolveu em risadinhas.
Hoje à noite, não apenas o Bando, mas os metamorfos do Canadá
saberiam o que Raphael tinha feito no meu apartamento. Eu o mataria.
Cruzei meus braços no peito e me virei para Jim. — Existe uma razão
para todos vocês virem aqui?
— Sim, —disse Jim. — Por que você tem seu computador na mesa da
cozinha?
— Esta é uma longa conversa.
— Eu tenho tempo.
Nós nos sentamos à mesa da cozinha e eu o informei do que fiz ontem à
noite enquanto Derek fazia mais café para todos. Expliquei Anapa em termos
gerais, o Cajado de Ossos, o Volhv e a faca. No final, Jim acenou para o
computador. — Kyle, veja o que você pode fazer com isso?
Um sujeito corpulento que parecia dobrar varas de aço para se divertir,
sentou-se ao computador, abriu uma pequena maleta, ligou uma caixa com
luzes piscantes ao gabinete e seus dedos começaram a voar sobre o teclado.
Ele piscou para mim, ainda digitando sem olhar para o teclado.
— Gloria não tem impressões digitais nos arquivos, —disse Jim. — Sem
carteira de motorista, sem autorização municipal de funcionamento para a
loja dela, nada. Ela só um dia apareceu e montou seu bazar de bugigangas.
— E ninguém se importou porque era a rua White? —Como ele sabia de
tudo isso?
Jim assentiu. — Como posso facilitar sua vida?
Se não tivéssemos uma audiência, eu poderia tê-lo abraçado. — Gloria e
seus parceiros provavelmente assassinaram os funcionários de Raphael.
Primeiro, eu preciso que voltem a rua White e no resto da Warren e coletem
algumas informações. Quantas vezes ela estava na loja, quem vinha visitá-la,
quando saía, o que dirigia, onde ia e assim por diante. Trabalho braçal básico.
Em segundo lugar, preciso estabelecer o paradeiro de Anapa.
— Você ainda desconfia dele? —Jim perguntou.
— Há algo estranho nele. Eu tenho um pressentimento de que ele está até
o pescoço nesta bagunça, provavelmente não estava trabalhando com Gloria.
Terceiro, preciso de um especialista em faca ritual. Deixei uma mensagem
para Kate, então isso deve ser resolvido se eu puder afastá-la do lado de
Curran por cinco minutos.
— Eu vou cuidar disso, —disse Jim. — Vou falar com você assim que
soubermos alguma coisa.
Alguém bateu. Este era o meu dia para os visitantes aparentemente.
— Espere, —Jim disse e acenou para a porta.
Derek foi até a minha porta. Eu ouvi abrir e então a voz de Derek disse:
— Entre, detetives.
Barabas se escondeu atrás da parede da cozinha.
Collins e Tsoi entraram na minha sala de estar. Dois oficiais
uniformizados os seguiam e Derek na retaguarda. Os policiais encararam os
metamorfos. Jim e companhia encararam de volta.
— O que vocês estão fazendo aqui? —Collins finalmente perguntou.
— Eu poderia te perguntar a mesma coisa. —Jim manteve a voz calma.
— Precisamos falar com a Nash, —disse Tsoi.
— Por favor, fiquem à vontade, —disse Jim. — Nós não vamos estar no
caminho.
— Preferimos fazer isso na delegacia, —disse Collins.
— Minha cliente está sendo presa? —Barabas disse, saindo à vista.
Collins fez uma careta. Tsoi revirou os olhos.
140
— Você não precisava pular para fora como um jack-in-the-box ,—
disse Collins.
— Mas eu sei o quanto vocês dois amam surpresas. Gostaria de ver o
mandado, por favor, —disse Barabas.
Collins trancou os músculos de sua mandíbula.
— Nenhum mandado? —Barabas sorriu.
Tsoi estava olhando ao redor da sala, fazendo as contas. Dez metamorfos
contra quatro policiais. De repente, o rosto de todos ficou sombrio.
— Tudo isso acabaria se você cooperasse, —disse Collins.
— Estamos dispostos a cooperar, se conseguirmos os relatórios
completos do caso da negociante de antiguidades com acesso a evidências, —
disse Jim.
— De jeito nenhum, —disse Tsoi.
— A perda é de vocês. —Jim encolheu os ombros.
Collins se virou e saiu.
— Isso não acabou, —disse Tsoi e saiu com os dois oficiais de uniforme
a reboque.
Ninguém disse nada até Sandra na janela anunciar: — Eles estão entrando
em seus carros.
— Eu te disse, —Jim disse a Barabas. — Eu conheço Collins, ele é um
homem razoável.
Barabas suspirou. — Mas eu estava ansioso por uma luta.
De repente, as coisas fizeram sentido: de alguma forma, Jim descobriu
que os policiais estavam vindo me buscar, e ele tinha trazido seu bando para
impedi-los de me levar.
— Como você sabia que eles estavam vindo? —Perguntei a Jim.
— Eu tenho meus jeitinhos.
— Você grampeou a delegacia do PAD. —Filho da puta. Se ele fosse
pego, haveria o inferno para pagar.
Jim sorriu sem mostrar os dentes. — Algo parecido.
— Eles estão sob pressão pesada vindo de cima para resolver o caso, —
disse Barabas. — Pessoas com presas de cobra deixaram alguém no escritório
do prefeito muito nervoso. Quase me faz pensar se eles sabem algo que nós
não sabemos e querem colocar uma tampa sobre tudo isso o mais rápido que
puderem. O plano era buscá-la e espreme-la um pouco por informações. Não
podíamos deixar que fizessem isso, você tem coisas a fazer e não há motivo
para perder tempo em uma sala de interrogatório. Como o seu telefone não
estava funcionando, decidimos aparecer antes deles.
— Nós cuidamos um dos outros, —disse Lucrezia.
Mas eu não era um deles. Bem, não oficialmente. E ainda assim eles
vieram aqui para me apoiar. Olhei cada rosto e percebi que eles fariam isso
de novo e eu faria o mesmo. Em suas cabeças, eu já pertencia a eles.
Uau.
Pela primeira vez na minha vida eu não tinha que esconder quem eu era.
Eles estavam cuidando de minhas costas e era isso.
Meia hora depois todos saíram do meu apartamento. Kyle levou o
computador com ele. Na saída, Sandra passou por mim. — A Tia B quer uma
palavrinha com você. Hoje às onze na Confeitaria Highland. Ela disse que
não se atrasaria.
A pata suave da alfa Bouda. — Eu estarei lá.
Jim foi o último a sair. Ele parou na porta. — Vou providenciar a coleta
de informações no bairro da loja de antiguidades. Alguns dos meus homens
irão cavar a fundo e descobrir qualquer sujeira que Anapa tenha.
— Aha.
— Eu conheço Collins. Ele é competente e completo. Quando você sair
do seu apartamento, você terá um espião a mandado dele. Preciso que você
não faça nada por vinte e quatro horas ou um pouco mais. Você sabe como o
jogo é jogado: você é o para-raios. Guie-os, não os perca, vá almoçar com a
Tia B, visite um mercado ou algo assim. Vá a qualquer lugar, mas o mais
longe de Anapa ou da rua White. Deixe os policiais se concentrarem em
você, para que meu pessoal possa trabalhar em paz. Pode ter um dia de folga
de qualquer maneira. Você está horrível.
— Você passará sua vida solteiro, Jim.
— Fique longe da rua White.
— Tudo bem, entendi.
Eu o empurrei porta afora e tranquei. Tinha telefonemas para fazer.
Às onze horas, entrei pela porta da Confeitaria Highland usando calça
preta, camisa preta, botas de combate com ponta de aço e batom carmesim.
Combinava muito melhor com o meu eu novo. Minha escolta policial
clandestina convenientemente estacionou do outro lado da rua.
Localizado na Avenida Highland, o prédio de tijolos baixos que abrigava
a Confeitaria Highland sobrevivera às garras da magia quase intacta. Esta
área era chamada de Old Fourth Ward. Antes que a magia separasse Atlanta,
a Fourth Ward era um lugar de acontecimentos históricos com construções
históricas do início do século anterior, fábricas desativadas transformadas em
apartamentos e renovadas Cabanas de espingarda, estruturas longas, estreitas
e retangulares, uma vez usados pelos mais pobres, transformada em habitação
na moda. Supostamente o nome vinha da estrutura da casa: se alguém apontar
uma espingarda na porta e atirar, todos dentro da residência seriam atingidos
ou mortos de tão estreita que a casa seria.
A Old Fourth Ward abrigava antigamente o Boulevard, um lugar onde
mais drogas passavam pelas mãos do que na maioria das outras áreas da
cidade juntas, e a Avenida Edgewood, onde dezenas de bares e restaurantes
ofereciam bebidas, música e outros prazeres da variedade noturna.
Agora, com Downtown em ruínas a oeste e Midtown igualmente
devastada, a Old Fourth Ward era um bairro sossegado. Os bares e
restaurantes ainda estavam lá, mas serviam aos clientes da classe
trabalhadora. Era um lugar onde carpinteiros, pedreiros e funcionários da
cidade vinham almoçar, e a Confeitaria Highland era o lugar onde paravam
no caminho para casa quando um desejo por doces os atingia.
Eu tinha verificado a área ao ar livre, mas Tia B não estava em nenhuma
das mesas de ferro forjado preto, então fui para dentro, passando pelo balcão
cheio de confeites de chocolate, bolos e creme, através da sala estreita com
um banco virado de costas. O restaurante estava quase vazio, o almoço estava
a uma boa hora de distância. A Tia B estava sentada no canto, de costas para
a parede. Ela parecia estar em seus cinquenta e poucos anos, um pouco gorda,
com um rosto gentil e cabelo castanho que usava em um coque. Usava uma
bela blusa verde e caqui e parecia uma avó prestes a lhe servir alguns
biscoitos.
O olhar dela enganava bem, mas maioria das pessoas que a conhecia era
aterrorizada com tia B. Inferno, eu era apavorada com Tia B. Mesmo outros
alfas a evitavam, inclusive minha melhor amiga, a consorte do Senhor das
Feras. Sempre que a Tia B era mencionada, Kate ficava com um olhar
estranho no rosto. Não alarme exatamente, mas definitivamente preocupação.
À sua direita estava Lika, sua beta. Alta, forte, Lika tinha cabelos escuros
curtos e um rosto severo, do tipo que se esperaria de uma mulher que
passasse muito tempo na ativa do exército. O clã Bouda tinha algumas
mulheres que eram mais velhas, mais experientes e que poderiam eliminar
Lika, mas nenhuma delas queria o trabalho da beta. Betas tinham vidas
ocupadas e muita responsabilidade. Os alfas tomavam decisões, os betas as
executavam.
Aqui estava a minha chance. Eu me juntaria ao Clã Bouda, assim como
todos queriam. Mas eu faria nos meus termos.
Fiz uma pausa diante da mesa e olhei para Lika. — Você está no meu
lugar.
O rosto da Tia B permaneceu perfeitamente calmo.
— É isso mesmo? —As sobrancelhas de Lika se juntaram.
— Mova-se, —eu disse a ela.
— Mover-me, —disse ela.
Eu olhei para Tia B. Normalmente, os desafios públicos eram até a morte,
mas havia apenas três de nós aqui.
— Para submissão, —disse ela. — Eu não quero perder nenhuma de
vocês. Não são muitos de nós.
Lika levantou-se detrás da mesa. Ela tinha cerca de quinze centímetros a
mais que eu e talvez quarenta quilos acima do meu peso, tudo isso músculos
duros. Mas ela nunca me viu lutar, enquanto eu conhecia seus movimentos.
Empurrei a mesa mais próxima para trás, limpando algum espaço. Lika
fez o mesmo.
Lika virou a cabeça para a esquerda, estalando o pescoço e depois
novamente para a direita. Revirei os olhos e fingi estar entediada.
Ela pulou. Foi uma investida rápida e mortal. Seu punho direito estalou
como um martelo.
Eu me abaixei sob o golpe, esmaguei meu ombro sob sua caixa torácica,
agarrei suas pernas alguns centímetros abaixo de sua bunda e a levantei.
Minha investida a tirou do seu centro de gravidade e ela não tinha para onde
ir, senão para cima. Eu a joguei no ar e a derrubei com todas as minhas
forças, agachando-me para controlar sua queda. A Lika encontrou-se com o
chão e boom! Antes que ela tivesse a chance de recuperar o fôlego, eu
desenhei uma linha com minhas unhas em sua garganta e dei um passo para
trás.
Lika levou dois segundos para se livrar do atordoamento e rolou de pé. —
Novamente?
Olhei para a Tia B, como uma boa bouda. Eu sabia sobre a cadeia de
comando. De fato, a cadeia de comando me fazia sentir segura e confortável.
A Tia B assentiu.
Lika mudou sua postura e balançou para frente e para trás na ponta dos
pés. Certo. Fiquei tensa, como se fosse avançar. Ela deu um passo com o pé
141
esquerdo e chutou com ele para a direita em um roundhouse , apontando
para minhas costelas com sua canela. Foi um inferno de um pontapé. Se eu
tivesse ficada parada, teria quebrado minhas costelas, me aleijando. Não
poderia fazer muito com costelas quebradas, exceto dobrar para um lado e
gemer.
Peguei sua perna logo abaixo do joelho, envolvendo-a com o braço
esquerdo, dei um passo à frente, empurrando Lika para trás e
desequilibrando-a, e varri sua outra perna debaixo dela. Ela caiu com força.
Eu me agachei o suficiente para fingir cortar seu lado, marcando seus órgãos
internos como meu alvo. Se eu tivesse garras, eu poderia enfiar minha mão
nela, sob e na caixa torácica, e arrancar seu coração. Dei alguns passos para
trás.
Lika ficou de pé. Seu lábio tremeu no começo de um grunhido.
— Sem pêlo, —disse Tia B. — Senhoras, em um lugar público, nós
usamos nossa cara humana.
— Novamente? —Perguntei olhando para a Tia B.
Ela assentiu.
Lika atacou. Suas mãos se fecharam sobre meus braços. Um movimento
de agarrar. Ela estava apostando em sua força superior. Mas nenhuma
quantidade de força poderia mudar a física simples.
Apertei minhas mãos em seus antebraços, plantei meu pé esquerdo no
meio de seu estômago e rolei para trás.
Ela não esperava e o impulso a puxou para baixo. Balancei para frente,
batendo meu tornozelo em sua garganta, forçando-a de volta, e rolei para
cima em uma posição sentada com as duas pernas no peito de Lika e seus
braços presos. Antes que ela tivesse a chance de se orientar, me inclinei para
trás, esticando o braço sobre o meu corpo. Com minhas coxas como âncora,
tudo que eu tinha que fazer era puxar um pouco e seu cotovelo seria uma
torrada.
— Termine, —disse Tia B.
Eu puxei o cotovelo. A articulação estalou com um grito seco.
Lika rosnou entre os dentes cerrados.
— Não haverá revanche, —disse Tia B. — Ela tem melhor técnica e mais
treinamento. Também é mais rápida que você. Estamos claras, querida?
— Sim, senhora, —exclamou Lika.
— Deixe ela ir.
Soltei o braço de Lika, levantei e ofereci minha mão a ela. A bouda olhou
por um segundo, suspirou e segurou meus dedos com a mão ilesa. Eu a puxei
para cima. — Boa luta.
— Tanto faz. —Sua voz não tinha qualquer hostilidade real. — Estava
cansada de ser um beta de qualquer maneira. Você pode ficar com todos os
problemas.
Lika olhou para o braço flácido dela. — Eu vou ao banheiro para
consertar isso.
142
— Não demore muito, —disse Tia B. — Pedi cupcakes Red Velvet ,
seus favoritos.
— Sim, Alpha. —Lika saiu em direção ao banheiro.
Tia B se virou para mim e sorriu. Eu poderia jurar que havia orgulho
nisso. Não pode ser. Devo estar enganada.
— Sente-se, querida, —disse Tia B. — Amei o batom, a propósito.
— Obrigada. —Sentei no lugar de Lika e esperei até a porta do banheiro
se fechar atrás dela. — Por que pediu que eu a machucasse?
— Se você continuasse dando a alguma chance, ficaríamos aqui até o pôr-
do-sol. —A Tia B encolheu os ombros. — Lika é teimosa. Nada menos do
que uma vitória decisiva a impediria. Lembre-se disso. Você lidará com ela
como minha beta e ela se mostrará problemática de vez em quando.
Tia B olhou para mim do outro lado da mesa. Suas íris brilhavam de um
vermelho brilhante. O peso do olhar alfa me segurou. Lutei por um longo
momento com o seu olhar, mas me forcei a desvia-lo e consegui olhar para
baixo em direção a mesa.
— Bem-vinda à família, —disse Tia B.
Eu estava dentro. Para melhor ou pior, eu era agora um membro do Clã
Bouda e a segunda no seu comando depois da Tia B.
Uma garçonete entrou com uma bandeja de cupcakes, um bule de chá e
três xícaras.
— Você não viveu de verdade até ter experimentado os cupcakes Red
Velvet daqui. —Tia B empurrou um bolinho gordo na minha direção. —
Experimente.
Minha nova alfa estava me oferecendo comida. Outra demonstração de
lealdade e submissão. Quebrar o cotovelo da ex beta não foi suficiente,
aparentemente. Mordi o bolinho e lambi a cobertura cremosa. Humm ...
143
cream cheese . Lutar me deixou com fome.
A garçonete partiu.
— Você sabe o que o trabalho beta envolve? —Perguntou Tia B.
Claro. — Executora, guardiã, garota de recados, a bouda chata.
Tia B cortou um bolinho pequeno ao meio e mordeu um pedaço. — Você
esqueceu babá.
— Eu sinto muito. Como sou boba.
— Por que a súbita mudança de ideia? —B perguntou.
— Por duas coisas. Primeiro Jim veio me visitar hoje de manhã. Ele
trouxe oito pessoas com ele. Ocuparam meu apartamento e quando alguns
policiais apareceram tentando me levar, eles foram recebidos com uma firme
resistência.
— E?
— E eu percebi que, se estiver em apuros, o Bando me apoiará e eu
apoiarei o Bando. Todos os meus amigos estão no Bando. Eu gosto de
pertencer algum lugar. Preciso disso, preciso da estrutura. —Lambi a
cobertura. — Estou cansada de começar de novo. Provavelmente não vou
deixar de ser um metamorfo, então posso fazer o melhor possível com isso.
Eu serei a melhor bouda que posso ser.
— Melhor que eu? —B arqueou as sobrancelhas.
— Sim. Pretendo eclipsar sua fama.
Tia B sorriu. — Pensando alto.
— Sempre. —Bebi meu chá.
— E a segunda coisa? —Perguntou a tia B.
— Falei com Martina e percebi que para tirar o clã de você, preciso
ganhar lealdade dele primeiro.
— Ah, então você planeja assumir?
Eu lambi a cobertura dos meus lábios. — Daqui alguns anos. Até lá tenho
certeza que eles vão me seguir.
A Tia B recostou-se e riu.
— Você fez um bom trabalho por muito tempo, —eu disse. — Não acha
que merece uma boa aposentadoria?
Tia B continuou rindo. — Muito bem. Eu falarei com Curran. Por conta
da investigação, tenho certeza de que o leão nos concederá uma prorrogação
para a sua entrada no Bando, já que oficialmente você entrou para o clã.
Desde que ele saiba que você e eu temos um entendimento e um pedido de
admissão foi feito, não encontraremos problemas.
Lika voltou do banheiro, esfregando o braço, sentou-se ao meu lado e
esperou até que B acenou para a comida e só então ela pegou um cupcakes
Red Velvet. — Delícia.
144
— Eu preciso que você vá até o Condado de Milton, —disse B.
Ôu-ôu! O xerife do Condado de Milton e eu não tínhamos o melhor
relacionamento. Foi ele quem prendeu a mim e Raphael depois do incidente
da banheira de hidromassagem.
— Onde? —Perguntei tomando meu chá. Earl Grey. Saboroso.
— No o escritório do xerife no Condado de Milton, —disse a Tia B.
Eu engasguei um pouco com meu chá.
— Alguns dos nossos foram presos na noite passada, —disse Lika. —
Incluindo o seu garoto.
Meu garoto, oh não! — O que diabos Ascanio fez desta vez? Na última
vez que o vi, ele estava com a mãe.
— Nada, —disse Tia B. — Lugar errado, hora errada. Houve algum tipo
de briga de bar. Eu até poderia ir resolver isso com Kate, mas ela está esses
dias resolvendo problemas ao lado de Curran. Algo a ver com os vikings, não
sei exatamente o que é. —A Tia B acenou com a colher. — Envolvê-la agora
significa envolver o Senhor das Feras e não sinto nenhum pingo de vontade
de colocar fogo em sua cauda. Ele vai rosnar e virar tudo do avesso e prefiro
evitar tudo isso. Então preciso que você vá até lá e faça esse problema
desaparecer. Entendo que você e Beau Clayton não se dão muito bem.
Sim, ele jogou minha bunda de biquíni em uma cela de prisão. — Eu vou
fazer isso, —disse e roubei um segundo cupcake.
— Estou muito feliz, —B me disse.
Todos bebemos chá.
— Eu sei que você anda falando com meu filho, —B disse para mim.
— Sim. Ele parece ter enlouquecido.
— O frenesi de acasalamento faz isso. —Disse a Tia B. — E eu não estou
falando sobre a loira. Ele nunca foi abandonado antes, querida. Ele não tem
ideia de como lidar com isso.
Lika deu uma risadinha.
— Eu disse a ele que nós terminamos, e ele arrombou meu apartamento,
arranhou MINHA na minha mesa, —eu disse a ela. —E então ele mudou suas
coisas para o meu apartamento.
Lika parou de comer. — Sério?
Eu assenti.
Tia B sorriu. — Ele sempre foi um menino muito inteligente.
Ali estava, a prova final de que Raphael tinha a quem puxar. Eu tinha
acabado de dizer que ele enlouqueceu, vandalizado meus móveis, e era
culpado de arrombamento e invasão, e ela estava explodindo de orgulho.
— O que você faria na minha situação? —Eu perguntei.
A Tia B cortou outra fatia do seu bolinho. — Eu nunca fui de deixar um
homem fazer o que quisesse comigo, querida. Se alguém se atrevesse a me
tratar dessa maneira, eu esfregaria o nariz dele em tudo que ele havia perdido
por causa de sua acrobacia idiota. Eu faria algo ... espetacular. Algo que ele
nunca esqueceria. E me certificaria de que todos soubessem que tolo ele era.
— Se eu tirar as boudas da prisão, quais são as chances de Raphael passar
esta noite longe de seu apartamento?
Tia B sorriu para mim acima da borda de sua xícara. — Eu diria que essas
chances são muito, muito boas.
Levantei. — Então deixa eu ir providenciar isso.
Os olhos da Tia B brilharam com uma divertida luz rubi. — Lika vai te
informar sobre os detalhes. Boa sorte, querida.
Eu precisaria de cada gota disso também.
— E Andrea? —Disse Tia B. — Você e eu fizemos um acordo hoje.
Confio em você para sustentar sua parte no trato.
Era como se ela tivesse olhado dentro da minha cabeça e visto que eu
ainda estava cambaleando. Falei a conversa e caminhei a caminhada, mas de
alguma forma ela sentia minha hesitação.
— Se Curran definir a data de sua admissão e você não aparecer, seria
realmente desastroso.
— Não se preocupe, —disse a ela. — Eu estarei lá.

Dizer que Beau Clayton era um bom rapaz do sul seria um eufemismo. O
homem guardava uma lata de amendoim verde em sua mesa, pelo amor de
deus! Por algum motivo, estava meio cheio de cartuchos de bala.
Beau olhou para mim por trás de sua mesa, que estava cada centímetro
organizada. Ele era grande como todo o inferno e metade do Texas, um
enorme homem do tamanho de um urso, com ombros de atacante e braços de
levantadores de peso que esticavam as mangas de sua camisa do uniforme
cáqui bem passada. Seu chapéu de xerife de aba larga e marrom escuro estava
em um gancho na parede, de fácil acesso. Acima, uma espada estava
pendurada, uma linda espada com um punho em forma de cesta
145
ornamentada . Eu tinha certeza que já havia visto-a antes, mas pela minha
vida eu não conseguia lembrar onde.
— É sempre bom ver você, Senhorita Nash, —Beau cumprimentou.
Eu dei a ele meu sorriso mais deslumbrante. Se ele achava que poderia
escapar do meu sorriso sulista, estava enganado. — Posso perguntar por que
você tem cartuchos de balas na lata, Xerife?
— Toda vez que alguém atira em mim, eu coloco as cápsulas na lata, —
disse ele.
Tudo bem então.
— Então, o que a traz aos céus ensolarados do Condado de Milton? —
Beau perguntou.
— Você tem aí algumas pessoas do Bando trancados. —E meu primeiro
teste como beta era tirá-las daqui.
— Estamos sempre felizes em ter convidados em nossa prisão, —disse
ele. — Quase nunca nos sentimos sozinhos.
Eu lambi meus lábios, umedecendo-os, e o olhar de Beau deslizou para
baixo. Bem, e quanto a isso? He-he-he.
— Entendo que você tem três dos nossos garotos, —eu disse. — O que
posso fazer para libertá-los?
Beau encostou-se à cadeira. — Bem, é aqui que nos deparamos com um
problema. Pelo que entendi, seus garotos causaram um distúrbio no Steel
Horse, agrediram dois homens e danificaram alguma propriedade lá.
Eu cruzei minhas pernas. — Pelo que me lembro, o Steel Horse está no
Condado de Fulton.
— Você está correta, mas veja, seus garotos estavam fora em uma noite
infernal. Não satisfeitos com aquele pouco de diversão em Fulton, eles
continuaram sua briga pela Alameda Gawker, que os colocou a seis metros
dentro do condado de Milton quando foram posteriormente presos.
Maldição.
Os olhos de Beau brilharam um pouco. — Relatos de testemunhas
oculares indicaram que uma mulher estava envolvida.
Eu sorri para ele. — Uma mulher está sempre envolvida. Então, como foi
a sua versão?
Beau clicou no gravador em sua mesa. A voz de um jovem encheu a sala.
— Então estávamos apenas sentados lá e depois havia uma garota e ela estava
olhando para Chad e eu.
A voz arrastava suas palavras um pouco. Não estava sóbrio. Longe disso.
— E Chad disse: ‘Ei, linda, venha com a gente’, e o cara grande e negro
disse: ‘Cale a boca, garoto branco’.
Eu arqueei minhas sobrancelhas para Beau. O grande cara negro seria
Kamal, que nunca dissera uma palavra desagradável a ninguém em toda a sua
vida.
— E ele disse: ‘Cale a boca’, e eu disse: ‘Nós só estamos conversando’ e
o outro cara negro disse: ‘Nós vamos bater na sua bunda se você não calar a
boca’. E então ele fez um daqueles sinais de mão. Você sabe, uma dessas
coisas de gangues.
Oh, isso estava ficando cada vez melhor. Beau estava fazendo um valente
esforço para permanecer estoico, mas seu rosto traía o olhar sofredor de
alguém que tinha de ouvir algo patentemente idiota.
— O que aconteceu depois? —Uma voz feminina mais velha perguntou.
— Levantamo-nos para sair, e a menina queria vir com a gente, e o
primeiro negro, ele, tipo, levantou-se e disse todo grosseiro para ela, ‘Você
não está indo embora!’ E todos nós ficamos tipo ‘Sim, nós vamos’. E então
joguei uns pedaços de frango neles para que eles soubessem que estávamos
falando sério, e o garoto branco que estava com eles, pegou Chad e o jogou
pela janela.
Cavaleiros brancos bêbados em armadura brilhante, protegendo a infeliz
fêmea das garras de caras negros assustadores.
Me dá um tempo.
— Então o que aconteceu? —A mulher mais velha perguntou.
— Então saíram e subiram a rua. E Chad disse: ‘Nós não podemos deixar
eles escaparem dessa merda’, então nós os seguimos. E eu disse: ‘Ei! O que
vocês estão pensando que acham que podem sair jogando pessoas pela
merda da janela?’ E o cara branco disse: ‘Parecem que vocês gostam de
passar pelas janelas.’ E eu disse a ele: ‘Foda-se’ com uma voz educada e ele
me jogou pela janela.
Beau desligou o gravador.
— Legal da parte dele de ter usado sua voz educada, —eu disse. — Caso
contrário, não vou nem dizer o que teria acontecido.
Beau fez uma careta. — Eles não são dos mais inteligentes e a bebida não
melhorou seu QI.
— E o que os Estúpidos Grandes Caras Negros disseram? —Perguntei.
— Disseram que os garotos estavam bêbados e batiam na garota que
estava com eles. Um desses garotos se aproximou, jogou algumas asas de
frango neles e eles o jogaram pela janela. Como a garota tinha ido embora,
eles decidiram ir embora também, mas aí os dois gênios os seguiram e foram
jogados pela janela da frente do Chuck’s Hardware.
— Jogar frango nas pessoas constitui uma agressão, —eu disse. — Por
sua própria admissão, eles deram o primeiro soco.
— Sim, no caso da situação no Steel Horse. No entanto, o seu povo não
está preso pelo incidente no Steel Horse, eles estão sendo mantidos porque
durante uma briga verbal no meio da rua Gawker Alley, eles se encarregaram
de jogar duas pessoas na janela de Chuck.
Ele me pegou aí. — Com todo o respeito, senhor, mas isso é uma
continuação do mesmo incidente.
— Eu entendo o seu ponto de vista, mas Mike e Chad precisaram de dez
minutos para cambalearem até a rua. São dois incidentes diferentes e você
sabe disso.
Aaaaa. — Peço desculpas, mas não concordo.
— Eu respeito seu direito de discordar, mas isso não muda a realidade.
Não posso ter pessoas sendo jogadas através das janelas, querendo ou não, no
meu condado.
Nós nos encaramos. O nível de polidez subiu para níveis perigosos.
— Teríamos o maior prazer em pagar o prejuízo ao Chuck's Hardware e
restaurar a janela dele, —disse eu. — Estamos felizes em acertar as contas.
Ele estaria disposto a abandonar as acusações?
— Ele é um homem razoável, —disse Beau. — Mas isso vai sair caro.
Dei de ombros. — Garotos são garotos, xerife. Você sabe como é, eles se
divertem e nós pagamos as contas.
— Você também tem Jeff Cooper para lidar, —disse Beau. — O pai de
Mike. Ele está na minha sala da frente fumegando e fazendo uma tempestade
disso tudo. Ele quer que as acusações de agressão sejam feitas.
Puxei uma pequena caixa de plástico do bolso e mostrei o disco dentro
dela.
— O que é isso?
— Filmagem de vigilância.
— O Steel Horse tem câmeras de vigilância? —Beau ganhou vida como
um lobo faminto avistando um coelho suculento e aleijado.
— O dono os instalou depois daquele susto que eles tiveram com a
pandemia. —Uma pandemia que Kate havia parado antes que pudesse matar
a ela e seu companheiro. O Steel Horse acolhia os membros do Bando de
braços abertos, razão pela qual eles não chamaram a polícia quando os
garotos do Bando se meteram em encrenca. — Eles não anunciam esse fato.
Além disso, elas só funcionam metade do tempo, quando a tecnologia está
em alta. Eu lancei o disco entre meus dedos. — Devemos ver?
Beau tirou o disco do estojo e o colocou no computador em uma pequena
mesa no canto. Imagens em preto e branco encheram a tela. Três metamorfos
sentados em uma mesa, com a garota ao lado de Kamal. Dois rapazes em
uma mesa próxima com uma coleção de garrafas de cerveja vazias disseram
algo. Os metamorfos os ignoraram. Mais insultos, desta vez com o aceno de
braços. O menor dos dois adolescentes humanos escolheu uma cesta de ossos
de galinha e jogou na cabeça de Kamal. Ascanio se levantou, pegou o cara e
atirou-o pela janela. Kamal bateu na cabeça dele. Ascanio encolheu os
ombros. O terceiro metamorfo, Ian, jogou algumas notas na mesa e o grupo
saiu.
— Se o Senhor Cooper optar por fazer as acusações, faremos o mesmo,
—disse eu. — Por favor, sinta-se à vontade para ficar com o disco. Eu fiz
cópias. Tenho que te pedir para libertar os meninos. Eu estaria em dívida com
você e eles não correm o risco de desaparecer. Você sabe onde nos encontrar:
a grande fortaleza de pedra a poucos quilômetros da cidade.
Beau foi até a porta e enfiou a cabeça para fora. — Rifsky, poderia tirar
nossos hóspedes metamorfos detidos na cela para mim? Além disso, a
Senhorita Nash aqui vai deixar as informações dela com você para o Chuck's
providenciar o concerto da janela dele.
De repente, lembrei-me de onde tinha visto a espada. Costumava ficar no
apartamento de Kate. Era a espada de seu guardião. Pedaços do quebra-
cabeça se encaixaram na minha cabeça. Ela usou essa espada para me tirar da
cadeia. Eu me senti envergonhada.
Beau se virou para mim. — Não saia da cidade, Senhorita. Nash.
— Não sonharia com isso. —Agora eu devia um favor a Beau.
Maravilhoso.
Dez minutos depois, três metamorfos com caras de culpados me
encontraram nos degraus. Kamal me viu e deu uma segunda olhada. — Eu
pensei que era a Lika que vinha.
Eu dei a ele meu olhar longo e fixo. Ele se mexeu desconfortavelmente
no lugar.
— Vamos tentar de novo, desde o começo. Você diz: ‘Olá, Beta.
Obrigado por vir até aqui e sujeitar você e o Clã ao constrangimento público
por causa da minha estupidez’. E eu não vou quebrar os seus braços.
— Obrigado, Beta, —Kamal e Ian disseram em coro.
Olhei para Ascanio. Ele baixou o olhar para as escadas. — Eu sinto
muito.
— Sim, você sente. —Comecei a descer a rua para o estacionamento. Os
três boudas me seguiram.
Um homem abriu a porta atrás de nós. Musculoso, em seus quarenta e
tantos anos. Seu rosto tinha uma linda cor vermelha que provavelmente
significava que ele estava prestes a explodir suas artérias. — Ei! Ei você!
Quero falar com você!
Continuei andando. — Você jogou dois humanos através de duas janelas
diferentes. Me ilumine: o que acontece quando um metamorfo passa por uma
janela de vidro?
— Nada, —Ian respondeu.
— Parem, —o homem rosnou. — Parem, que droga.
— O que acontece quando um humano passa por uma janela de vidro?
Ninguém queria responder.
— Vou esclarecer a vocês: ele tem hematomas, possíveis ossos quebrados
e várias lacerações. E como ele não tem o benefício do Lyc-V, seus ossos
quebrados levarão semanas para cicatrizar e as lacerações podem matá-los se
o vidro quebrado os cortar no lugar errado. Você quase os matou por causa de
um balde de frango. O que no mundo você estava pensando?
Nós viramos a esquina, escondidos do prédio perto do muro de pedra.
— Nós só queríamos intimidá-los, —disse Ascanio.
O homem atrás de nós tomou a curva em alta velocidade. — Sua puta, eu
disse parem!
Andrea, a louca, estava prestes a emergir. Eu podia sentir isso.
Eu olhei para ele. — Jeff Cooper, eu presumo?
— Está certa. Vocês, seus degenerados, acha que pode simplesmente vir
aqui e jogar as pessoas por aí. —Ele enfiou o dedo no meu peito.
Os três boudas passaram de arrependidos a mostrar os dentes em um
piscar de olhos.
— Não ponha sua mão em mim novamente, —eu disse.
Ele enfiou o dedo no meu peito novamente. — Bem, eu tenho algo para
lhe dizer: não espere o sol se pôr neste município, porque ...
Agarrei seu pulso e puxei-o para frente, derrubando-o com meu pé. Ele
tentou se levantar e eu o peguei pela garganta, um metro acima do chão,
levantei-o um pouco e me inclinei até o rosto. Meus olhos brilharam de
vermelho assassino. Minha voz ficou áspera com um rosnado animal. —
Ouça bem, porque eu não vou me repetir, seu idiota racista. Se você trouxer
qualquer problema para mim ou para o meu povo, eu vou te caçar como um
porco que você é e esculpir uma segunda boca em seu estômago. Eles vão te
encontrar pendurado pelos seus próprios intestinos. Da próxima vez que você
ouvir algo rir e uivar durante a noite, abrace a sua família, porque você não
verá o nascer do sol.
Eu abri meus dedos. Ele caiu no chão, seu rosto branco como um lençol.
Cambaleou para trás, rolou de pé e partiu.
Os três metamorfos olhavam para mim boquiabertos.
— É assim que você intimida as pessoas. Nenhuma testemunha e
nenhuma marca nele. Coloque suas bundas no carro.

Capítulo 12
Era quase meio-dia quando finalmente entrei pelas portas do escritório.
Kate sentava-se à sua mesa. Grendel estava esparramado aos pés dela, uma
enorme monstruosidade negra que tinha mais em comum com o cão dos
146
Baskervilles do que com qualquer poodle que eu já tivesse visto. Ele me
viu e abanou o rabo.
Parei para acariciar sua cabeça. — Olha quem está aqui, A Consorte em
carne e osso. Você nos agraciar com sua presença, Sua Majestade. Estou
muito honrada. —Apertei minha mão no meu peito, hiperventilando. — Vou
chamar os repórteres!
Ela fez uma careta. — Rá-rá-rá. Você já almoçou?
— Não, e eu estou morrendo de fome. Poderia comer um pequeno cavalo.
— Acropolis? —Perguntou Kate, levantando-se.
— Só se for agora. —Peguei a pasta da minha mesa e saí pela porta. — A
propósito, temos um espião policial no nosso rabo que não devemos o perder.
— Quanto mais melhor.
Quando ambas trabalhamos na Ordem, o Parthenon era nosso restaurante
147
favorito. Ele serviam os melhores sanduiches gregos que eu conhecia.
Infelizmente, agora estávamos a quarenta e cinco minutos do Parthenon, mas
havíamos encontrado a Acrópole, a menos de um quilômetro de distância,
que era muito bom também. Não tinha jardim ao ar livre como no Parthenon,
mas nós nos contentamos com uma cabine isolada perto da janela na parte de
trás.
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Pedimos um monte de sanduiche, molho tzatziki , um prato de ossos
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para Grendel e deliciosos drinques de frutas pink-drop . Mesmo com meus
sentidos metamorfos, eu não tinha ideia do que havia neles e nós duas
decidimos que não era prudente perguntar. Nossos espiões policiais, uma
mulher mais velha e um homem de vinte e poucos anos, estavam sentados do
outro lado da sala, perto da janela. Por enquanto tínhamos privacidade, pelo
menos.
Peguei a foto da faca do arquivo e empurrei em sua direção. — Faca
antiga.
Ela ponderou isso. — Ela não é adequada para o combate.
— Raphael acha que era cerimonial.
Ela assentiu. — É um canino.
— O que?
— Um dente, uma presa. —Ela virou a foto para mim. — Lobo, talvez.
Olhe aqui.
Ela se abaixou e puxou o lábio superior de Grendel, revelando enormes
caninos. — Exatamente o mesmo.
Ela estava certa. A faca tinha a forma de um dente canino. — Como eu
não vi isso?
Kate limpou as mãos no guardanapo de tecido. — Eu também não teria
visto se Curran não tivesse dado uma costeleta de porco a Grendel na noite
passada e este idiota devorou tudo de vez e ficou com um pedaço de osso
preso no céu da boca. Tive que retirá-lo e olhei de perto seus dentes. Não
consigo convencer ao Senhor das Feras que dar-lhe costeletas de porco não é
uma boa ideia. Ele diz que os lobos comem javalis. Eu digo que os lobos
nunca tiveram um javali cortado em costeletas, o que torna os ossos de porco
muito afiados.
Contei toda a história sobre a investigação a ela, sem poupar detalhes. Os
olhos de Kate continuaram ficando cada vez maiores.
— E aqui estamos nós, —terminei.
— O lugar cheirava a jasmim e mirra?
Eu assenti.
Kate pensou por um longo momento. — Você disse que o nome do
milionário era Anapa?
Assenti. — Eu verifiquei. É uma espécie de cidadezinha no Mar Negro na
Rússia.
— Também está nas tábuas de argila Tell el-Amarna, —disse ela. — No
final da década de 1880, foram encontradas placas de argila no local de uma
antiga cidade egípcia. As tábuas datavam do século XIV aC. Elas
provavelmente faziam parte de algum arquivo real, porque a maior parte era a
correspondência dos faraós com os governantes estrangeiros.
— Como você se lembra disso?
— A maioria dos achados escritos é da Palestina e da Babilônia, —disse
ela. — Isso fazia parte da minha educação exigida. De qualquer forma, os
achados são escritos em acadiano, e o nome Bel Anapa é mencionado. —
‘Bel’ significava ‘mestre’ ou ‘senhor’ em acadiano, semelhante ao semântico
Ba'al.
— Como o demônio Baal?
Kate fez uma careta. — Sim. Eles tinham essa coisa onde somente os
sacerdotes podiam dizer o nome do deus, então eles simplesmente chamavam
seus deuses de Ba’al. Semelhante ao modo como os cristãos usam o ‘Senhor’
agora. Então alguns gregos acabaram pensando que Bel ou Ba'al significa um
deus específico, mas não é: Bel Marduk, Bel Hadad, Bel Anapa e assim por
diante, são os deuses específicos.
Maravilha. — Qual deus é Anapa?
— Os gregos o chamavam de Anúbis, Deus dos Mortos.
Uau.
— Aquele com a cabeça de chacal? —Perguntei, levantando as mãos para
a cabeça para indicar as orelhas.
Kate assentiu.
Certo. Nenhum deus que tivesse seu nome as palavras ‘dos mortos’
150 151
ligado a ele poderia ser boa coisa. Hades , Hel , nenhum desses era
filhote fofinho de cachorro.
— Ele não pode ser um deus, —eu disse. — Não há magia suficiente para
a existência física de deuses. Sabemos disso. —Deuses precisavam da fé de
seus adoradores como carros precisam de combustíveis. No momento em que
a magia recuasse, seu fluxo de fé seria cortado e os deuses se
desmaterializariam.
— Ele poderia estar apenas usando o nome, —disse Kate. — Ele poderia
ser o filho de um deus.
Eu olhei para ela.
— Saiman é o neto de um deus, —disse Kate. — Anapa poderia ser
também.
Eu lembrei do escritório de Anapa na mansão. Aquele escritório era de
um mundo que nenhum ser humano poderia ter feito.
— Você acha que uma faca pode ser modelada a partir de presas?
— É possível.
— Anúbis tem algum tipo de animal protetor? —Perguntei. — Como
algo de cerca de um metro e meio de altura com mandíbulas de um crocodilo
e ...
— Corpo de leão? Com uma juba? —Kate perguntou.
Droga. — Certo. Conte-me o resto.
152
— Demônio Ammit , o Devorador dos Mortos, o Comedor de Coração,
o Destruidor de Almas.
Coloquei minha mão no meu rosto.
— Supostamente depois de receber a alma de um recém-falecido, Anúbis
pesa o coração em uma balança onde, noutro prato, estar uma pena de
153
Ma'at , a Deusa da Verdade. Se o coração for mais pesado, não é puro
154
Ammit recebe um deleite delicioso. A alma não vai a Osíris , não recebe
imortalidade, sem segundas chances. Em vez disso, está condenado a ficar
vagando infeliz para sempre. —Kate olhou para mim. — Deixe-me
adivinhar, você matou o Devorador de Almas.
— Sim. E desde que ele estava protegendo Anapa ...
— Ela. —Kate tomou mais um pouco sua bebida.
— Ammit é uma garota demônio?
— Hum rum.
Suspirei. — Bem, em qualquer caso, Anapa definitivamente não está
usando apenas o nome.
E se Anapa era Anúbis, isso significava que eu havia oficialmente
chateado uma divindade. Nunca fiz isso antes.
Eu bati o dedo na foto da faca. — Poderia ser uma faca egípcia. Creta
antiga e antigo Egito. Até eu sei disso.
— Também pode ser grego, —disse Kate. — A adoração de Anúbis, na
verdade, se espalhou pela Grécia e por Roma.
— Então eu tenho algum tipo de Anúbis, possivelmente uma faca egípcia,
e cobras. Muitas cobras: pessoas cobras, víboras, cobras voadoras ... e um
cajado russo com uma cabeça de serpente. Como tudo isso se encaixa?
Nós nos encaramos.
— Não faço ideia, —disse Kate. — Mas isso não é bom.
Os sanduiches chegaram. Kate empurrou o prato para mim. — Coma.
— Por quê?
— Você perdeu pelo menos uns cinco quilos desde a última vez que vi
você.
— Estou ficando elegantemente magra durante todo o exercício, —disse a
ela.
— Essa última vez foi há três dias. Você não é magra, está morrendo de
fome. Coma a maldita comida.
Por dez minutos não fizemos nada além de comer.
— Como foi com a Tia B? —Kate perguntou.
— Eu dei o braço a torcer, —disse. — Fui vê-la, sentei-me muito
calmamente a seus pés e deixei que ela colocasse uma coleira em mim. Ela
foi surpreendentemente graciosa com tudo isso. —Meu copo estava vazio. Eu
o levantei. Um garçom apareceu e voltou a enchê-lo.
— Obrigada. —Olhei de volta para Kate. — Não sou realmente tão
amarga sobre isso. Isso custou um grande pedaço do meu orgulho, mas eu
não sou amarga. E agora, sou a beta do Clã Bouda.
— Parabéns.
Nós brindamos com os nossos copos.
— Por que diabos não, não é mesmo? Decidi que é o que eu quero e se eu
tenho que usar a coleira da Tia B por alguns anos para ter, então que seja.
Vou aprender tudo o que ela sabe. Vou descobrir como ela pensa, e então eu
vou usar isso contra ela. Esse é o jeito bouda.
— E Raphael?
Dei de ombros. — Eu não decidi ainda. Mudando de assunto, Roman
mencionou que as bruxas estavam todas perturbadas com a visão da Bruxa
Oráculo. Elas ouviram uivos e viram um espiral de argila. Eu estou pensando
desde que Anúbis está envolvido, talvez isso tenha sido um chacal uivando.
Anúbis teria algum tipo de influência sobre os metamorfos chacais?
— Eu não sei.
Teria que ligar para Jim e avisá-lo para remover os chacais do grupo
responsável em trabalhar em Anapa.
Não havia necessidade de tentar o destino.
— Não mude de assunto. —Kate me fixou com seu olhar.
— Que assunto é esse?
— Raphael.
— Ah, esse assunto. —Eu coloquei um pedaço de sanduiche na minha
boca. — Eu disse que não decidi. É complicado.
Kate abaixou o garfo, colocou o cotovelo na mesa e apoiou a bochecha no
punho. — Eu tenho tempo.
Não era certo mentir para a sua melhor amiga. Mesmo que estivesse
mentindo por omissão. Contei a ela minhas maravilhosas aventuras
românticas.
— Eu não posso acreditar que você beijou o Volhv negro, —disse Kate.
— Foi mais ou menos.
— Mais ou menos?
— Você sabe, nem bom, nem ruim, apenas mais ou menos. Eu me sinto
culpada por isso, na verdade. Roman é um bom beijador. Deveria ter gostado
mais. Além disso, colar os lábios com ele é o menor dos meus problemas. —
Eu contei os problemas nos meus dedos. — Entrei em uma área mágica
infecciosa, invadi e entrei no escritório de Anapa, matei o demônio de Anapa,
arrombei e invadi uma cena de crime, roubei evidências da cena do crime,
ameacei enforcar com seus próprios intestinos um ser humano … sua amiga
se foi e ela nunca mais vai voltar. Você tem uma bouda maluca em seu lugar
agora.
— Do que você está falando, sua idiota? Minha amiga nunca foi embora.
Essa era Kate em poucas palavras. Depois que ela se tornava sua amiga,
ela permanecia sua amiga para sempre. Eu mostrei meus dentes para ela. —
Quem você está chamando de idiota?
— Você. Deixe-me resumir: então você e Raphael tiveram uma briga e
não conversaram porque estavam de sentimentos feridos um com o outro,
então vocês dois se encontraram depois de algum tempo e ficaram magoados
de novo, porque nenhum de vocês se desculpou, então Raphael fingiu ter uma
noiva, que não aconteceu nada entre eles, mas você ficou puta do mesmo
jeito, então vocês se beijaram, mas disse a ele que estava tudo acabado
depois que ele ficou louco e arranhou MINHA em sua mesa, então você
beijou o Volhv negro, que você não sentiu nada com o beijo, e por último
Raphael fez a mudança das coisas dele para o seu apartamento.
— Sim. —Isso resumia tudo.
Kate se inclinou para mim. — Quando eu era pequena, Voron me levou
para a América Latina. A TV ainda fazia programação regular naquela época,
e nela passava uma história de amor realmente dramática durante a semana.
Só tinha gente muito bonita ...
Eu apontei meu garfo para ela. — Você está insinuando que nosso
relacionamento é como uma novela latina?
— Eu não estou insinuando. Estou afirmando.
— Você é louca.
Kate sorriu. — Você deu a ele algum olhar significativo e atormentado
ultimamente?
— Cala boca, Kate.
— Talvez ele tenha um irmão gêmeo ...
— Nenhuma outra palavra.
Ela gargalhou em seu assento. Eu tentei sorrir de volta, mas meu sorriso
deve ter sido assustador, porque Kate parou de rir. — O que foi?
— Eu estou muito fodida. —Não quis dizer isso, mas acabou saindo. —
Lutei bastante contra a minha adesão ao Bando, e agora estou dentro. Eu não
sou burra. Sou esperta. Sabia que mais cedo ou mais tarde isso iria acontecer,
e juntar-me aos metamorfos é para o meu benefício. O que eu não entendo é
o porquê resisti por tanto tempo. E também tem o Raphael. Ele está se
comportando como um lunático irracional, mas eu ainda estou muito
obcecada por ele. É como um vício, Kate. Eu poderia desistir e fazer as pazes
com ele, mas não consigo. O que há de errado comigo?
— Você odeia ser forçada, —disse Kate.
— Você está errada. Não tenho nenhum problema com autoridade.
— Você não tem nenhum problema com autoridade quando escolhe
voluntariamente aceitá-lo. Você aceitou o direito da Ordem de lhe dar
comandos. Se alguém tivesse vindo e tentado forçar você a entrar na Ordem,
você teria lutado com unhas e dentes. Tia B tentou forçá-la a se juntar ao
Bando, então você recusou. Mas agora você se uniu nos seus termos, aceitou
voluntariamente sua autoridade e está bem com isso porque foi uma decisão
sua, não dela.
— E Raphael?
— Raphael é um idiota, sem dúvida. Mimado, irracional, difícil, porém
você o ama e sente pressão para consertar as coisas porque vocês dois
tiveram algo maravilhoso, mas estragaram tudo e agora você se sente
culpada. Cabe a vocês dois concertá-lo novamente, mas vocês precisam
perdoar um ao outro primeiro.
— Quando você ficou tão sábia?
Kate suspirou. — Passo todas as minhas quartas-feiras ouvindo as
questões do tribunal dos metamorfos. Você não acreditaria na frequência com
que eles tentam usar o tribunal do Bando para resolver seus problemas
amorosos. Olha, Andi, o que você decidir, eu estou do seu lado. Se você
quiser ajuda, eu vou ajudar. Apenas me diga o que fazer. Se você quiser se
sentar aqui e se lamentar, vou conseguir um lenço para você.
Um lenço, né? — Já que se ofereceu, você vai vir comigo.
— Onde?
— Para a casa de Raphael. É o tempo da vingança.
— Ah não. Outro caso de arrombamento e invasão? —Uma luz maliciosa
acendeu nos olhos de Kate.
— Eu não tenho que quebrar nada para entrar. —Puxei o conjunto de
chaves sobressalentes de Raphael para fora do meu bolso e as agitei. — Ele
me deixou este adorável conjunto de chaves. Parece uma pena não usá-las.
Kate riu.
Eu já tinha feito as chamadas antes de sair para o meu encontro com a Tia
B. Meu plano maligno já estava em andamento.
Levantei minha bebida rosa. — Vingança!
Kate ergueu o copo e nós brindamos.
— Tem que ser muito bom, —disse ela.
— Confie em mim sobre isso. Será épico.

A porta da frente da casa de Raphael se abriu. Um momento depois, Kate


apareceu na porta do banheiro da suíte principal. Ela estava enrolada em um
155
traje plástico de risco biológico .
— Acabei, —ela relatou. — São oito e meia da noite. Ele estará em casa
em breve.
— Quase pronto, —eu disse a ela.
— Nós já teríamos terminado se você não tivesse insistido em fazer a
banheira.
Limpei o suor da minha testa. Eu tinha trabalhado na minha vingança por
quase doze horas, usando cada milímetro da força e velocidade do minha
metamorfa. Kate ajudou, especialmente cortando algumas coisas, mas eu
queria o meu perfume em todos os espaços, não o dela, e por isso ela estava
envolta em plástico, e eu usava uma regata e um par de capris, suando e
deixando minha assinatura de perfume em tudo.
— Quase pronto, —prometi novamente.
Kate se virou. Um momento depois eu também ouvi, algum tipo de
barulho na porta da frente.
— Eu atendo, —disse Kate e saiu com um olhar determinado em seu
rosto.
Um momento depois colei a última tira no lugar e enfiei a cabeça para
fora.
Kate estava do lado de fora da porta com os braços cruzados.
Essa era uma pose anti-Curran. O que diabos o Senhor das Feras estava
fazendo aqui?
Eu fui até a porta.
— Primeiro, você não voltou para casa. —A voz de Curran não tinha
humor. — Segundo, sou informado de que minha companheira está na casa
de Raphael há horas. Não pode haver nenhum bom motivo para você estar
aqui.
— Você está me espionando, Sua Peludeza? —Kate perguntou.
— Não, —eu disse, saindo na porta. — Jim tem a casa de Raphael sob
vigilância.
Curran olhou para mim e depois olhou para Kate.
— Vingança, —disse Kate. — Vou explicar mais tarde.
Algo assobiou. Nós três olhamos para cima. Uma sombra escura surgiu
no telhado vizinho e reconheci Shawn, um dos funcionários de Jim. Falando
no diabo. — Ele está vindo, —Shawn assobiou. — Raphael está vindo.
Ah Merda.
— Ajude-me! —Kate levantou os seus braços.
Curran pegou o traje de risco biológico e o rasgou ao meio, tirando-o
dela. Kate enfiou o traje na lixeira mais próxima.
Corri para dentro da casa, tranquei a porta da frente, subi as escadas,
abaixei a escada do sótão, subi no sótão, puxei a escada atrás de mim e corri
ao longo da viga até o canto sobre a sala de estar. Meu ninho de vigilância
esperava por mim. Grampei a entrada e todos os cômodos da casa, e agora as
imagens da casa enchiam meu tablet. Eu ia gravar isso para a posteridade.
Liguei o fone de ouvido.
Curran e Kate estavam do lado de fora da porta.
— Eu não posso acreditar que você decidiu vir me verificar, —disse ela.
— Você já deu uma de fã para o cara, ao ponto dele te dizer que você
poderia se abanar se a visão do peitoral nu dele fosse demais.
— Isso foi há mais de um ano atrás. Você vai esquecer disso?
— Não. —Curran agarrou-a e puxou-a para ele, beijando-a. — Nunca.
Ela o beijou de volta e sorriu.
Ôôôôôô ... Kate e o Senhor das Feras namorando...
O som de um carro entrando no estacionamento.
Corri para o meu banquinho de madeira. Hora do show.
Raphael se aproximou. Meu coração pulou uma batida. Ele parecia bem.
Também estava carregando algo longo e envolto em lona.
— Olá, —disse Raphael.
Agora que olhei mais de perto, parecia um pouco cansado. Havia bolsas
leves sob seus intensos olhos azuis.
Sim, ficar noite sem dormi invadido apartamento dos outros e mudando
seus móveis para ele, deve ter sido bem cansativo.
— Oi, —disse Kate com um grande sorriso falso.
Não exagere, mulher. Vamos.
Curran apenas ficou olhando. Jesus Cristo, aqueles dois não conseguiam
disfarçar nada.
— A que devo o prazer? —Perguntou ele.
— Temos algo importante ... para discutir, —disse Curran.
Eu bati minha mão no meu rosto. Brilhante, majestade. Nem um pouco
suspeito.
— Em particular. Lá dentro, —disse Kate.
Raphael olhou para Curran e lentamente para Kate. — Por favor, entrem.
Sinto muito por não estar aqui mais cedo. Por alguma razão, todo o
encanamento da Casa do Clã Bouda desmoronou e minha mãe me ligou.
— O que você quer dizer com desmoronou? —Kate perguntou.
— Quero dizer que cada cano e encaixe na casa foi aberto, —disse
Raphael.
— Eu não sabia que você estava no ramo de reparos de encanamento, —
disse Curran.
— Estou no ramo de bom filho. Não podia deixar minha mãe em casa
sem água corrente. —Raphael abriu a porta. — Alguns idiotas provavelmente
fizeram uma brincadeira. É uma casa cheia de boudas.
— O que é isso? —Kate perguntou apontando para o pacote.
— Um pedido de desculpas por ser um idiota egoísta. —Raphael
desembrulhou a lona, revelando a forma instantaneamente identificável de
um arco composto de alta tecnologia: arcos de baixa tecnologia eram
dobrados para fora, como uma lua crescente, mas o centro deste arco era
dobrado para dentro, em direção ao arqueiro. Dei um pouco de zoom na
tela. Leve, feita de fibra de carbono oco revelando um padrão de grade de nó
celta, amortecedores para absorver a vibração de recuo, moldura
ornamentadas, supressores de fio ... Oh Jesus Cristo, ele estava segurando um
156
arco composto de Ifor . O arco mais sofisticado, elegante e mais malvado
do mercado, com alta precisão e um tiro livre de vibrações em completo
silêncio. Não era um arco, era a morte envolvida em um sonho e engenharia
do século XXI. Eles foram feitos no País de Gales por uma única família de
artesãos, manualmente. Eu estava tentando comprar um por muito tempo,
mas havia uma lista de espera de uma milha de comprimento e os
compradores do Reino Unido tinham prioridades. Como ele conseguiu um?
Onde?
— Você acha que ela vai gostar? —Raphael perguntou.
— Ela vai adorar, —disse Kate. — Mas eu não acho que comprar coisas
para ela vai resolver.
Para mim! O arco era para mim! Deixei cair o meu tablet.
Raphael olhou para cima. — Vocês ouviram alguma coisa?
Ah droga.
— Não, —disse Curran. — Podemos entrar?
— Claro. —Raphael envolveu o arco de volta.
Mudei para a câmera da sala.
A porta se abriu.
Segurei minha respiração.
Raphael entrou.
Toquei a tela, dividindo-a em dois e ampliando a metade direita em seu
rosto.
Raphael abriu a boca e congelou.
A casa inteira estava coberta por um carpete de pelúcia roxo. Não era
apenas roxo, era roxo brilhante, vivo, roxo-psicótico. Isso fez meus olhos
sangrarem depois de meros cinco segundos. As Extrações Medrano tinham
tirado quilômetros desse material de um depósito que haviam recuperado, e
Stefan vendeu todo o lote para mim, muito barato, porque ninguém em sã
consciência iria comprá-lo.
Eu cobri tudo: o chão, as paredes, o teto. Os sofás elegantes, a mesinha
de centro de madeira rústica cor de café, as espadas na parede, a lareira.
Embrulhei os troncos na lareira.
Raphael só ficou lá, olhando, seu rosto uma máscara de choque total.
Atrás dele, Curran congelou no lugar. Kate colocou a mão sobre a boca,
tentando não rir. Lentamente, Raphael entrou no que uma vez foi seu piso de
cerâmica cara e agora era apenas um mar de roxo medonho e horrível. Olhou
em direção a cozinha.
O balcão era um bloco de carpete. Eu tinha enrolado suas panelas e
frigideiras penduradas na moldura idêntica à que ele tinha instalado na minha
casa. Tinha embrulhado os armários, a geladeira, o fogão. A caixa com as
facas de açougueiro, cada cabo de faca enrolado amorosamente em um
pesadelo roxo.
— Uau, —disse Kate. — Eu não tinha ideia que você gostava tanto de
carpete, Raphael.
— O que vocês queriam discutir? —Raphael perguntou, sua voz
monótona.
— É melhor deixar para depois, —disse Curran. — Você está obviamente
muito cansado. Vamos, Kate.
Ela hesitou. — Mas …
— Precisamos ir e fazer aquela outra coisa. —Ele puxou-a para longe e
eles saíram. A porta se fechou.
Lentamente, como num sonho, Raphael abriu o armário revestido de
carpete. Uma pilha de pratos acarpetados olhou de volta para ele. Eu não tive
tempo para embrulhar absolutamente tudo, então eu só tinha feito nos pratos.
Sabia que ele abriria o armário. É aí que ele costumava ir primeiro.
Raphael passou a mão pelo rosto.
Lentamente, o choque sumiu de seu rosto. Ele inalou profundamente.
Isso mesmo, querido. Mergulhe no meu cheiro.
Ele voltou para a sala e verificou as janelas, uma a uma. Lentamente, sem
pressa, subiu as escadas para a suíte máster.
Mudei para uma câmera diferente.
A cama também estava roxa. Ele trancou as janelas e entrou no banheiro.
A banheira era só o carpete.
O banheiro era puro carpete. Eu tinha cortado o carpete em uma longa tira
e enfiei no suporte de papel higiênico.
Ele se virou e finalmente notou um espelho, solitário no meio de toda a
floresta roxa de carpete que brotara por todo o seu apartamento. Nele eu tinha
escrito em batom vermelho: — Seu próprio quarto acolchoado.
Raphael levantou a cabeça e olhou para cima. Um sorriso maligno curvou
seus lábios. Ele era quase insuportavelmente bonito.
— Andreeaaaa, —ele chamou, sua voz sedutora e perversa.
Engoli em seco.
— Eu sei que você está aqui. —Sua voz era como um ronronar envolto
em um grunhido. — Você nunca resistiria em me assistir vendo tudo isso.
O bastardo me conhecia bem demais. Tentei respirar em silêncio.
Tirou os sapatos e se espreguiçou.
— Andreaaa …
Sua voz enviou pequenas carícias por toda a minha pele.
Raphael levantou o rosto e inalou, experimentando o ar. Ele parecia um
pouco feroz.
— Eu vou encontrar você, —ele prometeu.
Ah não.
Ele seguiu meu cheiro para fora da sua suíte.
— Você não pode se esconder de mim. Eu conheço você, sei como você
pensa. Sei que você está me observando. Você grampeou a casa?
Ele estava me caçando.
O medo correu através de mim, misturado com uma deliciosa excitação.
Os pequenos cabelos na parte de trás do meu pescoço se levantaram.
Ele chegou ao sótão.
Meu coração estava batendo mil batidas por minuto.
Pegou a corda que puxa a escada.
Oh meu Deus, oh meu Deus, oh meu Deus.
A escada do sótão deslizou para baixo.
Respirei fundo.
Raphael colocou o pé no primeiro degrau.
Eu pulei, arranquei minha tela de vigilância dos cabos e tentei me
arremessar pela janela do sótão, correndo direto para grades. Presa.
A cabeça de Raphael apareceu na porta do sótão. Ele me viu.
Deixei cair minhas coisas e me preparei.
Lentamente, preguiçosamente, ele subiu as escadas. Um passo, dois ...
— Você nunca vai me pegar viva, —eu disse a ele. Parecia apropriado.
Ele entrou no sótão. — Você entendeu tudo errado. O plano é que você
me pegue.
Ele tirou a camisa. Seu perfume me atingiu. Ele abriu os braços ...
Eu pulei nele.
Nós colidimos. O cheiro e a sensação dele, o calor de sua pele na minha,
oh meu Deus, isso não podia estar acontecendo. Ele me beijou na boca, tudo
pegando fogo. — Eu te amo. Me perdoa. Me perdoa por ter sido um idiota …
Eu não conseguia nem responder. Apenas o beijei, passando minhas mãos
por seu peito, por cima de suas costas musculosas, tocando seu estômago
rígido, querendo ele dentro de mim, querendo que nos tornássemos um só.
Ele deslizou as mãos por baixo da minha camiseta e eu a tirei, com uma
pressa desesperada. Ele me tocou de novo, me puxando para seus braços, e
me pareceu tão certo, tão bom, tão sensual que eu tremia. Deslizei minhas
mãos em suas calças e acariciei a dureza quente de seu eixo.
Eu queria senti-lo dentro de mim, deslizando para dentro e para fora. Eu
queria a prova definitiva de que ele era meu e que eu era dele, já estava mais
do que aquecida, escorregadia e pronta. Todas as minhas angústias saíram
pela janela, e apenas me esfreguei contra ele, provando sua pele e
ronronando. Ele beijou meu pescoço, deslizando a língua pelos pontos
sensíveis e então ele se perdeu também. De alguma forma, entrelaçados,
descemos os degraus do sótão para o corredor.
Tínhamos feito sexo centenas de vezes. Nós tínhamos tentado dezenas de
posições, desafiamos nossa elasticidade, havíamos aprendido como e onde
tocar para fazer um ao outro gemer e ofegar e atrasar o prazer um do outro até
que a doce antecipação do orgasmo se tornasse quase tortura... e nós não
usamos nenhum desses truques dessa vez. Fizemos amor na testada e
157
aprovada posição missionário ali mesmo no hediondo carpete roxo do
corredor, desajeitados e impacientes, tateando como dois adolescentes
virgens presos numa corrida altruísta para fazer o outro feliz.
Foi o melhor sexo que eu já tive.
Meus olhos se abriram. Estávamos deitados no corredor. O braço de
Raphael em volta de mim. O carpete debaixo de nós cheirava a sexo e
plástico.
O teto estava impregnado de sombras. As cortinas de Raphael estavam
abertas e elas caíam dos dois lados da janela. O luar inundava a cidade e
atingiu a treliça de barras de aço e prata na janela, deixando-a brilhando
suavemente. A magia estava em alta.
Eu olhei para o relógio. Duas da manhã, mal tive uma hora de sono.
Algo me acordou.
Um ruído estrondoso rolou pela casa.
Meu corpo foi de sonolento e cansado para alerta total em meio segundo.
Ao meu lado, Raphael sentou-se.
O som veio novamente, um tom baixo e profundo como um rugido
abafado de um enorme crocodilo misturado com o rugido de um touro.
A janela.
Fiquei em pé rapidamente e corri para a janela. Raphael chegou lá ao
mesmo tempo. Nos escodemos ao lado da parede, opostos da moldura da
janela e afastamos as cortinas.
Ammit estava lá embaixo, a cabeça enorme com a boca comprida
levantada. Seus olhos olhavam para nós. Não parecia hostil. Simplesmente
esperando.
Raphael e eu trocamos olhares.
Ele abriu a janela aberta. — Olá.
Ammit olhou para nós.
— Xôôô! Vá embora, garota! —Eu disse.
— Menina?
— Kate disse que é do sexo feminino.
— O que é isso?
— É um demônio egípcio que devora almas.
Raphael suspirou. Um suspiro que dizia ‘Estou tão cansado dessa
merda’, que me fez querer abraçá-lo.
Ammit olhou para nós.
— Se eu tivesse um arco, —eu murmurei. — Eu poderia atirar nos olhos
daqui. Boom, flecha direto para o cérebro.
— Seu arco está na mesa no andar de baixo. Você gostou dele?
— É a coisa mais linda do mundo. —Além dele e o bebê Rory.
— Estou muito feliz.
— Como você conseguiu um?
Ele sorriu para mim, aquele sorriso bonito e ligeiramente maligno de
Raphael. — É segredo.
Desci as escadas para pegar o arco. Quando voltei, Raphael ainda estava
junto à janela. — Pode passar pela porta para chegar até nós, se quiser, —
disse Raphael. — Então, por que não fez ainda?
Nós olhamos para Ammit.
— O que foi, garota? —Raphael perguntou, sua voz persuadindo. —
158
Timmy caiu do poço ?
Ammit não disse nada.
— Seria loucura ir até lá, —disse Raphael.
— Teremos que ser loucos.
Coloquei minhas calças, meias e tênis. Raphael tirou duas camisetas
limpas do cesto de roupas limpas e jogou uma para mim. Peguei minha arma,
ele pegou as facas e descemos as escadas.
Lá fora a noite estava clara. Um vapor claro azulado subia dos pedaços de
concreto que compunham a parede baixa ao redor da casa, algo mágico deve
ter chegado junto com o luar. Preparei meu arco e nós nos esgueiramos pelo
prédio, nos movendo silenciosamente, andando com cuidado nas pontas dos
pés.
Degrau.
Outro passo.
Virei a esquina e me aproximei dela, a ponta da minha flecha tocando o
nariz de Ammit, pronta para ser usada. É incrível o quanto longe o outro pode
pular para trás, se estiver devidamente motivado.
Raphael passou por mim e se aproximou da fera enorme. Nós tínhamos a
matado. Eu ainda podia lembrar do seu cadáver em minha mente, fresco e
vívido, o sangue, os olhos entorpecidos, a grande boca escancarada sem vida,
derramando a língua no chão. Ainda assim, ali estava ela.
Raphael estendeu a mão.
— Não, —eu avisei.
Ele tocou sua cabeça, acariciando sua bochecha. Os tentáculos da juba de
Ammit se voltaram para ele e deslizaram inofensivamente em sua mão.
A fera suspirou. Duas nuvens de vapor úmido escaparam de suas narinas.
Ela não abriu a boca de crocodilo e mordeu a mão de Raphael.
Lentamente, Ammit virou-se, avançou alguns passos e olhou para nós por
cima do ombro musculoso.
Só podes estar de brincadeira comigo.
— Não.
As mandíbulas escancaradas e o rugido rolou para trás, primitivo e antiga,
muito mais velho do que a cidade em torno dela, tão estranho que eu me
perguntei por um segundo se Atlanta iria desaparecer sob a força dessa
chamada primitiva, como uma ilusão, e eu acabaria de pé em uma nas águas
lodosas e ricas do Nilo. Eu quase podia ver os juncos altos e delgados se
mexendo na brisa da noite.
O rugido cantou em minhas veias, me incentivando a segui-lo.
Ammit deu um passo à frente e olhou para nós.
— Tem certeza que deveríamos segui-la? —Eu murmurei.
159
Raphael deu de ombros. — Tudo bem, Lassie . Siga em frente.
A grande fera começou a descer a encosta e seguimos. Ammit aumento a
velocidade de seus passos em um trote rápido. Nós corremos pela cidade
encharcada de magia. Meu corpo estava recuperando, e nós devoramos a
distância, engolindo vários quilômetros facilmente.
Tentáculos finos de um vapor laranja subiam da besta, saindo de sua crina
e costas. Sua magia me envolveu. Parecia tão certo, correndo assim, caçando
assim, ao lado de Raphael. Esbelto, musculoso, a camiseta branca moldada
em seu corpo, ele corria com graça e poder, suas longas pernas em calça de
moletom cinza do Bando carregando-o para a frente. Sua pele quase brilhava.
O suor umedeceu seu cabelo escuro. Seus olhos escuros se concentraram em
algo muito à frente.
Por alguns momentos o arco composto na minha mão parecia ser feito de
chifre, madeira e couro. A enorme camiseta branca que Raphael me deu
parecia ser uma túnica. O asfalto debaixo dos meus pés parecia ser areia ou o
160 161
solo vermelho seco de colinas baixas. O ar cheirava a lótus e ninfeia e,
162
às vezes, a jasmim encharcado de orvalho e depois a deserto seco.
Ammit parou e eu quase chorei. Queria continuar correndo.
A realidade voltou, a ilusão desaparecendo através da magia. Nós
estávamos na frente do escritório da Cutting Edge.
A magia de Ammit girou em torno de nós, evaporando-se lentamente,
como notas distantes de perfume se dissipando da pele.
Um outro Ammit trovejou pela rua em nossa direção, um enorme cavalo
preto seguindo-o. Roman desmontou ao nosso lado, com o cajado na mão.
Ele usava uma calça e blusa de pijama preta com o personagem de desenho
163
animado Bisonho estampado nela.
— Eu já tive o suficiente dessa merda, —anunciou ele. — Acordei no
meio da noite, não consegui dormir de novo, andei por toda a maldita cidade,
nu na cherta mne ato nuzhno. —Ele acenou com a mão na frente de seu
rosto. — Magia maldita por todos os lugares, me fazendo espirrar.
O Ammit ao lado dele abriu a boca. Roman bateu com o topo do seu
cajado no nariz. — Cale-se você também.
O Ammit parecia com um gato que havia sido atingido por um rolo de
jornal: meio chocado, meio indignado. Roman analisou nós dois. — Qual é o
problema com vocês dois? Por que você parece toda aturdida?
A magia recuou, levando as visões do Nilo com ela. Minha mente lutou
para formular um pensamento coerente, qualquer pensamento. Abri minha
boca. — Seu pijama tem o bisonho desenhado nele.
— Eu gosto do bisonho. Ele é sensato. Uma visão sóbria da vida nunca
faz mal a ninguém.
Raphael balançou a cabeça, tentando limpá-lo. — O que você está
fazendo aqui?
Roman fez uma careta. — Como eu iria saber? Ontem à noite eu ajudei
Andrea e então uma coisa alada levou meu cajado, e hoje eu acordei com esta
praga uivando debaixo da minha janela.
Raphael se virou para mim. — Noite passada? Depois de te ligar?
— Sim.
— Por que você não me ligou para eu te ajudar?
— Por que eu ligaria para você? Você não é um mago.
As rodas giraram lentamente na cabeça de Raphael. Ele olhou para
Roman. — Há quanto tempo você está ajudando ela?
O rosto de Roman assumiu uma expressão perigosa. — Sinto muito,
desde quando lhe devo satisfação?
Os dois homens se enfrentaram. Ótimo. Eu mexi na fechadura da porta do
escritório. Destrancada.
Raphael se adiantou. Roman também. Eles ficaram perigosamente perto.
— Eu fiz uma pergunta, —disse Raphael, sua voz saturada de ameaça.
A voz de Roman ficou gelada. — E eu te disse para ir se foder. Qual parte
não estava clara?
— Ei! —Gritei.
Eles olharam para mim.
— A porta está aberta, —eu disse. — Vocês podem ficar aqui fora e
passar a noite inteira comparando o tamanho dos seus paus, mas eu vou
entrar.
Abri a porta e atravessei a entrada.
O escritório estava banhado em um suave brilho amarelo. O ar cheirava a
mirra doce, canela queimada, bálsamo e a mistura esfumaçada e
condimentada de tomilho e manjerona. O aroma pungente não parecia flutuar
de forma agradável, mas saturando a sala, pesando o ar, enchendo o lugar.
Entrei. Minha mesa e de Kate estavam desaparecidas. Quatro braseiros,
pratos de bronze preenchidos com algum tipo de combustível em hastes altas
de metal, queimavam brilhantes, colocados em ambos os lados de uma
grande cadeira. Na cadeira estava Anapa. Ele descansava a bochecha na mão
com o cotovelo curvado e apoiado no braço da cadeira, uma perna longa
dobrada sobre a outra.
Chamas brincavam em seus olhos. Ele parecia uma figura absurda,
sentado em sua sala do trono improvisada, vestindo um terno preto de três
peças. Parecia que possui esse lugar.
Cruzei meus braços. — Adorei a reforma. A sala tem muito mais espaço
agora. Quanto lhe devemos?
— Quem é você? —Roman perguntou atrás de mim.
164
— Ele é Anúbis , Deus dos Mortos, —eu disse a ele.
165
— O nome é Inepu , —disse Anapa, soando a meio caminho entre
Anapa e Enahpah. — Os gregos não se deram ao trabalho de pronunciá-lo
corretamente. Eu sempre achei eles muito próximos. Não siga o exemplo
deles, você é melhor que isso.
— Você não é um deus, —disse Roman. — Deuses não podem andar na
Terra. Não tem fluxo de magia suficiente. —Ele se virou para mim e para
Raphael. — Confie em mim, já tentei invocar um.
— Por que diabos você convocaria um deus? —Raphael perguntou.
— Ele estava tentando matar seu primo, —disse Anapa.
— Isso foi há muito tempo. —Roman acenou com a mão.
Os lábios de Anapa se curvaram e ele deu um sorriso genuíno e brilhante,
cheio de humor. — Não, isso foi em maio passado.
— Como eu disse, há muito tempo, —disse Roman.
Anapa riu e apontou o dedo para Roman. — Eu gosto de você.
— Você é um deus? —Raphael perguntou.
Anapa acenou com a mão. — Sim e não. A resposta é complicada.
Ceeeerto, e nós éramos muito estúpidos para entender. — Tenho certeza
de que podemos juntar células cerebrais suficientes entre nós três. Nos delicie
com a sua explicação.
— Não há necessidade de tamanha hostilidade, Andrea Marie. Eu não sou
seu inimigo. Bom, ainda não.
Então ele sabia meu nome do meio. E daí?
Anapa encolheu os ombros. — Suponho que vou explicar isso para vocês,
então vocês vão parar de me importunar sobre isso. Temos assuntos
importantes para discutir e precisamos da atenção total de vocês. Quando a
magia começou a desaparecer do mundo, tomei uma forma mortal e fui pai de
uma criança, despejando toda a minha essência nela. Então eu adormeci. Meu
filho, por sua vez, teve um filho, e este teve um filho, e assim por diante.
Minha linhagem se estendeu ao longo do tempo, até que a magia retornou e
me acordou. Como vocês sabem, eu pairava à beira da existência até que um
dos meus descendentes decidiu fazer o que a maioria dos homens faz e
procriou com uma mulher encantadora. Eu chamei a minha essência dentro
da linhagem e fundei-me com a vida inicial durante o momento da
concepção. De certo modo, eu me criei. Você poderia dizer que eu sou um
166
avatar . Foi um truque legal, hein? —Ele piscou para nós.
A parte humana dele o mantinha vivo durante a tecnologia. Isso também
significava que ele era mais fraco enquanto a magia estava fora. Fraco era
bom. — Pensei que você fosse parecer mais egípcio, —eu disse a ele.
— E como você acha que os egípcios originais pareciam? —Anapa
ergueu as sobrancelhas. — O que sabe de nós? Você estava lá no nascimento
do Egito glorioso? Estava lá para assistir enquanto nos misturávamos com
núbios, hititas, líbios, assírios, persas e gregos, sua pequena insignificante?
Cores, pigmentos, textura de pele e de cabelo, essas coisas são meros
vernizes. O vaso embaixo é sempre de barro.
Isso estava acima dos meus conhecimentos. — Roman?
— Ele pode ser um maluco, —disse Roman. — Se está dizendo a
verdade, não está em plena força.
Anapa suspirou. — Tão cansativo. Muito bem.
O vento varreu o escritório, fluindo de trás de Anapa, quente, pesado de
umidade, coberto de decomposição, o cheiro de vinho temperado e aromas
inebriantes de resinas. As chamas se afastaram de Anapa. Um chacal uivou,
um gemido longo e estranho que agarrou minha garganta em um punho
fantasmagórico e apertou.
O homem na cadeira inclinou-se para a frente. Um contorno translúcido
brilhou ao longo de sua pele, expandido, e uma criatura diferente se sentou no
lugar de Anapa. Ele era alto, de pernas compridas e magro. Uma rede de
músculos ligava seu torso, nitidamente definidas, mas longe de ser volumosa.
Sua pele era um marrom quente e rico com um toque de terracota.
Seu rosto com seus grandes olhos castanhos era lindo, mas não era o tipo
de beleza que você queria tocar, irradiava muito poder, muito desdém régio.
Quando ele olhou para nós, os contornos de sua cabeça corriam como cera
derretida. Seu nariz e mandíbula se projetaram para frente e se estreitaram
para um nariz escuro. Duas longas orelhas se ergueram.
O pelo preto e cinza cobria seu rosto. O flash de presas brancas em sua
boca era como um raio.
Magia fluiu dele, potente, poderosa e esmagadora.
Ele se levantou da cadeira, uma aberração, um homem com um torso
humano e uma cabeça de chacal. Do lado de fora, os dois Ammits rugiram
em uníssono. A pressão de sua magia era impossível de suportar.
A ilusão quebrou. Percebi que tinha esquecido de respirar e suguei o ar
em um gole rouco.
Anapa sorriu para mim, sentando-se novamente em sua cadeira, lânguido
e levemente divertido. — Agora, que temos isso resolvido, vamos conversar.
Eu tenho um assunto a tratar com você. Na verdade, todos vocês três.
Raphael deu um passo à frente. — Eu vou reembolsar você pela besta.
— Aquela que você matou? —O rosto animado de Anapa ficou confuso.
— Ah, não há necessidade. Eu a ressuscitei no momento em que a onda
mágica apareceu, mas gostei muito da sua batalha. Uma impressionante
demonstração de pensamento estratégico. —Ele olhou para mim e depois
para Raphael. — Você e você, vocês trabalham bem juntos. —Ele se virou
para Raphael. — Exceto no final, quando vocês dois brigaram um com outro.
Um músculo se apertou no rosto de Raphael.
— Não se preocupe. —Anapa franziu o nariz. — Acontece com os
melhores de nós.
Raphael deu um passo à frente. Eu coloquei minha mão em seu
antebraço.
Anapa esfregou as mãos juntas. — Que tal eu demostrar ao invés de só
falar?
O chão do escritório entre ele e nós ficou mais claro. Figuras estilizadas
formadas em sua superfície.
— Legal, não é? —Anapa sorriu. — Eu tirei essa ideia dos filmes antigos.
Então, ouçam e observem. Por favor, sintam-se à vontade para sentar, se
desejarem.
Figuras marrons desciam das colinas em direção ao rio azul.
— Esses seriam os pastores de gado egípcios antigos. O clima mudou, e
todos os campos de grama estavam secando, então eles tinham que retornar
para o Nilo. Olhe para eles, estão muito tristes.
As figuras caíram de joelhos e começaram a beber das águas do Nilo. Do
outro lado da margem, um segundo grupo de figuras começou a atirar pedras
nos recém-chegados.
— Essas são as pessoas que permaneceram no vale. Eles não queriam os
pobres pastores de gado lá.
Vejam, estavam todos chateados.
Uma das figuras segurava um cajado torto.
Uma enorme cabeça triangular saiu da superfície da água. Uma enorme
serpente marrom e amarela saiu do Nilo e começou a se alimentar dos recém-
chegados.
167
Anapa se inclinou para frente. — Isso é Apep . O deus do rio. Os
moradores do vale os adoravam, então Apep não iria comê-los. Ele é um
sujeito desagradável.
Os corpos comidos e desmembrados dos antigos egípcios caíram na água.
— Mas quem são esses?
Quatro figuras apareceram, agitando espadas e lanças. Um tinha cabeça
de falcão, o segundo tinha cabeça de gato, o terceiro de chacal e o quarto
parecia um cruzamento bizarro entre um burro e um porco-da-terra.
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— Esses são Rá , sua filha Bastet , eu e Set .
— Eu conheço esse mito, —disse Roman. — Foi Rá quem a matou.
Anapa olhou para ele com uma leve indignação. — Desculpe-me, mas
você estava lá? Não. Então cale a boca. Claro, os mitos dizem que Rá a
matou. Isso é o que você ganha quando é um deus do sol e as plantações
dependem de você, meu amigo. Olha, eu vou provar para você. —Um mural
antigo apareceu na parede, mostrando um gato amarelo manchado parecido
171
com um gato da montanha esfaqueando uma cobra com uma lâmina curva .
— Supostamente isso seria Rá matando Apep se não fosse um pequeno
problema: Rá tem uma cabeça de falcão nos ombros. Ele não se transforma
em um gato, exceto uma única vez. Tenha isso em mente. Agora onde
estávamos?
As quatro figuras atacaram a serpente, cortando-a com estranhas espadas
curvas e cutucando-o com lanças. A serpente se agitou, derrubando-os e
mordendo seus corpos. Finalmente aquele que se parecia com Anúbis na
imagem se transformou em um enorme chacal e mordeu o pescoço de Apep,
apertando-o. As outras três figuras correram para ele. A cobra convulsionou,
derrubando todos, exceto Bastet. A gata ágil pulou sobre o corpo agitado e
esfaqueou a serpente no coração.
— Então, por que os mitos dizem que Rá o matou? —Roman perguntou.
— Porque os sacerdotes eram homens e não podemos ter o grande
inimigo sendo morto por uma garota, não é mesmo?
Anapa piscou para mim. — Textos sagrados são escritos por delegações
de sacerdotes, e Rá tinha mais seguidores. Seu culto era mais forte. Ele é o
sol, o doador de vida, enquanto Bastet era apenas a protetora do Baixo Egito.
Ela costumava ser uma leoa. Muito feroz. Mas os sacerdotes ao longo dos
cultos a transformaram em uma gatinha doméstica. Levou-lhes mil anos ou
mais, mas eles aleijaram a leoa.
Um clarão de luz explodiu do corpo de Apep, derrubando as quatro
figuras.
— Olhe para nós, todos nocauteados. —Anapa sorriu. — Muita mágica é
liberada quando você mata um deus. Olhe para mim lá. Eu só tenho uma
presa? Lembrei-me! A outra quebrou no pescoço da cobra. Demorei dois dias
para nascer uma nova.
A luz desapareceu. Os quatro deuses ainda estavam deitados no chão.
Pequenas figuras subiram em Apep, cortando seu corpo em pedaços.
— Quem são eles? —Perguntei.
— Saii. Seus sacerdotes. Eles estão tentando salvar partes de Apep.
Aquele pegou uma escama. E este tem uma vértebra.
— Aqueles quatro estão comendo o cadáver. —Raphael apontou para as
quatro figuras agachadas ao lado de Apep.
— Eles estão devorando sua carne, então ela viverá através deles.
Trabalho desagradável.
Uma última pessoa arrancou as presas de Anúbis do cadáver de Apep e as
figuras fugiram.
— Claro, nós os perseguimos, mas eles foram astutos, —disse Anapa. —
Eles se espalharam aos quatro ventos pelo mundo, na esperança de
finalmente reunir e ressuscitar seu deus algum dia. —Anapa bateu palmas. A
imagem do mural desapareceu. — E isso nos leva à nossa atual calamidade,
cavalheiros e a dama, é claro.
O deus sorriu e apontou para Raphael. — Você me custou minha presa.
Foi mergulhada em metal e feita para parecer uma faca, mas por dentro ainda
é meu dente com o sangue de Apep nele. Estava no cofre daquela maldita
ruína e você teve que comprar debaixo do meu nariz. —Ele se virou para
Roman. — Você perdeu o cajado esculpido nas vértebras de Apep e sua
costela. Eles a esconderam em uma sala cheia de artefatos mágicos, então a
magia desses artefatos iria esconder a localização do cajado de mim. Você
achou, tirou, e em vez de transportá-lo em algum lugar seguro, você
praticamente deu de volta para eles em uma bandeja de prata. Sua própria
relíquia sagrada. Aqui está o seu prêmio pela estupidez. Parabéns.
Roman abriu a boca e fechou-a.
Anapa se virou para mim. — E você ajudou os dois, enfiou o nariz onde
não era de sua conta, colocou outras bolas de pêlo me seguindo por aí,
tornando minha vida difícil por toda parte. Eu não posso me mover pela
cidade, porque há dois dos seus amiguinhos me seguindo como uma cauda
segue um cachorro. E metade do tempo, um deles é um gato. Você tem
alguma ideia do quanto eu desprezo os gatos?
Anapa respirou longa e calmamente. — Neste momento, os sacerdotes de
Apep tem o cajado, a presa e, provavelmente, pelo menos alguns
descendentes do Saii, os quatro sacerdotes que participaram dessa
gastronomia criativa. Então a questão é: o que vamos fazer sobre isso?
— O que acontece se Apep for ressuscitado? —Perguntou Raphael.
— Bem, vamos rever. —Anapa recostou-se. — Ele é o deus das trevas,
do caos e do mal. Vamos concordar em deixar de lado os conceitos
filosóficos do mal e do bem e como eles são subjetivos. O que é mal para um
é bom para outro. Vamos conversar sobre o caos. O caos, como dirá o nosso
sacerdote aqui, é uma força extremamente poderosa. Algum de vocês sabe o
172
que é um fractal ?
Roman levantou a mão.
Anapa fez uma careta. — Eu sei que você sabe. Aqui.
Um triângulo equilátero escuro acedeu no chão.
Anapa acenou com a mão. Um triângulo equilátero menor apareceu no
meio do mais escuro, seus cantos tocando os lados do triângulo original.
— Quantos triângulos? —Perguntou Anapa.
— Cinco, —eu disse. — Três escuros, um claro no meio e o maior.
— Novamente, —disse Anapa.
Um triângulo claro menor apareceu no meio de cada triângulo escuro.
— Novamente. Novamente. Novamente.

Ele parou, apontando para a filigrana de triângulos no chão. — Eu


poderia continuar até o infinito. Em termos básicos, um fractal é um sistema
que não se torna mais simples quando analisado em níveis cada vez menores.
Mantenha isso na sua cabeça.
Um sistema que não pode ser analisado em componentes básicos. Certo,
entendi.
Anapa se inclinou para frente. — Para entender o caos, você precisa
entender a matemática. Muitas civilizações, a maioria de qualquer
civilização, na verdade, é construída sobre a análise matemática, cujo
princípio orientador é que tudo pode ser explicado e entendido, se você
apenas dividi-lo em partes pequenas o suficiente. Em outras palavras, tudo
tem um fim. Se você cavar fundo o suficiente em qualquer sistema complexo,
você acabará descobrindo suas partes mais simples, que não podem ser
divididas ainda mais. Esse tipo de pensamento funciona para muitas coisas,
mas não para todas elas. Por exemplo, o fractal. Não tem fim.
Eu senti como se estivesse de volta à Academia da Ordem em alguma
palestra. — Isso é surreal.
— O fractal? —Perguntou Anapa.
— Você. Explicando tudo isso.
Anapa deu um longo suspiro de sofrimento. — O que você sabe sobre
mim?
E agora eu fui expulsa para fora da aula. — Você é a divindade dos ritos
funerários.
— E o que mais?
Umm …
— Medicina. A exploração da biologia e metafísica. Conhecimento. Esta
é minha principal função. Eu transmito conhecimento. Eu ensino. Não se
pode simplesmente dar fogo ao homem. É como dar a uma criança uma caixa
de fósforos, ele vai incendiar a casa. Você deve ensiná-lo a usar. —Anapa
sacudiu a cabeça. — De volta ao fractal. Isso não pode ser explicado pela
análise matemática, então a humanidade, como tantas vezes fez, declarou que
era uma curiosidade matemática e a jogou para debaixo do tapete. Exceto que
o fractal aparece sempre.
Uma minhoca apareceu no chão do escritório.
— Uma linha, —disse Anapa. — Tão simples.
Ele cortou o ar com o dedo. A minhoca dividiu em duas. Dois se
tornaram quatro, quatro se tornaram oito, oito se tornaram dezesseis e assim
por diante. Um enxame de vermes se agitou e se contorceu no chão.
Anapa avaliou o nó dos corpos. — Deixado à vontade, a natureza é
padronizada para um fractal. Um assentamento humano é um fractal. É um
sistema complexo com componentes aleatoriamente interativos que é
adaptável em todos os níveis. O padrão da evolução de uma única célula para
um organismo complexo é um fractal. A maneira como o homem aborda sua
busca pelo conhecimento é um fractal. Pense nisso: biologia, o estudo das
coisas vivas. Um conceito simples.
Uma linha reta apareceu no chão.
— Como o homem acumula conhecimento, o volume de informação
torna-se demais. Ele sente a necessidade de subdividi-lo.
A linha dividia-se em três ramos marcados com rótulos: zoologia,
botânica, anatomia e depois dividida novamente. Botânica se dividiu em
horticultura, silvicultura, morfologia vegetal, sistemática das plantas. A
zoologia dividiu-se em zoológica morfológica e sistemática, depois em
anatomia comparativa e sistemática, fisiologia animal, ecologia
comportamental ... Continuou construindo e construindo, dividindo,
crescendo, ramificando-se, muito rápido e esmagador ...
— Faça-o parar. — Nem percebi que eu disse, até que ouvi minha boca
produzir as palavras.
A linha desapareceu.
— E esse é o cerne do nosso problema, —disse Anapa, sua voz
contemplativa. — O homem não consegue lidar com o caos. Ah, você pode
entender isso de forma abstrata, contanto que você não pense muito sobre
isso. Mas no centro disso, sempre que os seres humanos vêm contra o caos,
eles lidam com esse problema de três maneiras. Eles o escondem, fingindo
que não está lá. Eles o vestem com algo diferente e interessante. O deus dos
hebreus é um fractal. Ele pode fazer qualquer coisa, ele sabe tudo, ele é
infinito em seu poder e complexidade. Ele é um fractal, então a humanidade
sentiu a necessidade de compartimentalizá-lo. Eles não abordam o conceito
de frente. Eles andam na ponta dos pés contando pequenas fábulas e anedotas
sobre sua divindade, e então, quando foram pressionados novamente, eles
inventaram um novo aspecto dele, seu filho, que vem com uma mensagem
mais simples e definitiva de amor infinito.
Anapa ficou em silêncio.
— Você disse que havia três maneiras, —disse Raphael.
— Eu disse, não disse? Diante do caos, você irá ignorá-lo, dançar em
torno dele ou enlouquecerá. Apep é o caos. Ele é uma expressão primordial
de um princípio fundamental, um fractal, uma força e não uma divindade.
Haviam sacerdotes do Egito que o adoravam ao contrário apenas para mantê-
lo afastado.
— Como você adora algo ao contrário? —Perguntou Rafael.
— Deixe-me dizer-lhe: uma vez por ano eles se juntavam, faziam uma
falsa Apep, e em uma grande festa e o queimavam com grande cerimônia.
Existem regras reais sobre como corrompê-lo corretamente. Primeiro, cospe-
se na Apep. Então pisa-se nele com o pé esquerdo. Então usa-se uma lança
para esfaquear Apep e assim por diante. Vê como eles tentaram impor ordem
ao caos através de um ritual complexo?
Anapa se inclinou para frente. — Se eu deixar, Apep vai enlouquecer a
humanidade. Você vai se transformar em um bárbaro primitivo onde nada irá
importar, exceto a adoração de Apep em sua forma mais rudimentar. Vocês
abandonarão a razão e a lógica e alimentarão a ele aos milhares como os
idiotas que são.
O contorno da sombra da cabeça de um chacal se espalhou ao redor da
cabeça de Anapa. Seus lábios escuros tremiam, revelando um vislumbre de
suas presas. — Então você vê, eu tenho um interesse neste empreendimento.
Na presença de Apep, nenhum outro deus pode existir. Eu quero impedir sua
ressurreição, e se ele conseguir ressuscitar, eu tenho que matá-lo novamente.
E vocês três irão me ajudar.
O silêncio reinou. Minha mente lutou para se equilibrar. Muita
informação para processar. — Se Apep é tão terrível, por que eles querem
ressuscitá-lo?
— Porque eles são aberrações, —disse Anapa. — Eles são diferentes dos
outros. Crescem presas de cobra em suas bocas, têm mandíbulas que se
abrem demais e são rejeitados pelos outros seres mágicos. Procuram algo ou
alguma coisa para pertencer. Querem saber de onde vieram e querem se
orgulhar de quem são. Provavelmente acham que Apep irá protegê-los e ele
irá. É apenas o resto da humanidade que estará em seu cardápio.
— Eu quero o cajado, —Roman disse de repente.
— Humm? —Anapa olhou para ele.
— Eu quero o cajado, —repetiu o Volhv negro. — Se eu participar disso,
você não irá me machucar e irá me dar o cajado de ossos que pertence ao meu
povo.
— Tudo bem. —Anapa acenou com a mão.
Eu olhei para Roman. — O que você está fazendo?
— Eu estou impondo ordem em um fractal, —disse Roman. — Se eu
definir os termos da barganha, ele está vinculado obrigatoriamente a eles e
não pode me machucar.
Anapa recostou-se e riu.
Raphael se adiantou. Seu rosto estava sombrio e vi determinação no
conjunto de sua mandíbula. Ôu-ôu!
— Se tinha um problema comigo sobre a faca, por que você não pediu a
faca? —Raphael disse.
— Porque quanto menos você soubesse sobre essa bagunça, melhor, —
disse Anapa. — Dada a metade de uma chance, os humanos irão estragar as
coisas, como vocês três provaram isso tão habilmente.
— Então você deliberadamente me manteve sem saber de nada, e agora
quer me culpar pela minha ignorância? Isso não é justo.
O olhar de Anapa se fixou nele. — Eu sou um deus. Não faço nada justo.
Raphael olhou para mim. — Você tem um problema comigo, tudo bem.
Deixe-a fora disso. Ela não fez nada para você.
— Não, —disse Anapa.
Ah, Raphael. Por que você acha que eu aceitaria isso?
— Se você quer minha ajuda, deixe-a fora dessa bagunça. —Raphael
rosnou.
Anapa sacudiu a cabeça. — Não.
— Por quê?
A cabeça de chacal fantasmagórica apareceu ao redor de Anúbis. —
Quem é você para me questionar?
Os lábios de Raphael tremeram, revelando um flash de seus dentes. —
Ela fica livre, sem obrigação de participar do seu esquema. Esse é o meu
preço.
— Rejeitado.
Eles se encararam. Músculos ficaram tensos no corpo de Raphael. Eu
cheirei uma briga.
Um terço de mim queria arrancar a cabeça de Raphael pelo insulto. Eu era
perfeitamente capaz de me cuidar. Eu não precisava da ajuda dele para me
libertar, nem precisava do grande sacrifício dele. Um outro terço estava todo
arrebentando de alegria: ao encarar um deus, seu primeiro pensamento não
foi salvar-se, mas manter-me segura. Ele estava disposto a lutar contra um
deus do caos para me manter fora dessa bagunça. O último terço de mim
apenas uivou em terror cego, apavorada por minha segurança, e ainda mais
aterrorizada pelo idiota bouda que estava tentando comprar minha vida com a
dele.
E em poucas palavras meu relacionamento com Raphael era: muito
complicado.
Se eu não fizesse alguma coisa, o bobo se jogaria na fogueira. Na minha
cabeça, vi Raphael enterrado sob uma pilha de cobras. Era como uma adaga
no coração.
Não, não, não, não. Não está acontecendo.
Eu limpei minha garganta. — Meninas, meninas, vocês são adoráveis. Eu
aprecio o sentimento, realmente faço. Mas tomarei minhas próprias decisões
e vocês dois gentilmente sairão do meu caminho.
Raphael parecia que queria morder alguma coisa. Um sorriso auto
satisfeito brincou nos lábios de Anapa. Eu não gostei. Nem um pouquinho.
— Tenho uma contraoferta, —eu disse. — Você me leva e deixa Raphael
ir. —Não há necessidade de nós dois sermos mortos.
— Negado, —disse o deus. — Isso está ficando cansativo.
Aaaaaaa! — O que é que você quer de nós, exatamente?
— Os sacerdotes têm minha presa, o cajado e os descendentes do Saii.
Eles não têm ainda a escama. Foi feito em um escudo com ela. Preciso que
você compre antes dos sacerdotes.
— Por que você mesmo não faz isso? —Perguntou Raphael.
— Porque eu sou um deus. Eu não posso fazer minhas próprias tarefas.
— Você sabia que ele era um deus? —Raphael me perguntou.
— Eu não fazia ideia. Ele não mencionou isso, —eu disse.
— Tão modesto e despretensioso, —disse Raphael.
— Eu vou matar vocês dois e fazer tapetes bonitos de suas peles, —disse
Anapa. — Pare de ser cansativo e consiga a escama para mim.
Simples o suficiente. — Onde ela está?
— Pergunte a sua amiga, —disse Anapa. — Pergunte a Consorte do
Senhor das feras.
— Kate? —Como diabos Kate estava envolvida nisso?
— Sim. Diga a ela para trazer outro cervo. Ela vai saber.
— Não vou mover um dedo, a menos que você me dê instruções claras e
simples, sem essa besteira mística.
— Não é assim que trabalho, —disse Anapa. — Você aceitar as suas
instruções na forma que eu escolher.
— Então eu estou fora. —Pense melhor, porque não vou fazer o que você
quer.
— Essa é a sua última palavra? —Disse Anapa.
— Sim.
— Bem. Então faremos isso da maneira mais difícil.
Uma garota saiu do quarto dos fundos. Não poderia ter mais do que sete
ou oito anos. Ela se moveu lentamente, como se não tivesse certeza de onde
seus pés estavam. Seus olhos, escuros e arregalados, estavam em branco. Sua
pele escura tinha um tom de cinza.
Fiquei tensa. Ao meu lado, Raphael dobrou os joelhos ligeiramente,
preparando-se para um salto.
— Essa é a Brandy.
Brandy olhou para nós com os olhos vazios.
— Brandy é uma metamorfo como você. Do Clã Chacal. Os chacais e eu
compartilhamos um certo vínculo. —Anapa estudou as unhas, parecendo
entediado. — Eu a peguei aleatoriamente. Seus pais estão procurando
freneticamente por ela agora, imagino. Por que você não conta como se sente,
Brandy?
A criança abriu a boca. — Socorro, —disse uma voz fraca e minúscula.
— Ajude-me.
Eu arranquei o arco do meu ombro e apontei uma flecha para o olho
esquerdo de Anapa. Raphael se libertou em uma explosão de pelos e
músculos, rosnando quando o monstro que era um bouda em forma de
guerreiro apareceu.
— Deixe a criança ir. —Eu afundei a promessa da morte em minha voz.
— Ou você faz o que lhe foi atribuído ou eu todos os dias irei levar outra
criança chacal, —disse Anapa. — Se o leão se envolver, as crianças morrem.
Se algum dos seus outros amigos do Bando te ajudar a lutar, as crianças
morrem.
Eu atirei. Minha flecha perfurou a madeira da cadeira uma fração
de segundo antes das garras de Raphael chegarem nela. A criança e o
deus foram embora.

Capítulo 13
O telefone do escritório estava morto.
Roman foi embora ‘para coletar suprimentos’.
Anapa disse que os metamorfos não poderiam nos ajudar a lutar. Ele não
disse nada sobre nós contar ao Bando o que estava acontecendo. Os Chacais
tinham que ser avisados. Mudei de forma, e Raphael e eu corremos para a
noite.
Atravessamos o decrépito distrito industrial, movendo-nos no máximo da
velocidade que um metamorfo podia. Ruínas passavam por nós, escuras,
negras e sombrias, como naufrágios assombrados de navios antigos.
Armazéns eviscerados com vigas de aço empurrando-se para fora, conchas de
veículos, cavernas traiçoeiras de concreto escondendo coisas famintas com
olhos brilhantes, nascidos da magia e famintos por uma explosão de sangue
quente em suas línguas. As bestas apareciam, mas não se aproximavam. Elas
nos reconheciam pelo que éramos, predadores construídos para caçar, matar e
devorar, e agora nenhum de nós estava com disposição para ser
misericordioso.
A cidade acabou e nós corremos ao longo da estrada em ruínas. Aqui a
natureza se revoltava, alimentada pela magia, e as árvores haviam crescido
com uma velocidade chocante, enchendo a velha estrada. Continuamos,
incansáveis, comendo os quilômetros como se fossem petiscos deliciosos. Os
lobos não detinham o privilégio exclusivo das maratonas. Éramos nós, as
hienas. Poderíamos correr para sempre.
Raphael se movia ao meu lado, tão gracioso, tão letal, cheio de beleza
feroz. Parecia tão certo correr assim, vigiando o flanco do outro. Juntos,
éramos um pequeno bando ... um casal acasalado. Se alguma ameaça
cruzasse nosso caminho, nós nos dividiríamos juntos na batalha. Eu tinha
esquecido como era esse sentimento.
A estrada nos levou a um grupo de três carvalhos. Aqui, a rodovia
principal se ramificava para uma trilha estreita com largura o suficiente para
um único veículo passar. Se não prestasse atenção você não a veria. Nós
entramos juntos.
O caminho se curvava e se contorcia, desviando pela floresta.
Um uivo de lobo surgiu na distância, uma nota pura e bela subindo para o
céu limpo. Outro respondeu.
As sentinelas do Bando anunciavam nossa chegada. Um grito de voz
profunda se seguiu, um aviso e uma declaração de propriedade em um só
uivo, um bouda deve estar de plantão hoje à noite.
Nós saímos da floresta em uma clareira. Uma estrutura maciça se erguia
diante de nós, a massa sólida e impenetrável de pedra moldada em um castelo
fortificado ou fortaleza semelhante a um castelo. Era um covil de alta
segurança, envolta em uma parede de pedra cinza, com torres, defesas, um
vasto subterrâneo e uma miríade de passagens escondidas e rotas de fuga. Um
testemunho da paranoia de Curran. Mesmo que a Fortaleza fosse sitiada,
mesmo se o cerco fosse perdido, o Bando sumiria na floresta para se reunir e
lutar outro dia.
Nós atravessamos o pátio e continuamos correndo, pela porta, pelo
corredor estreito, por uma dúzia de lances de escadas até o topo da torre, até o
andar logo abaixo dos aposentos privados de Curran. O guarda nos
reconheceu e saiu do caminho. Raphael era o macho alpha bouda. Ele
sentava-se no Conselho com a Tia B. Ninguém o impediria.
Nós corremos para o espaçoso quarto que Curran chamava de seu
escritório. O Senhor das Feras estava sentado atrás de sua mesa, olhando
alguns papéis. Kate sentada no sofá com uma expressão torturada no rosto,
segurando uma cópia do livro das leis do Bando e fazendo anotações em um
caderno.
Eles olharam para nós juntos.
— Clã Chacal está em perigo, —eu disse.
Nós nos sentamos em uma sala de conferência, ambos ainda em nossa
pele, com o Senhor das Feras, Kate, Jim, Colin e Geraldine Mather, os alfas
Chacais. Colin, um homem musculoso e corpulento, com a constituição de
um lutador e cabelos claros, inclinou-se sobre a mesa, o rosto semicerrado e
ilegível. Sua companheira e esposa sentado ao lado dele. Onde Colin era
claro, Geraldine era morena, sua pele era marrom-escura, seu cabelo era
preto, seu corpo afinado para a eficiência muscular pelo treinamento
constante.
— O nome dela é Brandy Kerry, —disse Geraldine. — Ela tem sete anos
de idade. Seus pais estão em uma viagem de negócios para Charlotte. Eles a
deixaram aqui na Fortaleza no internato na ala sul. Ela tirou uma soneca às
cinco horas com o resto das crianças de sua classe. O quarto fica no sétimo
andar. As janelas estão trancadas. Ruth, a ajudante de ensino, sentou-se à
porta, lendo um livro. No final da hora, Ruth entrou para acordar as crianças
e encontrou a cama de Brandy vazia. Ruth procurou na sala. Nenhum dos
outros sete garotos viu nada. A Brandy evaporou da cama e ninguém notou.
— O resto da equipe revistou tudo, —continuou Colin. — Todos os
quartos foram inspecionados e, para chegar à escada, ela precisava passar
pela recepcionista da escola e por um guarda, e Connie jurou que não viu
uma criança sair. Quando ficou evidente que Brandy não estava em nenhum
lugar da escola, fomos alertados sobre a situação.
De todos os clãs, os Chacais eram os mais paranoicos quando se tratava
de seus filhos. Onde os boudas estragavam seus filhos com muita liberdade e
os gatos encorajavam os filhos a fazerem viagens solitárias, os chacais
sempre davam ênfase à família. Na natureza, ao contrário dos lobos que
formavam bandos ou ratos que se juntavam em grupos muito grandes, os
chacais acasalavam por toda a vida e viviam em pares, criando seus filhos em
pequenas fatias de território.
— Eu gritei com Ruth. —Geraldine apertou a mão em um punho. —
Pensei que ela saiu ou adormeceu, e Brandy escapou.
— Nós checamos as barras nas janelas e fizemos uma varredura completa
da área de dentro e do lado de fora, —disse Colin. — Nenhum sinal dela.
— Ele levou uma bebê. —Um grunhido escorregou na voz de Geraldine.
— Ele arrancou-a da cama dela, aquele maldito bastardo. Eu vou rasgar suas
entranhas.
— Se você o confrontar, ele vai matar você e ela, —disse Kate.
Geraldine se virou para ela.
— Não é um insulto, —disse Curran. — Ela está afirmando um fato. Ele
tem poder sobre os chacais.
— Então, o que fazemos? —Geraldine levantou as mãos.
— Não fazemos nada, —disse Curran.
— Mas ...
— Não fazemos nada, —repetiu ele. — Não sabemos onde ele está
mantendo a criança, mas ele não hesitará em matá-la. Nós vamos atender suas
demandas. Por enquanto.
— Ele quer que Andrea e eu o ajudemos, —disse Raphael. — Nós
faremos.
— Nós já decidimos, —eu disse. — Enquanto façamos o que ele quer,
nenhuma criança será mais levada.
A voz de Colin se transformou em um grunhido áspero. — Então você
quer que nós nos sentemos em nossas mãos, então?
— Não, —disse Kate. — Descubram tudo o que puder sobre ele. Vá até
os livros, visite especialistas, obtenha o máximo de informações possíveis
sobre Anúbis. Descubra suas fraquezas, se ele tiver alguma. Assim que ele
nos der uma chance, nós o atingiremos com tudo o que temos.
— Nós já matamos deuses aspirantes antes, —disse Curran. — Inferno,
nós provavelmente poderíamos matá-lo agora. Mas eu não farei isso à custa
da vida de uma criança. Devemos ser pacientes e espertos. Traga seu povo
para a fortaleza. Quanto menos alvos isolados, melhor. Levante o alerta.
Ninguém vai a lugar nenhum, exceto em grupos de três. Durma em turnos,
com os guardas vigiando as crianças.
Vou reforçar as Proteções mágicas na parte sul novamente. —Disse Kate.
— Isso não vai impedi-lo, mas pode dificultar a vida dele.
Os alfas Chacais pareciam querer arrancar os cabelos.
— Paciência, —disse Curran. — Não podemos puxar essa corrente,
porque há uma criança presa à outra extremidade dela. Vamos persegui-lo
como um cervo, com toda a astúcia e cálculo que temos. Os chacais têm a
reputação de catadores, mas todos nós sabemos o que realmente são capazes.
Todos nós aqui vimos famílias do Clã Chacal derrubarem cervos e alces. Há
honra em capturar presas muito maiores do que você, especialmente se essa
presa for inteligente e difícil de capturar.
Havia uma razão pela qual Curran era o Senhor das Feras.
— Ele pode ser um deus, —Curran continuou, — mas ele está em nosso
mundo agora e está sozinho. Juntos somos mais inteligentes, mais espertos e
mais cruéis. Paciência.
Os Chacais mudaram de agitação para uma terrível determinação de aço.
— Paciência, —repetiu Geraldine, como se estivesse saboreando a palavras
na língua para entender o seu significado.
Colin assentiu. — AJ é professor de antropologia cultural. Ele pode
conhecer um especialista.
Cinco minutos depois, eles tinham seis nomes e saíram.
— Não vai segurá-los por muito tempo, —disse Jim, alguns momentos
depois que a porta se fechou atrás deles. — Quando os pais retornarem, eles
vão levar o clã a um frenesi.
— Então precisamos resolvê-lo antes que os pais retornem. —Curran
olhou para mim e para Raphael. — O que você precisa?
— Um cervo, —eu disse.
— Não entendi, —disse Jim.
— Ele disse que Kate saberia onde estaria o escudo feita da escama de
Apep e era para dizer a ela que levasse outro cervo, —elaborou Raphael.
Curran olhou para sua companheira. Algumas coisas passaram entre eles,
algum tipo de conversa sem palavras que só eles entendiam.
— De jeito nenhum, —disse Curran.
— Eles não podem invocar sozinhos e você não pode se envolver, —disse
Kate.
Os olhos de Curran se transformaram em ouro fundido. — Você está
louca? Era você, eu e cinco vampiros e mal conseguimos fugir. Ele tem seu
cheiro agora. Ninguém vai vê-lo de novo.
— Ninguém, exceto eu. —Ela deu-lhe seu olhar psicótico.
O Senhor das Feras apertou sua mandíbula.
Kate sorriu para ele.
A tensão era tão espessa que você podia cortar em fatias e servir com
torradas. De todos os malucos por controle, Curran era o pior e ele estava
convencido de que Kate era feita de vidro frágil. Eu entendia isso. Entendia
completamente. Ele estava exatamente no mesmo lugar que eu tinha estado
algumas horas antes: ver alguém que você ama mergulhado de cabeça em
perigo e não é capaz de fazer nada sobre isso. Era difícil de assistir e mais
difícil de conviver com isso.
— Há batalhas duras e há suicídio, —disse Curran.
— Concordo, mas eu tenho um plano, —disse Kate.
Curran levantou as mãos, convidando o plano milagroso a surgir.
— O Volhv negro serve a Chernobog, que preside os mortos que caiem
em batalha. Esta é sua área de especialização.
— Eu gostaria de participar desse seu plano, —disse Raphael.
— Eu também, —acrescentei.
173
— O escudo pertence a um draugr , —disse Curran. — É um gigante
morto-vivo e impossível de matar.
— Como impossível de matar? —Perguntei.
— Nós não conseguimos matá-lo, —disse Kate.
— Vocês dois ao mesmo tempo? —Raphael perguntou.
Ela assentiu.
Ótimo.
— Não vamos tentar matá-lo, —disse Kate. — Ele está preso por
Proteções mágicas, mas uma vez que pegamos o escudo dele e o carregamos
além da linha da Proteção, os feitiços que seguram essa prisão mágica podem
falhar. Nós não podemos deixa-lo fugir por aí, porque ele come pessoas. É aí
que o Volhv entra. Roman terá que invocar novamente os feitiços de
aprisionamento no draugr.
— Será que ele consegue fazer isso? —Perguntou Curran.
— Bem, vamos ter que perguntar a ele, —disse Kate.

Houve mais planejamento, discussão e conversas e, no final, eu estava tão


cansada que não conseguia enxergar direito. O draugr era realmente uma má
notícia. Percebi que iríamos precisar de poder de fogo extra, do tipo que
funcionaria durante a magia.
— Ogivas de Galahad, —eu disse a eles. Estritamente falando, não era
uma ogiva, mas sim uma flecha que se encaixava em uma besta personalizada
e carregava uma carga mágica que derrubaria um elefante ou um gigante. Na
verdade, foi para lidar com um gigante que essa arma foi inventada no País
de Gales. No meu tempo com a Ordem, consegui encomendar dois lotes deles
do Reino Unido. Eu até tinha o novo arco para usá-los.
Logo depois disso, Barabas arrastou Raphael para falar sobre algum tipo
de coisa importante que não podia esperar. Kate me levou para um quarto que
tinha uma cama, e eu desmoronei em pêlo e tudo. A cama do Bando era
muito macia. Como flutuar em uma nuvem.
Fadiga me pesou. Fechei os olhos, sentindo a dor zumbindo através das
minhas pernas. Não deveria ter me sentado ... bocejo ... logo após correr ...
bocejo. Deveria ter ido embora ... primeiro ...
Estava na água, na altura dos meus tornozelos, azul-esverdeado escuro e
quente. Lama macia esmagava debaixo dos meus pés. Mexi com os dedos
dos pés e observei uma nuvem verde-clara de sedimentos surgir do fundo do
rio, girando ao redor das minhas pernas. Manchas de juncos cresciam,
estendendo-se no rio, curvando-se levemente ao vento, como se estivessem
sussurrando fofocas um para o outro. Ao longe, através da vasta extensão de
água, o sol estava se pondo ou nascendo, uma pequena bola amarela pairando
na borda de colinas baixas e escuras, o céu prateado em torno do sol pintado
de rosa e amarelo.
Olhei por cima do meu ombro. Uma margem de areia amarela me saudou,
tocada por trechos de grama verde brilhante, e além dela as palmeiras se
esticavam para cima.
174
Nós definitivamente não estávamos mais no Kansas .
Um pássaro elegante passou por mim com longas pernas. Tinha um
pescoço curvo e um longo bico e percebi que era uma garça.
Uma presença roçou em mim, saturada de magia. Eu me virei. Um chacal
do tamanho de um rinoceronte entrou no rio, um pouco mais abaixo de onde
eu estava e lambeu a água, observando-me com olhos dourados.
Certo. Eu estava em pé no Nilo, observando Anapa, e esse não era um
sonho comum. Havia regras nesse sonho. Nada de promessas, nada de
negociações impressionantes, na verdade, sem fala alguma. Ninguém ainda
tinha conseguido entrar em uma merda de negociação com um deus,
mantendo a boca fechada.
— Lindo, não é? —O Chacal-Anapa levantou a cabeça e olhou para
longe, para o sol. — Você gosta do cheiro disso aqui?
Cheirava a verde. Cheirava como a umidade do rio misturando-se com a
fragrância de ervas secas da costa, e flores, peixes e lama rica. Cheirava como
o tipo de lugar onde a vida floresceria e a caça seria abundante.
— É o sangue do seu pai. Ele se liga aqui através de você, —o Chacal
disse.
Besteira. Meu pai era um animal.
— Animais também sentem falta de sua casa.
Certo. Ele estava na minha cabeça. Sem pensamentos, então.
— Você sabe por que os outros temem você? Porque te chamam de
bestial, porque tentam te matar? É por causa disso. De lembranças bestiais
que você carrega em seu sangue. Os Primeiros, os líderes da sua espécie,
foram feitos da mesma maneira que você. Quando o homem primitivo orou,
ele orou por força. Sua vida era governada por forças além de seu controle:
raios, chuva, vento, sol e coisas com dentes que procuravam comê-lo durante
a noite. Então o homem primitivo recorreu à mendicância. Ele orou aos
predadores, àqueles que eram mais fortes que ele, e às vezes, muito
raramente, suas preces foram atendidas e uma benção foi concedida. Os
Primeiros, eles são uma mistura perfeita de humanos e animais. Você não é, e
assim você não tem a força ou o controle dos Primeiros, mas compartilha de
suas memórias. Você vê o mundo através dos olhos da sua mãe e do seu pai.
— Eu vejo através dos meus próprios olhos. —Maldição. Não deveria ter
dito nada. Apertei minha boca fechada.
O Chacal riu.
O sol se pôs atrás das colinas. Crepúsculo reivindicou o rio. A escuridão
percorreu com as palmas de suas mãos. Pequenos tentáculos de vapor
escaparam do rio, ainda mais quentes que a água do banho.
— Eu quero o seu corpo, —disse Anapa.
— Isso é lisonjeiro, mas não. —Eu não pude evitar, apenas explodiu pela
minha boca.
— Não de uma maneira sexual, sua criança tola. O corpo que eu uso no
mundo físico é parte da minha linhagem. Mas ele é fraco. Suas reservas
mágicas são escassas. Não se engane, se a Apep for ressuscitada, a assistência
que posso oferecer a você será limitada na melhor das hipóteses. Seu corpo é
forte. Seu sangue está enraizado no mesmo lugar que o meu. Somos ambos
uma mistura de fera e homem. Você é um hospedeiro mais adequado do que
qualquer outro metamorfo que eu encontrei.
— Eu sou uma hiena. Você é um chacal.
— Vai servir, —disse Anapa.
— E o que acontece comigo?
— Você vai se fundir comigo.
— Você está mentindo. —Eu sabia disso. Senti isso nas minhas
entranhas.
O Chacal rodou o rio. — Possivelmente.
— Por que eu jogaria minha vida fora?
— Porque eu sou um deus e isso é o meu desejo.
— Você não é meu deus.
O chacal suspirou. — Esse é o problema com os jovens de hoje. Houve
um tempo em que milhares cortariam suas próprias gargantas por minha
causa.
— Não. Nunca houve esse tempo.
O Chacal mostrou os dentes. — O que você sabe, filhote?
— Eu conheço a natureza humana. Podemos sacrificar alguns, porque
somos estúpidos e costumamos fazer alguns sacrifícios para a sobrevivência
do grupo. Mas nós nunca morreríamos aos milhares porque um deus deseja
isso. Esses tipos de números exigem ganhos materiais, como poder, riqueza,
território.
O Chacal olhou para mim. — Me dê seu corpo.
— Não.
— Pode chegar um momento em que você vai dizer sim.
— Não prenda a respiração.
O Chacal riu suavemente. — Olhe para lá.
Eu olhei para cima e vi um homem. Ele estava no rio, nu, com as águas
lambendo suas coxas. Os últimos raios do sol poente coloriam seu lado,
lançando reflexos alaranjados em sua pele, traçando cada contorno dos
músculos torneados. Ele parecia tão ... perfeito. Exceto que seu rosto era um
borrão.
— Quem é esse?
O corpo do homem arqueou-se, as costas curvadas para trás em um
ângulo não natural, os sulcos dos músculos do estômago se esticando e seu
rosto entrou em foco. Raphael.
Uma figura erguia-se acima dele, um homem de dois metros e meio de
altura com a cabeça de um chacal. Ele levantou a mão, com uma vara de
ouro, e passou por cima do corpo. A pele sobre o peito de Raphael e o
abdômen se dividiram.
Eu suspirei. Não!
O sangue escoou, colorindo as águas do Nilo. Os músculos de Raphael se
abriram como pétalas sangrentas.
Anúbis segurava em sua mão, com os dedos estendidos, um coração
humano, quente e encharcado de sangue, arrancado do peito de meu
companheiro e pousado nos dedos de garras de um deus.
Meu próprio coração pulou uma batida.
Anúbis atravessou a água em minha direção, o coração ainda batendo. Eu
tentei recuar, mas meus pés afundaram na lama macia.
O deus se inclinou sobre mim e me ofereceu o coração. Era terrível. O
pavor pulsou em ondas. Medo, tristeza e culpa. Isso estava me sufocando.
— Pegue.
— Seu desgraçado! Eu vou te despedaçar!
Anúbis levantou o coração, segurando o órgão ensanguentado a poucos
centímetros do meu rosto e soltou-o. Pendia no ar, terrível, sangrando gota a
gota no Nilo.
O rio desapareceu. Quando acordei, os fracos e transparentes raios do
nascer do sol, peneiravam-se na sala pela janela. Eu dormi por quase uma
hora.
Cheirei um perfume familiar e virei minha cabeça. No outro extremo da
sala, perto da parede, envolto em um cobertor, com o travesseiro descansando
no chão, estava Raphael. Ele estava de volta à sua forma humana, e seu
cabelo escuro se espalhava pelo travesseiro, seu perfil perfeito contra o tecido
pálido.
Ele deve ter me deixado sozinha na cama, porque em nossas formas de
besta nós dois não caberíamos nela.
Olhei para baixo e me vi nos lençóis. Havia me tornado humana durante a
noite. Raias de lama oliva marcavam meus tornozelos em dois anéis
borrados.
O medo enrolou na boca do meu estômago, arranhando minhas entranhas
com garras geladas. Eu queria rastejar para fora da minha cama, andar na
ponta dos pés através do quarto, e deslizar sob o cobertor com Raphael. Ele
colocaria o braço em volta de mim e eu me deitaria segura, envolvida nele,
respirando seu cheiro. Seria apenas uma ilusão de segurança, mas eu queria
tanto, muito mesmo.
Eu não queria morrer. Não queria dar meu corpo a nenhum deus. Pela
primeira vez em meus vinte e oito anos, eu estava realmente vivendo. Queria
amar e ser amada em troca. Queria felicidade, família e filhos. Eu queria uma
vida longa e queria que Raphael a vivesse comigo. Eu estava com medo de
falhar e a pequena Brandy pagaria pelos meus erros. O medo me dominou,
tornando difícil respirar.
Eu não podia dizer a Raphael. Ele jogaria sua vida fora para me salvar.
Estava com tanto medo que fiquei paralisada, incapaz de pensar em nada
além do coração de Raphael pingando sangue no Nilo.
Eu me arrastei para fora da cama, envolvi meu lençol em volta de mim,
atravessei o chão e me agachei ao lado dele.
— Raphael. Raphael ... Acorde.
Seus olhos se abriram, tão azuis. Ele estendeu a mão e me puxou para
baixo ao lado dele, curvando seu corpo ao redor do meu.
— Raphael ...
Ele me puxou para mais perto.
O calor que irradiava de seu peito queimava minhas costas. — Raphael ...
— Apenas deite aqui comigo, —disse ele.
Calei a boca, estiquei-me contra ele, tentando fechar o buraco dentro do
meu peito. Nós não tivemos muito tempo. Não tivemos tempo nenhum.
Embalei aquele nó de dor e ele me puxou para perto.
Se Anapa pudesse invadir meus sonhos e roubar crianças da Fortaleza,
não havia como dizer o que mais ele poderia fazer. Eu tinha que ter cuidado,
porque Raphael poderia morrer. Ele poderia morrer esta noite, amanhã, no dia
seguinte, tudo porque um deus queria o meu corpo. Eu tinha que mantê-lo
vivo. Fria qualquer coisa. Daria qualquer coisa para mantê-lo respirando.
Ele beijou meu pescoço. Isso enviou um arrepio elétrico pela minha
espinha.
— Hummm, —disse ele.
Eu me enrolei em uma pequena bola.
Ele me puxou para mais perto, envolvendo seus braços em volta de mim.
— O que foi?
— Você queria saber por que eu não liguei para você enquanto estava na
Ordem, —eu disse.
— Isto não é importante.
— É sim. Quando acordei depois que Erra me queimou, meu advogado
estava lá. Ele me levou para o meu apartamento e havia dois cavaleiros com
ele. Eles esperaram do lado de fora. No interior, ele me disse que qualquer
pessoa que eu contatasse enquanto estava sob custódia da Ordem ficaria sob
escrutínio. Eles escutariam minhas ligações. Kate tem um segredo. Ela
confiava em mim e eu tinha a obrigação de mantê-lo escondido. Percebi
então que tinha que ficar longe dela. Se ela dissesse a coisa errada ou, pior,
decidisse me rastrear e me resgatar, a Ordem desenterraria seu passado. Eu
não podia falar com ela.
— Eu entendo sobre Kate. —Ele me beijou novamente. — Mas por que
você não me ligou?
— Porque eu estava com medo, —eu sussurrei. — Minha única amiga
não podia me ajudar, minha mãe não podia fazer nada e eu estava sozinha.
Você era tudo que me restava. Eu estava com medo de ligar e você me dizer
que estávamos terminados. Colocaram um telefone no meu quarto para que a
tentação de ligar estivesse sempre lá. Então agora você sabe meu segredo
sujo. Sou uma covarde.
Raphael me virou e olhou para mim, seu rosto perto do meu. — Você e
eu nunca terminaremos. Você é minha companheira.
Ele beijou o canto da minha boca. Eu quase chorei.
— Eu parei de dormir desde que você foi embora, —disse ele. —
Consigo dormir por algumas horas, depois acordo e você não está lá.
Fechei meus olhos.
— Preciso de uma resposta, Andrea, —disse ele.
— Uma resposta?
— Sou seu companheiro? Sim ou não.
— Você precisa perguntar? —Eu sussurrei. — Você é meu companheiro.
— Se você escolher ir embora do Bando, irei com você, —disse ele.
Eu abri meus olhos.
— A menos que você esteja com vontade de lutar sozinha com Curran, —
ele disse. — Suponho que poderíamos lutar contra ele. Nós perderíamos, mas
seria divertido enquanto durasse.
Bouda bobo. Eu o abracei, deslizando sob ele, o peso de seu corpo
musculoso uma pressão tranquilizadora em mim. Seus olhos eram tão azuis.
Eu o beijei, deixando seu gosto lavar minha língua. Cada músculo em mim
estremeceu em antecipação. — Um bouda fedorento e estúpido me disse uma
vez que, se você faz o seu companheiro escolher entre você e a família dele,
você não é digno de sua lealdade. Eu não faria isso com você, Raphael. Eu te
amo.
Ele me lambeu, beliscando meu lábio inferior. Ele me acariciou. Sua mão
escorregou, acariciando minhas coxas abertas. Seu perfume tomou conta de
mim e, dessa vez, em vez de me magoar em arrependimento, seu cheiro
cantou através de mim. — Companheiro …
Eu envolvi minhas pernas ao redor dele e sussurrei: — Faça amor
comigo.

Quando acordei, três horas depois, Raphael tinha ido embora. A lama dos
meus tornozelos mostrou-se notavelmente difícil de remover. Levou vários
sabonetes e esfregões com um pano e até uma pedra-polmes, até que
finalmente tudo sumiu e a pele das minhas pernas estava vermelha. O Lyc-V
consertaria isso em pouco tempo, mas isso me irritava muito.
175
Eu saí para o corredor e cheirei muffins ingleses . Torradas crocantes,
muffins ingleses fresquinhos, generosamente amanteigados. O aroma agarrou
meu nariz e me arrastou pelo corredor, para uma sala ao lado, onde Kate
estava sentada a uma mesa comprida, tomando café. Badejas cobriam a mesa:
pilhas de ovos mexidos; quentes batatas fritas crocantes crepes suaves,
dobrados em quatro e encharcados com manteiga derretida, bacon, salsicha,
presunto, muffins ingleses.
— Comida!
— Sim! —Kate empurrou um prato na minha direção.
Coloquei meu prato e mordi o presunto. Nham, nham, nham. Carne.
Carne boa. Andrea com fome. Andrea gastara calorias demais nas últimas
quarenta e oito horas. Eu poderia ficar sem dormir ou comida, mas não os
dois ao mesmo tempo.
— Você viu meu companheiro? —Perguntei.
— Ele está com a mãe.
Eu revirei meus olhos.
— Ele estava aqui há meia hora atrás, comendo feito um furacão. A Tia B
nos agraciou com sua presença e ela queria que ele explicasse as coisas para
ela.
Eu comi o muffin inglês e peguei outro. Quase podia sentir a energia
inundando meu corpo. Como um metamorfo, eu tecnicamente poderia ficar
sem dormir completamente, se eu precisasse, mas a comida era uma
exigência. Eu ia me encher até que eu parecesse um daqueles porcos que eles
serviam em banquetes em filmes antigos.
— Seu Volhv favorito apareceu meia hora atrás, reclamando sobre não
dormi e deuses estúpidos. Ele diz que trouxe o cinto do Batman.
Parei de mastigar por um segundo e peguei meu reflexo na chaleira
brilhante. Eu parecia um esquilo com as bochechas cheias de comida. —
Então ele pode prender novamente o draugr?
— Ele diz que pode.
— Isso significa que ainda vamos fazer isso?
Kate assentiu.
Bem. Meu dia finalmente estava melhorando. Já estava na hora.

Capítulo 14
Os cavalos atravessaram o caminho de terra. Segundo Kate, a criatura que
tinha nosso escudo da escama de Apep vivia nas profundezas da Herança
Nórdica. O território dos novos vikings. Os novos vikings não se importavam
com tecnologia dentro de suas fronteiras.
Ao contrário de várias outras organizações escandinavas, a Herança
Nórdica não estava interessada na preservação da cultura escandinava. Eles
estavam interessados em perpetuar o mito dos vikings: usavam peles,
trançavam os cabelos, agitavam armas enormes, iniciavam brigas com
selvagem abandono e geralmente se comportavam de maneira que
confirmava a intenção de parecerem uma horda de espíritos selvagens e
bárbaros. Eles brigavam em qualquer lugar e com qualquer um,
independentemente da ascendência e história criminal, desde que
demonstrassem o ‘espírito Viking’, que aparentemente equivalia a gostar de
violentas brigas e beber muita e muita cerveja.
A área da Herança Nórdica ficava bem longe da cidade. Nossa pequena
comitiva descia pela estrada, Kate e eu na frente, Ascanio dirigindo uma
carroça com um cervo amarrado, e Raphael e Roman atrás. Os dois homens
conversavam tranquilamente, o dialogo parecia surpreendentemente
civilizado.
Acariciei o pescoço do meu cavalo. O nome dela era Docinho e ela vinha
176
dos estábulos do Bando. Ela era uma Tennessee Walker , inteligente e
calma, com alta resistência. Eu também gostava da cor dela, ela era um roan
vermelho de um tom tão pálido e suave que quase parecia rosa.
Kate sorria maliciosamente.
— O que foi?
— Seu cavalo é rosa.
— E daí?
— Se você colar algumas estrelas no traseiro dela, vai estar montando um
177
Meu Pequeno Pônei .
— Cala boca. —Eu acariciei o pescoço da égua. — Não dê ouvidos a ela,
Docinho. Você é a mais bonita égua do mundo. O nome correto para sua cor
é roan morango, a propósito.
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— Moranguinho, está mais parecido com o cavalo da Moranguinho .
Ela sabe que você roubou seu cavalo? Ela vai ficar muito, muito irritada com
179
você .
Olhei para ela com as minhas pálpebras semi-abaixadas. — Eu posso
atirar em você bem aqui, nesta estrada, e ninguém nunca encontrará seu
corpo.
Atrás de nós, Ascanio gargalhou.
A estrada fazia uma curva, presa entre a densa floresta escura à esquerda
e uma colina baixa e coberta de grama à direita. Afloramentos de rocha clara
marcavam as colinas. A área da Herança Nórdica ficava no lado oeste de
Gainesville, a cerca de oitenta quilômetros a nordeste de Atlanta. A expansão
180
maciça da Floresta Chattahoochee há muito tempo engoliu Gainesville,
transformando-a em uma cidade isolada, como uma pequena ilha em meio a
um mar de árvores.
Kate estava montando um cavalo escuro, de aparência desagradável, que
parecia que não podia esperar para pisar alguma coisa até a morte.
— Então, você sente falta da Marygold?
Marygold costumava ser sua mula da Ordem.
— Minha tia a matou, —disse Kate.
Porcaria. — Desculpa. —Ela realmente amava aquela mula.
À frente, o topo de uma pilha enorme de pedras se mexeu. Um corpo
humanoide largo saiu da crista. Sua cabeça era larga e equipada com
mandíbulas de dinossauro armadas com dentes estreitos. Escamas de cinza
protegiam seu corpo, projetando-se da carne como se a criatura tivesse rolado
no cascalho. Longos fios de musgo verde-esmeralda pingavam de suas costas
e ombros. O sol atravessou as nuvens. Um raio perdido pegou o lado da
criatura e a fera cintilou como se tivesse sido mergulhada em pó de diamante.
— Que diabo é isso?
181
— Isso é um landvættir , —disse Kate. — Eles são espíritos da terra
que surgem em torno de assentamentos novos nórdicos. Ele não vai nos
incomodar a menos que ficarmos em seu caminho.
Nós passamos pela criatura.
Raphael incitou seu cavalo para frente e ficou entre nós duas. — Anapa.
Poderoso o suficiente para sequestrar uma criança da Fortaleza.
— Sim? —Eu murmurei.
— E isso é realmente importante para ele?
— Sim?
— Então por que não veio atrás disso sozinho? —Raphael fez uma careta.
— Por que ele não nos ajuda? Por que manter o Bando fora disso? —Eu já
havia me feito essas mesmas perguntas antes, então eu disse a ele a única
resposta que poderia dar. — Eu não sei.
Ele olhou para Kate. Ela encolheu os ombros. — Não sei.
— Perguntei ao seu Volhv, —disse Raphael para mim.
Meu Volhv, huh? — E o que o doce ursinho russo lhe disse?
Kate fez um barulho estrangulado. Raphael apertou a mandíbula, depois
abriu-a.
— Ele disse que Anapa é um deus e os deuses são estranhos. Que tipo de
resposta demente é essa? Ele não é um especialista em tudo isso, e é por isso
que o estamos levando?
Deuses são idiotas viciosos e egoístas. Dei de ombros. — Roman é um
especialista e ele lhe deu sua opinião de especialista. Deuses são estranhos.
— Eu posso ouvir vocês, —Roman gritou atrás de nós. — Não sou surdo.
Raphael balançou a cabeça e recuou.
Anapa não era apenas estranho. Não, ele tinha um plano. E todo o seu
bom humor e sorrisos encantadores eram calculados. Eles mascavaram sua
verdadeira essência da mesma maneira que o pelo macio cobria as garras de
um gato. E eu manteria seu plano para mim mesma. Se eu dissesse a Raphael,
ele faria algo imprudente para me salvar. Se eu contasse para Kate, ela se
preocuparia e tentaria consertar. Não havia como consertar isso. Era o que
era.
A estrada virou, se dividindo em dois caminhos à frente. Uma estrada
182
maior, marcada por uma velha bétula , curvava-se colina acima. O caminho
menor e menos explorado desviava para algumas florestas.
Um homem saiu de trás da árvore e barrou o caminho. Com cerca de um
metro e noventa de altura, forte, parecia um tanque do tamanho de um
homem envolto em cota de malha. Ele usava um manto exagerado de pelo
preto e um elmo de guerra polido e carregava um enorme machado com uma
longa haste de madeira.
— É bom ver você de novo, Gunnar, —disse Kate. — Estamos indo para
a clareira.
A metade inferior do rosto de Gunnar empalideceu. — Novamente?
Kate assentiu.
— Você já foi uma vez. Não pode ir de novo.
— Eu não tenho escolha.
Gunnar esfregou o rosto. — Ele tem o seu cheiro agora. Você sabe o que
acontece com as pessoas que vão vê-lo duas vezes.
— Eu sei. Mesmo assim tenho que ir.
Ele balançou a cabeça e deu um passo para o lado. — Foi uma honra
conhecer você.
Kate tocou as rédeas e nossa pequena comitiva seguiu em frente.
— O que exatamente acontece com as pessoas que vão vê-lo duas vezes?
—Perguntei.
— Ele os come, —disse Kate.
A velha estrada se estreitou, abrindo caminho para a floresta. Árvores
altas lotavam a estrada, como se protestassem contra sua invasão no meio
delas. O ar cheirava a floresta: seiva de pinheiro, o odor de terra úmida, o
odor de urina de lince marcando seu território em algum lugar à esquerda e o
almíscar ligeiramente oleoso do esquilo. Um nevoeiro azulado pairava entre
as árvores, obscurecendo o chão. Assustador.
Chegamos a um arco de pedra feito por altos pilares de pedra cinza,
amarrados por vinhas.
Kate pulou do cavalo. — Nós vamos a pé daqui. Raphael, você vai levar
o cervo?
— Pode deixar que eu levo.
Peguei o tripé da carroça e o abri montando-o, avaliando o caminho que
passava pelo arco de pedra. Coloquei o tripé no chão e tirei minha enorme
besta da carroça. Letras escuras corriam ao longo do suporte do arco:
183
THUNDERHAWK .
— Isso é novo, —disse Kate.
Coloquei a besta no topo do tripé montado, peguei uma bolsa de lona da
carroça e desenrolei.
Flechas de besta, carregados com as ogivas de Galahad.
— Este é o meu bebê. —Eu acariciei o estoque.
— Você tem um relacionamento estranho com suas armas, —disse
Roman.
— Você não tem ideia, —disse Raphael a ele.
— Isto vindo de um homem com um cajado vivo e um outro que uma vez
dirigiu quatro horas só para ter uma espada que ele pôs depois em sua parede,
—eu murmurei.
184
— Era uma Angus Trim , —disse Raphael.
— É uma tira de metal afiada.
— Você tem uma espada Angus Trim? —Os olhos de Kate se
iluminaram.
— Comprei em um leilão imobiliário, —disse Raphael. — Se sairmos
dessa, vivos, você é mais do que bem-vinda a minha casa para brincar com a
minha espada.
Era bom que Curran não estivesse aqui e eu estivesse segura em nosso
relacionamento, porque isso poderia ser totalmente mal interpretado.
Peguei minha mochila. Raphael atirou o cervo por cima do ombro. Kate
puxou um bolsa de couro da carroça. Tinha um padrão de contas na lateral da
bolsa que parecia muito familiar. Eu já tinha visto um padrão semelhante
antes em uma reserva do Oklahoma Cherokee, era um trabalho de bordado
indígena.
— Isso é um bordado Cherokee?
Kate assentiu. — Comprei isso de uma mulher da medicina Cherokee.
Eu fiz sinal para Ascanio, chamando-o. — Aponte assim. —Girei o tripé,
movendo o arco. — Visualize por aqui. Para disparar, vire está alavanca e
aperte o gatilho devagar. Faça isso com calma. Nada de pressa.
— Mesmo se ele for apressado, ele vai acertar, confie em mim, —disse
Kate. — Ele terá um grande alvo na frente.
— Não dê ouvidos, ela não pode atirar em um elefante a três metros de
distância. No lugar disso, ela pegaria o arco e o bateria com ele e então
tentaria cortar a garganta dele com sua espada.
Kate riu.
— Sua vez, repita. —Eu acenei com a cabeça em direção ao arco.
— Alvo, mire, puxe a alavanca, aperte o gatilho lentamente, —disse
Ascanio. — Tente não entrar em pânico e chorar como uma garotinha.
— Bom garoto. —Nós seguimos Kate em fila única pelo caminho,
deixando-o próximo a carroça.
A floresta ficou mais sombria, as árvores ficando mais escuras, mais
retorcidas, ainda mais cheias de folhas, mas de alguma forma mortas, como
se estivessem congeladas no tempo. A névoa se espessou em sopa. Os odores
habituais se desvaneceram. Nem mesmo os esquilos se aventuravam por aqui,
como se a própria vida fosse proibida neste lugar.
Troncos esmagados no chão.
Eu senti o cheiro de podridão. Forte e recente.
Chegamos a uma clareira, um pequeno trecho de terra musgosa
ligeiramente maior do que uma quadra de basquete, cercada por enormes
árvores. No centro da clareira havia uma grande pedra, alta e plana como uma
mesa. Um espaço oco havia sido esculpido na pedra e manchado de
vermelho. Eu cheirei. Sangue recente de alguns poucos dias.
— Coloque o cervo na rocha, —disse Kate.
— Então, o que te trouxe aqui pela primeira vez? —Perguntei.
— Uma criança que estava morrendo, —disse Kate. — Foi eu, Curran e
alguns vampiros. Ele e eu fomos os únicos a sair inteiros. Ainda dá tempo
desistir.
— Desistir? —Roman esfregou as mãos juntas. — E perder isso? Você
está malditamente louca?
Ele não falou isso porque estava assustado. Ele estava empolgado. Uau.
Pela primeira vez, fiquei sem palavras.
— Você tem certeza disso? —Kate me perguntou.
Eu tinha o trabalho mais importante neste nosso incrível plano. — Você
vai continuar enrolando isso?
— Ela vai ficar bem, —disse Raphael. — Ela é a pessoa mais rápida que
conheço.
À esquerda, alguma criatura gritou, alto e desesperado. Outro se juntou a
ele. Eu lutei contra um arrepio.
185
— O draugr já foi um Viking chamado Håkon de Vinlândia , —disse
Kate. — Os vikings que viviam lá negociavam com as tribos indígenas
locais, que disseram a Håkon que as tribos do sul, os cherokees, eram
pacíficos agricultores, não guerreiros e tinham muito ouro. Então Håkon
navegou em dois navios com o objetivo de estuprar, saquear e matar os
cherokees. Só que os cherokees tinham bons arqueiros e magia forte. Håkon
morreu no conflito. Ninguém de seus homens se preocupou em enterrá-lo, e
ele ficou tão aborrecido com isso, que ressuscitou dos mortos como um
draugr, perseguiu seus próprios homens restantes e os comeu.
— Literalmente? —Roman perguntou.
Kate assentiu. — Os cherokees encontraram-no roendo ossos dos seus
homens. Ele era muito poderoso e eles não podiam matá-lo, então o
trancaram nesta clareira com suas Proteções para evitar que ele corresse solto.
A luz ganhou um estranho tom azulado. De alguma forma a floresta ficou
mais escura.
— Este é um lugar ruim, —disse o Volhv negro. — Nós não deveríamos
estar aqui. Bem, eu deveria. Mas vocês não. Vejam, meu deus tem domínio
sobre coisas mortas, mas essa criatura pertence a um panteão diferente, então
eu tenho alguma proteção aqui, mas não muito. Não o suficiente para matar o
draugr. Apenas o suficiente para prendê-lo e sobreviver.
— Você está fazendo maravilhas com a minha confiança, —eu disse a
ele.
Kate colocou a bolsa com o bordado de contas Cherokee no chão,
ajoelhou-se e desatou o cordão. Dentro havia quatro varas com uma ponta
afiada em uma das extremidades, cada uma das vara tinha cerca de um metro
de comprimento. Ela pegou a primeira vara, encontrou uma pedra de bom
tamanho e a usou para martelar a vara no chão no começo do caminho.
Aquela direção seria para onde eu teria que correr quando chegasse a hora de
dar o fora dali. A segunda vara foi martelada no lado esquerdo da clareira, a
terceira a direita e a última exatamente oposta à primeira.
— Estas são nossas defesas. Elas vão atrasá-lo um pouco. Não lutem
contra ele. Apenas corram.
Kate tirou um cachimbo de uma caixa e começou a fumar. O tabaco bateu
nela e ela tossiu.
— Fraca. —Eu disse, provocando-a.
— Estou nem aí para você. —Ela circulou a clareira, agitando seu
cachimbo ao redor.
— Eu nunca vi isso antes, —disse Roman. — É muito difícil testemunhar
rituais nativos americanos nos dias de hoje. Tanto se perdeu devido à
apropriação desse tipo de conhecimento restrito aos indivíduos da tribo e a
falta de registros escritos. É emocionante!
— Bem, estamos felizes que pudemos satisfazer sua curiosidade
intelectual, professor, —disse Raphael.
— Eu provavelmente não estou fazendo o ritual da maneira perfeita, mas
a tribo se recusa a se aproximar dessa clareira, então sou tudo o que você tem,
—disse Kate.
Ela completou o círculo, sentou-se e começou a tirar as coisas da bolsa:
um pote de plástico de mel em forma de ursinho, uma garrafa de metal com
cerveja dentro e uma bolsinha.
Pisquei e a floresta estava cheia de olhos amarelos nos espiando atrás dos
pedregulhos, da escuridão das raízes das árvores, dos galhos ...
Eu mostrei meus dentes. — Quem são esses?
— Eu não sei. —Kate manteve a voz baixa. — Eles também saíram da
186
última vez. Acho que podem ser uldras . Ghastek disse que eles são
espíritos da natureza da Lapônia. Não nos atacaram da última vez.
À minha direita, uma das uldra subiu no final do tronco de árvore caída, a
poucos metros de distância. Com uns sessenta centímetros de altura
empoleirou-se na casca da árvore, segurando-a com os pés que se
assemelhava a pés de aves. Pêlo escuro e denso cobria seu corpo humanoide.
Seu rosto lembrava vagamente um babuíno.
Os uldras encontraram o seu lugar, movendo-se com uma lentidão
semelhante à do bicho preguiça, e congelaram, mãos enormes com longos e
grandes dedos cruzados dobrados em frente a ela. Sua boca se abriu, exibindo
uma fileira de longos dentes de peixe em águas profundas.
— É apenas um pequeno nechist, —disse Roman ao meu lado.
— Nechist? —Eu perguntei.
— Sim. Coisa impura, escória. Eles são inofensivos. —Ele enfiou a mão
em sua bolsa. — Esperem ... aqui. —Roman tirou um pequeno pacote de
bolachas e sacudiu um. — Aqui, você quer um biscoito? —Ele ofereceu o
biscoito para a criatura.
— Roman ... —Um aviso rastejou em minha voz. Aqueles dentes não
pareciam de brincadeira.
— Não se preocupe, —ele me disse. — Aqui. —Ele clicou sua língua. —
Venha pegar um biscoito.
Os olhos pálidos do uldra se concentraram no biscoito. Lentamente, ele o
alcançou e arrancou o pequeno quadrado dos dedos de Roman. O uldra deu
uma mordida.
— Bom, não é? —Roman clicou a língua mais um pouco. — Vamos.
Venha.
A uldra se arrastou até o antebraço e subiu a manga preta para se sentar
em seu ombro.
— Jesus, —disse Raphael.
Roman falou suavemente com o uldra. — Quem é o menino bonzinho?
Quer outro biscoito?
Um segundo uldra saiu dos arbustos e sentou-se ao lado da bota de
Roman, com os braços cruzados em nervosismo, à espera de um biscoito.
Roman jogou outro biscoito no chão. Duas criaturas menores se arrastou e
puxou a bainha de seu manto.
— Há muitos biscoitos para todos, —assegurou-lhes Roman.
Raphael se inclinou para frente. A uldra mostrou os dentes. Raphael
rosnou para eles.
— Não há necessidade de intimidá-los. —Roman acariciou a criatura
mais próxima.
A primeira uldra terminou sua refeição e esfregou a cabeça contra a
bochecha de Roman.
Um baixo gemido sobrenatural veio das árvores. As uldras fugiram. Um
momento eles estavam lá e, no outro, zaaaap, apenas os biscoitos comidos
pela metade deixados para trás.
— Aqui vamos nós. —Kate andou até a pedra e o cervo sedado deitado
sobre ela.
O plano era simples. Quando o draugr aparecesse e conseguíssemos a
escama, eu fugiria de lá. Normalmente eu teria que chegar apenas aos pilares
de pedra, que marcavam o início das Proteções dos cherokee. Mas Kate
estava preocupada que carregar a escama passando pelos pilares significava
que estávamos levando uma parte da criatura para fora da barreira das
Proteções, o que podia ou não cancelar os feitiços defensivos. Nós tínhamos
que conseguir pará-lo nos pilares.
— Você tem certeza que pode prendê-lo? —Perguntei a Roman.
— Não se preocupe, —disse ele. — Posso fazer isso.
De repente, fiquei muito preocupada.
Kate abriu a bolsa, tirou pedras de runa, pequenos quadrados de ossos
gastos, cada um com uma runa gravada em preto, e jogou-os na mesa de
pedra. Eles se espalharam e tilintaram na pedra, como dados em um copo de
plástico. Ela esvaziou a bolsa das runas e senti um cheiro de lúpulo e cevada.
Cerveja. Kate apertou o pote de mel em forma de urso, esguichando uma
corrente de mel âmbar nas runas.
Roman se inclinou para mim. — Essas são runas nórdicas.
Eu olhei para ele.
— Não as eslavas, —disse Roman. — Achei que merecia saber dessa
informação.
Ele parecia que mal podia conter toda a excitação.
— Agora, —disse Kate.
Respirei fundo, agarrei o veado pela cabeça e puxei sua garganta para o
receptáculo escavado na rocha. O cervo me deu um olhar de pânico. —
Desculpe, garoto. —Kate ergueu a faca e cortou a garganta. O cervo chutou,
mas eu o segurei. O cheiro de sangue, quente e fresco, tomou conta de mim,
chutando meus sentidos em alta velocidade.
Kate sacudiu as runas, segurando-as frouxamente na mão, e vi pequenas
rajadas de raios entre seus dedos.
— Eu te chamo, Håkon. Venha do seu túmulo. Venha provar a cerveja de
sangue.
Um som sibilante veio, feito de velhos ossos esmagados, músculos
mumificados, couro rangendo e misterioso sussurro maligno. Senti o cheiro
doentio de decomposição, a terra, o pó e a carne liquefeita, como se alguém
tivesse jogado minha cabeça em um túmulo. A magia tomou conta de nós,
arrastando um frio congelante em seu rastro. O gelo deslizou pelo chão em
meus pés.
Fora além da clareira, a névoa fluía em nós, engrossando enquanto se
aproximava. Ele gemeu, como uma coisa viva, sua voz cheia de tormento,
fluiu em uma forma humana e desapareceu, deixando uma coisa em seu
rastro.
Com um metro e noventa de altura, era feito de cartilagem seca, carne
murcha e uma pele coriácea que costuma ser vista em vampiros, exceto que
sua cor era cinza-azulada. Nenhuma célula de gordura poderia ser encontrada
em sua estrutura esparsa. Usava armadura de malha e grandes ombreiras de
metal, e nenhum dos dois combinava bem com ele, um pouco torto,
obviamente feito para um corpo muito mais forte. O draugr levantou a cabeça
e olhou para mim. Seu rosto poderia ter sido usado como um modelo em aula
de anatomia, cada músculo nele claramente desenhado sob a fina camada de
pele, parecia revoltantemente alienígena. Seus olhos frios me encararam, sem
pupila e sem expressão.
O morto-vivo abaixou a cabeça e começou a lamber a mistura de sangue e
cerveja.
Náusea subia em meu estômago. Havia algo tão errado sobre essa coisa
não-morta e não-natural sugando o sangue de uma criatura que estivera viva
alguns momentos atrás.
— Já chega, por enquanto, —disse Kate controlando o monstro com suas
runas.
O morto-vivo levantou a cabeça, seu rosto ensanguentado. Sua boca se
moveu e eu vi os cordões de seus músculos faciais deslizarem e se
contraírem. Ecaa.
Sua voz era arrepiante, rouca e antiga. — Eu conheço você. Conheço seu
perfume.
Kate olhou diretamente para o rosto dele. — Eu trouxe a sua cerveja de
sangue como uma oferta.
— Comida tola. Carne idiota, tola.
O draugr desceu para tentar um pouco mais da cerveja de sangue.
— Não, —Kate retrucou.
O draugr encostou-se na pedra. — Sou Håkon, filho de um jarl, flagelo
dos mares, devorador de carne. O que você quer, carne magra?
— Eu quero ver o seu escudo, —disse Kate.
O draugr virou a cabeça. — Meu escudo?
— O escudo que você roubou quando navegou para cá de Vinland como
objetivo de assaltar o ouro das Tribos do Sul.
187
— Os skrælingar , —disse o draugr.
— Sim. Os skrælingar. Você pegou dois navios e veio procurá-los,
lembra?
— Eu me lembro ... —A voz do draugr carregada. — Lembro-me de tudo.
Pássaros com asas que cobriam metade do céu. Eu me lembro da magia
skrælingar. Eu lembro da flecha nas minhas costas. Eu lembro do meu
cadáver deixado para apodrecer.
— Você se lembra do seu escudo? —Kate insistiu.
O draugr inclinou a cabeça para a cerveja.
Kate chocalhou as runas. — Se você quiser a cerveja, você vai me deixar
ver seu escudo.
Um fogo frio e maligno chamejou nos olhos do draugr e pingou de seu
rosto em lágrimas ardentes. — Eu vou devorar você. Vou lamber seus ossos e
esmagá-los entre os meus dentes. Eu vou chupar a sua medula ...
— Isso deve ser bom, —disse Kate. — O escudo.
— Tudo bem, carne. Aqui está.
A terra atrás da pedra se ergueu, rachando, formando raízes e pedras
menores. Uma borda curva de madeira emergiu, subindo cada vez mais alto,
até que todo o escudo redondo se soltou do solo. No meio dela, havia uma
escama amarela, oval e ondulada, presa à madeira por barras de metal. Tinha
setenta centímetros de comprimento.
Setenta centímetros. Que tipo de cobra tinha escamas de setenta
centímetros de comprimento?
— Aqui está o meu escudo, carne.
— Você se lembra de como eu cheguei a você com uma barganha honesta
da última vez e você a quebrou? —Kate perguntou.
O draugr riu. Foi um som frio e oco.
— Uma revanche é justa, —disse Kate.
Eu agarrei o escudo e corri.
O draugr uivou, sacudindo a floresta. A voz de Roman latiu alguma coisa
em russo. Raphael rosnou. A névoa me perseguiu, serpenteando pela
montanha, tentando pegar meus tornozelos. Eu voei pelo caminho.
Magia me deu um soco nas costas. Eu voei alguns metros para frente, bati
no chão em uma bola apertada, fiquei de pé rapidamente e continuei
correndo. Troquei de direção. Kate deve ter usado uma palavra de poder, sua
própria marca de magia, para me dar um empurrão para frente, me fazendo
voar. Isso deve ter sugado suas energias, as palavras de poder eram seu
último recurso.
Você não vai me escapar, uma voz gelada sussurrou no meu ouvido.
Corra tudo o que quiser, carne. Corra mais rápido que puder.
Todos os pêlos do meu corpo estavam em pé.
Pulei sobre uma raiz. A névoa se partiu como um chicote e envolveu meu
pescoço em um nó. Isso tirou os meus pés do chão e eu voei de volta,
agarrando o tentáculo da magia com uma mão, apertando o escudo com a
direita. Bati as minhas costas no chão e a magia me puxou, raspando minha
pele sobre as raízes.
Ah não, você não. Rosnei e peguei um galho com a mão esquerda.
A magia me puxou para trás, esmagando minha garganta. Círculos negros
nadaram diante dos meus olhos.
Plantei meus pés e me forcei. Todos os músculos do meu corpo estavam
tensos.
A magia puxou um pouco mais.
Empurrei para frente. Um pouco. Outro passo. Nenhum morto-vivo
imbecil me arrastaria de volta. Isto não, não vou permitir.
A magia me soltou.
Eu me inclinei para a frente e rolei, cabeça sobre os pés, curvando meu
corpo em torno do escudo, batendo em todos os obstáculos com partes macias
de mim, como se alguém tivesse me colocado em uma secadora com um saco
de pedras.
Bati em uma árvore. O mundo rodou um pouco. Eu me mexi. O escudo
estava em ruínas aos meus pés, todo destruído exceto a escama, que não tinha
um arranhão.
Uma sombra escura e gelada caiu nas árvores ao meu lado.
Agarrei o escudo e me virei. Algo branco estava caindo, então eu
coloquei o escudo na minha frente e me agachei por trás dele.
Lanças de gelo de um metro de comprimento se afundaram no chão ao
meu redor, martelando o escudo. Segurei o escudo até que os impactos
pararam e desci a encosta. Magia explodiu ao meu redor em rajadas frias,
sacudindo os dentes no meu crânio. O cheiro forte de podridão encheu minha
boca. Ao meu redor as árvores gemiam, como se estivessem em pé por uma
mão invisível. Minha garganta queimava.
Eu corri mais ainda na estrada.
Os pilares de pedra apareciam longe à minha direita. Eu corri para eles.
Minhas costelas estavam gritando de dor.
As árvores rangeram atrás de mim. O draugr tinha chegado na estrada.
Meus pés mal tocaram o chão. A magia do draugr congelou minhas
costas.
Algo assobiou pelo ar e um corpo bateu na estrada à minha frente,
arremessado por uma força sobrenatural. Roman. O Volhv não estava se
movendo. Acho que a prisão mágica que ele invocaria acabou não
funcionando.
Entre os pilares, Ascanio girou a besta no tripé, apertou o gatilho e
disparou. A flecha enorme cortou o ar acima de mim. Obrigada garoto!
O mundo explodiu de verde. A onda de choque bateu nas minhas costas.
Eu agarrei na última explosão de velocidade do meu corpo exausto e
atravessei os pilares. Derrapei até parar e me virei. Na estrada, o draugr
seguiu em frente, uma enorme monstruosidade, superando as árvores,
impossivelmente grande. Sua magia girou em torno dele em uma nuvem
tempestuosa.
Raphael saiu das árvores como um pesadelo coberto de pele e atacou o
gigante, rasgando a carne morta-viva.
Empurrei Ascanio do tripé e recarreguei.
O morto-vivo tentou pisar nele, mas Raphael correu para frente e para
trás, muito rápido, retirando músculo seco e cartilagem da perna esquerda do
gigante.
Kate irrompeu da vegetação rasteira e enfiou a espada no pé direito do
draugr. Eu puxei a besta e mirei em Håkon. Coma isso, seu pedaço de merda
morto-vivo.
— Saiam daí! —Eu gritei.
Raphael e Kate correram para longe. Eu atirei. A flecha atingiu o morto-
vivo abaixo do tórax, queimando-o com chamas esmeraldas e explodiu. A
carne de um morto-vivo choveu, mas o draugr permaneceu em pé.
Roman cambaleou a seus pés, seu rosto contorcido pela raiva. Ele gritou
alguma coisa. Um bando de corvos caiu sobre o gigante, rasgando carne
podre de seus ossos.
— Ajude o alfa! —Eu gritei, recarregando. Ascanio correu para o draugr.
Raphael pegou Kate e jogou-a para cima. Ela afundou a espada na lateral
da perna do draugr. A magia quebrou, e então uma rótula de joelho do
tamanho de um carro caiu na estrada. Kate pulou para trás. O draugr oscilou e
caiu de joelhos.
188
— Fogo no buraco! —Eu disparei outro tiro. Por meio segundo, a
ponta da flecha zumbiu, entre as costelas do morto-vivo, depois explodiu,
espirrando fogo de esmeralda sobre carne ressecada. A explosão arrancou as
costelas do draugr e, através dele, vi o saco enrugado de seu coração.
Os corvos arremessaram-se para o buraco e para fora das costas do
draugr, arrastando pedaços de ossos e tecidos com eles.
Eu vi os restos devastados do coração e disparei. A flecha perfurou o
músculo duro na mosca.
A explosão sacudiu o chão. Pedaços de cadáver apodrecido caíram no
chão e Håkon caiu como um arranha-céu desmoronando. Seu queixo bateu na
terra, todo o crânio reverberando pelo impacto.
Arrá! Nós matamos um gigante imortal. Coma seu coração, Senhor das
Feras.
Kate se levantou e mancou em nossa direção.
O joelho dela. Ela tinha uma lesão antiga que continuava machucando. Eu
tinha esquecido completamente. Droga. — Seu joelho está bem?
— Não é o joelho. —Kate passou mancando pelo pilar e caiu contra a
carroça. — Ele me deu uma braçada, o filho da puta. Eu bati em um tronco de
árvore com meu quadril. Juro que esta perna está amaldiçoada.
Roman cuspiu no chão. Seu rosto estava triste. — Um desperdício. O
único do seu tipo e nós tivemos que o matar.
Quase nos rasgou em pedaços e ele estava chateado. Uau.
Raphael andou a passos largos em minha direção. Seus olhos estavam em
chamas.
— Belo tiro, —disse ele.
— Obrigada. Você foi … —Incrível, corajoso, rápido, maravilhoso. —
... não foi tão ruim também.
Roman sacudiu a cabeça. — Um desperdício desses.
— Eu vou dividir os dentes com você, —disse Kate. — Se você quiser.
Ele se virou para ela. — Claro que quero os dentes. E o cabelo.
Os dois partiram para a cabeça, parecendo dois cachorros famintos que
tinham acabado de encontrar uma carcaça fresca e suculenta.
Raphael me agarrou em um abraço de urso. Eu sorri para ele. Isso não foi
tão difícil, afinal.
Ascanio trotou para cima. — Por que eles estão arrancando os dentes?
— Eles são magos, —eu disse.
— Você quer que eu os ajude?
— Sim, —disse Raphael.
O garoto foi para o cadáver do gigante, onde Kate e Roman discutiam
sobre os dentes.
A cabeça do draugr se mexeu.
— Cuidado! —Eu gritei.
Kate olhou para mim.
Eu corri.
Os olhos brilharam com fogo verde, as grandes mandíbulas se abriram,
revelando dentes grossos. Kate virou-se, cortando-o com sua espada.
Eu estava a um metro e noventa de distância quando a magia saiu da boca
do draugr, agarrou Kate e a arrastou para a boca, esmagando-a entre aqueles
dentes atarracados.
Pulei no crânio, puxei minha faca e cortei os tendões que segurava a
mandíbula. Solte minha amiga, seu filho da puta!
As mandíbulas atacaram Kate, tentando quebrá-la como uma noz.
Carne horrível rasgou sob meus dedos. Eu tive um vislumbre de Kate, ela
enrolada em uma bola, mantendo-se longe dos dentes.
Os tendões que eu havia cortado estalaram de volta juntos. Precisava
cortar mais rápido.
Nós estávamos subindo. Eu olhei para baixo. O draugr se levantou.
— Raphael! —Eu gritei, cortando a carne. — Ele está se regenerando!
—Onde Raphael estava?
A lâmina da Matadora cortou a carne bem no canto da articulação onde a
mandíbula se encaixava na mandíbula superior. A espada fumegou. Kate
estava tentando sair.
O draugr mastigou, tentando trabalhar sua maciça língua para empurrar
Kate em direção aos dentes.
Moscas cobriam o morto-vivo, transformando-se em vermes, comendo
sua carne. Eu fatiei e piquei, as larvas comiam, mas quanto mais dano
fazíamos, mais rápido sua carne crescia de volta.
Kate gemeu. Eu tinha que tirá-la dali agora.
Me transformei. Pedaços das minhas roupas voaram para o chão. Eu dei
uma pequena corrida no ombro ósseo do draugr e chutei a articulação
temporomandibular. O osso estalou com um rangido seco, anunciando uma
mandíbula deslocada. A boca do draugr se abriu e Kate pulou.
Uma enorme mão me tirou do ombro e me apertou, esmagando-me. Eu
rosnei e o mordi. Pressão me pegou. Meus ossos estalaram. Ele estava me
esmagando como se eu fosse um
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squishie e estivesse tentando espremer todo o material vermelho e mole
para fora.
O cheiro de gasolina me alcançou.
A dor era insuportável agora. Meus olhos lacrimejaram de dor e fúria.
O draugr me agarrou com mais força.
Meu ombro deslocou e eu gritei quando meu braço estalou como um
palito de dente.
Algo acendeu. Através das minhas lágrimas eu vi o clarão de fogo e
Raphael em forma de sua fera furiosa, subindo pelo draugr que tinha seu
cabelo pegando fogo. Raphael saltou, correu para o rosto da criatura e
arrancou um olho morto-vivo com um soco esquerdo.
O draugr gritou e me soltou, batendo em si mesmo, tentando agarrar
Raphael.
Eu caí. Eu caí e de repente algo me pegou. Eu vi o rosto de Ascanio. Ele
me deixou de pé. Perto de mim, Roman se levantou, suas mãos arranhando o
ar, seu cajado gritando.
Acima de nós, o draugr era um pilar de fogo.
Uma forma peluda saltou do draugr, atingiu a árvore e caiu. Sim! Isso,
Raphael!
O draugr rugiu e se virou para nós.
Roman ficou tenso.
O morto-vivo deu um passo lento em nossa direção. Então outro.
— Queimá-lo não está adiantando, —Roman gritou. — Eu não posso
segurá-lo.
A chama cobria o corpo do morto-vivo, mas nada da carne realmente
carbonizar. Droga. Ele não poderia simplesmente morrer?
Os pés de Roman se deslizaram para trás. Raphael pousou ao lado dele.
Kate endireitou-se. — O que nós fazemos?
— Devemos separar as partes do seu corpo e enterrar essas partes em
lugares diferentes. Ele é da Terra, ele pertence a Terra. A Terra vai segurá-lo.
— Eu posso separá-lo se você o segurar por pouco tempo, —Kate disse.
— Mas isso será tudo que vou poder fazer. Depois fico sem magia e
nocauteada.
O draugr deu outro passo.
Roman se inclinou para trás. Seus olhos reviraram em sua cabeça.
Correntes cobertas de fumaça escura irromperam do chão e amarraram os pés
e os punhos do draugr.
Kate abriu a boca e disse uma palavra de poder. A magia explodiu dela
em uma torrente e se chocou contra o draugr, mal me tocando. O pânico me
espirrou. Minha pele se arrepiou e uma gargalhada histérica de hiena me
arrancou, ecoando a risada maluca de Raphael e o riso alto de Ascanio.
O draugr recuou, tentando correr, as correntes se esticaram, e seu corpo se
despedaçou como um brinquedo de montar.
Atrás de mim, Kate caiu no chão. Roman soluçou uma vez e caiu ao lado
dela. Agora restávamos nós três.
Nós corremos. Agarrei um braço enorme e puxei-o com toda a minha
força, para a floresta, longe da estrada, e cavei no solo, arrancando as raízes e
cortando meus dedos peludos em pedras pontiagudas. Meus braços estavam
cheios de dor. Ignorei a dor. Cavei cada vez mais, jogando terra para os
lados, até que finalmente eu empurrei a parte do braço no buraco e a cobri
com terra. Então eu corri para a estrada, peguei o próximo pedaço e fiz a
mesma coisa de novo e de novo.
Nós cinco estávamos deitados em macas na ala médica do hospital da
Fortaleza. Quando tínhamos entrado mancando na Fortaleza com o escudo,
imundos, cobertos de sangue, sujeira, e usando o delicioso perfume de carne
em decomposição misturado com gasolina e fumaça, Doolittle quase teve um
aneurisma.
Nós tínhamos sido amarrados e deitados a força em nossas camas na ala
hospitalar. Até mesmo Ascanio, que havia saído impune. Doolittle e seus
assistentes nos examinaram e rapidamente determinaram que Rafael tinha
queimaduras de segundo grau, eu tinha um braço fraturado, Roman estava
desidratado e tinha sofrido uma concussão, e Kate tinha duas costelas
quebradas, um quadril machucado e seu joelho tinha se deslocado
novamente. E então Curran atravessou a porta.
A raiva do Senhor das Feras era uma coisa terrível de se ver. Algumas
pessoas invadiam, alguns socavam coisas, mas Curran escorregava para esta
calma gelada e arrepiante. Seu rosto endurecido em uma máscara neutra, e
seus olhos se transformaram em um inferno derretido de ouro puro. Se você
olhasse para ele por mais de dois segundos, seus músculos se trancariam,
seus joelhos tremeriam, e você teria que lutar para não se encolher. Era mais
fácil olhar para o chão, mas eu não fiz isso. Além disso, ele não estava com
raiva de mim. Ele não estava nem bravo com Kate. Ele estava zangado com
Anapa. Eu não tinha dúvidas de que, se ele conseguisse segurar o deus
naquele momento, ele o teria quebrado ao meio.
— São apenas as costelas, —Kate disse a ele. — E elas nem estão
quebradas. Estão só fraturadas.
— E o quadril, —disse Doolittle. — E o joelho.
Aí está. Não espere misericórdia de um texugo.
— Quanto tempo você precisa mantê-la mais aqui? —Curran olhou para
Doolittle.
— Ela pode ir para seus aposentos, desde que não saia de lá, —disse
Doolittle. — Eu não posso fazer mais nada com a magia em baixa. Ela deve
ficar quieta até eu poder consertá-la.
— Ela vai. —Curran estendeu a mão para Kate. — Ei bebê. Pronta?
Ela assentiu. Curran deslizou as mãos por baixo dela e levantou-a com
delicadeza, como se não pesasse nada.
— Bom? —Ele perguntou.
Ela colocou o braço ao redor dele. — Nunca estive melhor.
E ele a levou embora.
— Então, jovem senhora, como você quebrou o seu braço? —Doolittle
me perguntou.
— Ela estava tentando impedir que Kate fosse mastigada, —disse
Raphael.
— Uma causa digna. —Doolittle olhou para mim. Esperei que a ficha
dele caísse.
— Você sabia que seu braço estava quebrado? —Ele perguntou.
— Sim.
— E você, por acaso, colocou o braço em uma tipoia ou fez um esforço
para mantê-lo parado?
Oh Cristo — Não. Estava ocupada.
— O que você fez com o braço quebrado, mesmo? —Doolittle perguntou.
— Eu cavei. —E doeu como o inferno, mas nesse momento matar o
draugr era mais importante.
— Você estava sob estresse? —Doolittle perguntou.
— Eu estava tentando enterrar pedaços de um gigante morto-vivo para
evitar que ele ficasse furioso através da floresta e comesse qualquer humano
aleatório que encontrasse. Isso seria muito mais fácil se você me disser onde
quer chegar ao invés de fazer todas essas perguntas.
Doolittle acenou para um de seus assistentes. A mulher baixa se
aproximou rapidamente da cama de Roman. — Coloque-o em seu próprio
quarto privado
— Isso é um código para me matar? —Roman perguntou. — Porque eu
não vou ser fácil de derrubar.
Ela deu uma risadinha e empurrou a cama dele com ele nela.
O medi-mago olhou para Ascanio. — Você também pode ir.
O garoto pulou da cama e saiu correndo como se estivesse pegando fogo.
Doolittle puxou a cadeira e sentou-se ao meu lado. Seu rosto era tão
gentil. — Eu já tratei um menino, —ele disse.
— Ele era um homem-rato abusado por sua família. Seu pai o espancava
repetidamente. Ele era um desperdício odioso de um ser humano e a mudança
de forma do garoto deu a ele uma desculpa para se enfurecer.
Um nó formou na minha garganta. — Humm.
— O Lyc-V é um vírus muito adaptativo, —disse Doolittle. — Se o corpo
é ferido da mesma maneira repetidamente, ele se adapta a essa velocidade dos
ferimentos. Metamorfos em climas mais frios crescem pêlos mais grossos.
Metamorfos em climas com exposição solar frequente desenvolvem melanina
em ritmo acelerado.
— Sim. —Eu sabia de tudo isso.
Doolittle inclinou-se um pouco para mim. — O menino que mencionei
desenvolveu seu próprio mecanismo de defesa: seus ossos se curavam com
extrema rapidez. Seu corpo continuava tentando lhe dar ferramentas para
fugir da próxima surra.
— O que aconteceu com o menino? —Perguntei.
— Não vamos nos preocupar com ele agora, —disse Doolittle. — Vou
fazer algumas perguntas particulares. Você gostaria que Raphael ficasse ou
fosse embora? Diga a palavra e eu vou jogá-lo para fora.
Raphael mostrou os dentes.
— Ele pode ficar, —eu disse.
— Houve algum abuso físico em sua infância, Andrea? —Perguntou
Doolittle gentilmente.
Engoli. — Sim.
— Por quanto tempo?
— Onze anos.
Doolittle pegou minha mão e apertou um pouco. — Seus ossos curam
muito rapidamente sob estresse. O corpo une-se a eles o mais rápido possível
sem se importar se estão ou não alinhados, tentando simplesmente tornar
você operacional novamente.
Eu olhei para o meu ombro. Não parecia no lugar certo. — Você tem que
recolocar meu braço.
— Eu sinto muito, —disse Doolittle. — O braço está torto. Tente levantar
todo.
Eu levantei meu braço. Uma dor aguda atingiu meu ombro bem no centro
do osso.
— Quanto mais demorarmos, mais difícil será colocá-lo no lugar, —disse
Doolittle.
Uma metamorfa trazia um carrinho cheio de instrumentos.
— Você vai usar um martelo? —Perguntei. Na minha cabeça, Doolittle
colocava um pé-de-cabra no meu ombro e batina nele com um martelo.
— Não. Usarei uma serra elétrica estreita. Você terá que ser sedada. Eu
prometo que você não sentirá nada.
— Certo. —O que mais havia para dizer?

As águas do Nilo lambiam meus tornozelos. Saí da água escura para a


areia na margem. O vento trouxe o fedor agudo de sangue. Uma matança
fresca estava em algum lugar próximo.
Os arbustos verde-escuros farfalhavam. O Chacal saiu, arrastando um
touro morto pelo pescoço. O Chacal cresceu desde que nos conhecemos. Era
mais alto que um cavalo agora, com uma cabeça enorme e olhos âmbar do
tamanho de pratos de sobremesa.
O Chacal derrubou o touro na minha frente. — Coma.
— Não. —O alimento tinha significado para os metamorfos. Os amantes
davam um ao outro e os alfas davam aos seus membros do clã. Uma oferta de
comida às vezes era uma declaração de amor, mas com mais frequência uma
oferta de proteção em troca de lealdade, e eu não aceitaria nenhum deles.
— Adapte-se a si mesmo. —O Chacal mordeu a barriga macia do touro.
— Estamos ajudando você. Por que não soltar a criança?
O Chacal levantou seu focinho sangrento da matança. — Por que eu
entregaria meu refém? Ela me serve muito bem.
Eu sentei na grama. O sol estava se pondo novamente e as águas paradas
brilhavam com vapor fraco. Os sons molhados do grande predador comendo
atrás de mim arruinavam a beleza da paisagem.
— Por que você faz isso? —Perguntei finalmente.
— Humm?
— Por que você joga esses joguinhos? Você poderia ter nos ajudado com
o draugr, mas não o fez. Você poderia deixar o Bando se juntar a nós. É do
seu interesse ganhar.
— Não. É do meu interesse recuperar a minha divindade. —O Chacal se
aproximou e deitou ao meu lado, um monte de pelo e escuridão. — Você sabe
como uma divindade começa?
— Não.
— Com um mito. —O Chacal suspirou. — Começa com uma lenda
contada ao redor do fogo. Uma história de realizações milagrosas e gloriosa
vitória sobre o mal. Eu estava lá quando começou esse processo para mim,
mais de seis mil anos atrás. Eu lembro.
— Quem era você? —Perguntei.
— Um chefe tribal, —disse ele. — Eu tive uma esposa e muitos filhos.
Uma vez salvei uma ninhada de filhotes de chacal de uma inundação e eles
me seguiam em todos os lugares que eu ia. Eles trouxeram outros da sua
espécie para o assentamento. Eu nunca fui mordido. Cortei minha perna
enquanto caçava e a matilha a lambeu. Foi um verdadeiro presente.
Peças clicaram na minha cabeça. — Você virou um metamorfo?
— Eu fui o Primeiro, —disse ele. — O Primeiro destinatário do presente,
seu poder não se diluiu dentro de mim. Nós, os humanos, éramos diferentes
naquela época. Nós tínhamos magia. Ela fluía através de nós, através do
nosso sangue, através dos nossos ossos. Nascíamos ensopados nela.
— Como você se tornou um deus?
O Chacal encolheu os ombros. — Essas lembranças são obscuras.
Minhas ações foram contadas na frente das fogueiras, minhas vitórias,
minhas aventuras. Eles me mantiveram vivo. Meus descendentes me fizeram
um santuário de ossos e pedras e oraram por minha orientação. Minha tribo
prosperou e quanto mais eles oravam, mais poder ganhei, até que finalmente
cheguei a existir novamente.
— Assim, desse jeito?
— Assim, desse jeito. As pessoas pedem ajuda para coisas que são mais
poderosas. Eles imploram por chuva ano após ano, então fazem um
santuário para um mago que uma vez trouxe chuva ou para um engenheiro
que irrigava seus campos décadas atrás, e se eles orarem bastante, sua nova
divindade ganha vida e cresce em poder.
O Chacal olhou para o rio. — Esta nova era, tem um ditado: 'A história é
escrita pelos vencedores'. É verdade. Veja a história de Apep. Set, que estava
lá conosco lutando tão corajosamente como qualquer um de nós, tornou-se o
rosto das trevas. Bastet foi diminuída para uma assassina de vermes. E eu?
Tornei-me o senhor de cadáveres, reverenciado, adorado, mas dificilmente
temido. Até meu irmão Sobek, o senhor dos crocodilos, era mais temido do
que eu. Eu o odeio por isso e Sobek zomba de mim, o deus do conhecimento
tornou-se um deus de piada. Quando o tempo do meu povo chegou ao seu
pôr-do-sol, quando chegou ao fim, vieram os gregos. Eles zombaram de nós.
Eles me chamaram de Barker. O interessante sobre isso é que os gregos
antigos se foram e eu resisti ao tempo e depois aos romanos, mas nunca
esqueci o insulto.
Ele ficou em silêncio.
— O Bando, —eu perguntei.
— Deixe-me dizer-lhe como o meu novo mito irá surgir, —disse o
Chacal. — Na nova era da magia, ainda jovem, uma serpente desprezível
surgiu, ameaçando a sanidade de todas as pessoas. Poderoso deus Inepu e
seus lacaios desconhecidos lutaram contra a serpente, mataram-na e
triunfaram. Todos aqueles que, a partir de então, não desejaram ser
devorados pela serpente da loucura agradeceram ao poderoso Inepu.
Pediram sua bênção. Pediram sua sabedoria. Ofereceram suas orações a ele
para que ele possa protegê-los com seu poder. Afinal, ele é o poderoso
guerreiro, o assassino inspirador.
— Esse é um plano ambicioso. —Então eu deveria ser uma lacaia
desconhecida e ele se tornaria um deus guerreiro.
O Chacal olhou para mim. — Não zombe de mim, filhote de cachorro. A
divindade é como uma droga, uma vez que você provar, não há como voltar
atrás.
— Eu ainda não entendo por que você não deixa o Bando ajudar.
— Porque eles são liderados por um Primeiro, —disse o Chacal.
— Curran?
O Chacal assentiu. — Foi assim que comecei como Primeiro. O que é
mais impressionante, um chacal ou um leão? Qual você temeria mais? A
quem você ofereceria suas orações?
Eu pisquei. — Você tem medo que Curran roubará sua divindade?
— Medo é uma palavra forte. Não temo nada. —O Chacal pousou a
cabeça nas patas dianteiras e contraiu a orelha.
— Exceto ser esquecido, —eu disse.
— Isso.
— E como meu corpo se encaixa no seu esquema? Você não estaria
mudando de gênero?
— Eu não me importo, —disse ele. — Um deus ou uma deusa, enquanto
meu poder crescer. ..
— Há um pequeno problema, —eu disse a ele. — Para que esse plano
funcione, a Apep precisa ressuscitar e temos a escama dela.
— A escama não é necessária para a ressurreição dela.
— O que? Então fizemos tudo aquilo por nada?
O chacal ergueu a cabeça. — Claro que não. A escama é sua armadura.
Sem isso, ela será mais fácil de matar. Sua pele estará vulnerável.
— Onde? Onde eles estão ressuscitando ela?
O Chacal riu baixinho.
Eu agarrei sua orelha e afundei minhas unhas na carne. — Onde eles vão
ressuscitá-la? Quando?
— Eu não sei. —O Chacal girou e me mordeu, levando metade do meu
corpo em sua boca enorme. Dentes perfuraram meu estômago e minhas
costas. — Você é a investigadora. Descubra.
O mundo voltou para mim em uma onda de dor alucinante e eu vi os
olhos de Doolittle acima de uma máscara cirúrgica. Agonia agarrou meu
braço. Raphael rosnou: — Ela está sangrando!
— Vai ficar tudo bem, —disse Doolittle, sua voz calma e firme.
Uma metamorfa que eu não conhecia puxou o lençol para baixo de mim.
Uma fileira curva de marcas sangrentas de dentes estava aberta no meu
estômago.
— Eu estou bem, —estou de volta. — Continue.
Raphael pegou minha mão na dele. Apertei-o e observei as marcas dos
dentes se fecharem enquanto Doolittle terminava de serrar meus ossos.

Finalmente Doolittle terminou. Não doeu uma vez que o osso já havia
sido cortado, ou pelo menos não doeu muito. Roman sentou na minha cama
por um tempo e me contou piadas engraçadas enquanto outros limpavam ao
redor.
Finalmente todos eles saíram. A escuridão havia caído, eu pedira que
deixassem as luzes apagadas, então no quarto só restava o luar. Olhei tudo ao
meu redor e me senti completa e totalmente sozinha.
Soltei um longo suspiro que pareceu mais como um soluço.
Uma sombra se destacou da porta do banheiro e cruzou o chão para mim.
Seu perfume me atingiu primeiro, aquele cheiro irritante, reconfortante e
endurecedor. Raphael se ajoelhou na minha cama, descansando um braço na
cabeceira, e se inclinou sobre mim até que nossos olhos estivessem nivelados.
— Oi.
— Oi.
— O que está acontecendo com você?
— Nada. O que faz você pensar que algo está acontecendo comigo?
Seus olhos azuis me examinaram. — Você saiu da sedação com marcas
de mordida em seu estômago e lama em seus pés.
— Muitos metamorfos saem da sedação cedo.
Ele balançou sua cabeça. — Esta é a sedação de Doolittle de que estamos
falando. O que está acontecendo?
Eu apertei meus dentes para impedir que as palavras saíssem.
— Andi, estou bem aqui. Olhe para mim. —Ele se inclinou para mais
perto. — Olhe para mim.
Olhar para ele foi um erro fatal. As palavras fizeram uma pausa e eu não
consegui mais mantê-las. Coloquei meus braços, o bom e aquele em uma tala,
em torno dele. Minha bochecha roçou a dele, sua pele contra a minha e eu o
beijei. Eu o beijei com tanta ternura e amor quanto pude, porque de um jeito
ou de outro eu o perderia.
— Ele quer meu corpo, —eu sussurrei no ouvido de Raphael. — Ele quer
usá-lo em vez do que ele tem agora, porque eu tenho uma melhor
constituição metamórfica e melhor magia.
Seus braços se apertaram em volta de mim.
— Eu tenho que ser voluntária.
— E se você não fizer isso? —Ele sussurrou.
— Coisas ruins vão acontecer. —Eu o beijei novamente, meus braços
segurando ele. — Eu vou lutar com ele. Vou lutar com ele com tudo que
tenho, mas se isso acontecer, se eu for obrigada o aceitar, não serei mais eu,
será ele. —Eu sussurrei, minha voz tão baixa que não tive certeza se ele
ouviu isto. — Não importa o que aconteça, eu amo você. Você sempre será
meu companheiro. Me perdoe. Eu sinto muito que não temos mais tempo.
Raphael me apertou, me pressionando para ele. — Você me escute. —
Seu sussurro era uma promessa feroz. — Ele não vai ter você. Nós vamos
matá-lo juntos. Confie em mim. Eu não vou deixar.
— Você pode ter que ser obrigado, —eu disse a ele. — Você tem que me
prometer que se ele pegar meu corpo, você irá se afastar, Raphael. Você irá
continuar, vai encontrar alguém para amar, vai ter filhos ...
— Cale a boca, —ele me disse.
— Prometa-me.
— Eu não estou prometendo nada, —disse ele. — Eu morreria antes de
perder você.
— Raphael!
— Não.
Ele deslizou na cama ao meu lado, me segurando em seus braços.
Seu perfume me envolveu, e eu segurei nele, até que adormeci.

Capítulo 15
De manhã, acordei sozinha no quarto do hospital. Doolittle levou um
enorme café da manhã para mim e ficou no meu pé enquanto eu comia até o
último pedaço de ovos mexidos, fatias de lombo e panquecas. Eu engoli tudo
e escapei da enfermaria para procurar Roman.
Encontrei o sacerdote do deus mau em um canto do pátio norte. Era um
daqueles pequenos espaços externos dentro da Fortaleza, protegidos por um
muro alto e feitos para proporcionar relativa privacidade. Para chegar lá,
atravessei o arco de pedra, caminhei até o fundo de uma torre baixa e, no
meio do caminho, ouvi risos estridentes.
O Volhv negro estava em um banco, cercado por um bando de crianças, e
fazia pequenas coisas desaparecerem de suas mãos e reaparecerem atrás de
suas orelhas e em seus cabelos. Uma mulher em um casaco observava-o
discretamente encostada na parede. Os visitantes da Fortaleza nunca eram
deixados sem supervisão, especialmente em torno das crianças.
Inclinei-me contra a parede e observei o Volhv também. Havia algo tão
alegre em Roman. Era como se parte de sua vida fosse tão sombria e escura
que ele sentia a necessidade de viver o resto dele ao máximo, espremendo
cada pedaço de diversão e felicidade disso. Mesmo seus suspiros martirizados
tinham uma qualidade ligeiramente zombeteira sobre eles, como se ele
apenas fingisse estar chateado.
Roman me viu. — Certo, isso é mágica suficiente para hoje. Vão agora.
Vão, vão, vão.
As crianças decolaram. Roman abriu os braços. — O que posso fazer.
Sou muito popular.
Eu sorri e sentei ao lado dele no banco. — Eu tenho uma pergunta séria.
— Eu vou dar uma resposta séria.
— Pode um deus ser morto?
O humor drenou do rosto de Roman. — Bem, isso depende se você é um
panteísta ou marxista.
— Qual é a diferença?
— O primeiro acredita que a divindade é o universo. Os dois são
sinônimos e inexistentes um do outro. O segundo acredita no
antropocentrismo, vendo o homem no centro do universo e deus como apenas
190
uma invenção da consciência humana. Claro, se você seguir Nietzsche ,
você pode matar deus apenas pensando nele.
Faça uma pergunta a um sacerdote e receba uma resposta enigmática. Não
importa qual religião ... — Roman, —eu disse. — Posso matar Anúbis?
— Estou tentando responder. Anúbis é uma divindade, uma coleção de
conceitos e crenças específicas. Você não pode matar um conceito, porque
para isso você deve destruir todo ser humano que crer nele. Sua melhor
aposta seria identificar a todos que alimentam a ideia de sua existência e
atirar na cabeça deles.
— Então a resposta é um não?
Roman suspirou. — Eu não terminei. Você quer respostas simples para
perguntas muito complicadas. As perguntas erradas. A pergunta que você
deveria fazer antes de ‘se um deus pode ser morto’, é que é Anúbis? Você
deve entender a natureza de uma coisa antes que possa terminar sua
existência. No caso de Anúbis, sua divindade é parcial. Ele requer uma forma
mortal para sobreviver aos períodos de tecnologia. Sua forma mortal é apenas
isso, mortal. Você conhece sua natureza. Você sabe onde cortar e como você
pode destruí-lo. Você pode acabar com a forma mortal de Anúbis. Isso
acabará com Anúbis? Não há certezas neste mundo, mas eu teorizaria que
não, não. Enquanto houver um culto de Anúbis, dedicado à veneração de seu
conceito específico com uma imagem específica, ele continuará. Ele
renascerá.
— Com que rapidez? —Perguntei.
— Com que rapidez ele irá voltar se você o matar? —Roman franziu o
cenho. — O aperto dele em sua forma corpórea é tênue. O fato de que ele
poderia ser morto em si é devastador para sua divindade. As pessoas não
gostam de acreditar em deuses que podem ser assassinados e permanecerem
mortos, eles preferem muito mais acreditar no renascimento. Se eu fosse ele,
eu teria esperado algumas centenas de anos antes de decidir molhar os dedos
nessa bagunça mágica e tecnológica. Então a resposta simples é que ele
retornará. Mas não na minha vida e provavelmente não na de nossos filhos ou
netos. Eu me prepararia mesmo assim, porque quando ele voltar, ele estará
chateado.
— Então seu corpo mortal pode morrer?
— Sim. É apenas um corpo. Infelizmente, é um corpo com enorme
potencial mágico. Eu não sei quais são as reservas dele, mas ele usará cada
gota delas para se defender. Ele tem sido muito conservador com seus shows
de poder até agora, o que provavelmente significa que ele está acumulando
isso para essa batalha final com a Apep no caso de falharmos.
Se o corpo mortal fosse o alvo mais provável, lutar contra ele em meus
sonhos seria inútil.
Roman deu um tapinha nas minhas costas. — Anime-se, garota mortal.
As coisas têm um jeito de se resolver.
Não dessa vez. Mas eu não iria humildemente para o abate. Não, eu
lutaria contra ele pelas vidas das pessoas que amava até o amargo fim.
Ganhar ou perder, Anapa se arrependeria de me conhecer.
Raphael atravessou o arco, seguido por Ascanio. Raphael estava de calça
jeans preta e uma camiseta preta que complementava seu cabelo e mostrava
seus bíceps bem torneados. Ascanio de alguma forma conseguiu copiar sua
roupa tão precisamente que ele se parecia com o irmão mais novo de
Raphael.
Raphael viu Roman, registrou sua mão nas minhas costas e focou nele
como um tubarão.
— O que você está fazendo aqui?
— Estou sentado e conversando com uma garota bonita. —O Volhv
olhou para ele com um ar ligeiramente zombeteiro. — Estávamos nos
divertindo muito até você aparecer.
— Isso é bom. Que tal você se mandar daqui, —disse Raphael.
— Estou muito cansado de você me dizer o que fazer, —disse Roman.
Eles brigaram o caminho inteiro de volta da luta com o draugr. Meu braço
doía demais para prestar atenção, mas, aparentemente, durante a batalha na
clareira, alguém havia corrido para o lado errado e os dois conseguiram
colidir, o que interrompeu o feitiço de aprisionamento de Roman. Eles
culparam um ao outro. O fato de que Raphael e eu estávamos juntos e ele não
conseguia tolerar homens na minha vizinhança também não ajudava.
— Vai. Cai fora, —disse Raphael.
O Volhv recostou-se, com os braços atrás da cabeça. — Que tal você ir se
foder?
Resposta agradável na ponta da língua.
Raphael sorriu. — Grande linguajar para um homem em um vestido.
— Não é um vestido. É um manto, que são minhas roupas de trabalho.
Você sabe, trabalho? A coisa que os homens de verdade fazem?
Ôu-ôu!
— Homens de verdade, hum? —Raphael ainda estava sorrindo, e a
insinuação de insanidade em seus olhos o fez parecer um pouco
desequilibrado.
— Em que você trabalha mesmo? —Roman franziu a testa, fingindo
pensar. — Ah sim. Você fica parado e se mantem bonito para impressionar os
visitantes do sexo feminino? Você deve ser muito bom nisso. Afinal, não
requer nenhuma habilidade real envolvida. Só acho que não existe uma
aposentadoria para esse tipo de coisa, no entanto. Não ajuda a manter uma
esposa e filhos alimentados também. A menos que você encontre uma
senhora rica e espere que ela pague suas contas em troca de favores ...
Ele não pode ter dito isso.
Raphael congelou, momentaneamente ferido, sem palavras.
— Quantos anos a velha senhora teria que ter? —Perguntou Ascanio. —
Velha como quarenta?
— Volte para a Tia B e fique com ela, —disse Raphael. Sua voz estava
estranhamente calma. Ôu-ôu.
— Sim, Alpha. —Ascanio girou nos calcanhares e decolou.
Raphael o havia tirado do perigo imediato.
— O que vocês dois estão fazendo? —Eu perguntei a eles. — Não temos
um problema maior para resolver?
— Fique fora disso, —Raphael me disse. — Isso é entre ele e eu.
Eu conhecia esse olhar. Era o seu olhar ‘Eu farei isso ou morrerei
tentando’.
— Eu tenho que concordar, —disse Roman. — Esta é uma conversa entre
nós.
Dois idiotas. — Tudo bem, —eu disse. — Se matem.
Raphael se concentrou em Roman com a concentração inabalável de um
predador avistando sua presa. — Vamos, agora. Vamos.
Roman sorriu. — Certo.
Raphael se esticou, rolando a cabeça da esquerda para a direita.
Roman levantou-se, pegou seu cajado e o girou como um monge Shaolin
inclinado em fúria. Raphael endireitou os ombros.
Homens. Isso dizia tudo.
Roman se inclinou para frente. O vento girava em torno de seus pés. O
Volhv negro disparou para frente, como se suas botas pretas tivessem asas.
Raphael saiu do caminho, deixando Roman passar por ele, girou, deu um
pulo e chutou Roman entre as omoplatas.
O mago voou para a parede, mas não bateu, porque uma almofada de ar
invisível parou sua queda. Ele se pôs de pé e se virou. — Humm.
Raphael tinha um olhar assustadoramente sombrio em seu rosto.
Os lábios de Roman se moveram. Um casulo de fios negros escorregou
do chão em correntes retorcidas, envolvendo-se em torno dele, sem o tocar.
Raphael atacou, surpreendentemente rápido.
Os fios pretos se encaixaram em torno do pulso de Raphael. Roman se
aproximou e dirigiu um golpe esmagador no topo do quadril de Raphael.
Soava como uma marreta batendo em uma viga. Eu já tinha visto esse golpe
antes. Era um golpe de sambo, uma arte marcial de defesa pessoal que os
russos praticavam. Eita, eita, eita, eita. Raphael pegou os fios pretos e puxou.
Roman se esforçou, recuando.
Um garotinho correu pelo arco de pedra e se dirigiu para os dois. Eu pulei
do banco, corri e peguei ele.
— Oi! —Ele disse.
Eu o levantei do chão. Meu braço na tala gritou um pouco e eu mudei seu
peso para o outro. — Oi.
— Eles estão lutando! —O menino me disse, apontando para os dois
homens.
— Sim, eles estão. Onde estão seus pais?
Um casal correu através do arco, um homem alto e uma mulher de
cabelos escuros em seus trinta e tantos anos, seguidos por uma adolescente.
— Dylan! —A mulher pegou o menino. — Me desculpe. Nós apenas
queríamos dar nossos respeitos ao alfa. Nos disseram que ele estaria aqui.
Nós não pretendíamos interromper. Estamos tentando entrar no Clã Bouda ...
Olhei para o rosto dela e o reconhecimento me deu um soco no estômago.
Michelle.
Michelle Carver, que cravou um prego na minha mão quando eu tinha
cinco anos, porque ela achava engraçado ouvir-me gritar. Michelle Carver,
que me bombardeou com tijolos, depois que Candy quebrou minhas pernas.
Tudo o que pude fazer foi rastejar e Michelle me perseguiu e jogou tijolos e
pedras na minha cabeça. Michelle, que aplaudiu enquanto a cadela alfa
espancava minha mãe até deixa-la em uma poça de sangue. Michelle ‘Bata
nela novamente, Candy!’
Eu tinha matado cada uma delas. Todas, exceto ela. Ela tinha
desaparecido um par de anos antes de eu voltar e limpar aquele sádico clã de
cadelas boudas da face do planeta. Eu tentei encontrá-la, mas ela tinha feito
um bom trabalho em cobrir seus rastros.
Raphael soltou os fios. — Andrea?
Eu estava segurando o filho de Michelle Carver em minhas mãos.
Soltei o garoto. Ele deslizou para o chão.
— Andrea? —Todo o sangue drenou do rosto de Michelle. — Andrea
Nash?
Ela se afastou de mim.
Raphael veio em minha direção.
— Você sabe o que ela é? —Uma nota histérica vibrou na voz de
Michelle. — Ela é uma bestial.
O mundo de repente se tornou muito simples. Eu me transformei. Seu
companheiro tentou ficar no meu caminho. Eu dei um empurrão e ele voou.
Agarrei Michelle pela sua garganta e a levei para a parede, prendendo-a no
lugar. Meu braço tinha pêlo e minha mão tinha garras, e o sangue de Michelle
esguichando sob sua pele através de sua jugular fazia cócegas em meus
dedos.
— Diga-me novamente o que eu sou. —Eu esmaguei a parte de trás de
sua cabeça no tijolo. — Me diga de novo.
Michelle coaxou no meu aperto. Ela não fez nenhum movimento para
mudar. Não tinha forma de guerreiro. Ela nunca foi a mais forte. Não, ela só
gostava de pegar alguém mais fraco e amedrontá-la. Não mudou nada.
— Esta mulher fez algo ruim para você? —Roman perguntou.
— Esta mulher torturou a mim e a minha mãe durante anos.
Roman encolheu os ombros. — Seja lá o que você quer fazer com ela,
seja rápida, eu vou cuidar da entrada para você.
Ele se foi. Tudo o que restou era a garganta pálida e macia de Michelle. O
mundo estava vermelho. Muito vermelho, e toda vez que exalava, o mundo
ficava cada vez mais raivoso e mais vermelho.
A mão de Raphael descansou no meu ombro. Ele me acariciou, dedos
firmes acariciando minha pele. — Você tem o direito da vingança e seria bom
se vigar.
Seria ótimo. Ele não tinha a mínima ideia de como seria ótimo. Queria
dizer a ele que finalmente a peguei. Eu tinha contado a Raphael sobre ela
antes. Eu queria dizer a ele agora o quanto queria rasgá-la, mas tudo o que
saiu foi um grunhido.
— Eu conheço você. —Raphael colocou os braços em volta de mim, sua
boca perto da minha orelha, sua voz suave. — Se você a matar na frente de
seus filhos, isso vai assombrá-los pelo resto de sua vida. Deixa ir, amor.
Deixe ela ir.
Não! Não, ela não conseguiria fugir disso. Não! Todo mundo pagou, ela
pagaria também.
Meu braço ferido doía. A dor era tão crua, tão fresca.
Ela pagaria. Este desperdício fraco e cruel de ser humano pagaria. Esse
pedaço de merda que atormentou minha infância. Ela era a razão pela qual eu
acordava segurando a porra de uma faca de açougueiro. Ela era a razão pela
qual Doolittle teve que usar uma serra em meu braço. Ela pagaria!
— Deixe ela ir, querida. Deixe-a ir, Andi. Para o seu próprio bem. Por
mim. Por nós. —Raphael beijou minha pele logo abaixo da minha orelha. —
Deixe ela ir, amor.
Eu queria afundar no vermelho. Eu queria ver o sangue dela nas minhas
mãos. Mas sua voz me segurou de volta.
— Controle-se, —disse ele. — Seus filhos estão assistindo. Controle-se,
querida.
Eu ouvi um pequeno som estridente, gemendo ao meu lado, e percebi que
era o garotinho berrando em medo histérico. Sua irmã soluçava.
— Você é melhor que isso, Andi. Faça a coisa Certa. Deixe-a ir embora.
Quando forcei meus dedos a abrirem, toda a dor das minhas memórias e
toda a minha frustração saíram de dentro de mim em um grito curto e agudo.
Eu girei e me afastei, para a outra parede, o mais longe dela que podia.
— Ela é bestial, —Michelle murmurou. — Ela é!
— Ela é a beta do clã e minha companheira, —disse Raphael.
Michelle cambaleou para trás como se ele tivesse batido nela.
Os olhos de Raphael eram duas poças ardentes de fogo vermelho-sangue.
— Seu pedido de entrada no clã foi negado. Reúna sua família e vá embora.
Se você estiver no meu território até o entardecer, eu vou te caçar e arrastar
você perante a comissão dos clãs para ser julgada por tortura, abuso de uma
criança, e quaisquer outras acusações que nossos advogados irão fazer contra
você. Você será considerada culpada, sofrerá e será executada. Seus filhos
estarão sob a proteção dos guardiões do Bando e eles odiarão seu nome
quando crescerem.
Michelle pegou o marido machucado. A filha dela pegou o menino e eles
saíram correndo.
Raphael andou em minha direção e passou os braços em volta de mim.
Minha raiva irrompeu em soluços torturados. Lágrimas molharam meus
olhos. — Eu tive ela.
— Eu sei.
— Nas minhas mãos.
— Eu te amo, —ele sussurrou. — Eu te amo, estou orgulhoso de você.
Foi a coisa certa a fazer.
— Não! —Eu não conseguia parar de chorar. Eu não estava triste, só não
conseguia conter o choro. — Ela deveria estar morta. Essa seria a coisa certa.
— Para ela, mas não para você. Isso te comeria viva. Não é quem você é.
Eu desabei no chão e chorei. Aprendi a não chorar naquela época, porque
quanto mais chorava, mais excitada elas ficavam, mas eu podia chorar agora.
Ninguém me impediria, e então eu sentei lá e deixei tudo sair, enquanto
Raphael me segurava e sussurrava palavras de tranquilidade, amor e
bobagens em meus ouvidos.
Eu não consegui matar a Michelle. Eu não podia traumatizar seus filhos
do jeito que ela me traumatizou. Mas poderia me juntar ao Bando e me
certificar de que nenhuma outra menina tivesse que enfrentar minhas
escolhas. Nenhum outro pequeno bouda estaria escondido, assustado e
sozinho, temendo ser encontrado e abusado novamente. Não no meu turno.
Não enquanto eu respirasse.
Gradualmente, meus soluços cessaram. Nós nos sentamos juntos, Raphael
e eu.
— Que fique claro, eu estava ganhando, —disse Raphael. Eu poderia
dizer pela voz dele que ele estava me distraindo. Havia conforto na familiar
provocação, e agora eu precisava desesperadamente disso.
— Não parecia assim de onde eu estava. Ele tinha você todo amarrado.
— Isso é o que você pensa, —disse ele.
— Isso é o que eu vi.
— Lidar com aquele tapete roxo deve ter causado algum dano cerebral
permanente, —disse Raphael.
— Para você.
Ele se inclinou e murmurou: — Não fui eu que ficou com manchas roxas
na bunda.
Ah, é assim, então? — Você gostaria de ter manchas roxas na bunda
também?
Ele sorriu e acenou com a cabeça.
— Talvez você precisasse de apoio para ajudá-lo com Roman, —eu disse
a ele.
— Eu não preciso de apoio. Eu posso segurá-lo com uma mão amarrada
nas costas.
— Ele tinha você com uma mão amarrada atrás das costas.
— Talvez parecesse assim de onde você estava sentada …
Foi assim que o mensageiro de Jim nos encontrou, sentados no chão,
brigando e flertando. As equipes de Jim haviam retornado do Warren, o
bairro pobre da rua White, e trouxeram com eles informações sobre Gloria.

Eu sentei em uma grande mesa de conferência cheia de comida e


relatórios. Jim sentou-se à minha frente e Chandra, especialista do antigo
Egito designado do Clã Chacal, sentou à minha esquerda. Entre nós
oscilavam pequenas montanhas de papelada, todas as informações que a
equipe de Jim havia extraído dos habitantes do Warren. Derek se juntou a nós
depois dos primeiros quinze minutos. Nós estávamos procurando por pistas.
Em algum lugar neste exato momento, os associados de Gloria estavam se
preparando para levantar Apep dos mortos. Precisávamos saber onde esse
local poderia estar, e Gloria era nosso único elo.
Já estávamos nisso por horas. Até agora eu tinha feito duas pilhas: uma
grande pilha de coisas que eu não considerava relevante, e uma pequena
pilha de papel que poderia ser alguma pista. Usei metade de um bloco de
notas anotando tudo que achava importante. Estava com fome novamente. A
hora do almoço chegou e foi embora sem que encontrássemos uma pista
quente.
— Seria bom se houvesse um mapa, —disse Chandra. — Com uma
cidade circulada.
— E uma nota que dizia 'Esconderijo secreto aqui'? —Acrescentou
Derek.
Eu examinei o papel na minha frente. Gloria usara um serviço de
transporte privado, que era mais rápido e mais confiável do que os correios,
mas que também obrigava os clientes a declarar o conteúdo exato de seus
pacotes. No caso de seus ‘pacotes’ decidirem lançar tentáculos quando a
magia atingisse, eles queriam estar preparados para essa eventualidade.
Um oficial de Jim, cujo nome era Douglas, havia rastreado a companhia
de transporte que Gloria usara e ofereceu a seu representante um suborno
ultrajante pelos documentos com as listas de tudo que foi entregue à Gloria.
Sabonete artesanal, trinta dólares por barra. Perfume caro. Sais de banho
delicados. Alguém estava vivendo um padrão alto.
Doolittle entrou pela porta. — Você não deveria estar descansando?
— Estou salvando o mundo, —eu disse a ele.
Doolittle parecia triste. — Eu vou fazer um pouco de chocolate quente
para nós.
Olhei na lista de entregas de Glória de novo: livros, blá-blá, mais sabão,
creme repelente de mosquitos. Humm. O Estado da Geórgia estava em época
de seca. Eu não vi um mosquito há tempos.
— Creme repelente de mosquitos, —eu disse.
Derek levantou a caneta. — Botas. Ela foi a loja Calçado Carlos’s e
pegou um par de botas de borracha dois dias antes de você matá-la. Algumas
crianças do Warren a incomodavam por alguns trocados e ela os mandavam
embora.
Erro fatal. Nunca aborreça as crianças de rua.
— Então, temos um local com água, —disse Jim.
— No mito original, Apep viveu no rio, —disse Chandra.
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— Ele poderia estar em algum lugar no rio Chattahoochee ? —Derek
perguntou.
— Não. —Jim bateu no papel. — Muito arriscado. O Chattahoochee é
muito raso e muito bem patrulhado. Metade das embarcações da cidade passa
por ele. O exército iria atacar uma cobra gigante no momento em que a
vissem.
— Então, temos lagos no norte ou ... —Derek pegou um mapa. — Ou o
rio Suwanee.
— O rio Suwanee funcionária, —disse Jim. — A água é profunda e
escura.
Procurei no meio dos registros de entrega. — Ela deu a ordem de uma
entrega a transportadora para uma remessa de grandes caixas e foram
despachadas algumas semanas atrás. Supostamente vidros. Entrega para ...
Waycross.
— Waycross, Georgia? —Jim perguntou.
— Sim.
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— Essa cidade fica à beira do pântano Okefenokee , —disse Derek.
— Também há pedidos de caixas para Augusta e Tallahassee, —eu disse.
— Precisamos de uma confirmação. —Jim vasculhou seus papéis.
Derek e eu nos enterramos em nossas pilhas.
— Pontões! —Derek anunciou vinte minutos depois. — Ela comprou um
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barco de pontões .
— Quando? —Eu olhei através de minhas anotações sobre os registros de
envio.
— No último dia 14. Comprou diretamente do lote da fábrica.
— Ela enviou uma grande caixa de antiguidades para Folkston no dia 15.
Onde fica Folkston?
— Na orla leste do Okefenokee. —Jim se levantou. — Nós a pegamos.
— Você não pode estar envolvido, —eu lembrei a ele.
— Não, de fato não podemos ajudá-los a lutar, —disse Jim. — Mas há
uma diferença entre não poder ajudar a lutar e preparar, ficar a postos e dá o
apoio que vocês precisarem no pântano. Vocês não vão sem um apoio para lá.
Não estarão sozinhos.
— Vou fazer algumas chamadas, —disse Derek.
Eles saíram da sala.
Doolittle colocou uma xícara de chocolate quente na minha frente. —
Beba isso antes de ir.
Eu bebi. Tinha que ter meio quilo de açúcar nisso. — É delicioso.
Doolittle deu um tapinha no meu braço. — É bom para você. Um pouco
de açúcar vai te dá energia.
Pouco, né?
— Obrigada, —eu disse a ele. — Você sempre foi gentil comigo. Não são
muitas pessoas que são assim. Eu nunca esquecerei.
— Você vai voltar. —Doolittle me fixou com seu olhar.
— Claro. —Levantei-me e o abracei.

194
Raphael, Roman e eu seguimos a Linha Ley de Atlanta. O trilho
mágico funcionava se a magia estava em alta ou em baixa, mas quando a
tecnologia estava em alta, como agora, a velocidade da linha ley caía para
apenas sessenta e cinco quilômetros por hora. Levamos várias horas para
chegar lá. A magia finalmente apareceu no mundo e nossa caravana saiu
direto entre Waycross e Folkston para os braços abertos de uma mulher
metamorfa com um Jeep do Bando. Ela era baixa, de cabelos escuros, e tinha
uma pitada de sardas no nariz.
— Aqui, o veículo de vocês. —Ela estendeu as chaves. Raphael as pegou.
— Vá por esse caminho, quando chegar a uma bifurcação peguem o caminho
da direita, depois na segunda bifurcação peguem à esquerda. Vocês irão parar
em um cais. Há dois barcos de pontões lá. Peguem eles. O caminho através
do pântano está marcado com tiras de tecido branco. Boa sorte.
Ela foi embora.
Nós carregamos a nossa carga no jipe, e eu subi com a minha
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submetralhadora Heckler & Koch UMP , conhecida também como pistola-
metralhadora. Roman se arrastou para o banco de trás.
Vinte minutos depois, paramos diante do píer de madeira. À nossa frente,
um canal estreito se curvava na parede verde de árvores e arbustos. Dois
barcos de pontões flutuavam na água escura de chá preto.
Uma caixa estava no cais. Do lado alguém havia escrito em marcador
preto: ‘Um presente do tio Jim’.
Raphael abriu a tampa da caixa. Roupas de camuflagens—Uniformes de
Combate do Exército, em adoráveis padrões aleatórios de verdes e marrons,
perfeitos para o pântano.
— Eu gosto desse tio. —Encontrei o menor conjunto e tirei meu jeans.
Roman arregalou os olhos, como se nunca tivesse visto uma mulher de
calcinha antes.
Raphael jogou um conjunto para ele. — Não fique aí parado. Vista-se.
— Você quer que eu use isso? —Roman olhou para os Uniformes e
colocou a mão sobre o peito, como se estivesse protegendo seu manto negro.
— Isso não está certo.
— Você tem um problema com calças? —Raphael perguntou.
Roman tirou o roupão, revelando um par de jeans pretos por baixo. — Eu
sempre uso minhas calças. Eu só não quero vestir essa roupa retardada. Eu
nem sei como colocar isso.
— Use a camuflagem, —eu disse a ele. — Não vai te matar. Se não usá-
los é que pode.
Roman suspirou, revirou os olhos e tirou o roupão e o jeans, revelando
um torso musculoso. Bem. Alguém tem trabalhado nos músculos. Roman
puxou as calças de uniforme, tirou as botas pretas, dobrou a parte inferior das
calças em um movimento praticado e enfiou os pés em suas botas.
Hmmm.
Em seguida, ele vestiu a camisa do Uniforme e dobrou as duas mangas
perfeitamente iguais até o cotovelo.
Raphael olhou para ele. Roman puxou o Uniforme e flexionou os
músculos do braço. — Aumenta o seu braço, viu?
— Seu idiota, —eu lhe dei um soco no ombro.
— Devagar! Eu me machuco facilmente. —Ele esfregou o bíceps
esculpido e eu peguei um vislumbre de uma tatuagem em seu braço: uma
caveira usando uma boina. Guarda florestal do exército.
Agora eu vi tudo.

Fiquei na proa de um dos barcos flutuantes e levantei os binóculos para os


meus olhos. Raphael sentou-se no leme. Roman pilotava o segundo barco
atrás de nós. Ele trouxe algum tipo de arreio de couro, que colocou em cima
de seu uniforme, e enfiou seu cajado nisso. Parecia ridículo, se destacando
por cima do ombro.
Um rio se estendia na minha frente, suas águas azuis-escuras e meio
escondidas por lírios e ervas daninhas.
Suas margens estreitas e cobertas por árvores, arbustos e juncos altos,
com os troncos nus e inchados na raiz, onde saiam da água, depois se
estreitavam à medida que se erguiam para se espalhar em um dossel de um
verde fresco e brilhante.
A visão parecia pré-histórica. Não me senti em casa aqui.
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— Ciprestes , —Raphael me disse, quando eu perguntei sobre eles um
minuto atrás. — Eles são resistentes contra os furacões.
Nós fizemos nosso caminho através do labirinto de água e ilhas falsas
feitas de turfa flutuante e cobertas com grama. O ar cheirava a água, peixe e
lama. Em algum lugar à esquerda, um jacaré rugiu, o som rasgando de sua
garganta profunda, poderosa e primitiva, como se o próprio pântano rugisse
em nossos rostos.
Havia uma beleza estranha e serena nesse antigo tumulto da vida, mas eu
não conseguia apreciar isso.
À frente o rio bifurcava, fluindo em torno de uma ilha, uma densa
confusão de arbustos e ciprestes. Um pequeno pedaço de pano branco pendia
do mato baixo, bem no centro do rio. Logo atrás, onde o pessoal de Jim havia
deixado marcas, elas estavam indicando à esquerda ou à direita do caminho
que precisávamos seguir. Este indicava a ilha, logo em frente.
— Ilha se aproximando, —eu disse. — Eu não acho que estamos dando
volta em círculos dessa vez.
— Entendi.
Desde a noite passada, Raphael tinha dito exatamente dezesseis palavras
para mim. Ele estava se distanciando. Provavelmente era melhor assim.
O barco deslizou para a margem lamacenta. Eu pulei na sopa encharcada
de lama e água e puxei de volta a lona que cobria o fundo do barco. Armas
me encararam, enroladas em plástico para manter protegidas da umidade.
Duas espingardas. Uma submetralhadora Heckler & Koch UMP. E meu bebê,
197
uma Parker-Hale M-85 , meu rifle sniper preferido. Eles não os faziam
mais. Foi um presente do meu instrutor de franco-atirador e essa arma me
permitia colocar uma bala no centro da testa de um homem a novecentos e
sessenta metros. Ela nunca havia falhado comigo.
Peguei o rifle e uma espingarda, Raphael empurrou a mochila cheia de
munição e agarrou o UMP e a outra espingarda. Um momento depois, Roman
atracou e puxou sua própria lona, recolhendo uma mochila gigante cheia de
parafernálias mágicas, e pegou meu arco composto e duas aljavas cheias de
flechas. Partimos pelo pântano, movendo-nos tão silenciosamente quanto o
solo úmido permitia.
O caminho começou a subir. Deve ter havido um afloramento de rocha
sob toda aquela lama. Continuamos subindo a suave colina que se erguia.
Raphael parou, cheirando. Um momento depois cheirei também, fumaça.
Nós nos inclinamos, subindo a colina em completo silêncio, até que
finalmente encontramos o fim dela.
Uma pequena cidade espalhada na frente da colina, estendendo-se pela
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várzea . Cabanas e barracos feitos de madeira, barracas, prédios pré-
fabricados, todos conectados por passarelas de madeira, no centro um canal
circular. A água barrenta enchia o canal, drenando a várzea. Em seu centro,
uma estrutura maciça se estendia para o céu. Com pelo menos noventa metros
de altura, assemelhava-se a uma espiral feita de tubos lisos, mais largo na
base, no chão, e se estreitava à medida que girava sobre ela repetidamente,
alcançando o topo da estrutura.
Uma espiral de argila. A profecia de Roman estava se tornando
realidade.
— Eles construíram um enorme cocô de cachorro, —Raphael murmurou.
— É uma cobra, —disse Roman. — Olhem, vejam a cabeça descansando
no topo, e a cobra está se curvando ao redor da pirâmide circular formada
pelo seu corpo. Eles fizeram o deus deles de barro, e então eles o darão vida.
É muito inteligente, na verdade.
Os tubos na base da pirâmide tinham pelo menos cinco metros de altura.
Coloquei o binóculo em meus olhos.
O topo da pirâmide era plano. A cabeça de uma colossal cobra de barro
descansava de um lado, os olhos fechados, o cobiçado cajado de Roman
atravessando o início do pescoço da serpente. Ao lado da serpente estavam
três estátuas de barro, com as pernas cruzadas, braços apoiados nos joelhos.
Atrás deles, um altar curto se erguia. No altar estava a presa de Anúbis.
Desloquei a vista para as cabanas e contei, dois, cinco, oito, dez, doze ...
trinta e dois prédios.
As pessoas andavam de um lado para o outro, homens e mulheres. Um
grupo de crianças carregando varas de pescar saltou da passarela e espirrou
água barrenta, e nadaram para o pântano. Uma mulher e uma menina mais
nova limpava o peixe em uma mesa de madeira. Um gato sentava-se a seus
pés, esperando por um petisco.
Vamos imaginar que há quatro pessoas em cada estrutura. São cento e
vinte e oito pessoas. No mínimo. Alguns edifícios pareciam
significativamente maiores que outros.
Eles mataram quatro pessoas do nosso povo. Nós viemos aqui preparados
em atirar em todos desse culto. Esta era o tipo de missão de busca e
destruição. Eu não tinha nenhum problema em matar os adultos, mas
ninguém disse nada sobre a presença de crianças.
Um gemido inconfundível de uma criança em perigo fez cócegas em
meus ouvidos. Só podes estar de brincadeira comigo.
Roman suspirou ao meu lado. — Por quê? Por que eles sempre trazem
bebês com eles?
— Provavelmente para alimentar a cobra, —disse Raphael.
Nosso plano original foi embora, enfiou o polegar na boca, assoprou,
expandiu e explodiu. Nós tínhamos que parar o ritual. Tínhamos que nos
vingar de Nick, seu filho e as famílias de outros metamorfos. E tínhamos que
fazer tudo isso tendo a certeza de não matar nenhuma criança.
— Poderíamos tentar pegar a faca, —eu disse.
— O que? Nós correremos todo o caminho da espiral até o topo a céu
aberto? —Roman olhou para mim.
— A magia está fora do mundo. Agora é a melhor hora para atingi-los. —
Eu olhei para Raphael, procurando por apoio. — Sem faca, sem Apep.
— O que eu perdi? —Anapa apareceu do ar e se agachou ao lado de
Roman, alheio à lama manchando seu terno de mil dólares.
— Vamos pegar o seu dente, —disse Raphael a ele.
— Excelente. —Deitou-se de costas e colocou os braços atrás da cabeça.
— Continuem. Façam a parte de vocês.
— Precisamos de uma distração. —Raphael olhou para Roman.
O Volhv franziu as sobrancelhas. — Por que você está me olhando? A
magia está em baixa.
— Eu tenho explosivos na minha bolsa, —ofereci. — Se alguém os
armar, isso nos dará algum tempo.
Nós olhamos para Anapa.
— Quem eu? —Ele piscou.
— Então você não vai ajudar em nada? —Roman o repreendeu.
Anapa suspirou.
Eu abri a mochila e tirei granadas de luz. — Olha, isso é simples. Puxe os
pinos assim. Eu fiz uma pantomima puxando os pinos. — Lance. Corra para
o outro lado. Você é o deus do conhecimento, pode fazer isso.
Anapa olhou para as granadas. — Muito bem. Onde você quer que elas
sejam jogadas?
Eu apontei para o lado esquerdo das árvores. — Lá. Em cinco minutos.
— Muito bem. Anapa pegou as granadas e desceu a colina até o mato,
parecendo absurdamente deslocado.
— Acha que ele vai fazer isso? —Roman perguntou.
— Nós vamos descobrir. —Raphael estava olhando para a pirâmide com
o foco intenso de um predador. Ele pendurou a espingarda no ombro.
Puxei meu rifle de precisão da sacola, coloquei uma rodada de munição e
olhei através do telescópio. Duas pessoas estavam guardando o caminho para
a pirâmide de cobra, mais duas estavam na encosta, e uma última estava a
poucos metros sob a cabeça da cobra.
Respirei muito profundamente. Controle.
O homem sob a cabeça da cobra estava olhando diretamente para mim.
Ele era mais velho, com rosto cansado e rugas. Parecia um homem tão
comum. O que diabos estava fazendo aqui na encosta, tentando ressuscitar
um deus antigo?
Controle.
A explosão explodiu à esquerda, rasgando o silêncio com seu trovão. É
engraçado como uma ameaça repentina separa as pessoas: dois terços da
cidade do pântano corriam para suas cabanas como bons civis em perigo,
enquanto o terço restante, armado com rifles e arcos, corria na direção da
explosão, tentando eliminar o perigo.
Eu atirei. Uma flor vermelha e úmida floresceu no meio da testa do
homem mais velho. Ele recuou e desmoronou no corpo de barro de seu deus.
Avistei a segunda sentinela, no meio do caminho, uma mulher loira, e
apertei o gatilho.
Mais dois tiros. Mais duas pessoas se transformaram em cadáveres.
Mortes mínimas. As pessoas gostam de destacar ‘mínimo’ e esquecer
‘mortes’, mas são as vítimas que acordam a sua consciência à noite.
Peguei outro guarda, perto do caminho, e fiquei em pé. Nós corremos em
frente, fila única, Raphael na liderança, sua espada para fora com a curva
perversa e afiada.
Um homem nos notou e balançou o rifle, bloqueando nosso caminho.
Antes que ele pudesse puxar o gatilho, Raphael o cortou e continuou se
movendo. O homem caiu.
Continuamos atravessando nosso caminho pela passarela de madeira.
Uma mulher atirou em nossa direção, olhos arregalados e aterrorizados. Ela
abriu a boca, mostrando as presas gêmeas e atacou Raphael. Sua espada
cortou novamente.
A mulher caiu ao lado de uma casa.
Um grito soou da esquerda, outro guarda nos notou. Dois rifles apontados
um para o outro. Eu atirei mais rápido do que ele. A passarela terminou.
Pulamos na lama, afundando até a metade e avançando em direção à pirâmide
que se aproximava.
Balas passavam por mim. Eu me virei. Uma mulher com um rifle às duas
199
horas . Apontar, apertar, meio segundo para confirmar que o corpo dela
caiu na lama.
Roman ficou para trás. Ele estava se movendo rapidamente para um
humano, mas não para um metamorfo.
— Raphael! —Eu gritei.
Ele se virou e voltou.
— Não, está tudo bem, —disse Roman.
Raphael o ignorou e o pegou da lama e corremos para a pirâmide.
O corpo de barro de Apep envolvia a estrutura, e eu finalmente percebi
porque a coisa toda não estava desmoronando sob o seu peso terrível, vigas
de aço e a borda de concreto apareciam por baixo da argila. O pessoal do
culto usaram algum tipo de estrutura como base. Como diabos eles
conseguiram entrar no pântano com isso?
Raphael colocou Roman no chão e eles começaram a subir. Fiquei para
trás. As sentinelas fizeram uma reviravolta e correram em nossa direção. Eu
atirei. A bala atingiu o primeiro homem no estômago. Ele caiu na lama. Atirei
de novo, derrubando o segundo homem da linha. Eles se espalharam, se
escondendo atrás das cabanas.
Eu me virei e segui os Raphael e Roman até a pirâmide.
Tiros soavam. Uma bala atingiu o meu lado. Merda. Não era de prata,
mas doíam como o inferno. Meu corpo apertou e eu consegui expelir a bala.
Continuei subindo.
Outra bala se enterrou na lama a um centímetro da minha cabeça. Eu me
movi para o lado, movendo ao longo do lado da estrutura, tentando colocar a
espessura da pirâmide entre mim e os atiradores.
Uma chuva de tiros saiu de uma das cabanas.
— Querida! —Raphael chamou. Ele estava acima de mim, protegendo
Roman com seu corpo.
Eu me virei, pressionando minhas costas contra a lama, e levantei meu
rifle. Pela luneta do rifle avistei o atirador na terceira cabana à esquerda, na
janela, um leve contorno da cabeça de um homem. Apertei o gatilho. O rifle
rugiu e a cabeça de um homem recuou. O tiroteio acabou. Eu me virei e
continuei subindo.
Acima de mim, Rafael e Roman subiram no topo plano da pirâmide. Eu
agarrei a borda, me levantei, enquanto Raphael andava em direção ao altar ...
A onda mágica nos afogou. Ah não!
A estátua de argila de um homem na minha frente abriu os olhos. Seus
olhos humanos. As figuras de barro não eram estátuas. Eles eram pessoas
reais, cobertas com uma espessa camada de lama e deixadas para assar,
imóveis, sob o sol.
Raphael pegou a presa de Anúbis do altar.
— Raphael! —Eu gritei.
As estátuas saltaram, quebrando suas camadas de argila e agarraram
Raphael. Ele segurou o que estava à sua frente em um aperto mortal. Eu corri
de um lado, Roman do outro. O homem coberto de argila na minha frente
desequilibrou sua mandíbula e afundou suas presas no lado de Raphael.
Minhas mãos se fecharam no pescoço dele. Eu apertei, esmagando osso e
cartilagem, e empurrei o cadáver de lado, arremessando se fora da pirâmide.
Roman apunhalou seu cajado na espinha do segundo homem e então Raphael
abriu as mãos e o terceiro caiu, sem vida.
Raphael caiu. Eu peguei ele e o abaixei.
Seus olhos azuis estavam bem abertos. — Está quente.
Puxei minha faca do meu cinto, peguei a camisa do Uniforme de Raphael
e cortei, tirando-a. Duas mordidas, uma no braço direito e outra no tronco.
Abrir minha mochila, peguei a arma antiveneno de Doolittle e atirei na
primeira mordida.
— Não se mova. —Não morra. Não morra, Raphael. Não morra.
Afundei mais dois tiros nele e depois mais três na outra mordida.
— Atrás de você, —Raphael gritou.
Eu me levantei. A quarta estátua se levantou bem ao lado da cabeça da
serpente, meio escondida pelo crânio da serpente. Roman atacou.
O homem sujo de argila uivou alguma coisa sem palavras e com raiva.
Roman empurrou seu cajado para o peito do homem. O grito se transformou
em um gorgolejo, enquanto sangue escorria da boca do homem. Roman
libertou o cajado com um movimento brusco, tropeçou para trás e deslizou
para baixo, deixando uma mancha sangrenta no pescoço de Apep.
— A faca, —Raphael tremeu. Seu corpo se contraiu em minhas mãos,
rígido.
Apliquei mais antiveneno nele. Era tudo que podia fazer.
— A faca, —ele resmungou.
Peguei a presa de Anúbis, que havia caído de sua mão.
A mão de um homem a pegou antes que eu pudesse tocá-la.
— Eu fico isso, obrigado! —Anapa se dirigiu a Apep.
Roman bloqueou seu caminho. O deus deu uma sacudida nele. Roman
bateu no altar. Anapa levantou a faca. Um chacal uivou, alto, ensurdecedor.
Eu me lancei para ele e bati em uma parede invisível, me jogando de
volta e caindo em cima de Raphael.
Anapa mergulhou a faca no crânio de Apep.
A serpente de barro estremeceu. A pirâmide tremeu sob nós. Rachaduras
surgiram no nariz de Apep. A cabeça colossal subiu, balançou-se de pé e caiu
para trás. A serpente de barro escorregou da pirâmide para a lama.
— O show tem que continuar depois de tudo! —Anapa se virou, sorrindo
com a boca cheia de dentes de chacal. — Aqui vamos nós.
— Seu filho da puta! —Rosnei.
Raphael tremeu sob minhas mãos. Ele estava entrando em convulsões.
— Eu mereço ser um mito. —Anapa riu e desapareceu.
O pântano tremeu. Um bando de pássaros levantou-se das árvores,
escurecendo o céu.
— Cobras. —Roman se empurrou do altar.
— O que?
— Serpentes voadoras. —Ele plantou o cajado na pirâmide e começou a
cantar. Escuridão girava em torno de seus pés, luzes de pura imensidão negra
impregnados com raios de prata.
A nuvem de serpentes se dirigiu para nós. Os membros de Raphael
tremeram, agarrados por um espasmo. Eu abri suas mandíbulas abertas e
forcei o cabo da faca em sua boca. Eu não tinha mais antiveneno. Havia
usado todo o nosso suprimento.
Um sino alto e estridente tocou, ecoado pelo toque distante e agudos de
pequenos sinos. Vozes masculinas misteriosas cantavam em sintonia com os
encantamentos de Roman. As cobras se aglomeravam acima de nós, tornando
o céu negro.
O vento torceu sobre Roman. Eu abracei Raphael mais perto.
As cobras mergulharam em nós ... e atingiram uma parede invisível,
como se uma meia-esfera transparente nos protegesse de seu ataque. Eles
tocavam a parede e deslizaram ao longo da borda do feitiço, tornando-se
menores, mais escuros, perdendo suas asas, até que finalmente aterrissaram
no lado da pirâmide e deslizaram para a lama enquanto se transformavam em
cobras comuns.
Raphael segurou minha mão, lutando para dizer alguma coisa. Seus olhos
reviravam em sua cabeça.
Eu o apertei mais ainda. Não, não era assim que deveria ser. O antiveneno
tinha que funcionar. Tinha que ... A última das cobras caiu. Roman caiu de
joelhos, sem fôlego, o rosto pálido.
Um assobio alto rolou pelo pântano como se mil cobras abrissem suas
bocas em uníssono. Eu me inclinei para frente.
Abaixo de nós, uma serpente do tamanho de um trem de carga circulava a
pirâmide, deslizando pela lama. Seu corpo tremeluzia e se contorcia com um
mosaico em movimento constante de marrom e amarelo.
Os pés de Raphael tamborilaram no chão. Ele estava morrendo. Ele
estava morrendo e eu estava sem antiveneno.
— Agora seria um bom momento para fazer algumas escolhas, —disse
Anapa ao meu lado.
Eu agarrei a perna de Anapa, puxei-o para baixo e tranquei minhas mãos
em torno de sua garganta, mas elas nunca tocaram sua pele. Uma barreira de
magia me segurou. Eu apertei, esforçando-me com todas as minhas forças.
Ele sorriu.
A pirâmide tremeu quando a cobra colossal se curvou em torno dela.
— Você, —rosnei. — Você!
A cabeça de uma serpente titânica se levantou, pairando sobre nós. Uma
longa língua saiu da boca sem lábios para sentir o ar.
— Você sabe o que tem que fazer, —disse Anapa. Sua cabeça derreteu,
mudando de forma e, de repente, minhas mãos tocaram a garganta grossa e
peluda de um Chacal.
Eu agarrei. — Eu vou matar você.
— Dê-me o que eu quero e ele vai viver, —disse o Chacal.
Eu não hesitei por um segundo. — Faça isso e você pode me ter.
Um brilho amarelo revirou os olhos do Chacal.
— Andrea? —Raphael disse atrás de mim, sua voz quase normal. —
Andrea?
Meus pés deixaram o chão. Eu flutuei para cima, sem peso. O Chacal
flutuava ao meu lado, enorme como uma casa de três andares, os pêlos da
cabeça desgrenhados, os olhos amarelos sem fundo. Raphael estava gritando
algo abaixo.
Eu te amo querido.
Eu te amo.
Me perdoe.
O Chacal abriu a boca e me engoliu. A magia fluiu de mim, ligando-me,
ancorando-me dentro do Chacal, nos conectando e circulando para dentro de
mim e de volta para ele. Nós nos fundimos, a fera monstruosa e eu, e de
repente estávamos novamente em um único corpo físico e o velho inimigo
erguendo a sua cabeça feia à nossa frente.
Apep assobiou e atacou.
Nós nos esquivamos, ágeis e rápidos.
A serpente se espatifou no canto da pirâmide. Toda a pilha de lama
tremeu e se inclinou. Humanos gritaram. Idiotas. Pequenos idiotas patéticos
se contorcendo na pilha de lama que eles mesmos construíram.
Apep se enrolou, a cabeça balançando para frente e para trás. Nós
corremos ao redor dele, esmagando a lama com nossas patas e rosnando.
Apep abriu a boca, a magia se agitando dentro de sua boca escura.
Nós gritamos e latimos, provocando-o.
Apep atacou, como uma mola enrolada, e errou.
Nós dançamos em volta, muito rápido, muito hábil.
Cobra idiota. Cobra insensata, tola e fraca.
Apep se lançou. As presas atingiram nossa pata. Nós estalamos os dentes
e nos soltamos dele.
Pequenos humanos aplaudiram. O veneno percorria nossas veias. Não
importa. Tínhamos magia suficiente para limpar nosso sangue facilmente.
Nós dançamos ao redor da serpente. Ela se virou, mas não rápida o
suficiente. Mordemos o seu rabo, segurando-a e corremos, arrastando-a pela
várzea, seu sangue era um inferno ardente em nossa língua.
Olhem para nós puxando seu deus pela cauda. Olhem para nós, pequenas
coisas. Olhem para mim. Eu sou o Inepu. Eu sou o melhor dos deuses.
Apep recuou e atacou, mas eu abri minha boca e dancei para longe,
rápido demais para ela. Apep se enrolou em espiral.
Eu a circulei. Mordi a sua esquerda. A boca da cobra tentou me pegar,
mas eu escapei.
Golpeie pela direita. Novamente a boca da cobra barrou meu caminho.
Eu vou ganhar. Eu suportarei.
Eu vou triunfar.
Eu sou o Inepu.
Minha magia estava enfraquecendo. Meus adoradores ainda eram poucos.
Muito poucos. Mas não tão poucos quanto os de Apep.
Estalei meus dentes, me lançando baixo.
Apep atacou. Suas presas atravessaram meu pêlo e perfuraram minha
pele. Fogo e escuridão rolaram em minhas veias, ameaçando acabar comigo.
Deixei a serpente me morder e, assim que ela me soltou, mordi seu pescoço,
afundando meus dentes profundamente em sua carne.
Morra. Morra …
Volte para o nada. Desapareça e seja esquecida, então eu ficarei no seu
lugar.
Apep se contorceu em minhas mandíbulas, chicoteando seu corpo,
tentando me alcançar, apertando, enrolando, mas eu segurei e mordi cada vez
mais forte.
A minha última gota de magia indo embora.
Minhas presas encontraram o osso. Empurrei o corpo do meu inimigo
para cima e mordi com toda minha força.
Apep ficou pendurado nas minhas mandíbulas.
Eu o segurei alto, mostrando a todos o meu triunfo.
Testemunhe meu poder. Lembrem-se desse momento.
Na lama, pequenas coisas se ajoelhavam. Eu senti a primeira agitação de
devoção, os deliciosos salpicos de sua fé.
Adorem-me. Alimentem-me.
A carne flexível na minha boca se transformou em argila. O corpo da
serpente desmoronou e eu soltei. Ela caiu na lama em pedaços de barro. Eu
uivei, anunciando minha vitória.
Os pequenos humanos fugiram. Não importa. Eles se lembrariam de mim.
Logo, quando me recuperasse, eu os encontraria e os acrescentaria aos meus
adoradores. A corrente da fé fluiria.
Fiquei ali, exausto, alegre, intoxicado pelo meu poder. Invencível.
Eu era um deus!
A fraqueza me inundou, lentamente. A minha última reserva de magia foi
gasta. Cambaleei para o templo arruinado do antigo deus deles. Deixei minha
forma de deus ir e assumi minha nova forma humana. Saudável. Bonita.
Cheia de magia e tão felizmente fácil de curar.
Estudei meus dedos perfeitamente formados, meus braços, minhas pernas
longas e musculosas.
Eu era linda.
Um homem caminhou em minha direção através da lama. Qual era o
nome dele …
Raphael.
Raphael!
Esmaguei a pequena voz dentro de mim, sufocando-a.
O homem continuou andando. Ele tinha um olhar estranho no rosto.
Humanos são criaturas curiosas. Este estava ... com raiva? Não ...
lamentando, talvez, mas não, isso não estava certo também.
Talvez eu o devasse matar.
A magia me empurrou de volta. Tinha esquecido. Fiz um trato. Eu
prometi que ele viveria.
O humano estava perto agora. Determinação. Era isso. Eu precisava
recuar, me dobrar no limite da mente humana, mas ainda não. Ainda não. Eu
acabara de derrotar meu inimigo. Eu merecia isso, merecia a adoração, o
gosto do poder por vir.
Talvez ele estivesse vindo para me matar. Mas então qualquer dano que
ele pudesse fazer, eu curaria.
Levantei meus braços. — O que você acha do meu corpo?
O humano atacou. Eu vi, vi a luva em sua mão com longas garras de
metal de prata, e quis a minha magia para me proteger, mas restava muito
pouco.
Ele enfiou as garras de metal no meu peito e vasculhou atrás do meu
coração.
Queimou! Queimou como fogo. Dor se contorceu através de mim, me
despedaçando. Eu nunca havia sentido uma agonia como essa, uma dor
terrível, que tudo consome. Eu o empurrei de volta, mas a dor não parou.
As garras se romperam. Elas arrancaram meu coração. Minha magia
passou por ele, incapaz de me defender. Eu não conseguiria curar o dano.
Estava morrendo.
Gritei e as árvores tremeram com o meu uivo.
Eu me debati tentando tirar o metal de dentro de mim.
Não. Não, eu não morreria hoje. Separei-me de minha nova forma e fugi
para a lama, para o lodo, onde minha antiga forma caíra, descartado.
O mundo bateu em mim em uma explosão de dor. Prata queimava no meu
coração.
— Eu tenho você, —Raphael estava me segurando. — Eu tenho você.
Eu estava morrendo.
De repente Doolittle estava lá com o bisturi.
De onde ele tinha vindo? Eu estava alucinando antes da morte?
— Tudo bem, —Raphael cantou no meu ouvido.
Doolittle cortou meu peito. — Expulse está prata se você quiser viver!
— Faça isso, Andrea! —Raphael rosnou.
Empurrei contra os pontos ardentes de dor. Doolittle cavou meu peito
aberto com uma pinça. Eu gritei.
— Expulse!
Eu não conseguia respirar. Meu peito estava em chamas e a insuportável
dor terrível queimava dentro de mim como um inferno.
O primeiro fragmento deslizou para fora de mim. Doolittle arrancou com
uma pinça.
O mundo diminuiu, como se alguém estivesse apagando suas velas uma a
uma. Doolittle levantou a mão. Eu peguei um vislumbre de uma seringa.
Doolittle mergulhou. A agulha me mordeu no coração.
A escuridão rasgou um flash ofuscante de luz e adrenalina.
— Prata! —Raphael gritou para mim. — Coloque para fora!
Eu me esforcei. Outro fragmento se soltou.
— Faça isso, Andrea! —Raphael rosnou.
— Expulse, —ordenou Doolittle.
Doíam e eu estava tão cansada.
Outro fragmento me deixou.
— Último, —Doolittle gritou.
O mundo ficou negro.
Estava tão frio e quieto. Por favor, deixa eu ficar aqui ...
Abri meus olhos para a visão de Doolittle em agonia, massageando meu
coração com os dedos.
Eu gritei, mas minha voz era apenas um lamento rouco.
O último ponto de agonia deslizou para fora de mim. Raphael me deitou.
Doolittle se ajoelhou sobre mim. Suas mãos estavam sangrentas. Ele estava
segurando algum tipo de instrumento cirúrgico. Uma mulher lhe entregou
gaze. Uma sensação de frio se espalhou por minhas entranhas. Eu estava
ficando dormente.
Atrás dele, vi Anapa cambalear de pé e olhos brilhantes no pântano. Eu os
vi com clareza chocante, centenas de olhos.
Uma enxurrada de corpos peludos saiu do mato. Chacais. Dezenas e
dezenas deles, e na liderança, as enormes e musculosas formas de
metamorfos em sua forma de guerreiro. Clã Chacal havia chegado.
Eles circularam Anapa.
— Queremos a criança agora, —disse um metamorfo cinza em forma de
guerreiro.
— Dê-nos a criança.
Anapa sorriu um sorriso torto que mostrava os dentes e levantou os
braços. A magia fluiu dele em uma onda lenta.
Os Chacais empurraram contra ela.
O enorme alfa na frente uivou. Centenas de vozes responderam em um
coro de uivos, latidos e gritos.
Anapa empurrou mais ainda.
O Clã Chacal se deslocaram para frente, um pé. E, mas outro pé.
Anapa cerrou os dentes. Havia muitos deles e ele estava muito
enfraquecido.
— Dê-nos a criança, —grunhidos e vozes exigiam.
— Devolva a criança.
— Devolva!
— Parem! —Magia pulsou, jogando os primeiros Chacais para trás.
Outros tomaram o seu lugar. Ele não tinha fluxo de magia suficiente para
desaparecer. Eu estive dentro dele e sabia. Ele usou tudo nessa luta.
— Aqui! —Ele cuspiu. — Tomem ela.
Uma garotinha se materializou no meio da matilha Chacal. Um dos
guerreiros a pegou e correu em nossa direção. Os Chacais continuaram se
movendo, passo a passo, apertando o anel em torno de Anapa.
— Eu dei o que vocês queriam!
Os Chacais se aproximaram, um passo de cada vez, olhos em chamas,
presas brilhando.
— Parem!
Eles o atacaram. Ele gritou, mas não por muito tempo.
Sentei em um tronco lamacento. Meu coração estava batendo dentro de
mim. Doolittle o tinha consertado através de um buraco no meu peito,
enquanto eu gritava. Consertou também minha caixa torácica, e então ele
fechou minhas feridas. Sentava-se ao meu lado agora, limpando meu sangue
de suas mãos com um pano molhado. Seus olhos estavam vermelhos. Ele
tinha um olhar terrível no rosto.
Raphael se ajoelhou ao lado dele. — Obrigado.
Doolittle sacudiu a cabeça. — Eu não ouvi isso. O que você disse?
Raphael se inclinou para mais perto. — Eu disse, obrigado.
Doolittle agarrou sua garganta e bateu a cabeça no rosto de Raphael. Foi a
cabeçada mais cruel que eu já tinha visto. Raphael caiu para trás. Doolittle
rosnou algo em voz baixa e foi embora.
Raphael sacudiu a cabeça. O sangue jorrando de seu nariz quebrado.
— Eu acho que ele está bravo com você, —eu disse a ele.
— Ele vai superar isso. —Raphael sorriu para mim.
— Como você sabia que eu não iria morrer?
— Eu não sabia.
— Aproveitou uma chance, hein?
Ele assentiu. — Não tínhamos nada a perder.
Atrás dele, os Chacais tinham desmontado uma das cabanas e arrastado o
cadáver desmembrado de Anapa para uma pilha de madeira. Dois
metamorfos em forma de guerreiro despejaram combustível nas tábuas e
atearam fogo.
— Como você sabia que Anapa entraria em pânico? —Perguntei.
— Quando você me disse que ele havia começado como um metamorfo,
eu fui aos Chacais procurando por suas pesquisas sobre as fraquezas de
Anúbis. Eles levaram isso muito a sério. Metade do clã estava desenterrando
informações. Eles disseram que no antigo Egito, quando Anúbis ainda era
humano, a prata era praticamente desconhecida. Os egípcios começaram a
obtê-la mais tarde, por meio de importações, e mesmo assim era altamente
rara. Não havia razão para ele saber como a prata afeta os metamorfos de
experiência pessoal. Roman disse que ele provavelmente se retiraria para o
antigo corpo de Anapa se fosse ameaçado. O clã Chacal nos seguiu. Seu ego
era tão colossal que ele não o via como uma ameaça.
— Ele nem percebeu, —eu disse a ele.
— A parte mais difícil foi convencer Doolittle sobre a cirurgia cardíaca
de emergência. Ele realmente não queria fazer isso. Nós discutimos por
horas. Ele pensou que você não iria sobreviver. —Raphael engoliu em seco.
Ele parecia doente.
— Qual o problema com você? É o veneno?
— Eu acabei de perceber que você morreu comigo duas vezes. —Raphael
ficou de pé e saiu cambaleando.
— Onde você vai?
— Eu preciso de um minuto.
Ele tropeçou nos arbustos e eu o ouvi vomitar.
Uma sombra se apoderou de mim. Roman sentou-se em um tronco ao
meu lado. Ele estava carregando algo longo e envolto em uma lona.
— Cara legal, —disse Roman. — Um idiota, mas ele ama você.
— Eu também o amo. —Eu acariciei sua mão. — Obrigada por tudo. Eu
me diverti muito.
— Eu também me diverti. —Ele sorriu. — Olha o que eu consegui. —
Ele puxou a lona, desenrolando-a. O Cajado de Ossos.
— Você conseguiu?
Ele assentiu. — Passei uma hora cavando aquele barro. Valeu cada
minuto. —Ele se inclinou e beijou minha bochecha. — Eu te vejo por aí.
Você liga se precisar de alguma coisa, certo?
— Sim, —eu concordei. — Você me liga também. Te devo uma ajuda.
Contanto que eu não tenha que sacrificar nenhum bebê, estarei lá.
— Eu vou contar com isso.
Ele saiu e Raphael tomou o seu lugar, enxaguando a boca com água de
uma garrafa. Ao nosso redor, os metamorfos estavam pastoreando as pessoas
do culto da serpente. Estava coberta de lama, sangue e água pantanosa.
Raphael parecia ainda pior, seu cabelo sujo de sangue. Eu realmente queria
voltar para casa, tomar um banho e dormir por um ano.
— Vai me ajudar a levantar do tronco? —Eu perguntei a ele.
— Não. Nós vamos te colocar em uma boa maca e levá-la até os barcos.
— Eu estou bem para andar. Meu peito dói um pouco, mas posso
conseguir.
— Você é maluca, —me disse. Ele enfiou a mão no bolso e tirou uma
sacola plástica.
— O que é isso?
— Eu jurei que se nós sobrevivêssemos hoje, eu faria isso. —Raphael
tirou uma pequena caixa de plástico da bolsa e ficou de joelhos na lama.
Isso era uma loucura.
Ele abriu a caixa. Um anel de noivado branco com uma faixa em forma
de pata de fera estava em um pequeno travesseiro de veludo, com uma bela
safira presa em suas minúsculas garras brancas.
— Estou fodido, —disse ele. — Tenho muitas falhas. Mas prometo que
se você se casar comigo, vou te amar e cuidar de você pelo resto de nossas
vidas.
Eu olhei para ele.
— Se você me aturar, eu vou aguentar o que vier, —ele disse. — Dias
ruins, dias bons, dias do tipo ‘eu vou cortar você se você olhar para mim do
jeito errado’. Eu vou aguentar tudo isso.
Eu sabia que tinha que dizer alguma coisa.
— Se você a matar com esse seu pedido, depois de tudo que eu fiz aqui,
—Doolittle disse atrás de mim. — Você nunca vai deixar este pântano.
Raphael procurou meu rosto, ansioso. — Andi?
— Sim, —eu disse a ele. — Na doença e na saúde, na pobreza, e na
riqueza, eu não me importo.
Ele ainda estava olhando para mim, como se não tivesse ouvido.
— Sim, Raphael. —Eu agora ria ou chorava, não tinha certeza. — Sim.
— Coloque o anel no dedo dela, seu idiota, —disse Doolittle.
Raphael colocou o anel no meu dedo e eu o abracei.
— Eu te beijaria, —disse Raphael. — Mas eu preciso escovar os dentes e
estou coberto de sangue.
— Eu não me importo, —disse a ele. — Beije-me de qualquer
maneira.

Epílogo
A cerimônia de minha entrada oficial ao Bando foi realizada na terça-
feira no principal local de encontro do Bando, uma grande sala bem abaixo
da Fortaleza, onde o terreno com terraço se inclinava em ‘degraus’ em
direção ao palco com um poço de fogo de metal. Eu já tinha ouvido Kate
descrever isso antes, mas nunca tinha visto. Pensei em vestir algo especial,
mas parecia meio sem sentido. Qualquer que fosse a roupa que eu usasse, eu
ainda seria a mesma e é isso que realmente importava.
Poucos minutos antes das dez da noite, Martina bateu na porta da pequena
sala onde me pediram para esperar. — Está na hora.
Eu a segui descendo as escadas, cada vez mais para baixo. Eu não fazia
ideia de que a Fortaleza fosse tão funda no subsolo.
Finalmente ela parou diante de uma porta sólida. — Nervosa?
— Não realmente. —Eu tinha passado a manhã sentado em uma pequena
sala com Raphael e as famílias dos quatro metamorfos assassinados,
contando a eles toda a longa história. O Bando tinha reunido o pessoal da
adoração da cobra e os pressionaram por informação. Não demorou muito
para a verdade sair: os funcionários de Raphael foram assassinados por Saii,
os sacerdotes. Eles eram os únicos com glândulas de veneno. O resto do povo
da cobra tinha presas, mas suas mordidas dificilmente eram fatais.
Todos os seis do Saii estavam mortos. Eu matei Gloria, Roman e eu
havíamos matado Sanchez na ponte, e os quatro restantes morreram antes de
nossa batalha com Apep. O Bando deslocou o pessoal do culto a cobra que
sobrou e a pouca bagagem que eles tinham nos barcos e os despacharam sob
escolta armada para fora do território do Bando.
Eles estavam proibidos de retornar. Derek supervisionou o comboio e
disse que a maioria parecia aliviada.
O Saii os tinham feitos de escravos.
Eu tinha que segurar o bebê Rory novamente. Fizemos um pacto, ele e eu.
Ele cresceria para ser gentil e forte, e eu me certificaria de que seus membros
do clã nunca o maltratassem ou quebrassem seus ossos.
Fui capaz de olhar nos olhos de Nick quando eu lhe disse que as pessoas
que haviam assassinado sua esposa nunca mais machucariam mais ninguém.
Ele me agradeceu. Esta cerimônia empalideceu em comparação ao momento
que tive com Nick e o seu bebê.
— Última chance de voltar, —disse Martina.
Eu sabia o que esperava atrás da porta. Raphael e sua mãe. Alguns
membros do Clã Bouda. Kate e Curran. Meus amigos, meus alfas, meu
companheiro e o novo futuro. Pela primeira vez, eu não teria que esconder
quem eu era.
Abri a porta.
A vasta câmara se estendia à minha frente, mergulhando para o palco,
onde havia uma fogueira em um poço de fogo de metal.
Chamas dançavam dentro dela.
Atrás do poço estava a Tia B. À esquerda, Curran e Kate sentados juntos
com os outros alfas e betas.
Metamorfos ocupavam os degraus do terraço que os rodeavam. Centenas
de metamorfos. De repente fiquei nervosa.
Não havia como voltar atrás. Levantei a cabeça e desci as escadas em
direção ao fogo, olhando diretamente para Raphael em busca de apoio. As
escadas duraram uma eternidade. Finalmente parei ao lado da Tia B.
— Nós nos reunimos aqui para convidar Andrea Nash para o Bando, —
disse Tia B, sua voz percorrendo o ambiente.
— Vocês a conhecem. Ela lutou por nós. Ela deu seu sangue e usou suas
habilidades para o bem do Bando. Hoje nós honramos o seu sacrifício e a
aceitamos como uma das nossas. Se algum de vocês tiver algum problema
com isso, levante-se e desafie-me.
— Não, obrigado! —Alguém brincou da direita.
Um leve riso correu pelo ambiente. Eu tentei ficar parada, mas as risadas
borbulhavam para fora de mim.
Tia B sorriu. — É a sua vez, querida. Seu momento.
Pisei mais perto do fogo e puxei minha manga da blusa para trás. As
chamas crepitaram e queimaram na fogueira. Eu enfiei meu antebraço no
fogo. As chamas lambiam, queimando minha carne. O cheiro de pêlo
queimado do meu braço subiu. Segurei por mais um segundo para provar que
estava no controle. Nenhum loup podia tocar as chamas. Isso inspirava forte
terror instintivo neles.
Abaixei meu braço, tentando não estremecer com a dor, e disse as
primeiras palavras do meu juramento. — Eu, Andrea Nash, uma humana e
uma metamorfo, juro obedecer às leis do Bando e do meu clã. Juro obedecer
aos meus alfas e honrar as tradições do meu clã. Juro ser leal aos meus
irmãos e irmãs do Bando, para protegê-los de danos, e se for necessário, lutar
até a morte ao seu lado ...

E continua ...
Epílogo Parcial
“Deletado do Gunmetal Magic”.
Kate está se preparando para ser dama de honra no casamento
de Andrea e Raphael ...

— O lado esquerdo não estar encaracolando o suficiente. —Julie sacudiu


o modelador de cabelo ao redor.
— Não lembro por que te deixei chegar perto do meu cabelo, —rosnou
Andrea. Ela sentava-se em frente a janela vestindo nada além de sutiã, meias
e sapatos brancos. Metade de seu cabelo loiro estava enrolado em cachos
sedosos, a outra metade uma bagunça, parecia que ela tinha dormido em cima
dele.
— Porque é o seu casamento e você quer ficar bonita. —Julie pegou o
spray de cabelo. — Kate está bonita.
Eu estava usando um vestido, saltos altos, que quando caminhava, me
faziam parecer um cavalo, e flores no meu cabelo. Beleza estava nos olhos de
quem vê.
Alguém bateu na porta.
— Vou ver quem é. —Antes que alguém decidisse enrolar meu cabelo.
Caminhei por um corredor estreito até a porta. — Quem é?
— Sou eu, —disse Curran. — Odeio casamentos.
— Você tem que assistir a este.
— Saia e fale comigo.
— Não. Não quero que você me veja.
— Por que não? —Ele perguntou.
— Por causa do que estou vestindo.
— Eu vou ver você uma hora ou outra, —disse ele. — Além disso, você
não comeu o dia todo. Eu te trouxe um pouco de chocolate.
Às vezes ele poderia ser muito agradável. Abri uma brecha na porta. Ele
estava no corredor. Usava um smoking. Eu nunca tinha visto ele em um
antes. Certo, valeria a pena. Respirei fundo e abri a porta toda.
Eu usava um vestido de tule rosa escuro, apertado por uma faixa preta na
minha cintura. Pétalas de organza brilhavam no lado esquerdo do vestido.
Longos babados se retorciam em volumosas curvas, afogando a saia, como se
alguém tivesse pegado um balde de glacê rosa e feito rosas gigantes de bolo
na parte de baixo do vestido. A saia subiu na frente, derramando-se em
camadas mais em cima, a bainha da frente apenas alta o suficiente para
mostrar meus sapatos pretos com pequenas rosas sobre eles. Uma rosa da cor
estava grudada no meu cabelo.
Curran olhou para mim por um longo momento. Seus olhos acenderam.
— Não, —eu o avisei.
Ele gargalhou alto. — Rosa.
— Pode rir, por que você não ri um pouco mais?
— O que diabos tem essa saia?
200
— É chamado de saia de flange . —Tinha aprendido essa palavra esta
manhã, e fiz questão de odiá-la pelo resto da minha vida. Mas Andrea era
minha melhor amiga e se ela quisesse que eu usasse um vestido rosa com
uma saia de flange em seu casamento, eu usaria uma. — Onde está meu
chocolate?
Ele me entregou um pequeno prato com três enormes bombons. Eu
agarrei um e mordi. Hummm ...
— Eu não sei se você deveria ir para cerimônia, —disse ele. — O bolo do
casamento só deve ser levado mais tarde, para festa.
— Eu ainda posso te chutar com este vestido.
Curran se aproximou de mim. — Onde você está escondendo sua espada
nesse vestido?
— O que faz você pensar que eu estou escondendo minha espada?
— Eu conheço você.
Lambi o chocolate do meu lábio. — Você quer me ajudar a procurar?
Pequenas faíscas douradas iluminaram em seus olhos.
Próximo Lançamento das
Divas & Lord’s FOREVER
Livro 0.5 – A Questionable Client
Em um mundo assolado por ondas mágicas, Kate Daniels trabalha
como mercenária. Ela está cansada, com fome, e há sangue
fedorento em suas botas. Tudo o que ela quer fazer é ir para casa,
mas a Associação dos Mercenários lhe oferece um emprego que
não pode recusar, e ela acaba tendo que proteger um homem contra
os magos russos.
Notas
[←1]

Munição de balas.
[←2]

faca de açogueiro
[←3]

A SIG Sauer P226 é uma pistola feita pela empresa SIG Sauer. Ela dispara
munições calibre 9x19 mm, .40 S&W, .357 SIG e .22. É essencialmente uma versão melhorada da SIG Sauer
P220, mas desenvolvida com uma capacidade melhor e carregadores maiores. A P226 possui diversas variantes,
como a P228 e a P229.
[←4]
PAD (Paranormal Activity Division) Divisão de Atividade Paranormal.
[←5]

Smith & Wesson é uma das principais marcas de armas de fogo dos Estados
Unidos há mais de 164 anos. - M & P340 (modelo da arma)
[←6]
O termo 357 Magnum, .357 S&W Magnum ou 9×33 mmR refere-se a um calibre de revólver criado por
uma equipe de desenvolvimento da empresa armeira Smith & Wesson em 1934, formada por Elmer Keith,
Phillip B. Sharpe, e pelo Coronel D. B. Wesson. Foi com este calibre que se deu início à era das munições
Magnum, basicamente versões potenciadas de calibres existentes, provados e comprovados.
[←7]

O Auto Assault-12 (AA-12) originalmente desenhado e


conhecido como Atchisson Assault Shotgun, é uma escopeta desenvolvida em 1972 por Maxwell Atchisson.
Uma das suas principais características era o pouco recuo. A versão mais atual, de 2005, foi desenvolvida pela
Military Police Systems, Inc.
[←8]
[←9]
Layout é uma palavra inglesa, muitas vezes usada na forma portuguesa "leiaute", que significa plano,
arranjo, esquema, design, projeto. A planta da casa.
[←10]
Bridge ou brídege é um jogo de cartas jogado por dois pares de jogadores e com as 52 cartas de um baralho
- 13 em cada naipe. Cada jogador de um par senta-se frente a frente tendo como referência os pontos cardeais:
norte, sul, leste e oeste.
[←11]

Olde English Bulldogge é uma recente raça de cães


norte-americana, cuja criação foi iniciada na década de 1970.
[←12]

O Bull-baiting era um esporte sangrento


muito popular, que envolvia cães e touros. Era um combate, onde um touro era preso e dois ou mais cães eram
soltos sobre ele até derrubá-lo.
[←13]

Substância estruturadora de exoesqueleto (esqueleto externo)


dos artrópodes (insetos, crustáceos, aracnídeos).
[←14]
Ele está sendo irônico. Uma forma de dizer: Mais é claro, com toda a certeza.
[←15]

A técnica que os bombeiros usam para carregar uma pessoa é


uma forma eficiente de mover alguém para longe de uma zona de perigo. Este método é também usado por
soldados e salva-vidas, pois permite o socorrista transportar a vítima de maneira relativamente rápida, com
menos desconforto e risco de mais lesões do que várias outras formas de remoção.
[←16]

Berserkir foram guerreiros nórdicos ferozes, que estão relacionado a um


culto específico ao deus Odin. Eles despertavam em uma fúria incontrolável antes de qualquer batalha. A
Andrea se referi ao surto Loupi, omde alguns metamorfos sofrem e ficam loucos.
[←17]
Companheira, esposa do Senhor das Feras. É a forma que Jim chama a Kate.
[←18]
Inglês: South (So) and North (No): Sul e Norte
[←19]
Bairros na cidade americana de Atlanta.
[←20]
Desfiladeiro, ribanceira, riba, cânion ou canhão é uma profunda ravina formada entre escarpas ou falésias e
é a paisagem mais frequentemente esculpida pela atividade erosiva de um rio em escalas de tempo geológicas,
em particular em regiões onde as camadas de rochas mais macias são intercaladas por camadas mais duras e
mais resistentes às intempérie.
[←21]
Nesse caso Riscos Biológicos é um departamento especializado em lidar com substâncias que trazem riscos
à saúde vindos de organismos vivos, como bactérias, vírus, ou qualquer outro ser vivo que possam ser um
perigo biológico.
[←22]

Antiga arma portátil que consiste em um arco de madeira,


chifre ou aço, montado em uma coronha, cujas extremidades são ligadas por uma corda que se retesa por meio
de mola e que, ao ser solta, arremessa setas curtas, pelouros etc.
[←23]

Na história é aquele que manuseou a besta. Eram chamados besteiros os soldados medievais equipados
com bestas.
[←24]
Marca e modelo da besta.
[←25]

Heckler & Koch UMP: A UMP (Universale


Maschinenpistole, alemão para "Pistola-metralhadora Universal") é uma submetralhadora desenvolvida e
fabricada pela empresa alemã Heckler & Koch. A UMP é usada por várias organizações e agências
governamentais pelo mundo, sendo muito usada por forças especiais.
[←26]

Retroescavadeira ou Retroescavadora é um trator com


uma pá montada na frente e uma pequena concha na traseira do veículo, diferente de um trator, que é usado para
puxar cargas a retroescavadeira é empregada nas construções urbanas e rurais.
[←27]

Chacal.
[←28]
Prédio da concessionária de energia elétrica de Atlanta-EUA
[←29]
Prédio que funciona um teatro, é um espaço para eventos culturais em Atlanta-EUA.
[←30]
Blue Heron (inglês) – Garça azul.
[←31]
Na história eles chamam de Toppler edifícios projetados, em caso de queda, as estruturas serem
preservadas o máximo possível e não pegar fogo.
[←32]

Câmera que imprime automaticamente a foto.


[←33]

Medical examiner-tradução literal: Medico examinador. É o nosso IML aqui, Instituto Médico Legal. O
Instituto Médico Legal, mais conhecido pela sua sigla IML, é um instituto brasileiro responsável pelas
necropsias e laudos cadavéricos para Polícias Científicas de um determinado Estado na área de Medicina Legal.
[←34]
Substâncias que causam danos aos organismos vivos.
[←35]
Substâncias extremamente importantes nas reações químicas vitais que ocorrem nos organismos vivos.
Responsáveis em várias funções desde de digerir nutrientes até produzir neuro-hormonios.
[←36]
Substâncias com o poder de aglutinar (coagular, juntar, unir) as células vermelhas do sangue, impedindo
dessa forma que elas funcionem corretamente. Mas em uma hemorragia a função dessas substâncias
coagulantes presentes no sangue auxilio no estancamento do fluxo sanguíneo.
[←37]
Decomposição da matéria orgânica, em especial de proteínas, causada por microrganismos, com produção
de substâncias de odor desagradável.
[←38]

Montanha no estado americano da Geórgia.


Stone Mountain é bem conhecida não só pela sua geologia, mas também pelo enorme relevo rochoso na sua
face norte, o maior baixo-relevo do mundo. Possui um entalhe gigantesco que representa três figuras
confederadas , Jefferson Davis , Robert E. Lee e Stonewall Jackson. E tem sido objeto de controvérsia
generalizada.
[←39]
A expressão francesa ménage à trois se refere a uma relação erótica e afetiva que envolve três pessoas.
[←40]

A tradução literal seria Pelotão de Exercício Silencioso: é um pelotão de


fuzil de 24 homens do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Muitas vezes referida como The
Marching Twenty-Four, a unidade realiza exercícios únicos de exposição de precisão silenciosa . O objetivo
do pelotão é exemplificar a disciplina e profissionalismo do Corpo de Fuzileiros Navais.
[←41]
Essa pergunta da Andrea tem duplo sentido já que a expressão coffee in the morning (café da manhã)
também significa que você acabou de ter sexo pela manhã com alguém que você passou a noite.
[←42]
Entre por sua própria conta e risco.
[←43]
Um ano fiscal (ou exercício, ou às vezes exercício orçamental ) é o período usado pelos governos para
fins de contabilidade e orçamento, que variam entre os países. Também é usado para relatórios financeiros por
empresas e outras organizações. As leis em muitas jurisdições exigem que os relatórios financeiros da empresa
sejam preparados e publicados anualmente, mas geralmente não exigem que o período de relatório se alinhe
com o ano civil. (1 de janeiro a 31 de dezembro)
[←44]
É a vida, em francês
[←45]
[←46]
[←47]
Túnel de passagem de trem em Atlanta-EUA
[←48]
Bairro fictício de Atlanta-EUA.
[←49]
Uma rodovia arborizada, próxima a parques em Atlanta-EUA.
[←50]
Rodovia.
[←51]
São substâncias produzidas pelo organismo de grande função e importância no metabolismo. Existe também
os esteroides sintéticos que são usados em tratamentos de várias doenças, porém é também utilizado de forma
indiscriminada na obtenção do crescimento de massa muscular.
[←52]

Kudzu é um grupo de plantas do gênero Pueraria, na família das


ervilhas Fabaceae, subfamília Faboideae. Eles são encontrados escalando, enrolando e arrastando videiras
perenes nativas de boa parte do leste da Ásia, sudeste da Ásia e algumas ilhas do Pacífico.
[←53]

Dente-de-leão
[←54]
Um verão indiano é um período de clima quente, excepcionalmente quente, que às vezes ocorre na
primavera e no outono no Hemisfério Norte. Verões indianos são comuns na América do Norte e na Ásia. O
Serviço Nacional de Meteorologia dos EUA define isso como condições meteorológicas que são ensolaradas e
claras com temperaturas acima do normal, ocorrendo de 1 de maio a meados de junho e de final de setembro a
meados de novembro. Geralmente é descrito como ocorrendo após uma geada fatal.
[←55]

Cream Soda é um refrigerante com gás. Tradicionalmente aromatizado com


baunilha e framboesa e com base no sabor de um refrigerante clássico, uma ampla gama de variações pode ser
encontrada em todo o mundo.
[←56]
A Norfolk Southern, é uma das maiores empresas ferroviárias dos Estados Unidos da América operando
58 mil quilômetros de linhas em 22 estados da região leste e central daquele país, sendo diretamente
responsável pela manutenção de 46 mil.
[←57]
Companhia Ferroviária de Atlanta-EUA.
[←58]
MSDU - Military Supernatural Defense Unit: Unidade Militar de Defesa Sobrenatural.
[←59]

Arco longo ou longbow.


[←60]

Local em que se guarda as flechas do arco.


[←61]

Robin Hood, um heróico fora-da-lei do folclore inglês.


[←62]
Quarterback (QB) é uma posição do futebol americano. Jogadores de tal posição são membros da equipe
ofensiva do time (do qual são líderes) e alinham-se logo atrás da linha central, no meio da linha ofensiva. Sua
função é dar o inicio as jogadas e fazer passes para os wide receivers e também, porém nem tantas vezes, para
os tight ends. É ele que dá a bola para o corredor iniciar uma jogada de corrida, os corredores são geralmente o
halfback e, em algumas poucas jogadas, o fullback.
[←63]
Área mágica infecciosa.
[←64]
Expressão americana que na tradução literal é FAÇA O MEU DIA, aqui para nós seria GANHEI O DIA,
VALEU A PENA. Quando algo que você quer que aconteça e acontece.
[←65]
Freelancer, também conhecido popularmente no Brasil pelas expressões ou gírias freela ou frila, é o termo
inglês para denominar o profissional autónomo que se auto emprega em diferentes empresas.
[←66]
Inveja, em Inglês.
[←67]

Faca própria para cortar ossos e carnes.


[←68]

Beemote ou behemoth é uma criatura descrita na Bíblia, no livro de Jó,


40:15–24. Sua descrição é tradicionalmente associada à de um monstro gigante, podendo ser retratado como um
leão monstruoso, apesar de alguns criacionistas o identificarem como um saurópode ou um touro gigante de três
chifres. Esta criatura tem um corpo couraçado e é típica dos desertos (embora Behemoth também fosse como os
hebreus chamavam os hipopótamos). Alguns criacionistas da Terra Jovem acreditam que é uma descrição de
um dinossauro.
[←69]
[←70]
Botão que liga aparelhos eletrônicos.
[←71]
A salmoura é uma solução de água saturada de sal.
[←72]

A cerveja de raiz é um refrigerante norte-americano doce tradicionalmente feito


usando a árvore de sassafrás albidum ou a videira Smilax ornata como o sabor primário.
[←73]
Bestial no enredo do livro é o metamorfo onde um de seus pais é ou era um animal que foi infectado pelo
vírus Lyc-V e podia se transformar em humano. Geralmente gerava um indivíduo com problemas metais.
[←74]

Também chamado de bulbo encefálico, medula encefálica. Porção inferior


do encéfalo, onde estão situados vários centros reguladores das funções vitais (respiração, deglutição,
batimentos cardíacos, etc.) e que se continua inferiormente pela medula espinal.
[←75]
Conserto (cuidado) de Motores quebrados.
[←76]

Modelo de caminhão da marca de carros Dodge. Dodge é uma


marca de automóveis e veículos comerciais pertencente ao grupo Fiat Chrysler Automobiles.
[←77]
[←78]
Vodka, gim, rum e schnapps são bebidas alcoólicas destiladas.
[←79]

Em inglês some head que também na linguagem popular americana pode significar receber sexo oral. Por
isso a Andrea acha engraçado a piada da Kate.
[←80]

Comedouro para suínos.


[←81]

Cornija, em arquitetura, é uma faixa horizontal que se


destaca na parede, com finalidade de acentuar as nervuras nela empregadas, assim como o conjunto de
molduras salientes que servem de arremate superior às obras de arquitetura.
[←82]

Videira de prata
[←83]
Aquele que vive como um nobre.
[←84]

O Alcázar de Segóvia ou Alcácer de Segóvia é


um palácio fortificado em pedra, localizado na cidade velha de Segóvia, na Espanha.
[←85]
Voyeur é o substantivo masculino com origem no francês que descreve uma pessoa que obtém prazer ao
observar atos sexuais ou práticas íntimas de outras pessoas.
[←86]
Processo natural ou artificial em que o lixo considero orgânico, como restos de comidas, é transformado,
através de algumas técnicas, em adubo.
[←87]

Também chamado de tenue de soirée ("roupa de noite",


em francês), o traje de gala é destinado às festas super formais; no nível dos casamentos ou dos tapetes
vermelhos, mesmo.
Feminino: O vestido longo é o mais indicado, mas, na última década, os curtos chiques também passaram a
ser aceitos.

Masculino: No traje de gala, não tem negociação: o homem tem que usar smoking.
[←88]

A Hidra de Lerna, na mitologia grega, era um


monstro, filho de Tifão e Equidna, que habitava um pântano junto ao lago de Lerna, na Argólida, hoje o que
equivaleria à costa leste da região do Peloponeso. A Hidra tinha corpo de dragão e várias cabeças de serpente.
[←89]

A Górgona é uma criatura da mitologia grega, representada como um monstro


feroz, de aspecto feminino e com grandes presas e serpentes no lugar dos cabelos. A Górgona mais conhecida e
a Medusa.
[←90]

O freixo é uma árvore da família das Oleáceas, a mesma família a que


pertence a oliveira. É uma árvore de solos frescos e profundos, de porte médio, que pode atingir cerca de 25
metros de altura.
[←91]
Planta venenosa para os lobos.
[←92]

Estrutura básica para iniciar a moldagem de jarros de barro.


[←93]
Amarna, El Amarna ou Tell el-Amarna é o nome atual em árabe de uma localidade que funcionou como
capital do Antigo Egito durante o reinado do faraó Aquenáton, sendo então designada como Aquetaton.
[←94]

O Hummer é um veículo da AM General e sua marca, assim como


o direito de marketing, pertencente à GM.
[←95]

Bolsa Clutch, bolsas femininas


[←96]

O Ruger SP101 é uma série de revólveres de dupla


ação produzidos pela empresa americana Sturm, Ruger . O SP101 é um pequeno revólver todo de aço, com
cinco tiros, seis tiros ou cilindro de oito tiros.
[←97]
O Florida Keys é um arquipélago localizado na costa sul do continente da Flórida. As ilhas ficam a apenas
24 quilômetros ao sul de Miami. A região é um ponto quente para os turistas devido ao seu clima tropical,
praias arenosas e recifes de corais. As atividades mais populares incluem mergulho, mergulho com snorkel e
banhos de sol.
[←98]

O arbalest era uma variação tardia da besta que entra em


uso na Europa durante o século XII. Uma arma grande, a mais maleável, tinha uma pancada de aço.
[←99]
Mistura de ervas, pétalas de flores secas e outros aromáticos, colocado nos ambientes para perfumá-los.
[←100]

Pele clara, porém,


bronzeada.
[←101]
No original em inglês: arm candy - Uma pessoa notavelmente atraente de qualquer sexo que está
acompanhando alguém em um evento.
[←102]

Bergantim era uma embarcação do tipo galé, de um a dois


mastros e velas redondas ou vela latinas. Levava trinta remos e era utilizado como elemento de ligação,
exploração, como auxiliar de armadas ou em outros serviços do género. Era um navio escolhido pelos reis, e
grandes senhores, para sua utilização em cerimónias.
[←103]
[←104]

karambit
[←105]

kopis gregos
[←106]

Picareta de gelo
[←107]
Tradução: “O amor é tudo o que você precisa”
[←108]

O nó górdio é uma lenda que envolve o rei da Frígia e Alexandre, o


Grande. É comumente usada como metáfora de um problema insolúvel resolvido facilmente por ardil astuto ou
por "pensar fora da caixa.
[←109]
A Epopeia de Gilgamesh ou Épico de Gilgamesh é um antigo poema épico da Mesopotâmia (atual Iraque),
uma das primeiras obras conhecidas da literatura mundial. Acredita-se que sua origem sejam diversas lendas e
poemas sumérios sobre o mitológico deus-herói Gilgamesh, que foram reunidos e compilados no século VII
a.C. pelo rei Assurbanípal. Recebeu originalmente o título Sha naqba īmuru, traduzido como Aquele que Viu a
Profundeza ou, em tradução mais recente, elaborada pelo professor Jacyntho Lins Brandão, Ele que o abismo
viu: a Epopeia de Gilgámesh. Existe ainda um outro título atribuído a esta obra: Shūtur eli sharrī (Aquele que se
Eleva Sobre Todos os Outros Reis). Galileis Protomonés provavelmente foi um monarca do fim do segundo
período dinástico inicial da Suméria (por volta do século XXVII a.C.)
[←110]
Original em inglês: Pussy – que também significa gatinho, vagina, boceta. Ela chama ele de bichano, mas
fazendo duplo sentido.
[←111]
Branco.
[←112]
Composto orgânico aromático. Presente naturalmente nas fezes humanas, tem um odor fecal intenso.
Porém, em concentrações muito baixas, tal composto possui um odor de flores, e é um constituinte de muitos
destes aromas (está presente, por exemplo, na flor de laranjeira) e também de perfumes. Está também presente
no alcatrão da hulha.
[←113]

Torniquete improvisado.
[←114]
O sistema linfático é uma rede complexa de vasos e pequenas estruturas chamadas de nódulos linfáticos que
transportam o fluido linfático dos tecidos de volta para o sistema circulatório.
[←115]
O texto utilizou a expressão ‘Mirandized’, que é um tipo de notificação habitual dada pela polícia
americana.
“Você tem o direito de permanecer em silêncio. Qualquer coisa que você disser pode e será usada contra
você em um tribunal. Você tem o direito de ter um advogado. Se você não puder pagar um, um será nomeado
pelo tribunal. Com esses direitos em mente, você ainda está disposto a conversar comigo sobre as acusações
contra você?”
[←116]
[←117]

Jararaca
[←118]

Mangusto, suricato
[←119]

Texugo-do-mel
[←120]
A terebintina é um fluido obtido pela destilação de resina de árvores vivas, principalmente pinheiros. É
usado principalmente como solvente e como fonte de materiais para síntese orgânica.
[←121]

Echis é um género de serpentes venenosas da


família dos Viperídeos, também conhecida mundialmente como Saw-scaled viper (sem correspondente para o
português). O seu habitat são as regiões secas de África, Médio Oriente, Paquistão, Índia e Sri Lanka. Dispõem
de uma característica ameaçadora ao esfregar o corpo para produzir um som semelhante a um guizo.
[←122]

Os cannoli são uma sobremesa proveniente da Sicília que consiste em uma


massa doce frita em formato de tubo, recheada de um creme de ricota. Os cannoli são bem populares na cozinha
italiana nos Estados Unido.
[←123]
Empresa famosa em comercializar cristais e qualidade. Produz também joias.
[←124]

O alfabeto cirílico, também conhecido como azbuka, é


um alfabeto cujas variantes são utilizadas para a grafia de seis línguas nacionais eslavas, além do ruteno, e
outras línguas extintas.
[←125]
Que isso seja uma catástrofe - Russo
[←126]

As runas são letras características, usadas para


escrever nas línguas germânicas da Europa do Norte, principalmente na Escandinávia, ilhas Britânicas e
Alemanha desde o séc. II até ao séc. XI.
[←127]
Esloveno – ‘Calado’.
[←128]
Uma orda (também orda , ordu , ordo ou ordon ) ou horda era uma estrutura sociopolítica e militar
histórica encontrada na Estepe Eurasiana , geralmente associada aos povos turcos e mongóis . Essa entidade
pode ser vista como o equivalente regional de um clã ou tribo. Alguns ordas bem sucedidas deram origem aos
canatos.
[←129]

Kitej ou Quiteje é uma cidade lendária que estaria situada na província de


Nijny Novgorod na Rússia. Segundo a lenda, Yuri II, Grão-Príncipe de Vladimir, construiu primeiro a cidade de
Maly Kitej no rio Volga.
[←130]
Quando um item adquire a aparência de outro item. A mudança é somente estética pois os atributos
continuam os mesmos.
[←131]

Arco composto
[←132]

Chá preto
[←133]
Russo “Em nome de Chernobog”
[←134]
A frase original em inglês é: You shall not pass significa algo como Você não passará. Dito de modo bem
enfático, soará como uma ordem clara e direta indicando que a outra pessoa não passará por aquele caminho ou
local. Foi por causa do personagem Gandalf do filme O Senhor dos Anéis: a sociedade do anel que essa frase se
tornou conhecida. Veja o trecho: https://www.youtube.com/watch?v=mJZZNHekEQw
[←135]

Rocky é uma série de filmes de ação estrelada e escrita pelo ator americano Sylvester
Stallone, o qual nestes filmes interpreta o boxeador Rocky Balboa.
[←136]

A saga conta a história de uma família mafiosa que luta para estabelecer sua
supremacia na América depois da Segunda Guerra. Uma tentativa de assassinato deixa Vito Corleone
incapacitado e força os filhos Michael e Sonny a assumirem os negócios.
[←137]

O soldado aposentado das Forças Especiais, John Matrix, vive isolado com sua filha Jenny,
mas sua privacidade é interrompida pelo ex-comandante Franklin Kirby, que o avisa que seus companheiros
estão sendo assassinados um por um.
[←138]

Tugg Speedman, um ator muito famoso, se dirige para o sudeste asiático para participar de
um dos filmes mais caros de todos os tempos. Porém, logo depois do início das gravações, ele e seus
companheiros, Kirk Lazarus e Jeff Portnoy, se veem em meio a uma guerra no local das filmagens, a qual faz
com que eles se tornem soldados de verdade.
[←139]
[←140]

Uma caixa de brinquedo que quando se abre lá de dentro um palhaço salta.


[←141]

Movimento de artes maciais.


[←142]

Cupcakes Red Velvet


[←143]

O cream cheese ou queijo cremoso, é um tipo de queijo fresco elaborado a


partir de leite e creme. O cream cheese não é naturalmente amadurecido e é destinado a ser consumido fresco,
por isso difere de outros queijos macios como Brie e Neufchâte.
[←144]
Cada um dos estados nos Estados Unidos está subdividido administrativamente, em territórios chamados
condados (em inglês: county) – com exceção do Alasca, onde tais divisões são chamadas de distritos (em
inglês: boroughs), e da Louisiana, onde são chamadas de paróquias (em inglês: parishes). As responsabilidades
e os poderes dos condados variam de Estado para Estado, mas eles são sempre divisões administrativas do
Estado em questão.
[←145]
[←146]

The Hound of the Baskervilles (em português, O Cão dos Baskervilles) é um romance
policial escrito por Sir Arthur Conan Doyle, tendo como protagonistas Sherlock Holmes e Dr. Watson.
Publicado em 1902, a história era originalmente dividida em partes, impressas pela revista Strand Magazine de
agosto de 1901 a Abril de 1902. Nesse caso, o detetive e seu fiel parceiro Watson investigam a morte do Sir
Charles Baskerville, um milionário inglês achado morto em um pântano próximo de seu lar. Conta a lenda que
Charles havia sido assassinado por um cão que assombrava a região, conhecido por matar gerações da família
Baskerville. A causa mais provável pela morte de Charles, no entanto, seria um ataque cardíaco.
[←147]

Sanduiches feito com carne assada ao modo grego.


[←148]
O molho tzatziki é um condimento típico da Grécia, feito a base de iogurte e pepino, que normalmente é
aromatizado com alho e endro.
[←149]
[←150]

O Reino de Hades (deus grego), ou mundo inferior na mitologia grega, é a


terra dos mortos, o local para onde a alma das pessoas se dirigiria após a morte. Nesse local as almas passariam
por um julgamento, onde seu destino seria decidido.
[←151]

Hel ou Casa das Névoas, é um dos nove mundos da mitologia nórdica, o domicílio
dos mortos, governada por Hel, cujo nome é compartilhado com o próprio lugar
[←152]

Ammit é um demônio Egípcio do sexo feminino, podendo variar sua forma


de humana assim como uma quimera, as vezes possuindo a cabeça de um crocodilo, torso de um felino, e sua
parte traseira de um hipopótamo. Ammit era conhecida também como 'Devoradora dos Mortos, Comedora de
Almas ou A Graça da Morte.
[←153]

Na religião egípcia, Maat ou Ma'at é a deusa da verdade, da


justiça, da retidão e da ordem. É a deusa responsável pela manutenção da ordem cósmica e social, filha de Rá e
esposa de Toth.
[←154]

Osíris (Ausar em egípcio) era um deus da mitologia egípcia, associado à vegetação e a


vida no Além. Oriundo de Busíris, no Baixo Egito, Osíris foi um dos deuses mais populares do Egito Antigo,
cujo culto remontava às épocas longínquas da história egípcia e que continuou até à era Greco-Romana, quando
o Egito perdeu a sua independência política para o Império Romano.
[←155]
[←156]

Arco Composto Ifor


[←157]
Conhecida também como “Papai e mamãe”.
[←158]
Raphael quis fazer uma piada com uma expressão popularizada entre os comediantes americanos. A frase
original: What's That, Girl? Timmy's Fallen Down a Well? (O que foi, garota? Timmy caiu no poço?) Está
atribuída erroneamente a uma antiga série de TV, Lassie. A série retratava a vida da cadela Lassie e as suas
várias aventuras com os seus donos, um deles, Timmy que conversava com a cadela e parecia que ele entendia
o que os latidos de volta diziam. Ninguém sabe ao certo por que essa frase foi atribuída a série, já que Timmy
nunca caiu em nenhum poço e nunca esteve presente em nenhuma fala de nenhum personagem. O que se sabe é
que a frase foi usada pelos comediantes para descrever algumas situações engraçadas e depois a expressão foi
ganhando também alguns sentidos pejorativos, que não é o caso na frase de Raphael, que só quis fazer uma
piada mesmo.
[←159]

Raphael continua aqui com a piada


da frase que ele usou mais cedo “O que foi, garota? Timmy caiu no poço?” Lassie foi uma cadela personagem
de uma série de Tv famosa.
[←160]

Flor de Lótus
[←161]

Ninfeia
[←162]

jasmim
[←163]

Bisonho, é um personagem da turma do Ursinho Puff. Ele também é conhecido como


Oió, Ió ou Igor. O nome oficial da Disney no Brasil é Ió. Bisonho é um burro cinzento com pernas curtas,
orelhas caídas e crina negra.
[←164]

Anúbis (em grego antigo: Ἄνουβις) ou Anupo foi como ficou conhecido pelos
gregos deus egípcio antigo dos mortos e moribundos, guiava e conduzia a alma dos mortos no submundo,
Anúbis era sempre representado com cabeça de chacal, entretanto os egiptólogos mais conservadores afirmam
que não há como saber com certeza o animal que o representa, era sempre associado com a mumificação e a
vida após a morte na mitologia egípcia, também associado como protetor das pirâmides. Na língua egípcia,
Anúbis era conhecido como Inpu (também grafado Anup, Anpu e Ienpw). A menção mais antiga a Anúbis
está nos Textos das Pirâmides do Império Antigo, onde frequentemente é associado com o enterro do Faraó.[2]
Na época, Anúbis era o deus dos mortos mais importante, porém durante o Império Médio, Osíris.[3] , passou a
ter a função de deus primordial dos mortos, enquanto que Anúbis tinha funções menores como por exemplo o
preparo do corpo e embalsamento dos mortos, além disso era o protetor do processo de mumificação.
[←165]
Uma outra forma de se pronunciar Anapa.
[←166]
Avatar significa manifestação corporal de um ser super poderoso, na religião hindu. Avatar é um ser
supremo, imortal. A divindade Vishnu que é adorada pelos hindus, tem muitos avatares, e já sofreu segundo
eles muitas encarnações. Em outras religiões também é usado este termo lembrando as encarnações de outras
divindades. Avatar é qualquer espírito que ocupa um corpo terrestre, o que representa uma manifestação divina
na terra, para o povo hindu é a encarnação da divindade, que desce do reino divino, e usa a matéria de outro
corpo.
[←167]

Na mitologia egípcia, Apep (ou Apophis, em grego. Também conhecida


como Apófis), é uma criatura em forma de serpente que combatia o deus Rá ao cair de cada noite, sendo
sempre morta, mas sempre ressuscitando. Também chamada de Apepi ou Aapep.
[←168]

Rá ou Ré (em egípcio: *ri:ʕu), é o deus do Sol do Antigo Egito. No período da Quinta Dinastia
se tornou uma das principais divindades da religião egípcia, identificado primordialmente com o sol do meio-
dia.
[←169]

Na mitologia egípcia, Bastet, Bast, Ubasti, Ba-en-Aset ou Ailuros (palavra grega para
"gato") é uma divindade solar e deusa da fertilidade, além de protetora das mulheres. Também tinha o poder
sobre os eclipses solares. Quando os gregos chegaram no Egito, eles associaram Bastet com Ártemis, embora
esta deusa esteja eminentemente relacionada à lua, enquanto Bastet inegavelmente estava relacionada aos mitos
solares.
[←170]

Set, também chamado Setesh, Sutekh, Setekh ou Suty, eventualmente grafado Seth (em
inglês) e Seti (grafia mais correta em português), é um deus egípcio do caos, da seca, da guerra , o senhor da
terra vermelha (deserto) onde ele era o equilíbrio para o papel de Hórus como o senhor da terra negra (solo).
[←171]
[←172]
Um fractal é um objeto geométrico que pode ser dividido em partes, cada uma das quais semelhante ao
objeto original. Diz-se que os fractais têm infinitos detalhes, são geralmente autossimilares e de escala. Em
muitos casos um fractal pode ser gerado por um padrão repetido, tipicamente um processo recorrente ou
iterativo.
[←173]

Draugr ou draug, também conhecido como aptrgangr é uma criatura


classificada como um morto-vivo na mitologia nórdica.
[←174]
‘Não estamos mais no Kansas’ é uma expressão popular americana. Essa frase tem referência do trecho de
um diálogo que Dorothy, personagem de O Mágico de Oz, tem com o seu cachorrinho Totó (‘Toto, i have a
feeling we’re not in Kansas anymore’ -Totó, tenho a sensação de que não estamos mais no Kansas), quando ela
descobre que não estão mais no Kansas, região onde morava com seus avós, e sim em algum lugar
desconhecido depois que são levados por um tornado. A expressão é usada quando alguém se depara com
situações ou lugares estranhos aqueles a que estão acostumados e serve para descrever a sensação de
desconforto ou excitação que sentem frente ao inesperado quando não podem prever o que irá acontecer em
seguida.
[←175]
[←176]

O Tennessee Walking Horse ou o Tennessee Walker é uma raça de cavalo


conhecido por seu movimento único de corrida e caminhada de quatro batidas. Foi originalmente desenvolvido
no sul dos Estados Unidos para uso em fazendas e plantações. Esse da imagem é um espécime da cor roan red
ou roan vermelho ou ainda roan morango.
[←177]

Meu Pequeno Pónei ou Meu Querido Pônei foi uma série de desenho animado
baseada na franquia homónima produzida entre os anos de 1986 e 1987 pela Sunbow Productions e Marvel.
[←178]

Strawberry Shortcake (no Brasil: Moranguinho) é um personagem licenciado,


atualmente de propriedade da Iconix Brand Group originalmente usado em cartões comemorativos, sendo
expandida para bonecas, pôsteres e outros produtos. A marca Moranguinho também incluem uma linha de
brinquedo dos amigos da personagem e seus animais de estimação. Além disso, a franquia tem gerado especiais
de televisão, desenhos animados e filmes.
[←179]
A parte da frase original em inglês é: — ... She will be berry, berry angry with you. (... Ela vai ficar fruto,
fruto irritada com você). Na frase original a Kate faz uma piada com os sons parecidos das palavras Very
(muito) e Berry (fruto, baga, grão), já que a Moranguinho (personagem) foi baseada na fruta morango. Em
português a piada perde o sentido já que a palavra muito e fruto não tem sons parecidos.
[←180]

A Floresta Nacional de Chattahoochee-Oconee, no


norte da Geórgia, compreende duas Florestas Nacionais dos Estados Unidos, a Floresta Nacional de Oconee, no
leste da Geórgia, e a Floresta Nacional de Chattahoochee, localizada nas Montanhas do Norte da Geórgia. A
Floresta Nacional de Chattahoochee é comprometida de uma floresta oriental e ocidental. A floresta ocidental
contém Johns Mountain, Little Sand Mountain e Taylor Ridge. A área total combinada da Floresta Nacional de
Chattahoochee-Oconee é de 866.468 acres (3.506 km 2), dos quais a Floresta Nacional de Chattahoochee
compreende 750.145 acres (3.036 km 2) e a Floresta Nacional de Oconee compreende 116.232 acres (470 km
2)). O condado com a maior porção da floresta oriental é o condado de Rabun, na Geórgia, que tem 148.684
acres (601,7 km 2 ) dentro de seus limites.
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Landvættir são espíritos da terra, presente nas crenças do paganismo nórdico, como a religião Ásatrú.
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Bétula é um género de árvores da família Betulaceae, à qual pertence


também a aveleira, Corylus avellana. As bétulas são arbustos ou árvores pequenas ou de tamanho médio,
características de climas temperados do hemisfério norte.
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Uma ThunderHawk Pro da marca Arcos


Parker. Besta de precisão.
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Vinlândia (Vinland) foi o nome dado pelos vikings à zona do Golfo de São Lourenço, Nova Brunsvique e
Nova Escócia. A área foi explorada por iniciativa de Leif Ericson a partir de Leifsbudir, um colonato
estabelecido por volta do ano 1000 na costa norte da Terra Nova (atual Canadá). A ocupação de Leifsbudir foi
precária e durou apenas uma década, mas representou o primeiro contacto da Europa com a América, cerca de
500 anos antes das viagens de Cristóvão Colombo.
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Os Uldras são pequenos seres do folclore escandinavo. Parecidos com gnomos,


porém um pouco maiores.
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É uma maneira um pouco pejorativa que ele chama as tribos Cherokee.
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Fire in the hole! (Fogo no buraco) é um aviso de que uma detonação explosiva em um espaço confinado é
iminente. Originou-se com os mineiros, que precisavam alertar seus companheiros que a carga explosiva tinha
sido ativada.
[←189]

Brinquedo feito em material mole e gelatinoso.


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Friedrich Wilhelm Nietzsche foi um filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor prussiano do
século XIX, nascido na atual Alemanha.
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O Rio Chattahoochee (em Inglês , Chattahoochee River ) é


um longo rio do sudeste dos Estados Unidos que flui primeiro sentido estado do norte SW da Georgia , e depois
para o S formando a fronteira entre este estado e os de Alabama e Flórida , até que se funde com o rio Flint
formando o Apalachicola que drenará para o Golfo do México . Tem um comprimento de 690 km. Fica dentro
da reserva Floresta Nacional de Chattahoochee.
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O Okefenokee Swamp é um pântano raso de


438.000 acres repleto de turfa que se estende pela linha Geórgia-Flórida, nos Estados Unidos. A maior parte do
pântano é protegida pelo Refúgio Nacional da Vida Selvagem Okefenokee e pelo Deserto Okefenokee.
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Flutuadores (também chamados de pontões) são estruturas


oca herméticas, semelhantes a vasos de pressão , projetadas para fornecer flutuabilidade na água. Suas
principais aplicações são em cascos de embarcações e bóias de aeronaves, construção de pontes flutuantes e
pontes flutuantes e aplicações de engenharia naval, como salvamento.
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Alinhamentos místicos e espirituais (teoria mística) – acredita-se que monumentos históricos e geográficos,
assim como elementos da natureza (cordilheiras, rios, cânions, etc.) importantes estão ligados entre si de forma
sobrenatural.
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A UMP é uma submetralhadora desenvolvida e


fabricada pela empresa alemã Heckler & Koch. A UMP é usada por várias organizações e agências
governamentais pelo mundo, sendo muito usada por forças especiais.
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Cipreste de Pântano.
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O Parker Hale M85 é um rifle sniper inglês. 308, com um


alcance efetivo de cerca de 900 metros. Incendeia-se de uma revista destacável de 10-volta e pesa 12 libras,
visão telescópica incluída.
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Planície ou terreno plano, em um vale extenso e cultivado. No Brasil, as várzeas são conhecidas por
serem terrenos cultiváveis junto aos rios e ribeirões. Existentes principalmente na região amazônica, as
várzeas são conhecidas por serem constituídas por áreas com vegetação e terreno que sempre sofre com
enchentes ou alagamentos durante a época de grandes chuvas.
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Posicionamento tático baseado na localização dos ponteiros de um relógio.
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Notas

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