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Triunfos Mágicos

Ilona Andrews
Copyright © Ago 2018
Livro 10

Mais uma Tradução Exclusiva das


Divas & Lord’s FOREVER
Traduzido do Inglês e Espanhol por Fãs
Disponibilizado por: Janiele
Tradução e 1ª Revisão: *Bia Divas
2ª Revisão: *Netero Hunter
Leitura Final e Formatação:
*Bia Divas e *Divas Rosa
Neste épico e imperdível livro da emocionante série de fantasia urbana mais vendida do New
York Times, a mercenária Kate Daniels deve arriscar tudo para proteger todos que ama.
Kate percorreu um longo caminho desde suas origens como uma solitária Mercenária,
cuidando de problemas paranormais em uma Atlanta pós-Mudança. Ela fez amigos e
inimigos. Encontrou o amor e construiu uma família com Curran Lennart, o ex Senhor das
Feras. Mas a magia dela é forte demais e os grandes Poderosos do mundo não a deixaram
em paz.

Kate e seu pai, Roland, atualmente têm uma trégua frágil, mas quando ele começa a testar
as defesas dela novamente, Kate sabe que mais cedo ou mais tarde um confronto será
inevitável. As Bruxas do Oráculo começaram a ter visões de sangue, fogo e ossos humanos.
E quando uma caixa misteriosa é entregue à porta de Kate, e há uma ameaça de guerra com
um antigo inimigo, que quase destruiu sua família no passado, ela sabe que seu tempo
acabou.

Kate Daniels não vê outra escolha senão combinar forças com o mais improvável dos
aliados. Ela sabe que a traição é inevitável. Sabe que pode não sobreviver à próxima
batalha. Mas ela tem que tentar.

Por seu filho.

Por Atlanta.

Pelo o mundo.

Agradecimentos
Em primeiro lugar, precisamos agradecer à nossa editora, Anne Sowards, que nos
guiou, nos corrigiu e, o mais importante, nos incentivou a sermos melhores em cada livro. Seu
profissionalismo e sua amizade foram inestimáveis. Sem Anne, ainda estaríamos enterrados
em uma pilha de lama.
Em seguida, queremos aproveitar esta oportunidade para agradecer nossa agente
Nancy Yost e a equipe A da NYLA: Sarah, Natanya, Amy. Elas são honestamente as melhores
no ramo. Por fim, queremos agradecer aos nossos leitores betas; vocês encontram coisas que
nunca iríamos encontrar. Vocês aperfeiçoam os livros.
Este livro, o ponto culminante dessa história, é dedicado aos nossos fãs, aqueles que
estão conosco desde o início, aqueles que se arriscaram e ficaram conosco enquanto contamos
a história de Kate e Curran da melhor maneira possível. Vocês sabem quem são e nunca
poderemos agradecer o suficiente.
Sem o apoio e o entusiasmo de vocês, a série provavelmente terminaria em Magic
Strikes. Somos muito gratos a todos.
Se nunca nos leu antes, e este é seu primeiro livro da Kate, obrigado por comprá-lo, mas
por favor, coloque-o de lado e encontre uma cópia do Magic Bites. Não é o nosso favorito, e
provavelmente o reescreveríamos se pudéssemos, mas todos temos que começar de algum
lugar, e é sempre melhor começar do começo.

Saga Kate Daniels

0.5 - Um Cliente Questionável (A Questionable Client, Conto - 2011)


01 - Sangue Mágico (Magic Bites - 2007)
02 - Fogo Mágico (Magic Burns - 2008)
03 - Ataque Mágico (Magic Strikes - 2009)
3.5 - A Magia Lamenta (Magic Mourns, Andrea & Raphael - 2009)
04 - A Magia Sangra (Magic Bleeds - 2010)
4.1 - POV de Curran 1 e 2 Completo
4.5 - Sonhos Mágicos (Magic Dreams, Dali & Jim 2011)
05 - Magia Destruidora (Magic Slays - 2011)
5.3 – Teste Mágico (Magic Test, Conto da Julie - 2012)
5.4 - Presentes Mágicos (Magic Gifts, Conto 2011)
5.5 - Gunmetal Magic (Andrea & Raphael - 2012)
5.6 - Cláusula de Retribuição (Retribution Clause – Conto dentro do Universo da Kate)
5.9 - Um Resgate Mal Aconselhado (Conto)
06 - Ascensões Mágicas (Magic Rises - 2013)
6.5 - Roubos Mágicos (Magic Steals – Dali & Jim)
07 - Rupturas Mágicas (Magic Breaks - 2014)
08 – Mudanças Mágicas (Magic Shifts - 2015)
8.5 - Estrelas Mágicas (Magic Stars/Grey Wolf #1, Derek e Julie - 2015)
09 - Ligações Mágicas (Magic Binds - 2016)
9.5 – Ferro e Magia (Iron and Magic/The Iron Covenant #1, Hugh & Elara - 2018)
10 – Triunfos Mágicos (Magic Triumphs, Série Encerrada – lançado em 2018)

Prólogo
A DOR SE ESPALHOU DOS MEUS quadris para todo o meu corpo,
separando meus ossos. Eu cerrei os dentes. Isso me torceu tanto que
pensei que iria quebrar ao meio e depois desmaiar. Caí de volta na água.
Andrea enxugou meu rosto com um pano frio. — Quase lá.
Curran apertou minha mão. Eu apertei de volta.
Acima de nós, o teto da caverna refletia os padrões brilhantes da
água. Tão bonita ...
— Fique conosco, —Doolittle me disse.
Eu poderia fechar meus olhos por um minuto. Só por um minuto.
Estava tão cansada.
— Demora tanto tempo assim? —Minha tia retrucou.
— Às vezes, —disse Evdokia, com a mão na minha barriga.
— Comigo nunca demorou tanto tempo.
— Cada mulher é diferente, —Andrea disse a ela.
Mais uma contração tomou conta de mim. Parecia que meus ossos
rachariam. A contração passou e eu caí de volta.
— Faz dezesseis horas, —minha tia rosnou. — Ela está exausta
e sofrendo. Façam alguma coisa. Dê a ela um desses
comprimidos que a civilização de vocês tanto aprecia.
— Ela não pode tomar medicamento nenhum, —disse Evdokia, sua
voz calma. — É tarde demais. O bebê está chegando.
— Dê a ela algum comprimido ou eu mato você, bruxa.
— Se dermos alguma coisa a ela, afetará o bebê, —disse Andrea.
O bebê. Minha mente saiu da nevoa e voltei à realidade. Estávamos
na floresta das bruxas, dentro de uma caverna, mergulhados em uma
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nascente de água mágica. Podia sentir os Covens trabalhando lá fora.
Eles haviam coberto a caverna em uma cúpula de magia impenetrável.
Enquanto durasse, meu pai não nos encontraria. Pelo menos essa era a
esperança. Ao meu redor, a água da nascente mágica espirrou. Estava
deitada na cavidade lisa de uma pedra, minha cabeça erguida, meus pés
voltados para a piscina de água. Evdokia se colocou entre as minhas
pernas, seus quadris mergulhados na água. Doolittle esperava à minha
direita. Havia muitas pessoas aqui.
Outra contração tomou conta de mim. A dor me rasgou.
— Empurre, —disse Doolittle. — Empurre. Assim, bom ... Bom.
— Você consegue, —disse-me Curran. — Vamos, bebê.
Segurei sua mão e empurrei. Um pulso ofuscante de agonia passou
por mim e então de repente aliviou.
— Mais uma vez, —disse Doolittle.
— Empurre, —Evdokia insistiu. — Você consegue.
— Empurre. Mais uma vez.
Não havia mais forças para empurrar, mas de alguma forma eu
encontrei alguma, empurrei novamente e de repente meu corpo ficou
muito leve. A dor se espalhou por mim, quente e quase reconfortante. Eu
pisquei.
— Parabéns! —Evdokia levantou algo fora da água e vi meu filho.
Sua pele era vermelha e enrugada, contrastando com uma juba de cabelos
escuros. Era a coisa mais linda que eu já tinha visto. Ele respirou fundo e
gritou.
Curran sorriu para mim. — Você conseguiu, bebê.
Minha tia deslizou na água, uma sombra translúcida. Evdokia cortou
o cordão umbilical e segurou meu filho, e Erra o pegou, segurando-o pela
pura magia que passava por seus braços fantasmagóricos. Um pulso de
poder disparou dela para o bebê. Por um segundo, meu filho brilhou.
— O sangue é puro. —O orgulho vibrou na voz de Erra. —
Contemplem o príncipe de Shinar e saibam que ele é perfeito!
Magia explodiu acima de nós. Eu senti como se uma agulha gigante
atravessasse diretamente a Proteção das bruxas. Meu pai estava vindo.
Minha tia se desmanchou em uma nuvem de pura magia brilhante.
A nuvem rodopiou em volta do meu filho. Ele flutuava no casulo da
magia de Erra, protegido por sua essência.
A agulha da magia do meu pai atravessou a Proteção das bruxas. Por
uma fração torturante de segundo, a Proteção resistiu, mas a agulha a
penetrou, empurrando-se cada vez mais. Logo seria totalmente destruída.
Ele não pegaria nosso filho.
O poder saiu de mim em uma torrente concentrada de dor. Afundei
cada grama de minha força nele. Meu poder encontrou a magia invasora.
A água da nascente subiu em longos jatos e pairou suspensa no ar acima
do leito seco do lago.
Palavras de Poder deslizaram dos meus lábios. — Nem hoje. Nem
nunca.
Lutamos, a magia vibrando entre nós, as correntes de poder
deslizando e se contorcendo como se estivessem vivas.
A agulha se empurrou ainda mais, o peso de toda a força de Roland
atrás dela.
Eu gritei e não havia dor na minha voz, apenas raiva. A magia me
inundou, a terra me deu a reserva de que eu precisava e a enviei contra o
poder intruso.
A agulha quebrou.
A água voltou a cair na nascente da caverna.
Eu caí de volta. Meu pai falhou.
Acabou. Eu estava exausta.
Curran pulou na água. Erra soltou nosso filho e Curran o pegou.
Minha tia se refez.
Algo passou entre ela e Curran, um olhar estranho, mas eu estava
cansada demais para me importar.
Curran deitou nosso bebê no meu peito. Eu o abracei. Ele era tão
pequeno. Tão pequeno. Uma vida que Curran e eu havíamos feito juntos.
Curran passou as mãos em volta de mim, levantando nós dois para
ele.
— Nomeiem a criança, —Erra disse.
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— Conlan Dilmun Lennart, —eu disse. O primeiro nome pertencia
ao pai de Curran. O segundo foi Erra quem deu. Era o nome de um reino
antigo, e ela disse que o protegeria.
Conlan Dilmun Lennart se contorceu no meu peito e chorou. Não
havia som melhor no mundo.
Capítulo 1
Treze meses depois.

UM BAQUE ME ACORDOU. Imediatamente fiquei de pé e me movi,


minha espada estava na mão antes mesmo que o meu cérebro processasse
que eu já estava em pé.
Fiz uma pausa, levantei Sarrat.
Um fino raio de luz suave do início do amanhecer rompia o espaço
entre as cortinas. A magia havia ido embora. À minha esquerda, no
pequeno espaço que Curran separou no nosso quarto para fazer um
berçário, Conlan estava de pé no berço, bem acordado.
O quarto estava vazio, exceto eu e meu filho.
Bam-bam-bam.
Alguém batia na minha porta da frente. O relógio na parede dizia
que eram dez para as sete da manhã. Adotamos os hábitos dos horários
dos metamorfos: tarde para dormir, tarde para levantar. Todo mundo que
nos conhecia estava ciente disso.
— Uh-oh! —Disse Conlan.
É isso mesmo, uh-oh. — Fique aqui, —eu sussurrei. — Mamãe tem que
ir cuidar de algo.
Saí correndo do quarto, me movendo rápida e silenciosamente, e
fechei a porta atrás de mim.
Bam-bam-bam.
Calma aí, estou chegando. E então terá algumas explicações a dar.
Levei dois segundos para descer a longa escada que levava do
terceiro andar até a porta da frente reforçada. Peguei a alavanca, a
deslizei para o lado e abaixei a aba de metal que cobria a pequena janela.
Os olhos castanhos de Teddy Jo me encararam.
— O que diabos está fazendo aqui? Você sabe que horas são?
— Abra a porta, Kate, —Teddy Jo falou agitado. — Isto é uma
emergência.
Sempre era uma emergência. Toda a minha vida foi uma longa
cadeia de emergências. Destranquei a porta e a abri. Ele passou por mim.
Os cabelos de Teddy Jo estavam soltos e bagunçados pelo vento. Seu
rosto estava sem sangue e seus olhos selvagens. Ele veio até aqui voando
em alta velocidade.
Uma sensação de aperto se agarrou ao meu estômago. Teddy Jo era
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Thanatos , o anjo grego da morte. Assustá-lo não era algo muito fácil de
fazer. Bem que eu estava achando tudo muito tranquilo ultimamente.
Fechei a porta e a tranquei.
— Preciso de ajuda, —disse ele.
— Alguém está em perigo imediato?
— Eles estão mortos. Estão todos mortos.
O que quer que fosse já havia acontecido.
— Preciso que você venha e veja isso.
— Você pode explicar o que é?
— Não. —Ele pegou minha mão. — Preciso que venha agora.
Olhei para a mão dele na minha.
Ele a soltou.
Entrei na cozinha, peguei uma jarra de chá gelado na geladeira e
servi um copo cheio para ele.
— Beba isso e tente se acalmar. Vou me vestir, encontrar uma babá
para Conlan, e depois iremos.
Ele pegou o copo. O chá tremeu.
Subi correndo as escadas, abri a porta e quase colidi com meu filho.
Conlan sorriu para mim. Ele tinha meu cabelo escuro e os olhos
cinzentos de Curran. Também tinha o senso de humor de Curran, o que
me deixava louca. Conlan começou a andar cedo, aos dez meses, o que
era típico nas crianças metamorfas, e agora já corria a toda velocidade.
Suas brincadeiras favoritas incluíam fugir de mim, se esconder debaixo de
várias peças de móveis e derrubar objetos das superfícies horizontais. A
felicidade era maior ainda quando os objetos quebravam.
— Mamãe tem que ir trabalhar. —Tirei a camiseta longa que eu
usava como camisola e peguei um sutiã esportivo.
— Pappaapapa!
— Hum-rum. Eu gostaria também de saber onde está seu papa. Ele
está lá fora em uma de suas expedições.
— Papa? —Conlan se animou.
— Ainda não, —eu disse a ele, pegando meu jeans. — Seu pai deve
voltar amanhã ou depois.
Conlan andou a passos largos. Apesar de caminhar cedo e de
algumas habilidades de escalada seriamente perturbadoras, ele não
mostrava sinais de ser um metamorfo. Não mudou de forma ao nascer e
ainda não havia mudado.
Nesses treze meses, Conlan deveria estar se transformando em um
pequeno filhote de leão regularmente. Doolittle encontrou o Lyc-V no
sangue de Conlan, presente em grandes quantidades, mas o vírus
permanecia inativo. Sempre entendemos que isso era uma possibilidade,
porque meu sangue costuma devorar o patógeno Immortuus e Lyc-V no
café da manhã e ainda pedir mais. Mas eu sabia que Curran esperava que
nosso filho fosse um metamorfo. Doolittle também. Por um tempo, o
médico-mago do Bando continuou tentando estratégias diferentes para
trazer a fera de Conlan à tona. Doolittle ainda estaria tentando se eu não
tivesse o proibido disso.
Cerca de seis meses atrás, Curran e eu visitamos a Fortaleza e
deixamos Conlan com Doolittle por cerca de vinte minutos. Quando
voltamos, encontrei Conlan chorando no chão com três metamorfos em
forma de guerreiro rosnando para ele, enquanto Doolittle o observava.
Eu chutei um pela janela e quebrei o braço de outro antes que Curran
pudesse me segurar. Doolittle me garantiu que nosso filho não estava em
perigo, e eu o informei que ele havia acabado de torturar nosso bebê por
diversão. Acho que também acabei reforçando meu argumento quando
agarrei Conlan com uma das minhas mãos e fiquei sacudindo Sarrat
coberta de sangue com a outra. Aparentemente, meus olhos também
brilharam e a Fortaleza do Bando tremeu. Então foi decidido
coletivamente que novos testes não seriam mais necessários.
Eu ainda levava Conlan para as consultas agendadas com Doolittle e
quando ele se machucava, espirrava ou outras coisas típicas de bebê que
me faziam temer por sua vida. Mas eu vigiava todo mundo como um
falcão o tempo todo.
Apertei o cinto, deslizei Sarrat na bainha das minhas costas e puxei
meu cabelo para trás em um rabo de cavalo. — Vamos ver se sua tia pode
ficar com você por algumas horas.
Peguei-o no colo e desci as escadas.
Teddy Jo estava andando na nossa sala de estar como um tigre
enjaulado. Peguei as chaves do nosso jipe e saí pela porta.
— Vou levar você voando, —disse ele.
— Não. —Atravessei a rua em direção à casa de George e Eduardo.
Eu tinha que comprar um bolo para George por todas as horas de babá
que ela estava fazendo ultimamente.
— Kate!
— Você disse que ninguém está em perigo imediato. Se me levar
voando, ficarei balançando milhares de metros acima do solo em um
balanço de parquinho carregado por um anjo da morte histérico.
— Eu não sou histérico.
— Bem. Por um anjo da morte extremamente agitado. Você pode
voar e de cima liderar o caminho.
— Voar será mais rápido.
Bati na porta de George. — Quer minha ajuda ou não?
Ele fez um barulho frustrado, depois se calou.
A porta se abriu e George apareceu, seus cachos castanhos escuros
flutuando em volta da cabeça como uma auréola.
— Sinto muito, —comecei.
Ela abriu os braços e pegou Conlan de mim. — Quem é meu
sobrinho favorito?
— Ele é seu único sobrinho. —Depois que a família de Curran
morreu, Mahon e Martha, os alfas do Clã Heavy, o criaram como seus.
George era filha deles e irmã de Curran.
— Mero detalhe. —George o pegou com seu braço bom. O toco do
seu braço mutilado parava abaixo de cerca de três centímetros do
cotovelo. O toco tinha dez centímetros a mais do que costumava ter a um
ano atrás. Doolittle estimou que daqui uns três anos o braço estaria
regenerado completamente. George nunca deixou que a mutilação do seu
braço fosse um obstáculo. Ela beijou Conlan na testa. Ele torceu o nariz e
espirrou.
— Mais uma vez, desculpe. Isto é uma emergência.
George acenou. — Vá, vá ...
Virei à direita e fui em direção à casa de Derek.
— E agora? —Teddy Jo rosnou.
— Vou pegar apoio. —Tinha a sensação de que precisaria.

*******
EU DIRIGIA O JIPE por uma estrada coberta de mato.
— Ele parece que alguém enfiou uma vespa em sua bunda, —
observou Derek.
Acima de nós e adiante, Teddy Jo voava, erraticamente, indo e
voltando. Suas asas eram feitas da meia-noite, tão negras que engoliam a
luz. Normalmente, seu voo era uma visão espetacular de se ver. Hoje ele
voava como se estivesse tentando evitar flechas invisíveis.
— Algo o deixou realmente agitado.
Derek fez uma careta e ajeitou a faca no quadril. Durante seu tempo
no Bando, ele sempre usava moletom cinza, mas desde que se separou
formalmente dos metamorfos de Atlanta, Derek se adaptou à vida na
cidade. Jeans, camisetas escuras e botas de trabalho se tornaram seu
uniforme. Seu rosto, outrora lindo, nunca mais seria o mesmo e ele fazia
um grande esforço para manter firme o personagem do lobo solitário,
estoico e ranzinza. Mas o velho Derek, o garoto engraçado, estava
aparecendo cada vez mais. De vez em quando, ele dizia algo e todos
riam.
Eu não estava em um bom humor para rir agora. Qualquer coisa que
tivesse agitado Thanatos dessa forma era ruim. Eu o conheço há quase
dez anos. Ele perdeu a calma algumas vezes, como quando socou um
Volhv negro direto no rosto porque sua espada tinha sido roubada. Mas
ele estava agora completamente fora de si. Estava frenético.
— Eu não gosto disso, —afirmou Derek, com o tom calmo.
— Você acha que o universo se importa?
— Não, mas ainda não gosto. Ele disse para onde estamos indo?
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— Serenbe . —Eu girei em torno de um buraco.
— Nunca ouvi falar desse lugar.
— É uma pequena vila a sudoeste de Atlanta. Costumava ser um
bairro rico e pretensioso, seus moradores chamavam de ‘vila urbana’.
Derek piscou para mim. — O que diabos é uma vila urbana?
— Era uma subdivisão arquitetonicamente planejada dentro de
alguns bosques pitorescos para pessoas com muito dinheiro. O tipo que
constrói uma casa de um milhão e que a chama de ‘casa de campo’. Era
um local onde se morava ao meio da natureza, mas que bastava dirigir
oitocentos metros para comprar uma xícara de café especial de dez
dólares.
Derek revirou os olhos.
— Nas últimas duas décadas, todas as pessoas ricas voltaram para a
cidade por questões de segurança, e agora há uma comunidade agrícola
lá. A maioria das casas fica em terrenos com cerca de vinte mil metros
quadrados, e são todos jardins e pomares. É legal. Fomos lá para o
festival do pêssego em junho.
— Sem mim.
Eu dei a ele meu olhar feio. — Que eu me lembre você foi
convidado, mas tinha ‘algo para cuidar’ e decidiu não ir.
— Deve ter sido importante.
— Já pensou em investir em uma capa? Pelo tempo que você gasta
percorrendo a cidade resolvendo os problemas dela, seria útil.
— Capa não faz meu estilo.
O jipe pulou sobre as lombadas no calçamento feitas pelas raízes
grossas, provavelmente de um dos carvalhos altos que ladeavam a
estrada. Antes da mudança, essa viagem levaria cerca de meia hora,
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agora faríamos em quase duas horas. Passamos pela I-85 , que com todo
o tráfego e problemas, nos levou mais noventa minutos para atravessá-la,
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e então seguíamos para a oeste na South Fulton Parkway .
— Ele está pousando, —anunciou Derek.
— Maravilha.
À frente, Teddy Jo desceu. Por um momento, o contorno do corpo
dele ficou contra o céu brilhante, suas asas negras abertas, seus pés
apenas alguns metros acima da estrada, um anjo sombrio nascido em
uma época em que as pessoas deixavam sangue como uma oferta para
comprar sua passagem segura para a vida após a morte.
— Exibido, —Derek murmurou.
— A inveja não fica bem em você.
Teddy Jo se abaixou na estrada. Suas asas dobraram e
desapareceram em uma nuvem de fumaça negra.
— Você sabe o que ele é quando está voando? —Perguntou Derek.
— Não, me esclareça.
Derek sorriu. Era um sorriso muito pequeno, mostrando apenas a
ponta de uma presa. — Ele é um grande e excelente alvo. Qualquer um
pode atirar nele diretamente do chão para o céu. Onde ele vai se
esconder? Ele tem um metro e oitenta e de asas abertas tem uma
envergadura do tamanho de um pequeno avião. —Derek riu baixinho.
Você pode até tirar o lobo da floresta, mas ele sempre será um lobo.
Estacionei perto de Teddy Jo e abri a porta. Uma explosão de som
do motor de água encantada assaltou meus ouvidos.
— Deixe o carro ligado, —gritou Teddy Jo sobre o barulho.
Peguei minha mochila e saí do jipe. Derek saiu do outro lado,
movendo-se com graça fluida. Viramos à direita em uma estrada lateral e
seguimos Teddy Jo, deixando o jipe rugindo para trás.
As árvores ofuscavam a estrada. Normalmente, a floresta estava
tranquila, mas este era o verão do acasalamento e reprodução periódica
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de dezessete anos das cigarras . A cada dezessete anos, as cigarras surgem
em grande número e soltam a voz. O refrão da canção estranha e
alarmante desses insetos é tão alta que cobre todos os outros ruídos
normais da floresta, abafando o canto dos pássaros e os esquilos.
Uma placa erguida de forma improvisada ao lado da estrada
anunciava: AFASTEM-SE! ORDEM DO SHERIFE DO CONDADO DE
FULTON.
Embaixo estava escrito: COY PARKER, SE CRUZAR NOVAMENTE
ESSA FRONTEIRA, VOU ATIRAR EM VOCÊ. SHERIFF WATKINS.
— Quem é Coy Parker?
— Moleque bagunceiro local. Eu conversei com ele. Ele não viu
nada.
Algo na maneira como Teddy Jo disse que conversou com Coy
Parker me dizia que o rapaz não iria se meter mais em nenhuma outra
bagunça.
— Por que eles não colocaram guardas? —Perguntou Derek.
— Estão sobrecarregados, —disse Teddy Jo. — São só cinco
funcionários para todo o Condado. E não sobrou muito o que guardar
aqui.
— Afinal por que tudo isso? —Perguntei.
— Você vai ver, —disse Teddy Jo.
A estrada fez uma curva para a direita e nos levou a uma longa rua.
Caminhos de entrada de garagem saíam da rua, cada caminho levando a
uma casa que ficava no meio de um terreno de cerca de vinte mil metros
quadrados. Muros altos ladeavam as casas, alguns feitos de madeira
outros de metal, cobertos com arame farpado. Aqui e ali, uma cerca de
barras de ferro forjado permitia vislumbrar um jardim. Com a cadeia de
transporte interrompida pela Mudança, muitas pessoas se voltaram para a
horticultura. Pequenas fazendas como essas surgiram por toda Atlanta,
até mesmo dentro da cidade, mas mais frequentemente nos arredores.
Tudo estava silencioso. Muito quieto. A essa hora do dia, estaríamos
ouvindo os ruídos normais da vida: crianças gritando e rindo, cachorros
latindo, motores de água encantada rosnando. A rua inteira estava
mergulhada em silêncio, exceto pelas cigarras excitadas cantando feito
loucas. Era assustador.
Derek inalou e agachou-se no chão.
— O que foi? —Perguntei.
Seu lábio superior tremia. — Eu não sei.
— Escolha uma casa, —disse Teddy Jo, seu rosto desprovido de
qualquer expressão.
Virei a entrada mais próxima. Derek decolou, correndo pela rua em
uma velocidade que para ele era fácil, mas para a maioria das pessoas
seria impossível. Um lobo podia cheirar sua presa a quase três
quilômetros de distância. Um metamorfo durante toda a sua vida
memorizava milhares de tipos diferentes de aromas. Se Derek queria
rastrear alguma coisa agora, não seria eu quem atrapalharia.
Examinei a casa por fora. Grades nas janelas. Paredes sólidas. Um
bom lar Pós-Mudança: segura, defensável e prática. Uma abertura estreita
separava a borda da porta azul sólida do batente da porta. Destrancada.
Empurrei com a ponta dos dedos e a porta se abriu facilmente e
silenciosamente.
O cheiro de comida podre me envolveu. Eu entrei. Teddy Jo me
seguiu.
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A casa tinha um piso plano, conceito aberto , com a cozinha à
esquerda e uma sala de estar à direita. Na extrema esquerda, atrás da
cozinha e do balcão, havia uma mesa com os restos do café da manhã de
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alguém. Eu me aproximei. Havia uma garrafa de vidro de xarope de bordo
e pratos. Dentro dos pratos havia algo que deveria ter sido waffles, tudo
coberto de penugem de mofo.
Não havia sinais evidentes de luta. Sem sangue, sem buracos de bala,
sem marcas de garras. Apenas uma casa vazia. Uma rua de casas vazias.
Meu estômago apertou.
— Todas as outras estão assim?
Teddy Jo assentiu. Ele estava na entrada da sala, como se não
quisesse entrar no espaço. Havia algo de perturbador aqui, como se o
próprio ar estivesse sido solidificado e paralisado. Esta era uma casa
morta. Eu não sabia como, mas senti. Seus moradores morreram, e o
coração do lar morreu com eles.
— Quantos?
— Toda a vila. Cinquenta casas. Duzentas e três pessoas. Famílias
inteiras.
Merda.
O que poderia ter feito isso? Alguma coisa os levou a abandonar o
café da manhã e simplesmente saíram? Várias criaturas poderiam colocar
os seres humanos sob seu controle, a maioria deles aquáticos. Um
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Encantado brasileiro provavelmente poderia encantar uma família
inteira. Um mago humano com dons fortes em telepatia pode ser capaz
de manter quatro pessoas controladas e fazê-las obedecer a seus
comandos. Digamos que alguém tenha levado essas pessoas para fora de
casa. Então o que?
Saí da casa e lá fora respirei fundo. Derek se aproximou.
— Como você se envolveu nisso? —Perguntei.
— Eu fui chamado, —disse Teddy Jo.
Ah! Uma família grega havia orado para Thanatos, provavelmente
ofereceu um sacrifício a ele. Antigamente teria sido um escravo. Agora,
provavelmente deve ter sido um cervo ou uma vaca.
— Eu bebi o sangue, —disse ele.
Ele aceitou o sacrifício, o pacto foi feito e isso o obrigou a fazer algo
em troca.
— O que eles queriam?
Sua voz era vazia. — Eles queriam saber se o filho estava morto. O
rapaz deveria se casar no sábado. Ele e sua noiva não apareceram. Os
pais ficaram preocupados e vieram checá-los domingo. Encontraram isso.
A família chamou os xerifes. Eles estão vindo hoje para processar a cena.
É por isso que tínhamos que chegar aqui rápido, antes que a polícia
chegasse.
— E o filho deles? —Derek perguntou.
— Alek Katsaros está morto, —disse Teddy Jo. — Mas não posso
devolver os restos mortais para a família.
— Por quê? —Isso era o que Thanatos fazia. Se algum humano, de
descendência grega ou que professasse sua crença nele, morresse, ele
saberia exatamente onde o corpo estaria.
— Eu vou explicar no caminho.
— Antes de irmos embora, —disse Derek, — há algo que preciso que
você veja.
Eu o segui até o muro. Um corpo marrom peludo estava atrás do
muro de ferro forjado. Havia uma haste de flecha se projetando para fora
do olho do cachorro morto.
— Quase todo mundo tinha cachorro, —disse Derek. — Eles estão
todos assim. Mortos com um único tiro.
Atirar com arco e flecha era uma habilidade adquirida que exigia
muita prática. Atirar no olho de um cachorro com uma flecha a uma
distância grande o suficiente para que cão não cheirasse ou alarmasse a
presença de um estranho era praticamente impossível. Teria que ser um
tiro certeiro único. Andrea, minha melhor amiga, poderia fazer isso, mas
eu não conhecia mais ninguém que pudesse.
Voltei para dentro e fui até o quintal. Havia fileiras de arbustos de
morango com as últimas frutas da estação vermelho escuro além do
ponto de colheita. Uma pequena carroça de madeira com uma boneca
dentro. Meu coração se apertou em uma bola tensa e dolorosa.
Costumava haver crianças pequenas aqui.
Derek pulou o muro de um metro e oitenta—com arame farpado e
tudo—como se não fosse nada e pousou ao meu lado.
Seu olhar encontrou a boneca. Um fogo amarelo pálido rolou sobre
seus olhos.
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Agachei-me junto ao cachorro, um grande labrador peludo com
cara de bobo. Moscas zumbiam ao redor do corpo, pousando no sangue
que escorria pela ferida e pela haste em sua órbita esquerda.
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Não era um dardo comum de besta , era uma flecha com uma haste
de madeira, abaulado com penas cinza-pálidas. Feita a moda antiga.
Flechas não eram balas. A trajetória que uma flecha faz no ar é muito
mais arqueada do que a de uma bala. A flecha depois de lançada sobe
alguns centímetros, depois caía e, considerando o tempo de reação do
cão, o atirador tinha que estar por perto ... trinta metros de distância.
Mais ou menos.
Eu me movi. Atrás de mim, um grande carvalho espalhava seus
galhos do lado de fora do muro.
Derek seguiu meu olhar, começou a correr pelo jardim, pulou e
pousou nos galhos do carvalho. Ele voltou um momento depois.
— Humano, —disse ele. — E algo mais.
— O que?
— Eu não sei.
Os pêlos dos braços de Derek estavam em pé. Fosse o que fosse, não
cheirava bem.
— Que tipo de cheiro é esse?
Ele balançou sua cabeça. — O tipo errado de cheiro. Nunca cheirei
algo assim.
Isso não é bom.
Olhei para Teddy Jo. — Você tem algo mais para me mostrar?
— Me siga.
Deixamos a vila para trás e voltamos ao jipe. Teddy Jo sentou no
banco do passageiro.
— Continue descendo a estrada.
Eu fiz.
Os arqueiros mataram os cães primeiro. Esse era o cenário mais
provável. A menos que eles odiassem os cães por algum motivo estranho,
isso foi feito para impedir que os animais latissem. Os cães mortos dessa
forma colocaram um grande buraco na minha teoria de controle mental.
Uma criatura ou humano com a capacidade de subjugar mentalmente a
vontade de outras pessoas provavelmente não teria se incomodado com
cães.
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Um kitsune poderia fazer sentido de uma maneira estranha. Os
estudiosos não chegavam a um acordo sobre se kitsunes eram animais
mágicos, espíritos de raposas ou metamorfos, mas todos concordavam
que kitsunes eram problemas. Eles se originaram no Japão e, quanto mais
velhos, mais fortes seus poderes ficavam. Eles podiam tecer ilusões e
influenciar sonhos, e odiavam cães. Mas kitsunes eram fisicamente
raposas, com aquele cheiro inconfundível, mesmo na forma humana.
— Você sentiu o cheiro de raposas? —Perguntei.
— Não, —disse Derek.
Risque a teoria do Kitsune.
À frente, uma estrada atravessava uma colina baixa à direita,
terminando na rodovia.
— Vire aqui, —disse Teddy Jo.
Eu fiz a curva. O jipe rolou pela estrada velha, atravessando aos
solavancos. À frente, um imenso galpão, branco e sem janelas. Havia um
buraco no telhado.
— O que é isso? —Perguntei.
14
— Um antigo centro de distribuição do Walmart .
Derek abriu a porta e saltou do jipe. Eu pisei no freio. Ele se inclinou
do lado da estrada e vomitou.
— Você está bem? —Eu gritei.
— Fedor, —ele resmungou e vomitou novamente.
Desliguei o jipe. O silêncio repentino era ensurdecedor. Eu não
conseguia sentir o cheiro de nada fora do comum.
Silêncio total. Onde diabos estavam as cigarras?
Derek voltou ao jipe. Joguei-lhe um lenço para ele limpar a boca.
— Por aqui. —Teddy Jo caminhou pela estrada em direção ao
galpão.
15
Nós o alcançamos. Ele puxou um pequeno pote de VapoRub do
bolso e estendeu para mim.
— Você vai precisar.
Esfreguei um pouco da pomada no nariz e devolvi. Teddy Jo
ofereceu a Derek, que balançou a cabeça negando.
A cerca de seis metros do armazém, o fedor tomou conta de mim:
oleoso, desagradável, tingido de enxofre, o cheiro de algo podre e horrível.
Atravessou o VapoRub como se a pomada nem estivesse lá. Eu quase
apertei minha mão sobre a boca.
— Foda-se. —Derek parou e vomitou de novo.
O rosto de Teddy Jo era feito de pedra.
Nós continuamos. O fedor era insuportável agora. Cada respiração
que eu tomava era como inalar veneno.
Nós atravessamos o galpão. Uma poça brilhante se estendia à nossa
frente, grande o suficiente para ser um lago.
Translúcido, bege acinzentado, inundava todo o estacionamento dos
fundos. Algum tipo de líquido ... Não, não líquido. Gelatinoso como
16
uma calda de ágar , e onde o sol batia brilhava um pouco. Havia pedaços
de algo sólido mergulhado na gelatina.
Eu me aproximei um pouco mais e me agachei perto do material.
O que diabos é isso? Comprido e pegajoso ...
Então percebi o que era.
Eu me virei e corri. Consegui percorrer uns cinco metros antes do
vômito me rasgar. Pelo menos fiquei longe o suficiente para não
contaminar a cena. Vomitei tudo o que eu podia e por mais um ou dois
minutos meu estômago ainda continuou querendo se esvaziar, finalmente
os espasmos morreram.
Eu virei. A partir deste ponto, ainda podia vê-lo, uma massa dentro
do gel sólido. Couro cabeludo humano, o cabelo castanho estava
trançado e amarrado com um elástico de cabelo rosa. O tipo que uma
criança gosta de usar.
A fina máscara que fazia Teddy Jo parecer humano se rasgou. Asas
saíram de seus ombros e, quando ele abriu a boca, vislumbrei presas. Sua
voz me fez querer enrolar em uma bola. Estava impregnada de magia
antiga e cheia de tristeza crua e terrível.
— Em algum lugar naquela poça estão Alek Katsaros e Lisa
Winley, sua futura esposa. Eu posso senti-los, mas eles estão
diluídos por todo esse material. Não posso levá-los de volta para suas
famílias. Eles estão perdidos. Estão todos perdidos nesta vala
coletiva.
— Eu sinto muito.
Ele se virou para mim, seus olhos completamente pretos. — Sempre
fui capaz de dizer a causa da morte em um piscar de olhos. É quem
eu sou. É o que eu faço. Mas o que aconteceu aqui eu não sei dizer.
O que é isso?
O rosto de Derek estava terrível. — Será que é vômito? Alguma coisa
comeu todos eles e regurgitou?
Eu tinha um pressentimento de que sabia exatamente o que era.
Andei ao longo do perímetro da poça. Ela parecia ter cerca de uns
sessenta centímetros de profundidade no centro, acumulada em um
buraco no estacionamento irregular que havia afundado devido à chuva e
negligência. Levei quatro tentativas para circular a poça, principalmente
porque eu tive que parar e vomitar. Olhei para os cachos de cabelo e
pedaços de carnes soltas.
Testemunhei muita violência e sangue nessa vida, mas isso estava em
outro nível. Isso estava no topo da lista de coisas que eu gostaria de
nunca ter visto. Meu peito doía só de olhar. Senti a bile na garganta e a
engoli.
— O que você está procurando? —Thanatos me perguntou em sua
voz mística.
— É o que não estou encontrando. Ossos.
Ele olhou para o gel. Um músculo em seu rosto estremeceu.
Thanatos abriu a boca e gritou. Não havia nenhum humano que pudesse
emitir um som igual a esse, um grito agudo, parte águia, parte cavalo
moribundo, parte nada que eu já tinha ouvido.
Derek girou para mim, uma pergunta em seu rosto.
— Não é o vômito de algum monstro, —eu disse a ele. — Alguém os
cozinhou.
Derek recuou.
Eu mal conseguia falar. — Eles foram cozidos até suas carnes saírem
dos ossos. Os ossos foram extraídos e depois jogaram o caldo aqui. E o
que colocaram nesse caldo é mágico ou venenoso. Não há moscas nem
larvas. Não há insetos ao redor, nada. Não ouço uma única cigarra.
Todas aquelas pessoas e seus filhos estão nessa coisa aqui.
Derek apertou as mãos em punhos. Um rosnado rasgado o arrancou.
— Quem? Por quê?
— É isso que precisaremos descobrir. —E quando eu os encontrar,
desejaram serem cozidos ao invés de me enfrentar.

Capítulo 2
VOLTEI PARA A VILA. O telefone da primeira casa estava funcionando
e eu disquei o número do Riscos Biológicos diretamente para o ramal de
Luther. Eu poderia ter ligado primeiro para a recepção, mas o que
aconteceu aqui era ruim o suficiente para passar direto pela burocracia.
O telefone tocou. E tocou. E tocou.
Vamos lá, Luther.
A linha clicou. — O que foi? —Disse a voz irritada de Luther.
— Sou eu.
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— Poderia ser o Grande Imundo que eu não teria tempo para isso, seja
lá o que isso for. Tenho que terminar alguns feitiços importantes ...
— Alguém cozinhou duzentas pessoas e jogou o caldo e seus
restos mortais perto de Serenbe em um centro de distribuição do
Walmart.
Silêncio.
— Você disse ‘cozinhou’?
— Eu disse.
Luther xingou.
— A vala coletiva é insegura e magicamente potente. Não há
insetos ao redor dela, Luther. Não há animais em qualquer lugar por
aproximadamente meio quilômetro do local. Fiz uma Proteção básica
de giz e Teddy Jo está vigiando a poça. O departamento do xerife está
chegando hoje para processar a cena, portanto, se quiser chegar aqui
antes deles, precisa se apressar. Fica na South Fulton Parkway em
direção ao oeste. Vou marcar o local de entrada para você.
— Estou a caminho. Não deixe essa vala, Kate. Faça o que for necessário
para impedir que qualquer coisa contamine a cena do crime.
— Não se preocupe. Farei o possível.
Desliguei e liguei para casa. Sem resposta. Maravilha. Curran ainda
não tinha chegado.
Liguei para George. Conlan estava dormindo. Ele havia comido
cereal e fugido dela com sucesso duas vezes.
Desliguei e procurei sal na cozinha da casa morta. Uma grande
sacola me esperava na despensa. Levei-a para o jipe bem a tempo de ver
Derek carregando quatro sacos de dez quilos de sal como se não
pesassem nada.
— Onde você conseguiu isso?
— Encontrei um galpão comunitário de caçadores, —disse ele. —
Devem ter usado o sal para temperar as carnes dos veados. Há mais.
— Precisaremos de mais.
Fomos em direção ao galpão.
— Fale sobre as trilhas de cheiro que encontrou, —pedi.
— Humanos, —disse ele. — Mas há algo mais incorporado no
cheiro humano. Um cheiro apodrecido. Quando se cheira um Loup, o
cheiro dele é apodrecido. Tóxico. Sabemos que não haverá conversa. Ou
você mata o Loup ou ele matará você. Esses humanos fedem assim.
Podres como um Loup.
— Corrompido? —Eu imaginei.
— Sim. Essa é uma boa palavra para descrever isso. Eles levaram as
pessoas para a entrada da vila.
Eu esperei, mas Derek não disse mais nada.
— E depois?
— O cheiro acaba aí, —disse ele. — E reaparece na poça.
— Como se tivessem sido teletransportados?
— Exatamente.
Eu me deparei com o teletransporte algumas vezes. Teletransportar
um único ser humano exigia uma quantidade impressionante de poder: A
primeira vez, um grupo de Volhvs muito poderosos, sacerdotes pagãos
russos, usaram o teletransporte, mas foi preciso um sacrifício para fazê-lo;
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A segunda vez tinha sido um Djinn . Djinns eram seres muito antigos,
extremamente poderosos e muito raros. Simplesmente não havia magia
suficiente nesse novo mundo para suportar a existência contínua de um.
Esse Djinn em particular havia sido preso dentro de uma joia. Era uma
prisão sofisticada que o alimentava de magia quando a tecnologia estava
no auge. Mesmo assim, o Djinn precisou usar um humano como
reservatório significativo de magia, precisou possuir o corpo desse
humano para realizar suas artimanhas, além disso, para alcançar seus
objetivos, precisou se esconder em Unicorn Lane, onde a magia fluí
mesmo durante a tecnologia.
Como diabos, quem quer que fez isso, teletransportou duzentas pessoas?
Eu realmente não queria lidar com outro Djinn. Quando lutei com
um acabei tendo um derrame, bem, vários pequenos derrames
simultaneamente e quase morri.
Eu me virei para Derek. — Você pode dizer pelos cheiros se todas as
pessoas desapareceram ao mesmo tempo?
— Sim, elas desapareceram.
— Duzentas pessoas juntamente com aqueles que as levaram, —
pensei alto. — O teletransporte está fora de questão. Precisaria de muita
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magia. Tem que ser uma manipulação de realidade de bolso .
Derek olhou para mim.
20 21
— Lembra-se durante o último Flare quando Bran apareceu ? Ele
passou a maior parte da vida na névoa fora da nossa realidade.
22
— Lembro-me dos Rakshasas e do palácio voador deles em uma
selva mágica.
Claro que lembra. Depois do que fizeram no rosto dele, ele nunca os
esqueceria. — Provavelmente o que aconteceu aqui é semelhante.
Alguém saiu por um portal, pegou um monte de pessoas e as levou para
algum lugar. —O que implicaria a presença de um poder Antigo, e que
significava que todos nós estávamos ferrados.
Os poderes Antigos—deuses, Djinn, dragões, gigantes, poderosos,
lendários—exigiam muita magia para existir em nossa realidade. Eles
existiam em algum lugar, nas nevoas, em outros reinos ou dimensões,
vagamente conectados a nós. Ninguém sabia exatamente como tudo
funcionava. Ninguém sabia o que aconteceria se um deles se manifestasse
na nossa realidade e fosse pego por uma onda de tecnologia. A sabedoria
convencional dizia que eles deixariam de existir, e era por isso que a
única vez que víamos seres Antigos era durante um Flare, um tsunami de
magia que acontecia a cada sete anos. Durante o Flare, a magia
permanecia por pelo menos três dias ininterruptos, às vezes mais.
A área onde a vila ficava não era particularmente saturada de magia.
Se estávamos lidando com um poder Antigo, este tinha muita coragem.
Normalmente, minha resposta instintiva era culpar qualquer coisa
estranha e poderosamente mágica a meu pai, mas isso aqui não parecia
com ele. Eu não sentia nenhuma magia familiar, e não havia nada de
elegante ou refinado em despejar restos mortais em um depósito
abandonado. A magia do meu pai chocava a qualquer um com beleza e
sofisticação antes de matar.
— Foi necessário levar duzentas pessoas para algum lugar e fervê-
las? —Perguntou Derek. — Por quê?
— Eu não sei.
— Eles queriam os ossos?
— Não sei. Não tenho certeza se são com os ossos que devemos nos
preocupar. Existem coisas piores que podem ter acontecido aqui.
Derek parou e olhou para mim.
— Eles podem ter os fervido lentamente enquanto estavam vivos
para torturá-los, —eu disse.
Ele se virou para o galpão.
— O mundo é um lugar fodido, —eu disse a ele. — É por isso que
estou feliz por ter Conlan.
Ele me deu um olhar afiado.
— O mundo precisa de mais pessoas boas nele, e meu filho será uma
boa pessoa.

*******
LEVOU DUAS HORAS até o barulho alto dos motores de carros
23
encantados anunciasse a chegada do Riscos Biológicos. Dois SUVs
abriam caminho pela estrada, rugindo e chiando. Atrás deles, um pesado
24
caminhão blindado trazia uma cisterna . Por trás disso vinham mais dois
SUVs. De dentro dos veículos saíram pessoas vestidas em roupas de
segurança e carregando contêineres. Eles sentiram o fedor no ar da poça a
cinquenta metros atrás de nós e rapidamente colocaram suas máscaras.
Luther caminhou em nossa direção. Baixo e de cabelos escuros,
usava botas, vestido em um short colorido e uma camiseta que dizia
25
CAVALHEIRO NAS RUAS, MAGO NA CAMA .
— Gostei da camiseta, —eu disse a ele. — Muito profissional.
Ele não entendeu a piada. Luther estava paralisado, olhando para a
vala coletiva gelatinosa.
Nós havíamos feito um círculo básico de sal ao redor dele. O
pavimento era muito danificado para conseguirmos riscá-lo com giz.
— Vou precisar de uma declaração, —disse ele. — Do metamorfo
lobo e Thanatos também. Onde ele está?
Eu apontei. Teddy Jo sentou-se no topo do telhado do armazém,
olhando para a vala.
Uma fumaça negra ondulava nele, girando em torno de seu corpo. Se
ele pudesse, arrancaria os restos do jovem casal daquela vala e os
ressuscitaria. Mas ele não tinha esse poder. Nenhum de nós tinha.
Somente deuses podiam trazer pessoas de volta da morte, e os resultados
dessas ressurreições eram geralmente caóticos, no mínimo.
— Ele está sofrendo, —eu disse a Luther. — Um de seu povo está
nessa poça. Thanatos não pode pastorear sua alma para a vida após a
morte, porque para isso teria que realizar ritos sobre o corpo, e não há
como separar o corpo desse caldo. Ele não pode levar o corpo de volta
para a família do morto. Está com muita raiva, então se eu fosse você
seria gentil com ele no interrogatório.
Luther assentiu.
Contei a ele sobre o súbito desaparecimento da trilha de cheiro.
Quanto mais eu falava, mais Luther franzia a testa.
— Um poder Antigo? —Ele perguntou.
— Espero que não.
Luther olhou para a vala novamente. — Famílias inteiras, até as
crianças?
— Acho que sim.
— Por quê?
Eu gostaria de saber o porquê. — Os ossos não estão no caldo.
Ele fez uma careta. — A maior concentração de magia nos humanos
26
está nos ossos. É por isso que os ghouls os mastigam. Você tem certeza
que eles extraíram os ossos e descartaram o restante?
— Não, mas logicamente deveria haver pelo menos alguns ossos lá.
Uma crânio, um fêmur, alguma coisa. Eu só vi tecidos moles.
Ele suspirou e por um momento Luther pareceu mais velho, seus
olhos assombrados. — Avisarei a você de alguma novidade depois que
coletarmos e analisarmos esse material.
Ficamos por um longo momento, unidos por indignação e tristeza.
Nós dois investigaríamos isso, ele do lado dele e eu do meu.
Eventualmente, encontraríamos o responsável. Mas isso não faria nada
pelas famílias cujos restos estavam mergulhados em um caldo no
estacionamento, jogados como lixo.
Finalmente, Luther assentiu e foi vestir seu macacão laranja de
27
segurança enquanto eu dava minha declaração.

*******
INFERNO ERA ESTAR PRESA atrás de um comboio de
caminhoneiros tentando atravessar a ponte Magnolia. Normalmente, eu
escolhia o caminho pela avenida lateral, mas Magnolia era uma daquelas
novas pontes que atravessavam os escombros de viadutos desmoronados
e prédios caídos, era o caminho mais rápido de volta ao escritório, e
minha mente não parava de pensar sobre aquelas pessoas fervidas
naquele caldo. Quando percebi que a ponte estava lenta por causa dos
caminhões, era tarde demais.
Custou-nos meia hora a mais e, quando chegamos a Cutting Edge, a
tarde estava a todo vapor. Derek saiu, retirou a corrente do
estacionamento, e eu dirigi até a minha vaga e estacionei.
A rua estava relativamente quieta hoje, o calor afugentou a maioria
dos clientes que frequentavam a loja de ferramentas de Bill Horn e a
oficina de reparos de carros de Nicole. Apenas o Senhor Tucker
permaneceu. O tempo e a idade haviam transformado um homem, que
outrora tinha ombros largos e provavelmente era musculoso, a um corpo
magro e frágil. O tempo também havia roubado a maior parte de seu
cabelo, então o Senhor Tucker o mantinha tão curto que parecia uma
penugem branca flutuando sobre seu couro cabeludo marrom escuro.
Mas os anos não destruíram seu espírito. Ele caminhava pela nossa rua
duas vezes pela manhã e pelo menos uma vez à tarde, carregando um
grande cartaz que dizia: ATENÇÃO! O FIM DO MUNDO ESTÁ
PRÓXIMO! ABRAM SEUS OLHOS!
Quando saí do jipe, o Senhor Tucker gritou a mesma mensagem no
topo de sua voz, assim como ele havia feito inúmeras vezes antes. Mas,
sendo do Sul, Tucker também acreditava na boa educação.
— Arrependam-se! O fim está próximo! Como vocês estão hoje?
— Não posso reclamar, —eu menti. — Você gostaria de um chá
gelado? Está quente hoje.
O Senhor Tucker levantou uma garrafinha de metal para mim. —
Peguei um chá na loja de Bill. Obrigado. Eu te vejo por aí.
— Certo, Senhor Tucker.
Um carro passou devagar, obviamente procurando alguma coisa. O
Senhor Tucker pulou na direção dele, sacudindo o cartaz. —
Arrependam-se! Abra seus olhos! Estamos vivendo no Apocalipse!
Suspirei, destranquei a porta lateral e entrei. Derek me seguiu,
fazendo uma careta. — Ele vai ser atropelado por um carro qualquer dia
desses.
— E quando isso acontecer, nós o levaremos para o hospital.
O Senhor Tucker estava certo. Estávamos vivendo no Apocalipse.
Lentamente, a cada onda de magia, um pouco mais do velho mundo
tecnológico morria, e o novo mundo, seus poderes e monstros ficavam
um pouco mais fortes. Sendo eu um desses monstros, não deveria
reclamar.
Precisávamos analisar os nossos casos. Serenbe tinha que ter
prioridade. Verifiquei o grande quadro pendurado na parede. Três casos
ativos: um ghoul no cemitério de Oakland, uma misteriosa ‘criatura’ com
olhos brilhantes assustando os estudantes da Escola de Arte e comendo a
tinta cara deles, e um relato de um lobo brilhante anormalmente grande em
um subúrbio na Rodovia Dunwoody. Derek se aproximou do quadro e
puxou a ficha do caso do lobo.
— Resolvi ontem à noite.
— O que foi isso?
— Desandra.
Eu pisquei para ele. — A alfa do Clã lobo?
Derek assentiu.
— O que ela está fazendo no subúrbio de Dunwoody?
— Ela tentou matricular seus garotos na aula de ginástica na cidade,
e uma das mães das outras crianças fez um enorme escândalo, então os
donos pediram que Desandra se retirasse. Ela se cobriu de um pó que
brilha no escuro e passou essas últimas três noites aterrorizando a casa
dessa mulher.
— Você explicou a ela que intimidar pessoas não é do melhor
interesse do Bando?
— Sim. Ela me disse que ninguém descobriria se não fosse por mim e
me chamou de moleque intrometido.
Eu estoicamente mantive uma cara séria. — Parabéns por resolver o
caso, bom trabalho.
— Claro.
28
— Então, onde você guardou os Biscoitos Scooby ?
— Engraçadinha, —ele disse secamente.
Analisei o quadro. Há um ano, eu jogaria o caso das tintas na Escola
de Arte para Ascanio resolver. Mas Ascanio estava cada vez mais
ocupado com outras coisas ultimamente. Ele mal dava as caras por aqui.
Nas últimas duas vezes, tive que ligar para ele, diferente de antes que
Ascanio não parava de me incomodar por um caso. A escola ocupava
muito tempo, mas ele se formou no ano passado.
De qualquer forma Ascanio ainda estava na folha de pagamento.
Peguei o telefone e liguei para a Casa Bouda.
Miranda atendeu com uma voz sussurrante. — Olá.
— Sou eu.
A voz sussurrante desapareceu. — Oh, oi, Kate.
— A maldição da minha existência está por aí?
— Ele está ajudando Raphael com alguma coisa.
Essa foi a resposta que recebi da última vez em que liguei também.
— Certo. Você poderia dizer-lhe que tenho um trabalho para ele se
estiver interessado?
— Tudo bem.
Eu era a patroa de Ascanio, mas Raphael e Andrea eram seus alfas, e
o Clã Bouda valorizava a lealdade ao clã acima de tudo. As ordens que
Raphael dava seriam mais importantes para Ascanio do que as minhas.
— Pensando bem, esqueça. Nós vamos lidar com isso.
— Tudo bem, —disse Miranda.
Eu desliguei. Com Ascanio fora de combate, Julie ocupada e Curran
em sua aventura de caça, sobrou apenas eu e Derek.
— Você quer que eu pegue os casos? —Ele perguntou.
— Não, preciso de você trabalhando no caso de Serenbe. Teremos
que repassar esses casos para a Associação. —Eu odiava passar trabalho
para a Associação dos Mercenários. Prometi fazer o trabalho quando o
aceitei e orgulhava-me de garantir que o realizássemos. Agora teria que
explicar aos clientes que estávamos muito ocupados. Repassar trabalho
era um negócio ruim e fazia me sentir péssima. Mas às vezes eu não tinha
escolha.
Liguei para Barabas na Associação. Eu poderia ter ligado para o
Recepcionista, mas como Barabas era o administrador principal, seria
mais rápido. Além disso, os Mercenários passavam por situações
perigosas o tempo todo. Eles precisavam saber sobre Serenbe. Quanto
mais pessoas soubessem, melhores seriam as nossas chances de descobrir
o que aconteceu naquela vila.
Ele atendeu no primeiro toque. — Sim?
— Preciso repassar dois trabalhos para vocês. Um deles é um
trabalho incômodo, mas a extração de ghoul precisará de alguém bom
nisso.
— Seu pai está invadindo a cidade?
— Não, mas algo ruim aconteceu. —Eu o atualizei sobre Serenbe.
— Quem fez isso escapou sem deixar pistas e tenho a sensação de que
não será a última vez.
Houve um longo e tenso silêncio.
— Você está bem? —Perguntei.
— Estou. Estou tentando pensar em uma maneira de contar isso aos
Mercenários sem causar pânico.
— Se você descobrir como, me ligue de volta. —Eu poderia usar
algumas dicas de etiqueta no departamento de notificação.
— Eu vou. Nós cuidaremos dos casos.
— Obrigada.
Desliguei, puxei as duas fichas, do ghoul e do comedor de tinta e as
coloquei na minha mesa. Eu as entregarei a Barabas quando chegar em
casa hoje. Sermos vizinhos tinha suas vantagens.
— Você realmente acha que aquilo que aconteceu na vila vai
acontecer de novo? —Derek perguntou.
— Sim.
— Por quê?
Eu me inclinei contra a mesa. — Eles mataram os cães, tiraram
duzentas pessoas e as fizeram desaparecer. Ninguém escapou. Nenhum
dos atacantes morreu, ou pelo menos não encontramos nenhum dos seus
corpos ou grandes poças de sangue. Nada deu errado. Nada falhou.
Ninguém é tão bom em controlar um grande número de pessoas, a menos
que pratique.
— Você acha que eles já fizeram isso antes.
— Eu sei que eles já fizeram isso antes e mais de uma vez. Se eles
fizeram isso mais de uma vez, é provável que precisem de um suprimento
contínuo de seres humanos para algo e vão fazer novamente. Eu preciso
estar lá para detê-los. Esta cidade não será o local de caça deles, se eu
puder impedir. Então, você e eu ligaremos para o Bando, para a Nação,
para Ordem e todos os outros no comando que conhecemos e
notificaremos sobre o que aconteceu. —O Riscos Biológicos enviaria suas
próprias notificações, mas eu queria espalhar a notícia o máximo que
pudesse.
Derek foi para sua mesa. — Eu falo com o Bando.
— Fique à vontade.

*******
— KATE? —O rosto de Derek bloqueou minha visão.
Esfreguei minha testa. — Sim?
— Comida? —Ele perguntou.
Comida? Hoje eu não tinha comido nada. — Comer seria ótimo.
Ele assentiu e saiu pela porta.
Nas últimas duas horas, conversei com xerifes de três delegacias de
diferentes condados, onde as pessoas me conheciam: Douglas, Gwinnett e
29
Milton . Beau Clayton, o xerife do condado de Milton, e eu, erámos velhos
conhecidos. Ele não gostou de ouvir sobre as pessoas desaparecidas.
Liguei para a Ordem e pedi para falar com Nick Feldman. Maxine, a
secretária telepática da Ordem, me disse que ele estava na cidade, mas
fora de contato no momento, então tive que deixar uma mensagem com
ela. A mensagem foi curta e simples.
Se a Ordem soubesse alguma coisa, eles não compartilhariam
comigo e não confiariam nas minhas informações. Nesses últimos meses,
depois que voltei ao trabalho, tivemos que trabalhar juntos em alguns
casos, e toda vez que tive que fazer isso com Nick Feldman, o atual
Cavaleiro-Protetor, era como arrancar dentes. O fato de minha mãe ter
acabado com o casamento dos pais de Nick já era o suficiente para ele me
odiar, mas Nick também passou algum tempo disfarçado no círculo
interno de Hugh d’Ambray, e viu em primeira mão as atrocidades que
meu pai fazia. Ele odiava toda a nossa família com a paixão de mil sóis e
fez da sua vida uma missão em garantir que não existíssemos.
Derek falou com as forças policiais, com o Bando e alguns outros
contatos dele. Entre nós dois, cobrimos praticamente todos que
poderíamos notificar. Faltava só a Nação.
Eu disquei o número.
— Você ligou para o Serviço de Assistência do Casino, —disse um
jovem ao telefone. — Meu nome é Noah. Como podemos tornar o seu
dia maravilhoso?
Precisaria de um milagre. — Me passe para Ghastek ou Rowena, por
favor.
— Posso perguntar quem está falando?
— Kate.
— Eles estão esperando sua ligação?
Ótimo. Tive a sorte de ser atendida por um novo aprendiz ou
Navegador. — Não.
— Vou precisar de um sobrenome, senhora.
— Lennart.
— Um momento por favor.
Houve um clique e Noah falou com alguém. — Ei, tem uma Kate
Lennart querendo falar com o Líder Destemido. Ela não está na lista.
Aparentemente, Noah não havia aprendido ainda a apertar o botão
de espera no telefone.
— Kate quem? —Outra voz masculina perguntou.
— Kate Lennart?
— Seu idiota, é a In-Shinar!
— Ooo quêee? —Noah chiou.
— Você colocou a In-Shinar em espera, seu idiota! Ghastek vai
pendurá-lo pelas bolas.
Eca!!
— O que eu faço? —Pânico cravou na voz de Noah.
Você poderia me conectar a Ghastek. Se eu dissesse alguma coisa agora,
isso apenas o assustaria mais.
Houve alguns bipes aleatórios. Eu tive uma visão de Noah batendo
freneticamente no telefone, esmurrando as teclas aleatoriamente como
uma criança. Um sinal de desconexão soou no meu ouvido.
Na última vez em que participei da apresentação de novos
candidatos às fileiras de Navegadores, Ghastek me apresentou para eles
como ‘Eis a Imortal, a In-Shinar, a Lâmina de Sangue de Atlanta’. Passei a
cerimônia inteira tentando matá-lo em minha mente. Depois, quando eu
chamei a atenção dele sobre isso, ele argumentou e me perguntou por
quem eu escolheria arriscar minha vida: Pela A Lâmina de Sangue de
Atlanta ou por Kate Lennart, uma pequena empresária. Eu deveria ter dito
a ele que não estava interessada em seus argumentos. Mas no final das
contas, eu era a grande culpada disso tudo.
Desliguei o telefone e contei até cinco na minha cabeça. Isso deve
dar a eles tempo suficiente para resolverem as coisas.
Eu redisquei.
— Serviço de Assistência, —Noah resmungou.
— Sou eu novamente. Preciso falar com Ghastek.
— Sim Senhora, madame, humm, In-Shinar, humm, Vossa Majestade.
Eu esperei. Nada aconteceu.
— Noah?
— Siiimmm? —Ele disse em um sussurro desesperado. Parecia que
estava morrendo.
— Transfira a ligação, por favor.
Noah fez um pequeno ruído estrangulado, a linha clicou e a voz
suave de Rowena respondeu. — Olá, Kate. Como está o Conlan?
Dizer a ela que um de seus funcionários acabou de me chamar de
madame seria contraproducente.
— Ele está bem.
— Quando você vai trazê-lo aqui?
Rowena veio do mesmo vilarejo que minha mãe. Elas compartilham
um dom mágico semelhante, embora o dom de minha mãe fosse muito
mais forte. O dom vinha com um preço. As mulheres que o possuíam
tinham dificuldade em engravidar e ainda mais dificuldade em levar um
bebê a termo. Eu fui uma exceção, talvez os genes de Roland tenham
influenciado no sucesso da gravidez de minha mãe. Curran e eu não
tivemos problemas em conceber. Rowena nunca teve seus próprios filhos,
mas ela queria desesperadamente ter alguns. Uma vez, Rowena me disse
que, enquanto meu pai estivesse vivo, o mundo não seria seguro o
suficiente para seus filhos. Então, ao invés de tê-los, ela desconta todo seu
carinho materno em meu filho.
— Assim que eu puder. Tenho más notícias.
— É seu pai? —Uma pitada de alarme escorregou de suas palavras.
— Não. Pelo menos, acho que não.
Então, expliquei Serenbe.
— Que coisa terrível, —Rowena finalmente disse.
Não havia muita coisa que chocasse um Mestre dos Mortos, assim
como também não havia muita coisa que me chocasse. Até agora eu já
tinha relatado essa história umas sete ou oito vezes. Alguém poderia
achar que a repetição diminuiria o choque, mas não, toda vez que eu
contava tinha sido tão perturbadora quanto a última.
— Vamos ligar para o Riscos Biológicos e tentar obter algumas amostras
para análise, —disse Rowena.
— Boa ideia, isso seria bom.
Eu disse adeus e desliguei antes que ela tivesse a chance de me
perguntar se Conlan tinha desenvolvido algum dom mágico. Todo
mundo queria que meu filho fosse algo mais. Ele era perfeito do jeito que
era.
Alguém bateu com os nós dos dedos na minha porta.
— Entre, —eu gritei.
A porta se abriu e Raphael entrou, carregando uma garrafa verde-
escura. Ele usava um terno cinza escuro.
— Cuidado com os boudas, —eu disse. — Especialmente quando
eles carregam presentes.
Ele sorriu. — Posso entrar?
— Por favor. —Apontei para a minha cadeira de cliente. — Sente-se.
Ele fez. Seus cabelos pretos caíam sobre seus ombros em uma onda
suave. Normalmente, quando as pessoas usavam palavras como ‘ardente’
para descrever um homem, eu apenas achava engraçado. No entanto, em
Raphael essa palavra parecia inteiramente apropriada. Havia algo nele,
algo em seus olhos azuis-escuros, na maneira como ele se comportava,
uma mistura de metamorfo selvagem e civilidade que fazia as mulheres
pensarem em sexo.
Felizmente, eu estava imune.
— O que há na garrafa?
Ele a empurrou sobre a mesa para mim. No rótulo, escrito em uma
letra sofisticada e com uma linda maçã amarelo-laranja desenhada ao
lado, dizia: B'S A MELHOR SIDRA.
Eu assobiei. — Agora eu sei que é ruim.
Quando Curran e eu nos casamos, o Clã Urso forneceu vários barris
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de cerveja de mel para o casamento. A cerveja foi um sucesso estrondoso.
Raphael percebeu que a Casa do Clã bouda ficava no meio de um pomar
de maçãs e sentiu uma oportunidade de negócio. A sidra B chegou ao
mercado há um ano e, como todas as coisas que Raphael tocava, virou
ouro.
Ele se recostou na cadeira, uma perna longa sobre a outra. A vida
com Andrea tem sido boa para Raphael. Ele parecia bem vestido. O terno
dele se encaixava tão bem que com certeza era um terno sob medida.
— Deixe-me adivinhar, seu alfaiate está mantendo seu último terno
como refém e você quer que eu o liberte.
— Se eu pedisse para você fazer algo como isso, tudo estaria coberto
de sangue no final e meu terno estaria arruinado. Não, isso eu pediria a
minha esposa. Ela atiraria no meio dos olhos dele a cem metros de
distância.
Ela faria.
— Eu vim falar sobre o garoto, —disse ele. — Trouxe a sidra, porque
não é uma conversa fácil.
Oh!
— Vim pedir que você o libere.
Imaginei que fosse isso. — Por que Ascanio não está aqui falando
por si mesmo?
— Porque você o recebeu quando ninguém o queria. Tia B o enviou
para você porque ele era impossível de lidar, e ela sabia que mais cedo ou
mais tarde Ascanio faria a coisa errada ou diria a coisa errada, e alguém
arrancaria a garganta dele. Você deu a ele um emprego, um lugar para
pertencer, você o treinou e confiou nele, o transformou em alguém que
agora é um trunfo para o clã. Ascanio entende tudo o que você fez por ele
e é leal a você.
Raphael fez uma pausa.
Eu esperei ele continuar.
— Mas ele também quer coisas.
— Que coisas?
— Podemos começar com dinheiro. Ele sabe que pode ganhar algum
dinheiro aqui, mas quer mais. Quer prosperar.
Raphael e eu sabíamos que Ascanio não conseguiria ficar rico
trabalhando para mim. A Cutting Edge pagava as contas, mas não
enriqueceria ninguém. Eu não tinha interesse em expandir. Gostava da
ideia de sermos pequenos.
— Ele também quer aceitação, responsabilidade e poder. Quer
escalar a hierarquia de poder do Clã. Em sua essência, ele é um bouda e
precisa de outros boudas para reconhecer o quão bom ele é.
— Certo.
— Ambos são meios para um fim. —Raphael se inclinou para frente.
— O que ele realmente quer é ...
— Segurança, —eu disse a ele. — Eu o ensinei por quase quatro
anos, Raphael. O garoto cresceu sem um modelo masculino naquele
lugar infernal, então quando o trouxeram para o Clã, ele encontrou você.
Ascanio quer ser você. Um alfa respeitado, bem-sucedido e perigoso. Eu
sei de tudo isso há muito tempo.
— Ele está trabalhando para mim nos últimos seis meses, —disse
Raphael.
— Hum-rum.
Raphael mordeu o lábio. — Não há sentido em tentar ser
diplomático, então vou apenas dizer isso. Os rapazes boudas de dezenove
anos pensam com suas bolas. Andrea e eu passamos metade do nosso
tempo lutando para mantê-los fora dos campos de carregamento de
pedras de Jim.
Como Curran, Jim aprimorava constantemente a Fortaleza,
adicionando torres, muros e túneis de fuga. Boa parte dessas melhorias
eram feitas por boudas com idades entre doze e vinte e cinco anos,
trabalhando na versão de serviço comunitário do Bando pelas infrações
que eles cometiam. Os boudas não pareciam ficar longe de problemas, e
Jim sempre dava boas-vindas ao trabalho de graça.
— Ascanio é diferente dos outros rapazes de sua idade, —disse
Raphael. — Ele pensa com a cabeça e é estratégico em suas decisões.
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Quando o mandamos para Kentucky , ele encontrou Hu ... —Raphael
fez uma pausa. — ... problemas lá. E lidou com o problema. Melhor do
que eu.
— Não tenho dúvida que ele fez.
— Precisamos dele e ele precisa de nós. Mas sei que minha mãe o
largou em suas mãos, e você passou quatro anos o estabilizando,
ensinando-o e o forjando no que ele é hoje, e agora que ele é útil, o
queremos de volta, e isso é injusto com você. Eu sinto muito. Devo-lhe.
Todo o nosso Clã te deve.
— Você não me deve nada. Fiz isso por ele, não por você.
— Mas você tem todo o crédito e nós temos obrigação de reconhecer
e apreciar. Estou aqui para dizer que reconhecemos e não vamos
esquecer. Se deixarmos para ele decidi, Ascanio nunca se afastará de
você. Ele não conseguirá. O senso de lealdade dele não o deixará. Mas
ele não será feliz aqui. Ascanio quer reconhecimento e aceitação do
Bando. Goste ou não, você não é apenas alguém, Kate. É a In-Shinar.
Quanto mais o mantiver ao seu lado, mais difícil será para ele ser visto
como alguém que não esteja vinculado a você.
Ele tinha que jogar isso na minha cara. Suspirei. — Você vê alguma
corrente por aqui, Raphael?
— Não. —Seu sorriso era triste.
— Está bem, então. Ascanio não é um funcionário contratado. Ele é
livre para fazer o que quiser. Vou tirá-lo da folha de pagamento a partir
de hoje. Ele pode voltar a qualquer momento, mas não vou mais chamá-
lo.
— Obrigado, —disse ele.
— Não é por você. Ele deve fazer o que o faz feliz.
Raphael acenou com a cabeça de novo. Ele parecia miserável.
Eu o tiraria dessa miséria. — Como está a baby B?
Ele sorriu. — Um garoto lobo tentou roubar seu brinquedo no
piquenique na semana passada. Ela o perseguiu, pegou o brinquedo de
volta e bateu no garoto com ele.
— Você deve estar tão orgulhoso.
— Ah, eu estou.
— Vejo você por aí, Raphael.
— Você vai, Kate.
Ele saiu.
Bem, era isso. Eu me sentia estranhamente vazia. Não haveria mais
piadas engraçadinhas. Pronuncias torturantes do Latim. Não mais piadas
de duplo sentido. Eu estava me preparando para este momento já algum
tempo, mas ainda assim me sentia vazia.
Derek entrou no escritório. — O que Raphael queria?
Eu balancei minha cabeça. — Nada importante.
Derek olhou para a garrafa de sidra e puxou dois pequenos sacos de
papel de um saco maior. O delicioso aroma de especiarias mexicanas
32
encheu o ar. Tacos deliciosos de frango. Meu favorito. O restaurante
mexicano mais próximo ficava a cerca de três quilômetros de distância.
Ele foi buscá-los para mim.
Levantei-me, peguei dois copos, abri a sidra e servi um pouco para
nós. Derek sentou-se na cadeira de cliente e mordeu seu taco. Eu
mastiguei o meu. Humm, delicioso.
— Vou voltar a Serenbe amanhã, —disse ele. — Quero fazer uma
pesquisa mais ampla. Ver se consigo pegar uma trilha de cheiro.
— Tudo bem, —eu disse.
Mastigamos um pouco mais.
— Você já quis ser rico? —Perguntei.
Derek parou de mastigar. — Não.
— Quero dizer, você quer mais dinheiro?
Ele me deu um encolher de ombros com um ombro. — Minhas
contas são pagas. Tenho o suficiente para me alimentar, o suficiente para
comprar o que preciso para minha casa e trabalho, posso comprar
presentes de Natal. Do que mais eu precisaria?
Eu concordei. Bebemos nossa sidra e comemos nossos tacos, e isso
foi bom.

Capítulo 3
DOIS GRANDES OLHOS CINZENTOS me olhavam em um rosto
redondo, iluminado pela luz da manhã que entrava pela janela da
cozinha. Conlan empurrou o prato de mingau de aveia para longe. —
Nãaoo.
— Sim.
— Melll.
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Eu cruzei meus braços. — Vovó te deu muffins de mel ontem?
Os olhos dele brilharam. — Vovó!
— Vovó não está aqui.
Meu filho continuou dizendo ‘não-não’.
Quando eu estava grávida, tentei evitar fazer coisas perigosas, o que
me deixou com muito tempo livre. Então lia todos os tipos de livro sobre
bebês. Esses livros diziam claramente que dar mel ao seu bebê antes de
um ano de idade fazia de você uma mãe horrível. No momento em que
uma colher de mel tocasse os lábios da criança, as palavras ‘Mãe Horrível’
apareceriam em sua testa, marcando-a para sempre como um fracasso de
mãe. Eu havia explicado isso a Mahon e Marta. Eles ouviram, assentiram
e concordaram, e depois passaram a me ignorar. Os avós estavam dando
mel a Conlan e vários outros doces feitos de mel desde que ele foi capaz
de segurá-los em suas mãos minúsculas e depois mentiam na minha cara
sobre isso. Conviver com os meus sogros metamorfos ursos era um
desafio.
— Não tem mel para você. Coma a sua aveia.
— Nãaooo. —Ele empurrou o cereal.
— Certo. Então vai ficar com fome.
— Melll!
Em termos de bebê, meu filho estava se desenvolvendo na velocidade
da luz. Aos treze meses, a maioria dos bebês possuía um vocabulário de
três ou quatro palavras. Mamãe, papai, tchau, uh-oh. Os especialistas
chamavam essa fase de aquisição passiva da linguagem. Meu bolinho
doce já estava formando pequenas frases e discutindo comigo sobre o
mel. Nesse momento, eu não tinha certeza se ficava orgulhosa ou
frustrada. Provavelmente ambos.
— Eu tenho que ir trabalhar hoje, —eu disse a ele. — E nem seus
avós nem sua tia podem ficar com você, porque eles têm negócios com o
clã. Então, você está preso comigo.
— Melll. —Conlan fungou.
— Eu não negocio com terroristas. Aveia ou nada.
Peguei a panela do mingau de aveia e coloquei um pouco no meu
prato, acrescentei sal e manteiga e coloquei na boca. — Humm. Vou
comer tudo isso e ficar feliz e de barriga cheia.
Conlan observou a colher viajar para a minha boca. Um. Dois ... três
...
Ele puxou o prato para ele e cavou com a colher. A fome venceu
novamente. Meu filho não era um metamorfo, mas certamente comia
como um.
Lambi minha colher. Hoje ia ser um dia agitado.
O telefone tocou. Eu peguei. — Olá.
— Oi, Kate, —disse Luther.
Ele não me chamou de pagã ou selvagem. As novidades eram ruins.
— Como foi?
— Você estava certa. Eles extraíram os ossos.
Minha mente levou um momento para digeri-lo. — O que manteve
os insetos longe?
— Ainda não sabemos. A substância é magicamente inerte, mas não
desprovida de magia. O caldo registra o azul no m-scan, mas não posso dizer
se é devido a restos humanos ou à natureza do próprio caldo. Sua Sensitiva
está por aí?
— Não. —Julie estava fora com Curran. Eu gostaria que eles
estivessem em casa.
— Uma pena.
— Você encontrou sangue que não fosse humano em alguma das
casas?
— Encontramos fios de cabelo, —disse Luther. — Grosso, marrom
avermelhado, curto. Em uma das casas, alguém arrancou um pedaço do
agressor.
— DNA?
— Estamos analisando agora.
— É cabelo ou pêlo?
34
— Boa pergunta. Possui uma medula amorfa , consistente com o cabelo
humano, e uma cutícula coronal, que pode ser encontrada raramente em
humanos, mas geralmente é encontrado em roedores, como nos morcegos, por
exemplo. O cabelo da cabeça humana cresce continuamente. O cabelo que
encontramos exibe crescimento sincronizado, ou seja, em algum momento ele
parou de crescer, como pêlos. Não foi cortado. Mas também exibe uma raiz
bulbosa, que é típica nos seres humanos. É inconsistente com pêlos de
metamorfo em alguns aspectos e consistente em outros.
— Você está tentando me dizer que pode ser um cabelo de um
híbrido humano-morcego?
— Não seja ridícula. —A frustração apareceu na voz de Luther. —
Estou tentando lhe dizer que passei vinte e quatro horas cavando uma vala
coletiva gelatinizada e analisando o que encontrei, e não achei nada que nos
esclareça o que aconteceu lá.
— Isso não é verdade. Você tem uma amostra para comparação.
— Avisarei se encontrar mais alguma coisa.
— Obrigada.
— E Kate? Se você se deparar com isso de novo, quero que me chame
imediatamente.
— Isso pode ser um pouco difícil, Luther. A última vez que
verifiquei, a telepatia não estava entre as minhas habilidades.
Ele desligou.
— Alguém está estressado, —eu disse a Conlan.
Conlan não parecia impressionado.
Disquei o número direto de Nick. Geralmente, eu seguia pelos canais
adequados, ou seja, falava primeiro com Maxine, mas Nick não me ligou
de volta e o Riscos Biológicos não os notificaria. A posição legal da
Ordem como uma agência executora da lei sempre foi obscura, no
35
entanto, após o massacre de Wilmington , os Cavaleiros estavam
36
firmemente fora da lei. Alguns jovens da UNC em Wilmington
tomaram uma nova droga mágica por divertimento que os transformou
em monstros. A droga parece que também lhes roubou o intelecto,
porque o tumulto monstruoso que eles faziam consistia em correr pelos
dormitórios e rosnar para os transeuntes. A Ordem foi convocada e, em
vez de proteger a cena e esperar, os Cavaleiros tomaram uma decisão
coletiva de entrar e executar todos que encontrassem. No meio do
massacre, a onda de magia foi embora e os garotos voltaram a ser seres
humanos. A Ordem não parou. Quando o sangue parou de borrifar, doze
jovens estavam mortos. No julgamento, o Cavaleiro-Protetor do núcleo
de Wilmington declarou que ele não se importava se os jovens haviam
retornado para as suas formas humanas ou não. Na opinião do Cavaleiro,
os garotos deixaram de ser humanos quando decidiram usar a droga. As
consequências nacionais desse episódio foram catastróficas.
Alguns estados ainda reconheciam a posição semilegal da Ordem
como agência aplicadora da lei, mas a Geórgia não era uma delas. Toda
a cooperação entre as agências policiais e a Ordem havia cessado desde o
ano passado. Os métodos da Ordem me incomodavam, assim como me
incomodava quando Nick chamava a mim e a meu bebê de abominações
todas as chances que ele tinha, mas a Ordem havia acumulado décadas
de conhecimento sobre a magia. Se entrar em contato com Nick ajudasse
a impedir de acontecer em outro lugar o que aconteceu em Serenbe,
valeria a pena.
A mensagem que eu deixei ontem foi curta. Tinha apenas duas
palavras: ‘Ligue para mim.’ Ele sabia que eu não o procuraria a menos que
fosse uma emergência. Como ele não me ligou de volta, vi que teria que
deixar uma mensagem um pouco mais longa.
Deixei a mensagem e desliguei o telefone, tirei Conlan da cadeirinha
de alimentação e fui buscar o caminhão de bombeiros do depósito. O
caminhão foi um presente de Jim e Dali no primeiro aniversário de
Conlan. Grande o suficiente para uma criança pequena sentar e subir,
tinha um pequeno motor de água encantada, que acendia luzes e fazia
uma escada subir durante ondas mágicas. Deve ter lhes custado uma
pequena fortuna. Conlan adorava o caminhão. Ele não demonstrou
interesse em andar nele, mas gostava de usar a escada para subir no teto
do caminhão, o que geralmente levava alguns minutos e várias tentativas.
Quando ele conseguia, balançava os braços e fazia barulhos estranhos. Às
vezes, ele adormecia lá em cima. Como seu pai, meu filho gostava de
estar em lugares altos.
Conlan começou sua jornada épica em direção ao teto do caminhão,
e eu peguei arquivos sobre desaparecimentos em massa, sentei no chão
perto o suficiente para pegá-lo se ele decidisse mergulhar de cabeça e
tentei ler o pouco que se sabia sobre o desaparecimento coletivo de
pessoas.
De todos os desaparecimentos em massa registrados, a colônia de
37 38
Roanoke era a mais conhecida, mas havia outras; Ilha de Páscoa , cujos
habitantes desapareceram no ar, deixando apenas estátuas. Os antigos
39 40
índios Pueblos , que antes eram chamados de Anasazi , que significa
41
‘inimigos antigos’. A vila de Hoer Verde no Brasil . Esse último era
especialmente assustador. As teorias diziam que os moradores da Ilha de
Páscoa poderiam ter morrido de fome e os colonos de Roanoke poderiam
ter morrido de peste, mas todos tinham certeza de que algo realmente
estranho havia acontecido em Hoer Verde. Seiscentos brasileiros
desapareceram sem deixar rastro em 1923, deixando para trás pertences
de valor, uma arma que havia sido disparada e uma mensagem escrita em
um muro que dizia: ‘Não há salvação’.
Todos esses eram pré-Mudança. Após a Mudança, os
desaparecimentos coletivos aumentaram em frequência, mas geralmente
os motivos do desaparecimento eram descobertos. Tipicamente, algo
havia comido as pessoas ou alguma doença mágica havia contaminado
todo mundo e se auto extinguiu. Há um relato de um caso que
misteriosas luzes azuis flutuaram no ar de uma pequena cidade, as
pessoas hipnotizadas pelas luzes tiraram suas roupas e saíram correndo
nuas pela floresta atrás delas. Os moradores foram finalmente
encontrados por xerifes locais, confusos e envergonhados. As piores
lesões sofridas foram arranhões e casos graves de intoxicação à hera
venenosa.
Não havia nada em nenhum dos arquivos sobre pessoas cozidas ou
valas coletivas de geleia.
O telefone tocou. Agarrei-o, assistindo Conlan tentando chegar ao
teto do caminhão.
— Olá, Kate, —disse Maxine.
Aquele idiota. Não pôde ele próprio me ligar. Mandou a secretária dele fazer
isso. Isso era muito mesquinho, mesmo para Nick. — Oi, Maxine. Como está
meu inimigo?
— Nós precisamos da sua ajuda.
— Desculpa, o que?
— Precisamos da sua ajuda, —ela repetiu.
Conlan se levantou e deu um pequeno pulo em cima do caminhão,
conseguindo subir por cerca de alguns centímetros. Eu cheguei mais perto
dele.
— O que posso fazer por vocês?
42
— Recebemos um grupo do Wolf Trap .
O Wolf Trap, na Virgínia, abrigava a sede nacional da Ordem.
— Acredito que eles estão aqui para remover Nikolas Feldman de sua
posição como Cavaleiro-Protetor.
O que? Nick foi o primeiro Cavaleiro-Protetor decente que o cargo
teve nos últimos dez anos. Seu antecessor conseguiu matar todo o núcleo.
— Por quê?
— Nikolas tem feito questão em proferir suas críticas à Ordem. Isso
causou problemas. —Havia um tom assustador e vulnerável na voz de
Maxine. Quando trabalhei com a Ordem, ela era imperturbável. Não
importa o que acontecesse, Maxine lidava com qualquer coisa com a sua
conhecida eficiência.
— Problemas dentro do núcleo?
— Não, os Cavaleiros do núcleo são leais a Nick. Já têm alguns anos que
nos tornamos um refúgio para ...
— Casos problemáticos, —terminei por ela. Atlanta sempre foi o
local de despejo para Cavaleiros problemáticos.
— Sim. Nikolas tem um talento único quando se trata de ajudar as
pessoas a encontrar seu lugar. Ele faz com que elas se tornem úteis. A maioria
desses Cavaleiros devem suas vidas a Nick mais de uma maneira.
A Ordem encorajava a lealdade aos Cavaleiros-Protetores locais, e o
núcleo de Atlanta não era exceção. Nas poucas vezes em que eu vi Nick
interagir com seus Cavaleiros, as relações pareciam se basear no respeito
mútuo. Os Cavaleiros faziam o que Nick os ordenava e não houve
questionamentos na minha presença.
— A Ordem teria que ter uma razão para removê-lo, —pensei alto.
— Não se pode simplesmente tirar um Cavaleiro-Protetor do seu
Núcleo. O desempenho de trabalho está baixo?
— Não. Nossos números de petições concluídas são acima da média.
— Então qual é o problema?
— Nick foi contundente ao expressar a frustração dele com o não
envolvimento do Núcleo Nacional da Ordem na sua Reivindicação de Atlanta
e na situação geral com seu pai.
Ah, ótimo. Eu poderia imaginar o conteúdo dos relatórios enviados a
Wolf Trap: Vocês estão cientes de que uma abominação chamada Kate
Lennart reivindicou a cidade de Atlanta? Por que vocês não estão fazendo
nada sobre a reivindicação de Atlanta? Vocês estão planejando fazer algo
sobre esse assunto em um futuro próximo? Poderiam nos dar um prazo para
esse problema ser resolvido? Quando algo aborrecia Nick, ele não
conseguiu calar a boca, e a Ordem em geral queria desesperadamente
ignorar minha existência. A Ordem não tinha o poder de fazer nada sobre
mim. Eu tinha certeza de que eles esperavam que eu fosse embora em
algum momento, e aqui estava Nick, colocando um grande holofote
sobre o problema que eles estavam fingindo não ver.
— Eles acreditam que Nick não possua a flexibilidade diplomática
necessária para o cargo, —afirmou Maxine.
— Como você sabe disso?
— Eu examinei suas mentes.
Uau. Para Maxine, isso era uma violação maciça da ética.
— Eu não tive escolha, —disse Maxine calmamente. — Dei vinte
cinco anos da minha vida à Ordem. Senti o núcleo inteiro morrer um por um.
Não posso passar por isso de novo.
Ela soou como se estivesse no final de seu controle. — Deixe-me
adivinhar, vão removê-lo porque Nick não é diplomático o suficiente
para lidar comigo?
— Sim. —A ansiedade vibrou na voz de Maxine. — Ele foi convidado
para um almoço. Foi armado. Antes de partir, Nick tinha uma ideia específica
em mente. Você deve entender, este núcleo é tudo o que ele tem.
Ah, eu entendi perfeitamente. Nick não iria se entregar facilmente.
Eles não o chamaram em Wolf Trap, porque sabiam que ele não iria, e
não queriam fazer isso dentro das paredes do núcleo, na frente dos outros
Cavaleiros, onde Nick teria apoio
— Você precisa entender, quando eu disse que os Cavaleiros são leais a
ele, eu quis dizer que eles estão profundamente comprometidos com Nick.
Se Nick caísse, o núcleo se revoltaria. Escolheram uma péssima hora
para isto.
Conlan se equilibrou na beira, em cima do caminhão.
Se eu não resolvesse isso agora, o núcleo entraria em colapso. Nick
provavelmente morreria, e essa era a última coisa que eu queria.
— Onde é esse almoço?
— No Amber Badger.
Isso levaria vinte minutos de casa até lá. Levaria pelo menos trinta
do núcleo ao restaurante.
Os Cavaleiros de Wolf Trap estavam determinados em colocar
alguma distância entre ele e seu pessoal.
— Quando ele saiu?
— Cerca de cinco minutos atrás.
— Eu estou indo lá. Mantenha todos calmos, por favor.
Desliguei e me joguei para frente no momento em que Conlan saltou
do caminhão. Ele caiu nos meus braços e riu. Meu filho, o Temerário.
Que bom que eu tenho reflexos rápidos.
Eu o abracei e beijei sua testa. — Vamos nos vestir. Temos que
salvar o tio Nick-Cabeça-Estúpida de si mesmo.

*******
ENTREI NO AMBER BADGER carregando Conlan. Ele não queria
vestir roupas. Bravamente consegui vesti-lo com sucesso em uma
camiseta e um par de shorts, mas levei dez minutos a mais do que o
planejado para chegar ao restaurante. Esperava que não fosse tarde
demais.
A recepcionista sorriu para mim. — Posso ajudar?
— Estou procurando uma reunião dos Cavaleiros da Ordem.
Armados, assustadores, provavelmente carrancudos.
— Por aqui.
O interior do Amber Badger parecia uma taberna medieval, com
paredes de pedra, pisos de madeira envernizadas, arandelas nas paredes e
mesas de madeira rústicas. O restaurante estava meio vazio e não tive
dificuldade em encontrar Nick e três Cavaleiros em uma mesa perto da
parede oposta. O rosto de Nick tinha aquele olhar frio e calculado que ele
tinha pouco antes de tirar sua espada da bainha. Os outros três, dois
homens, um de pele escura na casa dos quarenta anos, um branco e um
pouco mais jovem e uma mulher hispânica da minha idade, se portavam
com a naturalidade de lutadores experientes. Não relaxados, mas também
não tensos. Uma travessa meia cheia de biscoitos com queijo e molho de
cerveja repousava sobre a mesa. Ai, que bom, ainda estavam nos aperitivos.
Eles não o demitiriam até o prato principal.
Caminhei direto para a mesa.
Nick levantou a cabeça e me viu. Os olhos dele se arregalaram.
Eu parei ao lado da mesa. — Cavaleiro-Protetor.
— Sim?
Os outros três Cavaleiros me encararam.
— Posso roubar um momento do seu tempo?
Nick pareceu vacilar.
Diga sim. Diga sim, seu idiota. Estou tentando demonstrar aqui que nós
sabemos trabalhar juntos.
— Claro, —ele disse.
— Ah bom. Deixe-me pegar uma cadeira. —Entreguei Conlan a
Nick.
Ele pegou o bebê e o segurou com muito cuidado. Talvez Nick
estivesse preocupado que Conlan fosse explodir.
— Isso pode esperar? —A Cavaleira perguntou.
— Não, —Nick disse a ela.
— Paddaa! —Conlan disse a ele.
Nick pegou um biscoito e o ofereceu ao meu filho. Conlan pegou e o
enfiou na boca. Puxei uma cadeira e me sentei.
— O que foi? —Nick perguntou.
— Estou interrompendo algo importante?
— Sim.
— Bem. Se retornasse minhas ligações, não precisaria caçá-lo por
toda a cidade. Um pouco de profissionalismo, Nick. É tudo o que estou
pedindo.
Ele se inclinou para frente. — Ah, profissionalismo.
— Hum-rum.
— Eu devo oferecer uma resposta profissional para a mensagem:
‘Ligue para mim, seu idiota teimoso’?
— Nick! Olha os palavrões.
Nick colocou as mãos nos ouvidos de Conlan. — Desculpa.
— Você é um idiota. Sabe que eu não ligaria a menos que fosse
urgente. —Pelo menos descobri que ele checava suas mensagens.
Conlan se contorceu.
— O que aconteceu? —Nick rosnou.
— Alguém limpou Serenbe. Alguém ou alguma coisa passou, matou
todos os cães com precisão de um atirador de elite, capturou
aproximadamente duzentas pessoas, os ferveram para extrair os ossos e
jogaram os restos no antigo centro de distribuição do Walmart.
A mesa de repente ficou quieta. Nick soltou as mãos dos ouvidos de
Conlan.
— Quando?
— O desaparecimento foi descoberto no último domingo. Eu fiquei
sabendo ontem, quando encontramos a vala coletiva.
— Quem está envolvido na investigação?
— Riscos Biológicos e Teddy Jo. Um de seus fiéis morreu e agora o
homem está nesse caldo.
— Foi Roland?
Eu balancei minha cabeça. — Não parece com os ataques dele.
Conlan deve ter decidido que Nick precisava se animar, porque tirou
o biscoito encharcado da boca e tentou alimentar o Cavaleiro-Protetor.
Nick gentilmente afastou o biscoito de seus lábios.
— Foi feito com habilidade e precisão. Sem sobreviventes. Quase
nenhuma evidência.
— E você acha que haverá uma repetição do acontecido.
— É uma aposta segura.
— Tudo bem, —disse ele. — Quem está à frente da investigação nos
Riscos Biológicos?
— Luther. —Eu disse.
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— Algo dessa magnitude o forçara a entrar em contato com o GBI .
Ele provavelmente procurará por Garcia. Ela me deve um favor. Vou
ligar para ela, vou tentar nos colocar na investigação.
— Ajudaria. —Peguei Conlan dele. — Diga tchau ao tio Cabeça
Estúpida.
Conlan acenou com a mão. — Tchau-tchau.
— Tchau-tchau! —Nick acenou de volta.
Levantei-me para sair. — Obrigada por me deixar interromper seu
importante almoço. Você não está planejando ir muito longe da cidade
com seus amigos, está?
— Não, —Nick disse, seu rosto feito de pedra.
— Bom, porque essa cidade precisa de você e você não tem uma
fantasia, então se enviarem um sinal luminoso com o desenho de um
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morcego , ele não vai alcançá-lo.
Eu ofereci a todos um grande sorriso. Estão vendo? Fomos profissionais.
— Senhora Lennart, —disse o Cavaleiro de pele escura. — Eu sou o
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Cavaleiro-Representante de Norwood . Gostaria de visitá-la mais tarde.
Olhei para Nick. — Quem são a Santíssima Trindade?
— Eles são de fora da cidade, —disse ele.
Dei de ombros. — Fiquem à vontade. Nick sabe onde me encontrar.
— Você parece tão normal, —disse a Cavaleira.
— Bom.
— Eu poderia te matar agora, —afirmou.
Revirei os olhos, virei e saí.

*******
DIRIGI ATÉ A CUTTING EDGE, precisava verificar minhas mensagens.
Quando entrei no estacionamento, uma entregadora estava sentada à
minha porta. Ela tinha cerca de doze anos, baixinha, latina e armada com
uma espingarda. A menina jogou um grande envelope amarelo com um
carimbo do Riscos Biológicos em minhas mãos, fez-me assinar o recibo e
saiu de bicicleta sem dizer uma palavra. O envelope continha várias
páginas digitadas com as análises e breve descrição da cena em Serenbe e
uma lista de nomes de doze páginas, um por linha. Os nomes dos mortos.
Olhei através do relatório. Eles examinaram as casas em Serenbe.
Azul em todas as leituras do m-scan.
Peguei Conlan, verifiquei minhas mensagens—que não tinha
nenhuma—peguei o arquivo do caso que Derek e eu montamos ontem,
coloquei Conlan de volta no banco do carro, levei minha papelada
comigo e fui para casa. Eu poderia muito bem trabalhar em casa e, pelo
menos em casa, tinha brinquedos e um ambiente familiar para me apoiar.
Dois segundos e meio depois de ser colocado no banco do carro,
meu filho começou a gritar. Nós nem conseguimos sair do
estacionamento. Saí e verifiquei o assento do carro em busca de perigos
escondidos. Estava tudo bem com o assento. Conlan também estava bem,
apesar de não parar de se contorcer e puxar o cinto de segurança do
carro. Ofereci-lhe um copo com canudinho e ele jogou no chão.
— Ah não, isso é hora para a birra?
Definitivamente era hora de birra, completa com lamentos e lágrimas
de verdade. Eu o beijei na testa.
— Eu te amo. Temos que ir para casa. Não posso te abraçar agora,
mas você está seguro.
Conlan gritou. Sentei no banco do motorista e voltamos para casa.
Eu realmente não podia reclamar. Conlan raramente chorava, mas de vez
em quando tinha um ataque, geralmente porque estava cansado e não
queria dormir. Ele era um bebê e os bebês faziam birras, porque a vida
era difícil e não justa e seus desejos raramente eram levados em
consideração.
A verdadeira questão era: quanto tempo levaria para ele descobrir
como se soltar do assento do banco? Esse dia estava chegando, e então
estaríamos com problemas reais.
Sentia falta de Curran. Eu queria que ele voltasse para casa. Tudo
isso era profundamente perturbador, e parecia que uma parte de mim
tinha desaparecido. Eu o queria de volta e queria que todos estivéssemos
juntos.
Cerca de quinze minutos depois, Conlan desistiu de cantar a triste
canção de seu povo e adormeceu.
O pesadelo de Serenbe me incomodava. Duzentas pessoas, famílias,
crianças ... Isso não foi apenas assassinato, foi uma atrocidade. Eu
gostaria de pensar que somente algo não humano fosse capaz disso, mas
toda a história da humanidade me provava o contrário. Todas as leituras
que os m-scans fizeram em Serenbe apontava a magia humana.
Foi algum tipo de sacrifício coletivo humano? Se fosse, o que diabos
convocaram com isso?
Fosse o que fosse, eu o encontraria e o mataria. E então acharia os
responsáveis e os faria se arrepender.
Levei cerca de trinta minutos para chegar ao nosso bairro. Nossa
casa ficava no meio de uma rua curta e curva, escondida no meio da
floresta, que meu marido comprou e a nomeou de Floresta Dois
Quilômetros. Originalmente era o começo de um novo bairro, mas a
floresta se mostrou muito agressiva. O empreendimento mal decolou
antes de ser interrompido. Então nos mudamos, o que fez todas as
famílias humanas, exceto duas, se mudarem de lá e buscarem bairros
mais tranquilos. Agora nossa rua era principalmente de pessoas que se
separaram conosco do Bando. As outras duas ruas eram povoadas por
metamorfos que, por motivos de trabalho, decidiram morar em Atlanta.
Mesmo quando Curran tentou se distanciar, o Bando ainda o encontrava
de um jeito ou de outro.
Eu não reclamava. O lugar era uma fortaleza sem paredes, e se eu
espirrasse da maneira errada, cerca de quarenta assassinos armados com
presas, garras e disposições para matar qualquer um, chegariam correndo.
Mesmo com todos eles, ainda assim coloquei tanto poder nas Proteções
que fiz no perímetro de nossa casa, que até mesmo todo o Colégio de
Magos passaria por dificuldades para quebrá-los. Tinha um pesadelo
recorrente de meu pai se teletransportando e roubando meu filho.
A entrada de automóveis na frente da nossa casa estava vazia.
Curran ainda estava fora. Vamos querido. Hora de voltar para casa.
Coloquei a pasta e o envelope debaixo do braço e peguei Conlan. Ele
ainda estava sonolento e deitou sobre o meu ombro, todo quente e mole.
Abri a porta, entrei e deixei a pasta cair sobre a mesa.
— Chegamos, —murmurei para Conlan, abraçando-o gentilmente.
— Estamos em casa. Nós vamos subir e tirar uma boa soneca.
Conlan se empurrou dos meus braços.
— O que foi?
Meu filho virou a cabeça para trás, olhando para a porta, os olhos
arregalados e aterrorizados.
A campainha tocou.
Conlan fez um barulho baixo e áspero. Um alarme percorreu minha
espinha. Os bebês não emitiam esses barulhos.
— Está tudo bem.
Meu filho bateu a testa na minha boca. Eu provei sangue. Ele jogou
todo o seu peso para trás, arrancou-se dos meus braços, caiu de pé e
correu para as escadas.
Mas que diabos? Corri atrás dele a tempo de ver seus pés
desaparecerem no nosso quarto no terceiro andar. Ele subiu a escada
inteira em cerca de um segundo. A trava se fechou. A porta do nosso
quarto tinha uma maçaneta personalizada que travava quando fechava.
Era preciso pressionar um botão para abri-la, algo que Conlan ainda não
havia descoberto.
Certo. Porta primeiro, filho depois. Limpei a boca com as costas da mão,
puxei Sarrat para fora e deslizei a pequena janela de visualização.
Gramado, árvore e garagem. Nenhum monstro cuspidor de fogo.
Sem assassinos cruéis. A tecnologia estava em alta.
Parei e escutei.
Silêncio.
Sim, provavelmente haveria um polvo terrestre, comedor de homens,
agachado na parede logo acima da porta esperando para atacar.
Fazia muito tempo desde que comemos lula frita. Tecnicamente, a
lula não era polvo, mas depois de frito quem se importaria com os
detalhes?
Não tinha tempo para brincar. Eu precisava resolver isso e descobrir
por que meu filho estava pirando. Abri a porta. O gramado da frente
estava vazio. Uma caixa de madeira esperava na frente da porta. Cerca de
sessenta centímetros de comprimento, trinta centímetros de largura e
talvez vinte centímetros de altura. Madeira não tratada comum,
provavelmente pinho. Duas dobradiças de metal no lado esquerdo.
Alguém esperou até eu chegar em casa e o deixou na minha porta.
Esse alguém estava em nosso bairro, vigiando nossa casa, e eu não
percebi quando cheguei em casa, porque sou uma idiota. Fiquei
confortável nos últimos treze meses. Desleixada, a voz de Voron disse
de minhas memórias. Sim, eu sei.
Saí, cuidadosamente passei pela caixa e corri para o final da entrada.
A rua estava deserta em ambas as direções. Não senti ninguém me
observando. Quem a entregou tinha vindo e ido. Não se preocupou em
ficar por aqui para ver se eu pegaria a caixa.
Voltei. A caixa parecia perfeitamente inofensiva. Certo, e assim que eu
a tocasse, brotariam lâminas de metal afiadas e me esculpiriam em pedaços.
Agachei-me e cutuquei a caixa com Sarrat. A caixa não parecia ter
nada de estranho.
Cutuquei. Cutuquei, cutuquei. Empurrei.
Nada.
Bem. Deslizei a ponta da minha lâmina entre a tampa e a caixa e a
abri. Uma espessa camada de cinzas enchia a caixa. Nela havia um
punhal e uma rosa vermelha. E isso não é nenhum um pouco estranho. Nem
um pouco.
O punhal tinha cerca de cinquenta centímetros no total, com uma
lâmina de trinta e cinco centímetros, afiada por todo o lado esquerdo e
até a metade no lado direito. Cabo de madeira liso, sem proteção.
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Simples, eficiente, brutal. Lembrou-me de um Skean , um punhal de
guerra irlandês.
A rosa era vermelha cor de vinho tinto ou de sangue. Espinhos
longos. Embainhei minha espada e peguei a caixa. Cheirava levemente a
fogo. Não enxofre ou fumaça, mas aquele cheiro especial quando a
madeira fica muito quente pouco antes de explodir em chamas. Havia
algo mais também. Uma sugestão de um odor mais sombrio e mais
acentuado que eu não conseguia identificar.
Peguei a flor, peguei o punhal e mexi as cinzas com a lâmina. Nada
escondido nas cinzas.
Isso era algum tipo de ameaça?
Fosse o que fosse, parecia inofensivo o suficiente por enquanto. Eu
teria que lidar com isso depois que encontrasse meu filho.
Entrei na garagem, peguei uma lixeira de plástico, coloquei a faca e a
rosa de volta na caixa, coloquei a caixa na lixeira e a carreguei para o
galpão na parte de trás. O galpão servia como meu depósito de porcarias
estranhas, aquelas que eu não queria espalhadas pela casa. Coloquei a
lixeira de plástico em um círculo de sal no chão, tranquei o galpão, corri
de volta para dentro, lavei as mãos e subi as escadas saltando dois
degraus de cada vez.
Estava tudo silencioso. Quieto demais para o conforto.
Abri a porta, entrei e a tranquei atrás de mim. De onde eu estava,
podia ver a entrada em forma de arco do pequeno espaço que Curran
separou do nosso quarto para fazer um berçário.
O berço de Conlan estava vazio, com o cobertor pendurado até a
metade da grade de madeira. A porta do banheiro à minha esquerda
estava fechada, presa por uma pequena barra de trinco que apenas um
adulto podia alcançar. Essa era a única maneira de manter Conlan fora
do banheiro. Ele insistia em comer sabão e depois chorava quando
percebia que não tinha um sabor delicioso.
O único bom esconderijo era debaixo da cama. Curran gostava de
dormir em lugares altos, e nossa cama era uma besta enorme que se
erguia a cinquenta centímetros do chão, sem contar a grade e o colchão.
Muito espaço.
— Conlan? —Eu chamei. — Onde está o meu garoto?
Silêncio.
Caminhei nas pontas dos pés. Curran e eu brincamos de esconde-
esconde com ele o tempo todo. Normalmente, um de nós o agarrava e se
escondia enquanto o outro contava. Conlan era ridiculamente fácil de
encontrar, porque ele ria quando alguém chegava perto. Ficar quieto não
fazia parte de sua natureza.
Dei um passo em direção à cama. — Onde está Conlan? —Eu entrei
em ritmo de brincadeira. — Ele está aqui no canto? Não, ele não está.
Mais um passo.
— Ele está no berço? Não, ele não está.
Mais um passo. — Ele está debaixo da cama?
Uma pata com garras saiu debaixo da cama e arranhou a minha
perna. Pulei para cima e para trás, me distanciando.
Não pode ser.
Eu me agachei no chão. Um par de brilhantes olhos cinzentos me
encaravam debaixo da cama. Uma luz dourada rolava sobre eles, o
revelador fogo dos metamorfos. Eu vi esse dourado brilhar apenas cinco
dias atrás nos olhos de Curran, quando nosso poodle idiota tentou
vomitar na poltrona preferida dele.
— Conlan?
Um baixo rosnado me respondeu.
Ah droga. Merda, merda, merda.
Ele mudou. Ele se transformou em um filhote de leão. Meu Deus!
Olhei para os olhos dourados. Talvez eu estivesse imaginando isso.
— Conlan?
— Rauur rauur rauuroo.
Não. Não estou imaginando isso. Ele mudou.
Estendi a mão e Conlan recuou mais fundo debaixo da cama.
Merda.
— Conlan, saia.
— Raurur raur!
O telefone tocou. Talvez seja Curran. Eu peguei.
— Kate Lennart.
— Olá, —uma voz masculina e adocicada respondeu. — Estou
ligando da Imobiliária Sunshine. Você está interessada em vender sua casa?
Desliguei e sentei novamente.
— Raurraur!
— Conlan Dilmun Lennart, não rosne para mim novamente. Saia
debaixo dessa cama.
Ele recuou ainda mais na escuridão, apertando-se contra a parede
oposta. A cama pesava uma tonelada. Eu provavelmente poderia levantar
uma ponta dela por alguns segundos, mas não mais do que isso, e não
resolveria meu problema.
Eu poderia pegar uma vassoura e cutucá-lo com ela. O cabo seria
longo o bastante. Mas então isso poderia deixá-lo em pânico ainda mais.
Se eu ficasse só aqui, sentada no chão e esperasse será que resolveria?
A campainha tocou. Se for o entregador de volta, Sarrat e eu
poderíamos descarregar um pouco desse estresse nele.
Fiquei de pé, fui até a janela e cuidadosamente afastei a cortina,
apenas o suficiente para ver. Um jipe da Bando estava estacionado na
entrada da garagem.
— Não saia daqui, —eu disse a Conlan.
A campainha tocou novamente.
Saí do quarto, fechei a porta, corri escada abaixo e abri a porta.
Andrea sorriu para mim. — Eu finalmente escapei. Lora me chamou
de ‘Andrea, a Impiedosa’, na minha cara. Você pode acreditar nessa
cadela? Espere até eu contar o que ela fez. Eu deveria ter dado a ela um
mês de carregamento de pedras. Nós podemos almoçar ...
Agarrei-a e puxei-a para dentro.
— Ceeerto, —disse ela. — Olá para você também, docinho.
— Preciso que você me ajude a pegar meu filho.
— Uma criança de um ano está dando uma rasteira em você? Como
os poderosos caem.
— Ele está escondido debaixo da cama. Preciso que me ajude a tirá-
lo de lá.
— Por que o deixou rastejar debaixo da cama?
— Cale a boca e venha comigo. —Eu a arrastei pelas escadas.
— Tudo bem, tudo bem.
Destranquei a porta do quarto e me agachei na beira da cama.
Andrea se abaixou ao meu lado. — O que estamos olhando?
Dois brilhantes olhos dourados nos encaravam. — Arraaurooo
raurraur.
Ela abriu a boca e ficou lá, de queixo caído.
Conlan recuou contra a parede novamente.
Andrea sentou-se e apontou para debaixo da cama, seus olhos azuis
arregalados o máximo que podiam.
— Sim, —eu disse a ela.
— Quando? —Ela sussurrou.
— Agora mesmo.
— Como ele é?
— Eu não sei. Você poderá ver por si mesma quando conseguirmos
arrancá-lo de debaixo da cama.
Nós duas olhamos debaixo da cama novamente.
— Tudo bem, —disse Andrea. — Certo, ele mudou, então deve estar
com fome. Você tem carne?
— Toda a carne que temos está congelada.
— O que há de errado com você? —Ela exigiu.
— Curran está fora em uma de suas viagens de caça. Somos apenas
eu e Conlan. Eu tenho comido sanduíches de salame e macarrão
instantâneo nos últimos três dias.
— Por que você faria isso consigo mesma?
— Porque é fácil?
— O que você está dando para ele comer? —Ela apontou para
debaixo da cama.
— Frango, aveia, maçã, legumes ...
Andrea olhou para mim. — Será que eu te conheço? O que você tem
para o lanchinho dele?
— Biscoitos.
— Seu filho é um leão.
— Eu sei disso!
— Biscoitos não vão servir. Conhece algum caçador de leões que usa
biscoitos nas iscas de suas armadilhas?
— Não conheço nenhum caçador de leões, ponto final. E sabe de
uma coisa, torta de maçã funcionou muito bem para mim.
— Eu tenho uma novidade para te contar, não era na sua torta de
maçã que Curran estava interessado.
Ela me pegou.
— Você ainda tem salame?
— Não.
Andrea rosnou. — Vá pegar os biscoitos.
Um minuto depois, nos sentamos na cama, olhando para um prato
no chão com dois biscoitos de chocolate e uma pequena poça de mel.
— Acho que você não entende nada sobre felinos predadores, —
Andrea me informou.
— Ele gosta de mel.
Nós sentamos em silêncio.
— Isso não está funcionando, —eu rosnei.
Os olhos dela brilharam. — Você deveria tentar chamar assim: ‘Aqui,
gatinho, gatinho, gatinho’.
— Eu vou te matar e ninguém vai encontrar seu corpo.
Ela riu.
Outro minuto. Sons de mastigação abafados vieram de debaixo da
cama.
— Ele está comendo alguma coisa. O que ele poderia estar
mastigando lá embaixo?
Andrea fez uma careta. — Cabos elétricos. Lenços velhos. Insetos
mortos.
Kate Lennart, a mãe do ano. O que você da a seu filho para ele comer?
Insetos mortos que ele encontra debaixo da cama, é claro. Eu pulei da cama. —
Precisamos tirá-lo agora.
Andrea revirou os olhos. — Eu já disse que você é uma mãe
supercontroladora?
— Eu vou ser uma mãe Ira do Inferno em um minuto. —Agachei-me
beira da cama. — Você levanta a cama, eu o agarro.
— Certo. —Andrea agarrou a beira da cama enorme e a ergueu
como se não pesasse nada. Um filhote de leão preto do tamanho de um
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pequeno Chow-chow disparou em direção a Andrea. Eu me joguei nele e
não consegui pegá-lo. Ele rosnou e trancou os dentes na canela de
Andrea.
— Ai!
— Não deixe a cama cair em cima do meu filho!
Agarrei Conlan pela nuca e o puxei de volta.
— Tire-o da minha perna! —Andrea uivou.
Deslizei meu braço sob o pescoço peludo de Conlan e apertei,
afundando aço na minha voz. — Solte-a. Largue agora.
Andrea rosnou, o barulho que saiu de sua garganta era pura hiena.
Apertei com mais força, aplicando um aperto de estrangulamento.
Conlan soltou a mordida e ofegou. Eu rolei para fora do caminho,
movendo meu filho para baixo, meu corpo ficando em cima dele, e
Andrea deixou a cama cair. O chão estremeceu.
Uma mancha vermelha se espalhou por seu jeans.
— Seu filho me mordeu!
— Desculpa.
Conlan tentava sair debaixo de mim. Eu o segurei firme.
— Ele me mordeu! —Ela apontou para a perna.
— Ele não pôde evitar. Você cheira a hiena e é assustadora.
— Eu não sou assustadora. Sou muito legal! Já tomei conta dele
mais de vinte vezes. Dei sorvete para ele! Pirralho ingrato!
O pirralho desistiu de tentar me tirar de cima dele e deitou no chão.
Eu levantei. Conlan se sacudiu. Ele parecia um filhote de leão. Seu pêlo
era preto e aveludado, com leves listras esfumaçadas de dourado e suas
orelhas redondas e macias. Meu filho piscou para mim e balançou as
orelhas. Eu ri.
— Ele é adorável, —disse Andrea. — Ainda estou chateada, mas ele
é muito fofo. A baby B costumava ser muito fofa quando tinha a idade
dele.
— Raur raur, —disse Conlan.
Estendi a mão e toquei seu focinho com os meus dedos. — Não.
Ele recuou como um gatinho repreendido e piscou.
— Você mordeu tia Andrea. Nós não mordemos nossos amigos.
Conlan notou o prato e caminhou até ele. Uma língua rosa deslizou
de sua boca. Ele lambeu o mel.
— Agora eu vi tudo, —disse Andrea. Ela levantou a calça jeans e me
mostrou uma ferida vermelha na canela. — Senti os dentes dele rasparem
os ossos. Ele tem uma mordida infernal. Isso aí é um leão.
— Desculpa.
— Ah, você terá que fazer melhor do que pedir desculpas. Seu filho
agrediu a alfa do Clã Bouda. —Ela torceu o nariz para mim.
— Já está cicatrizando, não seja uma bebezona.
— Vai cicatrizar melhor se você me comprar um jantar e algumas
margaritas.
Conlan lambeu o prato, rastejou no meu colo e se jogou sobre mim.
Ele tinha que pesar pelo menos uns quinze quilos. Provavelmente mais
perto dos vinte.
— O lanche pode ter que esperar. Vou lhe dizer uma coisa, me dê
um curso intensivo sobre crianças metamorfas e eu vou lhe dar a nossa
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Sangria caseira.
A sangria começou como um experimento. Antes da formação da
floresta Dois quilômetros, alguém na área deve ter cultivado uvas no seu
quintal, porque encontramos uma clareira com várias videiras velhas.
Christopher mencionou que ele cresceu em um vinhedo na Califórnia,
pedi que ele me ensinasse a fazer vinho, uma coisa levou a outra e agora
eu fazia sangria da floresta. Eu também havia plantado algumas videiras
no quintal, mas elas eram jovens demais para produzir frutas.
Os olhos de Andrea se iluminaram. — Você fez um novo lote?
— Eu fiz.
— Combinado. Geralmente as crianças mudam no nascimento e
depois cerca de uma ou duas vezes por semana, dessa forma acaba se
tonando natural e se acostumando com isso. Mas seu filho nunca mudou
antes, então sua experiência pode ser diferente.
Minhas experiências sempre eram diferentes. — Quanto tempo isso dura?
— Ele vai voltar a sua forma humana quando houver algo que
precise das mãos dele novamente ou quando estiver cansado. Mesmas
regras que um metamorfo adulto: uma mudança, talvez duas a cada vinte e
quatro horas, e depois disso precisará tirar um cochilo. Os bebês ainda não
conhecem seus limites, portanto, esteja preparada para ele acabar
mudando duas vezes seguidas e cair de cara no chão. É meio engraçado.
Eles simplesmente pulam e caem.
A última vez que ele caiu e nasceu um galo na testa eu o levei a
Doolittle como um morcego fugindo do inferno.
Andrea falava isso sentada tranquilamente ao meu lado. — Anime-
se. Os bebês são fáceis. São os adolescentes que causam problemas. Antes
que perceba, ele será adolescente e Curran começará a ensiná-lo a mudar
para a forma de guerreiro.
— Pare.
— O pior já passou. Ele é bem formado, é proporcional, sem ossos
estranhos saindo de lugar nenhum ...
— Estou falando sério, pare.
— Tudo bem, tudo bem. Deixa-me ver, o que mais? Ah, ele terá um
pouco de dificuldade para descobrir o que consegue ou não fazer em cada
forma. Algumas coisas são instintivas. Por exemplo, quando ele estiver
perseguindo algo, ele pode mudar da forma humana para animal sem
pensar. Outras vezes, pode tentar morder as coisas enquanto estão em
forma humana ou mudam para a forma animal e querem tomar suco no
seu copo de canudinho. A baby B carregou a colher dela na boca quando
se transformou em uma hiena. Foi a coisa mais engraçada. Cortei carne
para ela e ela ainda queria que eu colocasse a carne na colher e a
alimentasse. Não vejo a hora de contar a Raphael sobre Conlan.
— Eu gostaria que você não contasse.
— O que? Por quê?
— Porque seu marido fofoca como uma senhora da igreja.
— Por favor. Não me insulte. As senhoras da igreja se alinham ao
redor do quarteirão para receber lições de fofocas de Raphael. —Andrea
sorriu. — Não, sério, por quê?
— Porque se contar a Raphael, todo o Bando vai se despencar de lá
até aqui para ver Conlan, e eu não posso lidar com isso agora. Eu tenho
umas merdas sérias para resolver.
— É Roland?
— Não. —Contei a ela sobre Serenbe.
— Bem, foda-se, —disse ela.
— Sim.
Ficamos em silêncio por um tempo. Conlan estava esparramado no
meu colo, fazendo um barulho baixo. Era quase como ronronar. Parecia
estranhamente reconfortante.
— Se você tivesse que atirar nos olhos de um cachorro com uma
flecha de um arco tradicional, qual seria a distância mais longa possível?
—Perguntei.
— Com um arco tradicional, eu poderia garantir um tiro a quarenta
metros. Se for um arqueiro altamente treinado, talvez trinta, mas um olho
é um alvo pequeno e os cães gostam de se mover. —Andrea suspirou. —
A vida poderia ser pacífica, não é?
— Ah, não posso reclamar. Os últimos treze meses foram bastante
tranquilos.
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Ela bufou. — E o Cherufe que queimou até o chão a prefeitura há
dois meses?
— Só queimou a prefeitura.
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— E antes disso houve aquela coisa, Raijū . E antes dele ...
Eu levantei minha mão. — Certo, sim. Mas você entendeu o que eu
quiz dizer. Todos estes são coisas normais. Essa coisa em Serenbe não é
normal. Isso é magia em grande escala.
Andrea suspirou.
Como se fosse uma sugestão, uma onda de magia rolou sobre nós.
Conlan levantou a cabeça, sacudiu-se e deitou-se no meu colo.
— Preciso que Curran volte, —eu disse a ela. — Ele já foi um leão
bebê antes. Isso realmente ajudaria.
— O que há com seu leão, afinal? Essa é o que, a terceira dele?
— Quarta.
Curran me explicou certa vez em detalhes excruciantes como odiava
caçar. Segundo ele, ele era um leão, pesava quase trezentos quilos em sua
forma de animal, e a última coisa que queria era correr pela floresta atrás
de veados. Mas desde o nascimento de Conlan, ele e Erra traçaram um
plano para estender o alcance da Associação dos Mercenários além de
Atlanta, dessa forma poderíamos obter uma vantagem estratégica quando
meu pai finalmente nos atacasse. Geralmente, esse alcance estratégico
envolvia caçar algum tipo de monstro nos arredores de Atlanta. Curran
levava três a quatro dias para capturar os monstros e minha tia insistia em
ir com ele.
— E sabe qual é a parte mais intrigante? Ele leva Erra com ele.
— Talvez eles estejam ficando amigos.
— Minha tia, que constantemente me lembra que me casei com um
animal selvagem, e meu marido, que pensa que ela é uma cadela
assassina insana, ficando amigos?
— Coisas estranhas aconteceram.
Andrea estendeu a mão e acariciou a cabeça de Conlan. Ele cheirou
a mão dela.
— Você se lembra de tia Andrea, —murmurei.
— Claro que sim. Ele estava apenas um pouco assustado. Mudar é
confuso. Então, o que desencadeou a mudança?
Eu olhei para ela.
— Os metamorfos bebês se transformam porque ficam assustados. É
por isso que muitos deles mudam ao nascer. Deixar o útero é assustador.
Ele não se transformou nem quando Doolittle o aterrorizou aquela vez.
Deve ter tido algum tipo de ameaça grave. O que você estava fazendo
quando ele mudou?
A Caixa. Tinha que ser aquela coisa.
— Eu estava atendendo a porta. Alguém deixou um presente para
mim na minha porta.
— Foi um presente legal?
— Não. —Levantei-me. — Eu vou te mostrar, mas acho melhor
deixá-lo aqui.
Trancamos Conlan no quarto e descemos as escadas. Peguei duas
garrafas de sangria e servi um copo para Andrea. Ela provou o vinho.
— Humm, eu não consigo entender por que você não bebe um pouco
disso.
Porque em algum momento da minha vida eu estive à beira do alcoolismo.
— Por que você bebe? Nem sequer fica um pouco tonta.
— Porque é delicioso. —Andrea puxou uma das garrafas para ela e
voltou a encher o copo.
Deixei-a na cozinha e fui pegar a caixa. Ainda estava onde eu a tinha
deixado. Peguei e voltei para casa. No momento em que entrei pela porta
da cozinha, Andrea largou a bebida. O sorriso feliz desapareceu em seu
rosto.
Algo bateu no andar de cima, seguido por um rosnado alto.
— O que é isso?
Andrea arreganhou os dentes. — Eu não sei. Isso tem um cheiro
muito ruim.
— Quão ruim?
— Eu não consigo explicar. Ruim como algo realmente grande que
poderia nos comer. Como algo que se deve evitar. Sou uma Ex Cavaleiro
da Ordem, mas agora isso me faz realmente querer voltar para o meu
veículo, ir embora e fugir desse cheiro. Não é de admirar que fez o seu
garotinho mudar.
Andrea abriu a caixa. A expressão de surpresa apareceu em seu
rosto. Ela pegou a rosa e acenou para mim.
— Eu sei, —eu disse. — Pode ou não ser romântico.
— É vermelho.
— Sim, e algumas culturas acreditam que rosas vermelhas brotam de
sangue derramado.
— Hum-rum, continue dizendo isso a si mesma.
— Hein, essa é a minha fala.
Andrea virou a cabeça em direção à porta. — Um carro está
chegando. Parece um dos seus jipes.
Curran. Finalmente.
Algo bateu no andar de cima. Parecia madeira sendo quebrada. Isso
não era bom. Andei em direção as escadas.
— Conlan, seu pai está em casa.
Uma criatura empoleirada no corrimão da escada olhava para mim.
Era peludo, estava em pé, com braços grandes e negras garras curvas.
Olhos dourados me encaravam com um rosto meio humano, meio leão.
— Puta merda. —Tropecei de volta.
— O que foi? —Andrea me alcançou e viu a coisa. Os olhos dela
brilharam vermelhos. Uma risada estridente de hiena saiu de sua boca.
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O pequeno monstro fofo com dentes de Rottweiler se agachou,
preparando o corpo para dar um salto. Isso não deveria estar
acontecendo. As crianças metamorfas não conseguem se manter em
forma de guerreiro. Isso não era normal.
Calma e serena. Calma e serena. Use a voz da mãe do ano.
— Conlan. —Caminhei em direção a ele um passo de cada vez. —
Venha aqui. Venha para a mamãe.
Andrea voltou silenciosamente para a cozinha, pronta para
interromper qualquer tentativa de fuga pela porta de trás.
Subi um degrau. Mais um degrau. Outro degrau e eu poderia agarrá-
lo.
A porta da frente se abriu e Julie entrou.
— Feche a porta! —Eu gritei.
Conlan pulou do corrimão, saltou sobre Julie, derrubando-a no chão
e fugiu pela porta.
Droga!
Corri atrás dele, saltando sobre Julie e quase colidi com Curran.
Grendel pulava ao nosso redor, latindo feito louco, porque o universo
achou que precisava enviar um gigantesco poodle histérico exatamente
neste segundo.
— Que diabos é aquilo? —Meu marido rosnou.
— Aquilo é o seu filho!
— O que?
— Para onde ele foi?
— Para a floresta. —Julie se levantou.
Minha tia se manifestou ao lado do jipe, uma aparição levemente
translúcida, vestida em armadura de sangue. — Eu te disse, —ela gritou.
— Eu te disse para não se casar com um metamorfo. Você fez
mesmo assim. Agora isso aconteceu.
— Como assim, é o nosso filho? —Perguntou Curran.
— O que está acontecendo com essa família? —Julie sacudiu o jeans.
Derek correu para a garagem. — Eu ouvi gritos.
— Calem a boca todo mundo! —Eu rosnei.
Um silêncio repentino desceu na calçada.
— Há um garotinho de treze meses correndo pela floresta em meia-
forma. Eu vou pegá-lo. Ajudem ou saiam do meu caminho.
Eu me virei e corri para a floresta. Iria encontrar o meu bebê.

Capítulo 4
— OS METAMORFOS TÊM PROBLEMAS, —Erra disse.
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Usei pinças para pegar a carne da grelha e depositá-la em uma
travessa. Durante sua expedição de caça, Curran havia capturado e
abatido um cervo, e eu o encontrei no refrigerador na parte de trás do seu
jipe, o que foi uma boa coisa porque eu estava morrendo de fome e tinha
certeza de que ele também estava. Levamos aproximadamente trinta
segundos para alcançar e apreender nosso filho. Depois de ter certeza de
que todos estavam bem, os deixei na floresta e voltei para casa. Curran e
Conlan estavam fora há cerca de uma hora, e eu tinha a sensação de que
voltariam em breve procurando por comida.
— O Selvagem é imprevisível, —Erra disse.
— Tive alguns dias difíceis, tia, —eu disse a ela. — Normalmente,
adoraria ouvir uma palestra empolgante sobre minha incapacidade em
escolher um marido adequado. É a minha favorita absoluta. Mas se você
não parar, colocarei sua adaga nos estábulos.
Erra me encarou com seu olhar. — Às vezes perco as
esperanças com essa sua falta de respeito.
— Eu tive a quem puxar. Certa vez, uma pessoa que eu conheço deu
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um soco no Sacerdote Chefe de Nínive , quando ele disse para ela se curvar.
Talvez você já tenha ouvido falar dela?
Ela bufou. — Ele era um idiota insuportável.
— É preciso ser um para reconhecer outro.
— Seu marido te ama, —disse ela. — Concordo que você
poderia ter feito pior.
Parei o que estava fazendo e olhei para ela exageradamente.
Minha tia revirou os olhos. — Sim, você poderia ter feito pior.
— Você ainda fará meu coração parar de bater. Como ele aguentará
elogios como esse?
Andrea riu. Nós duas olhamos para ela.
— Eu amo esse show de Kate e Erra, —disse ela. — Vocês deveriam
levá-lo para os palcos.
Peguei meu prato de carne de veado malpassado e o carreguei para
dentro. Andrea segurou a porta aberta para mim.
— Como eu estava dizendo, —Erra continuou, — nunca
houve uma criança Selvagem dentro de nossa linhagem. Eu
esperava que o Selvagem não se manifestasse, mas se
manifestou, e agora coexiste com nossos poderes dentro de
seu corpo. O poder da nossa magia o alimenta. Temo pelo
meu sobrinho, ele pode ser capaz de coisas terríveis.
Minha tia, a desmancha-prazeres. — Por que ele seria diferente do resto
de nós? Somos todos capazes de coisas terríveis.
Minha tia abriu a boca e fechou. — Tem razão.
Na cozinha, Julie tirou três pães do forno. Ela havia assumido o
hábito de fazê-los há alguns anos e sempre tínhamos pães frescos à mão.
O pão cheirava ao céu. Andrea esgueirou-se em direção a eles.
— Você não é invisível, —eu disse a ela.
Ela parou e me deu um olhar ferido.
Eu me virei para minha tia. — Já ouviu falar de alguém ou alguma
coisa matando um grande número de pessoas e depois extraindo seus
ossos?
— Quantas pessoas? —Perguntou Julie.
— Cerca de duzentas.
Julie piscou. — São muitas pessoas.
Erra refletiu sobre isso. — Seu avô fez isso uma vez.
— O que?
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— As tribos de Hatti tinham um chefe particularmente
persistente chamado Astu-Amur. Grande em coragem,
pequeno em cérebro. Ele nos invadiu sete vezes durante um
período de quarenta anos. Todas as vezes os combatemos,
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mas seu avô, Shalmaneser , finalmente perdeu a paciência,
então ele ordenou que as cabeças dos mortos fossem
recolhidas, limpas e empilhadas em um monte alto para que,
na próxima vez em que invadissem, o exército deles visse o que
aconteceu aos seus antecessores.
— Por que mandou limpar os crânios? —Derek perguntou. — As
cabeças decepadas não seriam mais eficazes?
— Porque os animais que se alimentam de carniça têm
menor interesse em morder crânios humanos limpos do que se
tivesse carnes ainda presas sobre eles. Além disso, ter uma pilha
de cabeças humanas em decomposição não seria higiênico,
—Erra disse.
Claro. Ao fazer monumentos de crânios humanos, é preciso sempre ter em
mente a higiene.
— Como ele limpou os crânios?
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— Besouros dermestídeos , é claro, —Erra disse. — Rápidos,
eficientes, e a carne é devolvida à natureza.
Risquei meu querido pai da lista.
Uma porta se abriu. Meu filho entrou tropeçando, ainda em meia-
forma. Alívio tomou conta de mim. Eu não tinha percebido que estava
tão preocupada.
Grendel saiu do seu travesseiro, abanando o rabo. Conlan caminhou
até o poodle mutante, o agarrou e o arrastou de volta ao travesseiro. O
grande cachorro preto deitou ao lado dele. Conlan abraçou Grendel e
fechou os olhos.
Curran entrou atrás, em forma humana, mas sem sapatos. Ele deve
ter se transformado em leão, depois mudou novamente e colocou as
roupas.
— Vocês se divertiram? —Perguntei.
— Sim, nós nos divertimos. —Curran sorriu. — Nosso filho é um
metamorfo.
Ele estava muito feliz. Eu quase ri.
— Seu filho é uma aberração da natureza, —Andrea disse,
mastigando uma fatia de pão. — Não é natural que uma criança consiga
manter uma meia-forma.
— Ele é um prodígio, —disse Curran.
O prodígio emitiu um assobio. Conlan estava roncando e enquanto
isso Grendel ficou perfeitamente imóvel, ofegante, seus olhos brilhavam.
Parecendo que ser abraçado por uma criança-monstro adormecida era a
sua maior aspiração na vida e agora esse sonho havia sido realizado.
— Aberração da natureza, —Andrea disse novamente.
Curran olhou para ela.
— Tudo bem, tudo bem. —Ela acenou com as mãos. — Estou indo
embora. —Andrea pegou um pedaço de pão, pegou um pedaço do bife de
veado e agarrou uma garrafa de sangria do balcão. — Eu sei quando não
estou agradando. Kate, você ainda me deve um jantar. Estou indo
embora.
Ela desapareceu no corredor. Nossa porta da frente se fechou.
Curran franziu o cenho. — Ela acabou de roubar nossa comida?
— Trate bem o Clã Bouda, —eu disse a ele. — Depois que o nosso
filho mordeu a alfa deles hoje, não sei quanto terreno podemos ganhar lá.
— Ele mordeu Andrea?
— Hum-rum.
— Tornozelo?
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— Tíbia , na verdade. Ela disse que os dentes dele arranharam o
osso.
— Boa mordida, —disse Derek.
Curran sorriu ainda mais. Foi bom que Jim não estava aqui. Eles
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provavelmente fariam aquela coisa de ‘bate-aqui’ .
Olhei para Conlan. Ele estava dormindo sem se importar com o
mundo. Minha vida mudou irreparavelmente hoje. Nada seria o mesmo.
Eu tinha que descobrir o que fazer quando Conlan acordasse.
Curran vagou casualmente e pegou um pedaço do pão de Julie. — O
que o desencadeou?
Limpei minhas mãos em uma toalha de cozinha. — Você quer
comer primeiro ou ver a caixa?
— Qual caixa? —Derek perguntou.
Curran olhou para o meu rosto. Sua expressão endureceu. — A caixa
primeiro.

*******
CURRAN INCLINOU-SE SOBRE a caixa em cima da mesa da varanda.
Suas narinas dilataram. Dourado rolou sobre suas íris cinzas.
O lábio superior de Derek se levantou, mostrando as pontas dos seus
caninos. Ele parecia um lobo agora. Um lobo afiado e feroz.
— Como isso cheira? —Perguntei.
— Como um predador, —disse Derek. — Nunca cheirei algo assim
antes.
— Você tem certeza? —Perguntei.
— Cheira a pânico e me faz querer fugir, —disse Derek. — Eu
lembraria disso.
— Cheira como um desafio, —disse Curran.
Julie franziu a testa para a caixa.
Curran abriu e pegou a rosa. Sua voz assumiu um tom calmo e
medido, como se ele estivesse falando sobre o clima. — Interessante.
Minha tia se concentrou na caixa. — Eu já vi isso antes.
Ah, que bom. — O que é isso?
— É uma maneira antiga de declarar guerra.
Ótimo.
— Era uma simbologia, usada para ser entendido em
qualquer idioma. Nenhuma tradução era necessária. Submeta-
se às nossas exigências ou ... —Seus dedos translúcidos roçaram a
faca. — Vamos cortar sua garganta e transformar seu mundo
em cinzas.
Cada vez melhor. — Seria meu pai ...?
Ela balançou a cabeça. — Esse era o jeito do uru. Os forasteiros.
Bárbaros. Seu pai é um homem civilizado. Se ele fosse declarar
guerra, ligaria primeiro.
Bem, pelo menos eu poderia esperar um telefonema antes de Roland
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desencadear o Armageddon e matar todos que eu amava.
Julie foi para dentro de casa.
— E a rosa? —Perguntou Curran.
— Eu não sei, —Erra disse. — Às vezes, eles colocavam uma
sacola na caixa para simbolizar o tributo que deveria ser pago.
— Pague-nos e iremos embora? —Perguntei.
— Essencialmente. Eu nunca vi uma flor assim. A rosa é a flor
das rainhas. Quando sua avó construiu os Jardins Suspensos, ela
os encheu de rosas.
E esse era precisamente o problema. Sabíamos o que uma rosa
significava para nós. Não tínhamos ideia do que isso significava para
quem enviou a caixa.
Julie voltou com um pedaço de papel e um lápis.
— Como saberemos quem o enviou? —Perguntou Derek. — Por que
declarar guerra e não se identificar?
Erra virou-se para mim. — Você viu o mensageiro?
— Não.
— Se esperarmos o suficiente, descobriremos, —disse Curran, seu
olhar sombrio.
— Eles assinaram, —disse Julie.
Todo mundo olhou para ela.
— A caixa brilha em azul, —disse ela, desenhando. — Existe um
símbolo azul mais claro na tampa. —Ela levantou o papel. Dois círculos
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unidos por duas linhas horizontais. Parecia aqueles antigos halteres .
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— O símbolo alquímico do arsênico ? —Eu fiz uma careta. Isso não
fazia sentido.
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— Também pode ser o símbolo astrológico da oposição , —Julie
murmurou.
Olhei para minha tia.
Erra piscou. — Izur?
— O que é Izur? —Julie perguntou.
Erra desceu para o quintal, onde as primeiras estrelas pontilhavam o
63
céu escuro e apontavam na direção da Ursa Maior . — Izur, a estrela
gêmea.
Os olhos de Julie se iluminaram.
— Nem pense nisso, —eu disse a ela.
Ela estendeu as mãos. — Aliens.
— Não.
— Ah, vamos lá, por que não podem ser alienígenas? Ooo, talvez
toda a sua família seja de origem alienígena.
Eu me virei e voltei para casa.
— Onde você está indo? —Derek gritou atrás de mim.
— Eu preciso de uma bebida.
Entrei na cozinha. Conlan ainda estava no travesseiro. Ainda em
meia-forma. O corpo mutilado de Julie apareceu das minhas memórias,
meio humana, meio animal, presa em uma cama de hospital, sedada a
ponto de ficar em coma, porque no momento em que Doolittle a tirasse
dos sedativos, ela explodiria em um Loup.
A ansiedade me apunhalou, fria e afiada, na boca do meu estômago.
Abri a garrafa de sangria em um único golpe, derramei em um copo
e bebi.
Curran entrou pela porta. Ele se moveu em completo silêncio. Se
minha visão periférica fosse ruim, eu nunca saberia que ele estava lá.
Curran passou os braços em volta de mim e me puxou para ele. Inclinei-
me nele, sentindo o calor do seu corpo. Eu senti muita falta disso. Senti
falta dele.
Ele cheirou os meus cabelos. — O que houve? —Curran perguntou,
sua voz calma.
— E se Conlan não puder mudar de volta?
— Ele vai mudar. Foi um dia emocionante para ele. Seus hormônios
estão altos. Ele mudará durante o sono. —Curran beijou meu cabelo.
— E se ele não mudar? Meu sangue é realmente potente, e a
concentração de Lyc-V em sua corrente sanguínea é altíssima. E se ele for
a Loup?
Curran virou-me para o nosso filho, abraçando-me a ele. Sua voz era
calma e suave. — Não vai. Olhe para ele. Ele é proporcional. Olhe as
mandíbulas dele. Elas se encaixam, são bem formadas. A proporção do
comprimento das pernas e braços é perfeita. Ele mudou instintivamente.
Não lutou, não sofreu, apenas fez isso. Os Loups possuem mal cheiro.
Ele cheira limpo.
Curran esfregou meus ombros.
— Ele mordeu Andrea. Conlan a conhece desde que nasceu.
— Ele estava assustado. Isso é bom.
Compreendi. — Loups não se assustam.
— Não, não se assustam. Eles atacam cegamente. Os adultos podem
ser astutos, mas quando as crianças se tornam Loups, ficam selvagens. —
Ele me beijou novamente. — Você deveria tê-lo visto na floresta. Ele se
jogou no riacho. Escalou todos os lugares, cheirou tudo, era como se
alguém tivesse o tirado de uma prisão. Ele é nosso filho. Está tudo sob
controle.
Ficamos juntos, abraçados, vendo nosso filho dormir.
— Andrea me chamou de mãe supercontroladora.
— Andrea precisa calar a boca às vezes.
— Não tenho ninguém como exemplo, —eu disse a ele. — Eu não
conheci minha mãe e Voron não era exatamente um pai modelo.
— A baby B é um bebê lindo, —disse Curran. — Mas ela é uma
bouda. Cheira a uma metamorfa hiena, age como uma metamorfa hiena,
e outras metamorfas hienas sabem exatamente o que ela é.
— Onde você quer chegar?
— Não há surpresas lá. Ele, —Curran apontou para Conlan por cima
do ombro, — está cheio de surpresas. Será divertido.
— Eu não quero que ele tenha uma infância como a minha. —De
onde isso veio?
Uma sugestão de um rosnado deslizou na voz de Curran. — Ele tem
eu e você. Conlan não vai acabar como nós, e não vamos acabar como
nossos pais. A história não vai se repetir. Eu não vou deixar.
A história tinha uma maneira de rolar sobre os melhores planos,
como um trator em fuga.
— Ele sabe que eu sou a mãe dele quando está em forma de animal?
— Sim. Eu sabia que meus pais eram meus pais.
— Mas ele sabe?
— Ele reconheceu que eu sou o pai dele.
— Como você sabe?
— Porque eu disse para ele parar e ele parou.
— Talvez ele apenas tenha pensado que você era um leão maior.
— Confie em mim, ele nos conhece. Nosso cheiro, o som de nossas
vozes. Ele sabe que somos seus pais.
Conlan sabia quem eu era, sabia quem era Curran. Certo. Eu poderia
passar por isso. Já fiz coisas mais difíceis antes.
O telefone tocou. Eu peguei.
— Sim?
— Boa noite, —disse uma voz familiar. Robert era o chefe de
segurança de Jim. Hoje os presentes não paravam de chegar. Coloquei no
viva-voz.
— O que posso fazer por você?
— Você está envolvida com a situação de Serenbe?
As notícias viajavam rápido. — Sim.
— Alguma chance de você me dar algumas informações?
— Por quê? —Perguntou Curran.
— Os pais de Karen Iversen possuíam uma casa naquela vila.
Eu não tinha ideia de quem era Karen Iversen.
— Clã Chacal, —disse Curran em meu benefício. Os pais são
humanos. Ela é a primeira geração.
Um metamorfo deve ter atacado Karen Iversen, e ela sobreviveu e se
tornou uma metamorfa. Acontecia com bastante frequência.
— O GBI se recusa a nos deixar entrar na vila, —disse Robert.
Isso fazia sentido. Karen era uma metamorfa, mas seus pais eram
humanos, o que significava que a Bando não tinha jurisdição. A GBI
provavelmente não quer espalhar pânico antes de terem pelo menos uma
ideia do que estão lidando.
— Eles não nos dizem se os moradores estão vivos ou mortos.
— Estão mortos, —eu disse a ele.
— Eu imaginei isso. A GBI está nos impedindo de ver os corpos. Preciso
saber com o que estamos lidando antes de registrar os documentos judiciais
necessários para forçá-los a liberar os restos mortais.
Inclinei-me mais perto de Curran, deixando o calor do seu corpo me
ancorar. — Robert, eles não podem lhe dar os restos mortais dos pais
de Karen.
— Se for uma questão de quarentena, somos imunes à maioria das
doenças.
— Eles não podem dar os restos mortais porque alguém forçou
duzentas pessoas a sair de suas casas e depois as cozinhou.
O aperto de Curran em mim aumentou.
— Me desculpe, mas parece que ouvir você dizer ‘cozinhou’?
Eu expliquei o caldo gelatinoso.
Robert não disse nada. A cozinha estava silenciosa.
— Podemos nos encontrar amanhã? —Ele perguntou finalmente.
— Sim. Cutting Edge às nove?
— Estarei lá, —disse Robert.
Desliguei.
— Desculpe, —disse Curran.
— Pelo que?
— Por estar fora esses dias.
— Você pegou o monstro leopardo mágico?
— Peguei, —disse ele.
— Então está tudo bem.
— Eu vou compensar você. Do que precisa? —Ele perguntou.
Olhei para Conlan. — Acha que ele dormirá pelas próximas duas
horas?
— No mínimo.
— Nesse caso. —Coloquei meus braços em volta dele e o beijei. Não
foi um beijo carinhoso. Eu não o via há três dias. O mundo ficou sombrio
enquanto ele estava fora, e eu queria que ele soubesse o quanto senti sua
falta. Seus lábios queimaram os meus, o gosto familiar dele lavando sobre
mim, duro e masculino. Todos os nervos do meu corpo estavam em
atenção e eu tremi. Então meus pés estavam fora do chão e estávamos
subindo as escadas a uma velocidade alarmante.
— Não quer esperar até depois do jantar? —Eu murmurei em seu
ouvido e lambi o canto de sua mandíbula, saboreando a borda áspera de
sua barba por fazer.
— Foda-se o jantar.
Eu ri e ele fechou a porta do quarto atrás de nós.

Capítulo 5
64
— PEADO! PEADO!
Curran desviou o olhar da estrada e olhou no espelho retrovisor por
um segundo. — Você está bem aí, amigo?
— Peado!
— Não, —eu disse a Conlan.
Minha manhã começou com Curran me beijando, o que foi muito
bem-vindo. A essa altura já havíamos descoberto que nosso filho mudou
para a sua forma humana no meio da noite e subiu na nossa cama em
toda a sua glória nua, deu um tapa na barriga e gritou: ‘Peado!’ Então ele
puxou suas partes íntimas, caso não tenhamos entendido seu argumento.
Depois que Curran parou de rir, entreguei nosso filho a ele e escapei para
o banheiro.
Conlan estava gritando ‘Peado’ desde que eu o coloquei na sua
cadeirinha no carro, vinte minutos atrás. Ele decidiu claramente que as
roupas não eram mais necessárias. Pelo menos estava em sua forma
humana.
Normalmente, tínhamos uma fila de pessoas dispostas a cuidar dele
enquanto estivéssemos fora, mas Conlan podia decidir ficar peludo a
qualquer momento, e se acontecesse, nós dois queríamos estar presentes,
então ele estava vindo conosco para se encontrar com Robert.
Do lado de fora do jipe, Atlanta passava rastejando. A magia
encharcava a cidade. Eu sempre a senti. Era como uma espécie de mar
invisível, raso em alguns lugares, mais profundo em outros, mas desde
que reivindiquei meu pequeno pedaço do planeta, as correntes invisíveis
desse mar ganharam definição. Se eu me concentrasse, podia senti-las
fluindo e movendo-se. Isso me assustava, mesmo depois de todo esse
tempo, então tentava não pensar muito nisso.
— Peado! —Conlan gritou para ser ouvido sobre o som do motor.
— Ele precisa de um osso de pata de veado para roer, —disse
Curran. — Eles eram os meus favoritos.
— Pode ser um osso cozido?
— Ele é um metamorfo, —disse Curran. — Você sabe que não
precisamos nos preocupar com bactérias e doenças.
— E os parasitas intestinais?
— Comi carne crua por toda a minha vida e nunca peguei um
parasita.
— Eu me sentiria melhor se estivesse cozido.
Curran me estudou por um momento, estendeu a mão e apertou
minha mão. — Ainda está tendo dificuldades com a coisa do bebê
metamorfo?
— Não. Eu o amo seja o que ele for. Mas passei trezes meses me
preocupando que ele parasse de respirar à noite, ou adoecesse ou se
machucasse, e fêmures crus de veado não combinam com as minhas
preocupações.
— Os ossos cozidos fragmentam em lascas afiadas. Pode machucá-
lo.
— É engraçado como você usa a lógica em uma discussão e acha que
isso vai me convencer.
— Os dentes dele estão nascendo. Precisará de algo para roer.
— De um lado, um Conlan limpo comendo cereal. De outro, Conlan
coberto de sangue roendo uma pata de veado crua.
— Qual deles se parece mais com o seu filho? —Perguntou Curran.
Eu dei a ele o olhar da morte.
Ele riu.
— Tudo bem, —eu disse a ele. — Mas se Conlan pegar vermes, você
resolve.
Curran entrou na rua Jeremiah. — Eu o deixei comer um rato na
floresta ontem.
— Claro que você deixou. Por que não deixaria seu bebê comer um
roedor imundo na floresta?
— Ele mesmo caçou o rato. Eu não iria tirar a caça dele.
Por que eu?
Nós estacionamos. Curran desligou o motor e virou-se para mim.
Seus olhos ficaram escuros. — Não me abandone, Kate.
— Por que está dizendo isso?
— Estou falando sério, —disse ele. — Sempre estarei aqui para te
apoiar.
E eu tinha certeza disso. Por isso, quando meu pai finalmente
aparecesse trazendo o exército dele, eu faria o que fosse necessário para
garantir que ele e Conlan sobrevivessem. Não importa o custo.
— Eu te amo, —eu disse a ele, e saí do jipe.

*******
O ALPHA DO CLÃ RATO entrou pela porta da Cutting Edge como se
suas articulações fossem líquidas. De estatura média, Robert Lonesco
tinha uma estrutura esbelta. Seus cabelos eram negros como carvão, seus
olhos castanhos e aveludados, e sua beleza era do tipo que virava as
cabeças sempre que entrava em uma sala. Ele também era casado e feliz
com o marido, Thomas, e não tinha planos de mudar isso tão cedo.
Conlan, que estava correndo em volta das mesas em círculo, avistou
Robert e agachou-se.
Robert ergueu as sobrancelhas e deu um passo à frente.
A mudança de Conlan foi instantânea. Um segundo o garoto estava
normal—bem, parecia normal para uma criança humana—no próximo um
filhote de leão preto enorme apareceu.
A mandíbula de Robert se abriu. Ele realmente olhou duas vezes. Eu
não o culpo. Conlan em sua forma de filhote de leão era adorável. Pelo
menos ele não tinha mudado para sua forma de guerreiro novamente.
— Parabéns, —Robert finalmente conseguiu dizer.
— Obrigado, —disse Curran, seu rosto indiferente, como se nada
notável estivesse acontecendo.
Meu filho tirou os restos dos pedaços de sua roupa e mostrou a
Robert suas presas de leão.
— Raurraurrr!
— Ele está me desafiando? —Os olhos de Robert brilharam.
Coloquei minha mão no meu rosto.
— Raururua!
— Essa é a coisa mais adorável que eu já vi.
— Conlan, —disse Curran, colocando um grunhido em sua voz. —
Venha aqui.
— Raur.
Curran levantou-se e caminhou em direção a Conlan. Meu filho
tentou fugir para o lado, mas Curran foi mais rápido. Ele baixou a mão e
levantou Conlan pela nuca. — Não.
Conlan se acomodou nos braços de seu pai, olhando para Robert
como se ele fosse uma cobra. Estávamos atualmente em modo de espera,
reunindo forças durante esse tempo que meu pai decidiu nos dar antes de
nos atacar, mas se de alguma forma eu sobreviver e conseguir criar meu
filho, sei que será uma aventura.
— Eu quero um, —declarou Robert.
— O que está impedindo vocês? —Perguntou Curran.
— Nós andamos conversando sobre isso. —Robert sentou na cadeira
em frente à minha mesa. — Não temos certeza ainda se adotaremos ou
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usaremos barriga de aluguel . De qualquer forma, agora não parece ser o
momento certo.
— Nunca será o momento certo, —eu disse a ele.
— Como você está lidando com isso? —Robert me perguntou.
— Ontem à noite, meu marido deixou meu filho de treze meses
passar uma hora na floresta rolando na lama do riacho e comendo ratos
crus, e então meu filho desmaiou no travesseiro do cachorro abraçando
Grendel.
Robert estremeceu. — Posso imaginar como isso deve ter sido
desconcertante. Deixe-me adivinhar, você esterilizou o garoto depois que
ele tocou aquela criatura?
— Há-há-há. —Peguei o arquivo que montei ontem à noite e o
entreguei. — Tudo o que temos. O Riscos Biológicos fez uma rápida
leitura com um m-scanner portátil. As cópias das impressões estão aqui,
junto com cópias das minhas anotações e das anotações de Derek. Sinto
muito por Karen, Robert.
— Obrigado. —Robert aceitou o arquivo. Sua expressão ficou séria.
— Tenho algumas notícias para compartilhar.
— Não são boas notícias, não é? —Perguntei.
Robert tirou uma foto do bolso e a colocou na mesa. Um homem
alto em cima do telhado de um prédio em ruínas. Seu casaco, costurado a
partir de pedaços de couros e peles diferentes, brilhava enquanto ele
atravessava uma viga de aço que se projetava sobre um penhasco. A viga
tinha que ter menos de quinze centímetros de largura. O vento agitava os
cabelos pretos do homem.
— Razer, —eu disse. Eu reconheceria esse bastardo de pele verde em
qualquer lugar.
Quando meu pai sentiu que minha tia estava acordando, ele criou
um culto de assassinos especialmente para matá-la se ela se tornasse um
problema. Roland chamou seu culto de Ordem de Sahanu, derivado de
uma palavra antiga que significava ‘empunhar uma adaga’. Ele alimentou
suas mentes com todo tipo de besteira sobre a divindade do nosso sangue.
Os Sahanu viviam com um único propósito: matar sob o comando de meu
pai, para que pudessem receber a vida no céu após a morte. O maior
objetivo deles era matar um de nosso sangue, no caso, matar minha tia—
que eu a matei primeiro—e eu. E agora meu filho.
Meu pai tinha deslizado muito perto da linha invisível que as pessoas
da nossa família nunca cruzavam. Erra me lembrava disso com muita
frequência: aconteça o que acontecer, não se torne um deus. A fé tem
poder e, uma vez que seus seguidores acreditam em você, seus
pensamentos e ações não são mais seus. Sem mencionar que quanto mais
pessoas acreditam em você, mais perto da divindade você fica, e deuses
não podem existir em nossa realidade, não permanentemente. Eles
exigem magia para se manifestarem, e as ondas de tecnologia os
destruiriam. Roland contornou sabiamente essa questão, tornando o
sangue divino em vez da pessoa dele, mas se os Sahanu aumentarem em
número, ele terá um sério problema em suas mãos. Sua capacidade de se
mover livremente em nosso mundo será comprometida e ficará
dependente da crença e da magia.
Os Sahanu são fanáticos, imunes à razão, suborno e pressão. Eu
consegui libertar um deles das mãos de Roland quase dois anos atrás.
Adora ainda estava aprendendo a ser uma pessoa livre. Durante seu
último aniversário, ela desapareceu logo antes da festa surpresa. Nós
reviramos a cidade procurando-a. Como Adora é uma das assassinas
mais habilidosas que já lutei, tinha certeza de que algo ruim havia
acontecido com ela ou por causa dela. A garota saiu da floresta vinte e
66
quatro horas depois, coberta de lama. Segundo ela viu algumas lontras e
as seguiu pelo riacho o dia todo.
No seu tempo com os Sahanu, Adora tinha o quarto lugar no
ranking de habilidades. Razer estava em primeiro.
— Onde essa foto foi tirada? —Perguntou Curran.
67
— Sandy Springs .
Merda. Razer não teria entrado no meu território a menos que ele
tivesse ordens para estar aqui.
— Roland está se movendo? —Perguntou Curran.
Robert assentiu. — Estamos recebendo relatórios de aumento de
tráfego para Jester Park.
— Ele está movendo suas tropas, —disse Curran.
— Parece que sim, —concordou Robert.
— Meu pai está prestes a reiniciar a guerra. —Recostei-me na
cadeira. Agora? Ele estava fazendo isso agora, quando tínhamos toda essa
porcaria para lidar? O momento não poderia ser pior.
Conlan se levantou e pulou do colo de Curran, atravessando a mesa
em minha direção. Eu o peguei, mas o impacto de vinte quilos me
empurrou para trás. Ele lambeu minha bochecha.
Eu sabia que as nossas horas estavam contadas. As areias do tempo
haviam acabado de escorrer pela ampulheta das nossas vidas.
— Qual a posição do Bando sobre isso? —Perguntou Curran,
baixinho.
— Jim e eu discutimos, —disse Robert.
A primeira lealdade de Jim era para o seu povo. O Bando perdeu
muito na batalha com Roland. Sessenta e dois metamorfos não voltaram
vivos à Fortaleza. Dezenove deles tinham menos de vinte anos. Lembrei-
me dos corpos e das lágrimas, do barulho de lamentos que subiram
através da Fortaleza quando os corpos foram recuperados. Às vezes eu
ainda os ouvia em meus sonos.
Lutar com meu pai sem a ajuda do Bando seria muito difícil.
— Estou aqui para lhe dizer que o Bando não lutará contra Roland a
menos que seja atacado diretamente, —disse Robert.
Isso me atingiu como um soco no estômago. Eu já esperava por isso,
mas ainda assim doía.
— Dado que a área metropolitana de Atlanta é o lar de cerca de mil e
oitocentos metamorfos, de acordo com a nossa última contagem,
consideramos que qualquer ataque à cidade é um ataque direto ao Bando,
—continuou Robert.
Espere o que?
— É por isso que estou autorizado a oferecer uma oferta de ajuda
mútua. Caso sua família ou o Bando tomem conhecimento de uma
ameaça a cidade, como a invasão de Roland, concordaremos em ajudar
um ao outro.
Curran estava com o rosto inescrutável.
— O Senhor das Feras escreverá isso por escrito? —Eu perguntei.
— Se você preferir, —disse Robert. — Mas um acordo verbal deve
ser suficiente. A decisão foi aprovada como uma resolução pelo Conselho
do Bando, por isso está registrada.
— Na verdade, vocês perceberam que depois que Roland acabar
conosco, ele irá atrás do Bando e vocês estarão sozinhos e serão
esmagados por ele, —disse Curran.
— Precisamente, —disse Robert. — Precisamos de vocês e vocês
precisam de nós.
Eu olhei para Curran. — Você está confortável com essa oferta?
Ele refletiu sobre isso. Eu acariciei a cabeça peluda de Conlan. Ele
bocejou. Correr no escritório e mudar de forma realmente o deixou
cansado.
— Roland é apontado como a ameaça específica na resolução? —
Perguntou Curran.
— Sim, —confirmou Robert.
— Eu aceito.
Robert olhou para mim. — Kate?
— Nós aceitamos, —eu disse a ele.
— Excelente. —Ele pegou a pasta da mesa. — Obrigado por isso.
— De nada. E Robert? Você poderia não mencionar a ninguém que
Conlan mudou?
Robert estreitou os olhos. — Tentando evitar a debandada de
metamorfos animados até a sua casa?
— Sim.
— Meus lábios estão selados. —Ele saiu.
Ficamos em silêncio por alguns minutos. A audição dos metamorfos
era excelente e a de Robert estava acima da média.
— Isso foi melhor do que eu esperava, —murmurei finalmente.
— Eles precisam de nós. —Curran fez uma careta. — Gostaria que
tivéssemos mais tempo.
Meu coração quebrou. — Eu também.
Eu tinha coisas para fazer. Precisava visitar as Bruxas do Oráculo e
avisar que tínhamos que prosseguir com o plano de último recurso. Meu
marido e meu filho sobreviveriam a isso.
A porta da Cutting Edge se abriu e Teddy Jo entrou, franzindo a
testa.
— Bater na porta é uma coisa fácil, —eu disse a ele. — Você fecha o
punho e bate suavemente, dessa forma a pessoa que está do lado de
dentro saberá que tem alguém do lado de fora.
Teddy Jo balançou a cabeça. — Kate, há alguma coisa estranha
acontecendo lá fora.
‘Coisas Estranhas’ pareciam me perseguir. Levantei-me e saí, com
Conlan nos braços. A luz do sol banhava a rua e treze pessoas
aguardavam ali, a cerca de trinta metros da nossa porta. Vestidos em
túnicas brancas compridas que tocavam o chão e se moviam com a brisa,
e capuzes altos que escondiam seus rostos. Eles estavam em duas
colunas, seis pessoas de cada lado, os braços cruzados, as mãos enfiadas
nas mangas, com uma figura solitária em uma túnica azul no meio deles.
Magia roçou contra mim. Parecia antigo e sombrio.
As pessoas não se mexeram.
— É um presente do seu pai? —Perguntou Curran em voz baixa.
— Eu não sei. —Parecia ele, no entanto. Antigo, sombrio, mas
estranhamente belo. Talvez essa fosse a versão dele do telefonema sobre o
qual Erra estava falando.
Curran colocou a mão no meu braço. Seus olhos estavam
completamente dourados. Os pêlos de seu braço estavam arrepiados.
— O que foi?
— Sinto o cheiro que Derek descreveu ser parecido com um Loup,
mas não é um Loup.
A pessoa no centro levantou os braços. A túnica azul deslizou,
revelando um homem jovem de cabelos escuros, pouco mais velho que
um menino. Ele estava nu e tinha um corpo esculpido como uma estátua
grega, todos os músculos perfeitos. Olhos azuis escuros me olharam de
um rosto bonito. Um corte atravessava seu peito, esculpido
profundamente em sua carne e, nas profundezas do corte, faíscas
douradas brilharam, como se ele pegasse fogo por dentro.
— Filha de Nimrod, —o garoto gritou, sua voz acentuada. — Eu
aguardo a sua resposta.
Ele abaixou os braços para os lados e sorriu. O corte no peito dele
faiscou e se incendiou por dentro. O fogo lambeu sua carne, espalhando-
se pelo corte. O cheiro de carne humana queimada tomou conta de mim.
Mas que diabos ...
Ele continuou sorrindo. Sua pele fervia e ele continuava sorrindo.
Eu me virei para Teddy Jo e empurrei Conlan em seus braços.
Asas dispararam nas costas de Teddy Jo. O vento me abanou, e
então ele estava no telhado, fora do caminho, segurando meu filho.
A porta da Oficina Automotiva de Nicole se abriu e o Senhor Tucker
disparou, com o cartaz nas mãos.
— Não! —Curran e eu gritamos em uma só voz.
O Senhor Tucker tocou a pessoa encapuzada mais próxima. — Seu
amigo está pegando fogo!
Um braço peludo saiu da túnica. Garras travaram na garganta do
Senhor Tucker, e apertaram. Senhor Tucker caiu, seus olhos chocados,
um pedaço de sua carne ensanguentada cravada nas garras da criatura.
Aconteceu rápido, muito rápido, levou apenas uma fração de segundo.
Sarrat já estava na minha mão e eu já estava me movendo.
As doze pessoas tiraram suas vestes. Tecidos brancos voaram,
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revelando corpos coberto de curtos pêlos marrons. Eram bípedes , seus
corpos curvavam-se para a frente, os braços musculosos balançando, cada
dedo na ponta com uma garra. Suas cabeças redondas se inclinavam para
frente, suas bocas largas tinham presas amarelas. Grandes olhos redondos
me encaravam frios e vazios, como os olhos de uma coruja.
Uma imagem surgiu na minha mente, aguda e vívida, as memórias
da minha tia: Uma sala em um palácio antigo, envolta em véus, o corpo de
uma criança e uma abominação, que parecia assustadoramente com essas
criaturas, mastigando os restos da garganta de um dos meus tios.
Curran passou por mim e rugiu. O som de sua fúria era como um
trovão. O rugido golpeou as feras. Eles gritaram e se encolheram em
uníssono.
O mundo ficou vermelho. Todo instinto na minha mente gritava.
Eles mataram um dos meus. Eles eram uma abominação. Uma corrupção.
Tinham que ser expurgados. A raiva ferveu dentro de mim.
As criaturas nos atacaram.
A primeira criatura veio em minha direção, varrendo o ar com suas
garras. Eu me afastei de suas garras e a cortei. Sarrat cortou a carne como
se fosse manteiga, arrancando o peito da besta. O sangue espirrou em
mim, encharcando-me de magia suja.
A criatura gritou e tentou me golpear novamente. Eu me esquivei
movendo-me para o lado e cortei seu braço estendido, cortando os
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extensores . A mão da besta ficou mole. Empurrei Sarrat para o lado,
perfurando o estômago e o fígado, e soltei a espada com um puxão
afiado. A fera caiu de joelhos e voltou a se levantar. Enterrei Sarrat no
peito e o chutei, puxando a lâmina. Bastardos duros de morrer.
Uma segunda criatura rasgou minhas costas, as pontas de suas garras
esculpiram diretamente através do couro reforçado do meu casaco.
Minhas costas queimaram.
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Eu me virei, golpeando a espada em um frenesi, cortei sua jugular ,
me virei novamente e cortei a espinha do primeiro animal enquanto ele
tentava se levantar novamente. A segunda criatura desmoronou, o sangue
escorria do pescoço e ele se contorcia no chão, arranhando-me com suas
garras. Eu o decapitei. Dois a menos.
Um corpo voou em minha direção. Curran rasgou as criaturas,
quebrando ossos e rasgando carne, com as mãos em garras, mas o resto
dele ainda era humano.
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Uma terceira criatura atacou-me. Caí, cortei sua artéria femoral e
me afastei do caminho enquanto a besta desabava. A criatura rastejou em
minha direção. Cortei a parte de trás do pescoço. Morra, seu maldito
bastardo.
O garoto ainda estava queimando. Brasas se formou em seu peito,
mas ele ainda estava sorrindo, seus olhos me rastreando. Como diabos ele
ainda estava vivo?
Atrás de mim, um rosnado agudo de lobo cortou o ar. Derek atacou
a criatura à minha direita com uma espada curta na mão, cortando o
braço da besta com um golpe brutal. À direita, Julie girou, seus dois
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tomahawks nas mãos, cortando tudo a sua frente. As crianças chegaram.
Meus ombros e coxas queimavam dos arranhões, e os cortes nas
minhas costas ferviam como se alguém tivesse derramado sal nas feridas.
Restavam apenas quatro criaturas.
Uma explosão de magia me alcançou, quase me tirando do chão.
Algo de enorme poder acabara de ultrapassar a fronteira do meu
território.
Eu me virei. No Noroeste, uma bola de fogo rasgava as nuvens em
direção ao solo.
Teddy Jo voava sobre nós, com as mãos vazias. Onde estava Conlan?
Eu me virei e vi Julie segurando-o.
— Kate! —Teddy Jo apontou para a bola de fogo.
— Eu tenho isto, —rosnou Curran ao meu lado. — Agora!
Curran agarrou minha cintura e me jogou para cima. Eu voei três
metros no ar. Teddy Jo pegou meus braços e me puxou para ele,
prendendo seus braços em volta das minhas costelas, e então voamos em
direção à uma coluna de fumaça.
Uma nota para mim mesma: Quando isso acabar, avisar ao meu marido que
ele nunca mais irá me jogar assim de novo.
As ruas em ruínas deslizavam sob mim. O vento rasgava meu rosto.
A coluna de fumaça se aproximava. A área acima fervia de magia. Algo
terrível estava acontecendo lá em cima.
— Voe mais rápido!
— Não me faça largar você.
Segundos se passaram. Os telhados rolavam sob nós, seguidos por
ruínas, depois mais telhados, e então estávamos na Praça Unnamed. A
coluna de fumaça subia do meio da rua. Teddy Jo mergulhou. Três
metros acima do calçamento, ele me soltou. Caí e rolei de pé.
A rua estava vazia. Eu me virei procurando o inimigo. Onde diabos
você está, bastardo?
Magia me deu um soco de cima. Eu levantei minha cabeça. Acima,
nas nuvens espessas e baixas, algo reluzia em vermelho brilhante. Magia
soou como um sino gigante, vibrações sacudindo o chão.
— Merda! —Teddy Jo rosnou. Uma espada apareceu em suas mãos
e explodiu em chamas.
Algo rasgou as nuvens, brilhando em vermelho e mergulhou no
chão. Eu me afastei do caminho. Teddy Jo desviou para o lado. A coisa
caiu no chão como uma bala de canhão, fumegando.
O asfalto ao seu redor amoleceu, derretendo.
Corri em direção à coisa brilhante, Sarrat pronta.
Uma parede de calor me bloqueou. Eu a empurrei, protegendo meus
olhos com a mão.
O brilho vermelho estava desaparecendo. Um corpo esparramado na
calçada. Jovem, com cerca de vinte anos, homem, provavelmente chinês,
com o rosto surpreendentemente bonito, mas rasgado e mutilado. Eu o
conhecia. Ele estudou com Julie. O nome dele era Yu Fong. Foi até a
nossa casa uma ou duas vezes para estudar com Julie e Ascanio, e ele e
Ascanio passaram toda a sessão de estudo olhando um para o outro.
Ele caiu pelo céu por pelo menos cinco segundos, talvez mais. Que
diabos estava acontecendo?
Magia crepitava nas nuvens acima de mim. A intensidade disso me
deixou sem fôlego. Me pressionou como se fosse uma mão gigante. Essa
magia não era só velha, era antiga como as montanhas são antigas.
Todos os pelos na parte de trás do meu pescoço subiram.
Plantei minhas pernas e manipulei as correntes ao meu redor,
chamando minha terra, moldando a magia em um escudo. Vento
fantasma girou ao meu redor. Os pedaços do pavimento quebrado
estremeceram, flutuaram alguns centímetros, puxados pelo fluxo de
magia que se erguia.
Acima de mim, as nuvens agitavam-se.
A magia fluiu para mim, e eu a coloquei acima de nós três, nos
protegendo.
Uma forma escura deslizou através das nuvens, tão grande que
minha mente se recusou a aceitar que era real. Estava lá e depois
desapareceu no céu, se escondendo nas nuvens.
Eu me segurei dentro do turbilhão de magia, minhas mãos
levantadas para os lados e sorri para o céu. Vamos lá. Eu tenho contas para
acertar.
A forma escura pairava acima de mim, escondida pelas nuvens, mas
emitindo magia como um farol emite luz.
Venha. Vamos ver o que você pode fazer.
A coisa hesitava.
Tudo bem. Eu empurrei. O escudo de magia que construí acima de
nós se partiu. Um jato de poder disparou. A coisa nas nuvens se afastou,
fugindo da minha magia, subindo mais alto com uma velocidade
alarmante e de repente desapareceu.
Eu esperei.
Um minuto tenso se arrastou.
Outro.
Foi embora.
Teddy Jo pousou perto de mim. — Mas que raio foi aquilo?
— Eu não sei.
Soltei a magia, suavizando-a de volta ao seu estado natural e me
agachei ao lado de Yu Fong. O calor havia diminuído. Estendi a mão
sobre o asfalto ainda quente e toquei seu pescoço. Um pulso.
Eu não sabia nem a que altura ele caiu: trezentos metros, seiscentos
metros, mais? Ele não parecia estar mortalmente machucado e estava
respirando. Estendi a mão, tentando sentir sua magia. Nada além de uma
mera dica. Cada gota de seu poder estava direcionada para a cura de seu
corpo.
Teddy Jo xingou.
Eu me virei para ele. — Ele está respirando. Por favor, volte para
Curran e diga a ele que precisamos de um veículo.
— Fique vivo! —Teddy Jo abriu as asas e voou para o céu.

Capítulo 6
CORRI MEUS OLHOS PELO CORPO de Yu Fong. Os hematomas em
seu rosto estavam ficando vermelhos, os cortes se fechavam, cicatrizando
tão rápido que eu podia realmente ver sua carne se movendo. Os dedos
da mão direita se projetavam em um ângulo estranho. Quebrados. Suas
roupas não tinham sido queimadas. Ele caiu de uma altura catastrófica,
tão quente que derreteu o asfalto, mas seus jeans desbotados e camiseta
cinza nem sequer foram chamuscados.
Curran dobrou a esquina correndo, direto para mim. O suor
encharcava seus cabelos e testa. Ele nem se incomodou de pegar um
carro. Eu me endireitei. Curran quase derrapou até parar e me agarrou,
me levantando e me apertando contra ele. Meus ossos gemeram.
— Tudo bem? —Ele perguntou.
— Tudo, —eu sussurrei, meio sem folêgo por causa do aperto. —
Conlan?
Ele me soltou, me beijou e me olhou de cima a baixo, como se não
acreditasse em mim. — Teddy Jo está com ele. Ele se trancou no
escritório.
Ah bom. Seria necessário um tanque para entrar na Cutting Edge.
— Olhe. —Apontei para Yu Fong.
Os olhos de Curran se estreitaram. — Eu conheço esse garoto.
— Sim. Ele já foi lá em casa. Estudava na mesma escola que Julie.
— O que ele é?
— Não tenho ideia, —eu disse a ele. — Mas ele é alguma coisa.
Motores de água encantada rugiam distantes.
— As crianças estão bem?
— Estão.
As pessoas começaram a emergir dos prédios de escritórios vizinhos.
O necrotério, que ficava no extremo leste da praça, brilhava em azul
claro. Suas Proteções mágicas devem ter sido ativadas, o que não era
exatamente surpreendente. Qualquer pessoa com uma migalha de magia
em um raio de cinco quilômetros sentiria essa explosão. Estar
diretamente embaixo dela era como estar dentro de um daqueles sinos
das igrejas antigas enquanto os padres puxavam as cordas. Eu tinha
defesas melhores do que a maioria das pessoas em Atlanta, e mesmo
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assim sentir o baque sacudir o meu crânio. O PAD chegaria em breve e
teríamos perguntas desconfortáveis que não poderíamos responder. Nos
tomaria um dia, talvez mais, e não tínhamos um dia de sobra.
Tínhamos que tirar Yu Fong daqui. Ele caiu das nuvens, então
movê-lo não o faria exatamente ficar pior.
Nossos dois jipes entraram na praça e pararam. Na hora certa.
Julie pulou do primeiro e Derek a seguiu do segundo.
— Querido, você poderia? —Perguntei.
Curran estendeu a mão, agarrou Yu Fong por sua camiseta e jeans e
o tirou do asfalto quente. Segurei o rapaz por um breve segundo, e
Curran o pegou nos braços, como se Yu Fong fosse uma criança, e o
carregou até o jipe mais próximo.
— Yu Fong! —Julie correu. — Ele está bem?
— Ele simplesmente caiu das nuvens, —eu disse. — Como ainda
está vivo?
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— Ele é um Suanni .
Eu pisquei. Segundo os mitos chineses, um dragão teve nove filhos,
cada um com uma fêmea de uma espécie diferente. Um Suanni era um
híbrido de um leão e um dragão, um ser de fogo. Isso fazia Yu Fong a
coisa mais próxima de um dragão encontrado em Atlanta.
— Julie! Ele frequentou a nossa casa. Por que não me contou?
Ela acenou com as mãos. — Não surgiu a oportunidade.
— O que quer dizer com ‘não surgiu’? —Curran rosnou.
Droga. — Da próxima vez que você levar um meio dragão para casa,
quero saber sobre isso. Esse é o tipo de informação essencial que eu
deveria ter.
— Ele é apenas um colega com quem fui para a escola. Não temos
muita proximidade.
Argh. — Ele pode se regenerar?
— Eu não sei. Nunca perguntei. Acho que sim. Dali saberia. Eles já
se conheceram antes. Yu Fong a chama de a Tigresa Branca, que é o que
ela é.
— Ele muda de forma? —Curran gentilmente colocou Yu Fong no
banco de trás.
— De certa maneira, sim. Eu nunca o vi mudar totalmente de forma.
Geralmente não precisa. Ele faz fogo. O fogo costuma ser suficiente.
— Ele pode voar?
— Eu não sei! —Julie abriu os braços.
Argh.
Subi no jipe. Curran sentou no assento do motorista e pisou no
acelerador. Nós nos movemos em direção a Cutting Edge. Atrás de nós,
Derek e Julie saltaram para o outro veículo.
Agarrei Sarrat. Tentáculos finos de fumaça se estendiam da lâmina,
lambendo o ar.
— Fale comigo, —disse Curran.
— Eles mataram o Senhor Tucker.
— Eles vão pagar, —disse Curran.
— O homem nunca fez nada a ninguém.
— Eu sei, —ele disse. — Eu sei.
O jipe saltou sobre uma lombada na calçada.
— Você já cheirou algo assim? —Perguntei. — Já viu um desses
idiotas antes?
— Não.
Mas eu tinha. A lembrança me apunhalou, fria e afiada. Sarrat
sibilou.
Curran olhou para mim. — Conte-me.
— Minha tia já te contou como minha família morreu? —Perguntei.
— Ela mencionou uma guerra.
— Um exército os atacou. Eles vieram do mar. Tinham uma magia
poderosa, diferente de tudo o que ela tinha visto antes, e trouxeram uma
horda de criaturas com eles. Enquanto meu pai e Erra batalhavam no
campo com seu exército, outros reis da região os traíram e quando meu
pai e minha tia retornaram, encontraram seus irmãos e irmãs
assassinados e criaturas devorando seus corpos. Quando compartilhei
minhas memórias com Erra, ela compartilhou as dela comigo.
A visão de uma criatura segurando o corpo sem cabeça de uma
criança e roendo o toco vermelho do pescoço passou diante de mim. —
Eles eram como aquelas criaturas de hoje. Semelhantes.
— Semelhantes, mas não as mesmas criaturas? —Perguntou Curran.
— As criaturas de Erra eram cinzas e sem pêlos. Os de hoje eram
castanhos e tinham pêlos. Mas eles emanam o mesmo tipo de magia.
Corrompida. Como algo que precisa ser destruído, expurgado.
— Como o cheiro de um Loup, algo que não deveria existir.
— Sim.
— Precisamos guardar um para Erra, —disse ele. Quero que ela olhe
para isso. O que mais ela contou sobre eles?
— Eles vieram do Mar Ocidental, do Mediterrâneo. Shinar nunca
temeu uma invasão do mar antes.
— Por quê? —Perguntou Curran.
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— Os Sidônios , não permitiam —eu disse a ele. — Fenícios* antigos.
Como Erra conta, eles chamavam o mar de pai e o navegavam para
invadir e vender seus corantes roxos. Os Sidônios construíam cidades
muradas no interior do continente, mais longe possível da costa, para dar
um alvo aos invasores. Quando o exército atacante desembarcava, os
Sidônios se escondiam nas dunas e atacavam o inimigo que marchava em
direção à cidade mais próxima. Eles massacravam partes do exército
atacante aqui e outra ali e desapareciam de volta aos seus esconderijos no
deserto.
— Eles desestruturavam os inimigos, —disse Curran.
— Sim. Quando o exército inimigo chegava à cidade, o moral das
tropas estava em frangalhos. Se algum invasor conseguisse sobreviver e
voltar ao mar, descobriria que seus navios tinham novos proprietários. Os
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Sidônios tinham um porto principal, Tiro , uma grande cidade mercante.
Paredes enormes, porto vigiado com correntes na entrada e bestas
marinhas vigiando as águas. Uma fortaleza. Impenetrável.
Eu parei. — Minha tia me disse que conheceu um homem que havia
escapado de Tiro. Ele disse a ela que eles tinham ido dormir com mar
limpo, vazio de embarcações e, quando acordaram, não conseguiram ver
a água porque o porto estava cheio de navios à velas. Os navios
choveram monstros. Os invasores não eram um exército, eles eram uma
horda. Eles tinham criaturas mágicas que fedia a corrupção, soldados
indestrutíveis e queimaram tudo até o chão por onde passaram. Nada foi
deixado de pé. Tudo virou cinzas.
— Como as cinzas na caixa, —disse ele.
— Como na caixa.
Dirigimos em silêncio.
— Ele quer uma resposta, —eu resmunguei.
Ouro brilhou nos olhos de Curran. Ele arreganhou os dentes. — Ah,
nós responderemos. Não será qualquer resposta, e ele não vai gostar,
prometo a você.
Bom.
Curran dirigiu o jipe para a rua Jeremiah. A carnificina se espalhava
pelo asfalto na frente da Cutting Edge. Corpos grotescos, rasgados e
mutilados, espalhados na calçada encharcada de sangue. O Senhor
Tucker estava deitado na rua, pequeno e quase perdido de alguma forma.
No meio disso tudo, uma coluna feita de cinzas em forma de homem se
erguia.
— Ele parou de sorrir em algum momento? —Perguntei.
— Não. Sorriu enquanto queimava até os olhos dele cozinharem em
sua cabeça.
Isso estava acima da minha capacidade. Eu não tinha ideia de como
lidar com esse tipo de magia. Tudo bem. Aprendo rápido.

*******
BILL HORN SAIU DA sua loja de ferramentas enquanto
estacionávamos. Bill consertava panelas, talheres e qualquer coisa que
fosse feita de metal. Ele também afiava facas e agora estava segurando
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uma faca bowie grande o suficiente para matar um urso. Ele era baixo,
de ombros largos, careca, e parecia ser um homem resistente.
Bill foi até onde eu me agachei perto do corpo do Senhor Tucker. O
homem até pouco tempo atrás estava vivo. Ele dizia oi para nós.
Trazíamos chá gelado para ele. Agora era apenas um cadáver. Uma
fração de segundo e uma vida se foi.
— Não é sua culpa, —disse Bill.
— Sim é. Eu poderia ter gritado para ele não se aproximar quando
atravessou a rua.
— Ele não teria ouvido. O homem não tinha um maldito juízo. Não
foi você. E pronto. —Ele apontou a rua sangrenta com um movimento
lento da mão. — Isto é culpa da Mudança.
Eu não disse nada.
— Ele era maluco, —Bill me disse gentilmente.
— Sim, mas ele era o nosso maluco.
Curran se levantou e apoiou a mão no meu ombro. Bill olhou para o
cadáver de Tucker, olhou para o massacre e depois olhou para Curran. —
Vocês precisam de ajuda?
— Nós damos conta, —disse Curran. — Obrigado. Desculpe a
confusão.
Bill assentiu novamente. — Eu estava pensando em visitar minha
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filha em Gainesville .
— Boa pesca lá em cima, —disse Curran.
— Sim, —disse Bill. — Meu genro me disse que ele puxou um robalo
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riscado de catorze quilos para fora do lago Lanier . Não posso deixá-lo
bater meu recorde, não é?
— Pode ser um bom momento para visitar sua filha, —disse Curran.
— Acha que duas semanas será o suficiente?
— Acho que sim.
Bill assentiu e andou em direção a sua loja.
Eu me endireitei. — Os vizinhos irão começar a correr para as
colinas.
— Nos quatro anos em que você tem seu escritório aqui, nenhuma
dessas lojas foi invadida, saqueada ou roubada, —disse Curran. —
Nenhum deles foi ferido por nenhuma porcaria mágica. Nós protegemos
a rua. Agora eles podem nos dar uma folga esvaziando a vizinhança
enquanto resolvemos isso.
— Me ajuda a tirá-lo da rua? —Perguntei.
Ele pegou o Senhor Tucker e o levou para a calçada em frente a
Cutting Edge.
Bati na porta do meu escritório. Teddy Jo a abriu com um Conlan
muito humano nos braços. Eu o peguei. Meu filho bocejou e sonolento
bateu no meu rosto com a mão. Eu o abracei, entrei no escritório e sentei
em uma cadeira. Eu só precisava de trinta segundos para me acalmar.
— Você quer me dizer o que se trata tudo isso? —Teddy Jo se
inclinou sobre a mesa.
— Alguém me enviou uma caixa de madeira cheia de cinzas com
uma rosa vermelha e uma faca nela. Aparentemente, ele quer uma
resposta.
Derek entrou no escritório e foi até o quarto de suprimentos, onde
guardávamos água sanitária, gasolina e outras coisas interessantes que
usávamos para a limpeza.
— Quem enviou? Por quê? O que a caixa significa? —Teddy Jo
perguntou.
— Provavelmente significa guerra.
— Estamos sendo invadidos?
— Talvez.
— Quem está nos invadindo?
— Eu não sei.
— Mas você deve ter alguma ideia.
— Se eu tivesse, estaria fazendo algo a respeito. Pelo o que você me
conhece, eu normalmente espero tranquilamente as coisas acontecerem
enquanto alguém ameaça a cidade?
— Pode pelo menos me dizer que tipo de magia é essa?
— Por que acha que eu saberia?
Teddy Jo apontou na direção da Praça Unnamed. — Porque aquilo
era um poder antigo. Quando alguém tem um problema com um poder
antigo, eles procuram você. Você é a especialista em coisas velhas e ruins.
— Estou tentando decidir se devo me sentir lisonjeada ou insultada.
— Se eles te mandaram uma mensagem, devem pensar que você
entenderia. Se não entende, pergunte a alguém. A cidade está indo para o
inferno. As pessoas estão sendo cozinhadas, queimadas vivas, e você está
sentada aqui. Você é a In-Shinar! Faça alguma coisa!
Curran apareceu ao lado de Teddy Jo. Seus olhos estavam
completamente dourados. Eu nem o ouvi entrar.
— Uh-oh, —disse Conlan.
Teddy Jo percebeu que agora seria um bom momento para parar de
falar e fechou a boca.
Curran olhou para ele com um foco predatório singular. Teddy Jo se
endireitou e deu um passo para longe da mesa.
— Verdade, sou a In-Shinar, —eu disse a ele. — Mas não sou
onisciente ou onipotente. Não sou um deus. Se quisermos ser específicos,
esse é o seu departamento.
Ele não disse nada.
Peguei um pedaço de papel e desenhei o símbolo que estava na
tampa da caixa. — O que isso parece para você?
— Um sutiã? —Disse Teddy Jo.
— Essa é a nossa única pista sobre quem enviou a caixa. Tente mais
uma vez.
Ele piscou um pouco para o símbolo, dobrou o papel ao meio e
depois o enfiou no bolso da calça jeans.
— Você ainda tem o ônibus de cadáveres? —Perguntei.
Teddy Jo administrava um necrotério. Atendia a uma clientela
específica, a maioria deles neopagãos gregos, e grande parte de sua renda
vinha do seu negócio paralelo: fabricar e vender freezers para cadáveres
humanos, mesas de autópsia e carros de transporte de corpos. Ele
vasculhava ferros-velhos, personalizava-os e os alugava para a cidade e os
municípios vizinhos.
Teddy Jo fez uma careta. — Não é um ônibus de cadáveres. É um
Transportador Coletivo Eficiente de Recém-Mortos.
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— Você percebe que a sigla disso é MORTE ? —Derek perguntou.
Teddy Jo olhou para ele. — Sim, percebo. Essa foi a intenção.
Ah, o humor do Anjo da morte, o que faríamos sem ele? — Seria realmente
bom se você pudesse pegar o ônibus MORTE, carregar esses corpos e
entregá-los.
As sobrancelhas de Teddy Jo se levantaram. — Onde?
— Por vários lugares. Deixe dois corpos no Riscos Biológicos, um no
Bando, um no Casino da Nação, um nas Bruxas. Distribua-os para
qualquer um que tenha um nível razoável de conhecimentos e que possa
nos ajudar a descobrir o que são essas criaturas. Dê um para a Ordem
também, que diabos.
— O que você quer que eu diga a eles? —Perguntou Teddy Jo.
— Diga a eles que essas coisas nos atacaram. Há algo muito errado
com eles, e precisamos saber de onde vieram. Você quer ajudar? Faça
isso, por favor.
— Eu vou pegar o ônibus, —disse ele.

*******
MILAGROSAMENTE O TELEFONE funcionou para Curran e ele
conseguiu falar com o Bando na primeira tentativa. Dali prometeu que
estaria chegando logo e traria Doolittle com ela. A próxima ligação foi
para a Associação. Ele ligou para a Médica-mago da Associação e
insistiu que ela viesse na Cutting Edge olhar meus ferimentos. Curran e
eu chegamos a um entendimento. Ele não protestava quando eu corria de
cabeça para o perigo, e eu não discutia quando ele soltava uma equipe de
médicos-magos em meus machucados. A médica-maga chegou meia hora
depois, entonou cantos mágicos em cima das minhas feridas, fechando-
as, avisou-me para ir com calma, algo que nós duas sabíamos que eu
ignoraria, e saiu.
Dali ainda estava em trânsito, o que não era surpreendente. —
‘Chegando logo’ em Atlanta pós-Mudança significava cerca de uma hora,
talvez duas. Usamos esse tempo para reunir os corpos, prendê-los juntos,
caso eles ressuscitassem após a morte, varremos as cinzas para uma
lixeira hermética e demos a Conlan um segundo café da manhã. Eu tentei
dar cereal para ele. Ele virou a tigela e a colocou na cabeça. Cometemos
o erro fatal de rir, e ele decidiu que a tigela era um acessório essencial e se
recusou a soltá-la. Ele também decidiu que o cereal era claramente
indigno dele e o cuspiu de várias maneiras criativas. Derek correu pela
rua e voltou com uma coxa de peru defumada que comprou de um
vendedor ambulante. Diante das duas opções, Conlan faminto ou Conlan
cheio de carne de peru, escolhi o último.
Teddy Jo voltou com o ônibus. Curran, Derek e eu começamos a
carregar os corpos, enquanto Julie purificava a rua. Quando estávamos
carregando o terceiro cadáver, uma van do Bando virou a esquina e
parou perto de nós. Dali pulou do lado do motorista, abriu as portas
traseiras, pegou uma cadeira de rodas dobrada, a abriu no calçamento e
depois pegou Doolittle no colo. Por um momento, formaram uma
imagem levemente cômica, uma pequena mulher indonésia com óculos
de lentes grossas carregando no colo um homem negro de meia-idade
com o dobro do seu tamanho. Então ela o colocou gentilmente em sua
cadeira e Doolittle nos examinou.
Curran e Derek estavam segurando dois corpos peludos. Teddy Jo e
eu estávamos prendendo algemas nos pés deles. Julie encharcando a rua
com gasolina e a incendiando, mantendo a mangueira pronta para o caso
de algo sair do controle. E Conlan assistindo tudo isso de sua cadeira alta
na porta do escritório, completamente nu, com uma coxa de peru meio
comida na mão e uma tigela de plástico na cabeça. Ele viu Doolittle e
acenou com a coxa de peru.
— Paddadda!
Por que eu?
Dali não piscou um olho. — Onde está Yu Fong?
— Ele está lá dentro, —disse Julie. — Eu vou com você.
Ela me deu a mangueira e eles correram para o escritório.
— Pada! —Conlan se contorceu em sua cadeira.
— Fique aí, —eu disse a ele.
— Dadbadaa!
— Não fale assim com a sua mãe, —disse Curran.
Depois que o fogo se extinguiu, carregamos o último corpo, exceto o
que estava acorrentado em nosso jipe e o que eu havia guardado,
acorrentado no freezer de cadáveres do escritório. Teddy Jo partiu e eu
entrei.
Yu Fong parecia o mesmo.
— Qual é o prognóstico? —Perguntei.
Doolittle virou-se para mim. — Estável. Ele está em coma curativo.
— Quanto tempo vai durar?
— Eu não sei, —disse Doolittle. — Uma hora, um dia, um século.
Ele pode acordar quando nossos netos estiverem velhos.
Ótimo. — Existe alguma maneira de acordá-lo?
— Sim, —disse Doolittle. — Nós podemos afogá-lo ou sufocá-lo. Ele
pode acordar ou pode morrer. Se acordar, seu processo de cura poderá ser
irrevogavelmente interrompido e morrerá.
— Existe alguma opção em que ele não morra? —Perguntou Julie.
— Sim, —disse Doolittle. — Deixe-o dormir.
Esfreguei meu rosto. Minha única testemunha estava em uma versão da
Bela Adormecida. Talvez eu pudesse encontrar um príncipe encantado
para acordá-lo com um beijo.
— Há algo dentro dele, —disse Doolittle.
— O que você quer dizer?
— Há um objeto estranho dentro dele. Ele pode ter sido esfaqueado
com isso ou talvez seja algo que ele colocou dentro de seu próprio corpo
por segurança.
Os metamorfos ocasionalmente se aproveitavam de sua rápida
regeneração de maneiras estranhas. Antes de Andrea aceitar sua
verdadeira natureza, ela tinha um amuleto incorporado em seu corpo que
bloqueava suas habilidades de mudança. Yu Fong pode ter feito o
mesmo.
— Isso poderia estar mantendo-o em coma?
— Possivelmente, —disse Doolittle.
— Devemos tirá-lo?
— Não, a menos que você queira arriscar a vida dele.
Argh.
— Você não irá acordá-lo, —declarou Dali. Seu tom de voz
parecendo muito com uma ordem.
Olhei para ela. Ela olhava diretamente para mim, os olhos sem
piscar atrás dos óculos. Um brilho verde rolou sobre suas íris, mostrando
dominação. Dois anos como a Senhora das Feras cobrou seu preço.
Olhei de volta. — Avise-me.
— Do que?
— Quando você se lembrar de que não sou membro do Bando. Você
não é minha alfa, Dali. Desligue os faróis nos olhos.
Ela olhou para mim. Esperei. Eu vivia com o ex Senhor das Feras.
Meu marido me deu esse olhar alfa esta manhã, depois que eu lhe disse
que jogaria uma de suas camisetas velhas fora. Aparentemente, contanto
que a camiseta tivesse uma gola intacta, ele a considerava uma peça de
vestuário utilizável, não importa quantos buracos tivesse.
— Você não o acordará, —ela repetiu, desta vez mais suave.
— Não, não vamos acordá-lo. —Eu daria um ano da minha vida
para descobrir com o que diabos ele estava lutando nas nuvens, embora,
acordá-lo e arriscar a vida dele para descobrir isso, não valeria a pena. —
Ele tem família? Para quem deveríamos ligar?
— Sua família o deixou apodrecer na jaula de um caçador por anos
enquanto eles o cortavam para vender seu sangue no mercado negro.
Duvido que sua família se importe. Nós cuidaremos dele na Fortaleza, —
disse Dali.
— Não, —disse Julie.
Dali a ignorou. — Estamos mais bem equipados para lidar com isso.
— Não acho que estão, —eu disse a ela.
— Não preciso da sua permissão, —disse Dali.
— Você não tem motivos para levá-lo. Primeiro, ele não é um
membro do Bando, Dali. Você estaria sequestrando um cidadão de
Atlanta. Segundo, Yu Fong caiu e fez aquela adorável cratera porque
estava lutando contra algo nas nuvens. Algo antigo e poderoso, e que
estava ciente dos limites do meu território e do meu poder, porque
quando cheguei lá e usei a minha magia para nos proteger, a criatura foi
embora. Mas voltará para terminar o trabalho. Proteger Yu Fong fará da
Fortaleza um alvo, e você não tem o poder de se opor a essa coisa que
está atrás dele. Jim não vai deixá-la ficar com ele.
Ela abriu a boca.
— Terceiro, Doolittle acabou de dizer que não há nada que
possamos fazer por ele. Estou certa?
O médico-mago assentiu. — Só podemos deixá-lo confortável.
— Portanto, não há necessidade urgente de levá-lo para a Fortaleza.
Dali empurrou os óculos pelo nariz. — Eu realmente te odeio às
vezes.
— Bem-vinda ao clube.
— Ele é especial, —disse Dali. — Sagrado.
Sim, da mesma maneira que ela era. — Eu estou ciente disso. É por
isso que vou levá-lo para casa conosco. —Onde eu tinha Proteções e
amigos homicidas como vizinhos para me apoiar.
— Você pode visitá-lo quando quiser, mas não o levará para a
Fortaleza, porque vai acabar me ligando uma hora depois que chegar lá e
me pedir para ir buscá-lo. Não vamos movê-lo mais do que o necessário.
Ele já está sob muito estresse.
Ela pensou nisso. — Quem vai vigiá-lo?
— Adora.
Dali torceu o nariz. — Ela é capaz de vigiá-lo? Você sabe como ela é.
E se ela ver uma borboleta e resolver ir atrás dela?
— Eu a pagarei pelo trabalho.
Alguns meses atrás, Adora havia descoberto que, quando fazia um
trabalho para a Associação, ganhava dinheiro e que podia então gastar
como quisesse. Depois que ela me mostrou o dinheiro várias vezes—e
confirmei várias vezes que era, de fato, seu próprio dinheiro—Adora saiu
às compras pela primeira vez e descobrimos como era gastar 1.200
dólares em doces. Ela comeu doces por três dias seguidos, depois passou
o restante da semana em nosso sofá com dor de estômago. Agora Adora
trabalhava como mercenária, com o maior índice de conclusão de
trabalho da Associação. Ela levava suas missões absurdamente a sério.
Podia estar chovendo, sol quente, nevando, chuva de granizo, no meio da
gosma roxa e corrosiva borbulhando dos esgotos, ou de alguma
misteriosa neve negra que brilhava quando atingia o metal, Adora ia lá e
resolvia. Dali sabia disso.
— Tudo bem, —disse Dali. O tom dela me disse que não gostou.
Tudo bem. Eu também não gostava de muitas coisas, mas o universo
não dava a mínima, então não vi o porquê ele daria a mínima para Dali
também.
— Você cuidará bem dele, não é?
— Não, vou jogá-lo no esgoto mais próximo e jogar terra na cabeça
dele.
Ela suspirou. — Eu tenho quase dois mil metamorfos metidos a
engraçadinhos para gerenciar todas as noites. Apenas me diga que você
cuidará dele, Kate.
— O rapaz frequentou a mesma escola com Julie. Ele frequentou a
nossa casa. Não é um estranho. É claro que vou cuidar dele. Eu cuidaria
dele, mesmo que ele fosse um estranho, —mas Dali continuava
parecendo que precisava de mais garantias.
— Vou cobrar isso de você, —disse ela.
— Você deveria rosnar um pouco só para garantir que está falando
sério, —eu disse a ela. — Apenas no caso de você achar que eu posso não
ter entendido o que disse.
Ela me mostrou o dedo do meio.
— Também te amo. —Virei-me para Doolittle. — Você pode dar
uma olhada em Conlan?
Doolittle me deu uma olhada. — Eu o vi no caminho. Ele parecia
estar em perfeita saúde.
— Eu sei, mas ...
Doolittle levantou a mão. — Kate, a última vez que você o levou
para mim foi porque ele caiu do chão.
— Ele tinha um galo na cabeça.
— Uns dias antes, você confundiu uma erupção cutânea com
catapora.
— Eu sei, mas algo aconteceu ...
— Algo sempre acontece. Seu filho é uma criança saudável e ativa.
Ele deveria correr, cair, subir e, ocasionalmente, tentar comer coisas que
não deveria. Seu trabalho é mantê-lo longe do pior. Seria bom para você
e ele se o deixasse ser criança e parasse de desperdiçar meu tempo.
Ele se virou para Dali. — Estou pronto para ir.
Dali levantou o nariz petulante no ar e abriu a porta. Doolittle saiu
em disparada. Curran e Conlan os assistiram partir.
— Obrigado por ter trazido Doolittle, —Curran gritou enquanto a
van se afastava.
Ele sorriu para mim.
Algo triturou. Eu me virei. Conlan cuspiu metade do osso da coxa de
peru.
— Eu te disse, —disse meu marido. — Ossos cozidos quebram em
lascas.
Argh.

Capítulo 7
— ESSA GAROTA DIRIGE COMO uma maníaca, —disse Curran.
Partimos da Cutting Edge em dois jipes ao mesmo tempo, mas Julie
e Derek nos deixaram comendo poeira. Eu nem se quer conseguia ver o
veículo deles. É o que acontece quando se deixa uma metamorfa tigresa
vegetariana, meio cega e apaixonada por carros de corrida, dar aulas de
direção para sua filha.
Viramos na estrada que leva à nossa rua.
— Ela não destruiu nenhum carro até agora, —eu disse a ele.
Uma explosão de fogo vermelho sangue disparou acima das árvores
à nossa esquerda.
Curran acelerou.
Por favor, não seja nossa casa, por favor, não seja nossa casa.
Fizemos a curva a uma velocidade perigosa.
A casa apareceu. Um destroço de metal carbonizado estava no meio-
fio em frente a nossa casa, o interior, do que costumava ser o jipe, em
chamas. Derek estava ao lado com um olhar fatalista no rosto. Droga.
— Três minutos, —Curran rosnou. — Eles ficaram só por três
minutos sem supervisionamento.
Aparentemente, três minutos eram suficientes para explodir as
coisas.
Curran entrou na garagem, desligou o motor de água encantada e
pulou do jipe. Eu o segui.
O cheiro de carne e tecido queimando encheu o ar. Cinzas flutuava
suavemente na brisa.
— O que diabos aconteceu? —Perguntei.
— Sua tia aconteceu, —disse Derek.
Ah não.
— Ela enlouqueceu, —disse Derek. Luz âmbar brilhava em seus
olhos. Ele não estava feliz. — Assim que Julie e eu saímos, Erra fez essa
bola de fogo vermelha e explodiu o jipe.
— O corpo da criatura estava no jipe? —Perguntou Curran.
— Sim. E meu equipamento. E da Julie.
Ela explodiu o jipe. E provavelmente esgotou totalmente suas
energias com o feito. Levaria vários dias para se recuperar. Bem, eu
estava me perguntando se Erra reconheceria a criatura. Acho que isso
responde a pergunta.
— Alguém se machucou? —Perguntei.
— Não, —disse Derek, seu tom suave. — O jipe foi a única vítima.
— Eu sinto muito.
Pelo menos Erra esperou os garotos saírem do carro. — Onde ela está?
— Na adaga dela. Ela não quer sair. Julie subiu e está com ela.
Derek estendeu a mão em direção ao jipe em chamas e se afastou.
— O que você está fazendo? —Curran rosnou.
— Minhas facas estão lá.
— Pegue a mangueira, —disse Curran.
Derek caminhou em direção à casa.
Puxei um Conlan sonolento para fora do assento do carro. — Você
pode levá-lo? Preciso ir atrás de Erra e chamar a atenção dela por isso.
Curran abriu os braços e eu depositei Conlan neles. Assim que
terminássemos teremos que instalar Yu Fong no quarto do andar de
baixo e precisaríamos localizar Adora para que ela pudesse cuidar dele.
O telefone tocou enquanto eu subia as escadas em direção ao
segundo andar. Curran entrou e foi para a cozinha. Eu o ouvi atender o
telefone e me preparei para o pior. Eu estava ficando tão condicionada
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quanto o cachorro de Pavlov .
— Se nos ligar de novo, vou encontrar essa Imobiliária Sunshine e
enfiar a sua cabeça na bunda.
Alarme falso.
O quarto de Erra ficava no coração da casa, no segundo andar,
estrategicamente afastado de todas as entradas. A luz do dia atravessava
uma única janela, cortada pelas barras de prata da grade. Uma brisa
agitou as longas cortinas de algodão. No meio da sala, a adaga de Erra
descansava em um suporte de madeira sobre a mesa, mas minha tia não
estava nela. Quando Erra se retirava para dentro da lâmina, a adaga
emitia magia como uma lareira quente.
Julie encostou-se na parede, com os braços cruzados.
— Onde ela está?
Ela assentiu com a cabeça em direção a porta da varanda.
Olhei para lá e vi Erra na varanda coberta, de pé com as mãos em
volta de si mesma. Geralmente ela se manifestava com uma armadura de
sangue, mas ultimamente eu a via em vestidos longos, às vezes da cor
rubi, às vezes branco ou um rico esmeralda. Ela usava o vermelho agora.
Saí do quarto e entrei na varanda com ela. A floresta Dois
Quilômetros se estendia diante de nós, verdejante e cheia de vida, as
árvores erguendo-se em uma parede sólida logo depois da cerca dos
cervos. Minha tia parecia cansada, seu olhar fixo em algo distante no
horizonte.
Por um tempo, ficamos um ao lado da outra sem dizer nada.
— Você deve ligar para o seu pai, —disse ela.
— Não.
Ela se virou para mim. — A guerra está vindo. Nosso inimigo
está chegando.
— Roland quer me matar. Ele quer matar meu filho ou sequestrá-lo,
acho que ainda não se decidiu. Acabei de descobrir esta manhã que ele
está mobilizando suas forças.
— Isso é maior do que a guerra com o seu pai.
— Nada é maior que isso. Vi uma foto do Razer hoje. Ele estava a
apenas alguns quilômetros ao norte, nos limites da cidade. Razer está
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aqui, porque meu pai o ordenou. Esse fae veste um casaco feito de peles
das criaturas e das pessoas que ele assassinou. Ele não vai adicionar um
pedaço de pele de Conlan ao seu guarda-roupa ...
Ela estendeu a mão e tocou meu rosto. Seus dedos translúcidos
roçaram minha bochecha, a magia formigando ao longo da minha pele.
Ela me dava um soco com seu poder quase toda semana, mas seus
carinhos eram tão raros que eu podia contar nos dedos. Eu calei a boca.
— Criança teimosa, —disse a rainha de Shinar. — Seu mundo
queimará até que tudo se torne cinza. Você viverá horrores
indescritíveis. Verá todo mundo que ama morrer e desejará
estar morta, mas não morrerá, porque é a Princesa de Shinar, o
Farol da Esperança de seu povo e, se sucumbir, essa esperança
perecerá com você. Suas memórias se tornarão sua tortura.
Você carregará esse fardo enquanto percorre um mar de
sangue e, quando emergir desse mar, se tornará eu, sua vitória
será um futuro vazio. Eu não posso vê-la sofrer dessa maneira.
Você e esse garoto são tudo o que tenho. Você é a família que
perdi e encontrei. Ligue para o seu pai. Mostre a ele essa
criatura que nos atacou. Diga a ele que o yeddimur está aqui.
Juntos, teremos uma chance. Faça isso por mim, In-Shinar. Faça
isso porque sou sua tia e você me ama.

*******
SAÍ DE CASA CARREGANDO minha mochila. Curran ainda estava
segurando Conlan. Derek saiu do jipe, enquanto Julie me observava com
um olhar cético no rosto. Os quatro olharam para mim.
— Você falou com Erra? —Perguntou Curran.
— Sim. Venha comigo, —eu disse a Derek. — Preciso da tua ajuda.
— Com o que?
— Preciso que carregue uma quantidade grande de lenha. Vou entrar
em contato com o meu pai e para isso tenho que estar fora do meu
território.
— Você não disse que ia chamar a atenção dela? —Perguntou
Curran. — Como foi essa experiência?
— Não quero falar sobre isso.
Julie riu.
— Sua mãe levou um chute no traseiro, —disse Curran a Conlan.
— Continue falando, é verá como isso acabará para você.
Curran sorriu. — Aprenda, Conlan. Se a sua mãe for má com você,
corra para a sua tia-avó e ela vai te proteger.
Conlan riu.
Rosnei e entrei no meu jipe.

*******
EU PAREI NO TOPO DE uma colina baixa e examinei a pilha de mato e
galhos secos que Derek e eu havíamos arrumado em uma pira de três
metros de altura. Nas minhas costas, o pôr-do-sol morria lentamente
enquanto o sol rolava para o oeste, atrás da cidade. Os raios do sol poente
iluminavam o mundo e, contra a cortina de luz, destacavam-se as ruínas
de Atlanta, escuras e sombrias, uma miragem de um tempo mais seguro.
Olá pai, sou eu. Sei que está tentando matar meu marido, o nosso filho e a
mim, mas adivinhe, tudo está perdoado, preciso de sua ajuda. Ugh. Preferia
andar em vidro quebrado.
Eu estava protelando. Já estava aqui, já construí essa maldita pira,
agora eu tenho que acabar logo com isso.
— Precisamos de mais madeira? —Derek perguntou.
Três metros de altura e cerca de dois metros de diâmetro. Bom o
bastante. — Não.
Enfiei a mão no bolso, retirei um pacote de ervas secas, empurrei
alguns galhos para o lado e joguei no meio da pira. Movi os galhos
novamente, risquei um fósforo e acendi o jornal. O fogo devorou o papel,
saltou para os galhos menores e começou a abrir caminho através dos
galhos secos.
O céu estava esfriando, escurecendo de quase turquesa para um
índigo mais profundo. Dicas das primeiras estrelas apareceram acima de
nós.
Eu me concentrei no fogo, canalizando minha magia nele. As
chamas alcançaram as ervas e elas estalaram. Faíscas azuis subiram da
pira e uma fumaça aromática espessa flutuou pelo ar.
Puxei um pequeno frasco do meu sangue da bolsa do meu cinto e
derramei algumas gotas no fogo, murmurando o encantamento.
Carmesim brilhante explodiu dentro da fogueira, espalhando-se e
envolvendo toda a pira em chamas vermelhas não naturais. Magia
pulsou. Pronto. Está feito.
As palavras na língua antiga rolaram da minha língua. — Nimrod.
Pai. Preciso da tua ajuda. Responda por favor. Bem, vejam só. Consegui
falar sem engasgar.
Nada.
Derek recuou. Os pêlos de seus braços estavam em pé.
— Pai, fale comigo.
Nada.
Eu mudei para a minha língua. — Pai, estamos enfrentando uma
ameaça terrível. O yeddimur está aqui. Eu preciso falar com você. É
importante. Por favor.
As chamas permaneceram silenciosas.
Eu sentei na grama.
— Talvez ele não consiga sentir, —disse Derek.
— Minha família usa esse método para se comunicar há milhares de
anos. Ele pode sentir o fogo. É como um telefone tocando, difícil de
ignorar. Ele apenas decidiu não atender.
Derek se esparramou na grama ao meu lado, olhando as chamas. Na
maioria das vezes, quando eu olhava para ele, via um homem, mas
agora, com o fogo dançando em seus olhos, eu via um lobo.
— Você sente falta dele? —Ele perguntou.
— Sim. Não importa o quão monstruoso ele seja, ainda é meu pai.
Sinto falta de conversar com ele. Quando ele morava perto, mesmo
estando com raiva dele, a gente tinha momentos de boas conversas.
Nesses momentos, ele esquecia do desejo insano em ser um
conquistador e um tirano. Era apenas um pai, um que eu nunca conheci
durante a minha infância. Roland estava orgulhoso de mim,
especialmente quando eu conseguia superá-lo. Eu sou filha de um
monstro de uma família de monstros. Minha tia abriu caminhos na antiga
Mesopotâmia. Ela cometeu atrocidades e eu aprendi a amá-la também.
Havia luz em Erra. Havia também escuridão e, quando olhava
profundamente para os seus olhos, eu me reconhecia neles.
— Roland me ama tanto quanto ele pode amar uma criança. O
problema é que ele se ama mais.
— Sinto falta do meu pai, —disse Derek. — Antes dele virar um
Loup.
Depois que o pai de Derek virou Loup, ele estuprou, matou e
devorou sua esposa e filhas, até que o adolescente Derek finalmente o
matou. Ele foi o único sobrevivente do massacre e, quando terminou,
ateou fogo na casa. Foi assim que o Bando o encontrou, mudo e
indiferente aos destroços fumegantes da casa de sua família. Curran levou
meses para conseguir trazê-lo de volta aos vivos.
— Como ele era? —Perguntei.
— Rigoroso. As pessoas diziam que ele era um bom homem. Ele
vivia com medo.
— De que?
— De tudo. —Derek olhou para as chamas. — Fui criado da
seguinte maneira: para os meus pais a humanidade era dividida em pessoas
cristãs e pessoas do mundo. O mundo era ruim e perverso, e somente os
cristãos eram bons e confiáveis. Eram como se eles acreditassem que o
mundo lá fora era uma força poderosa capaz de tirá-los dos caminhos
cristãos. Uma vez fomos a uma feira na montanha e um pregador
visitante deu um sermão. Ele disse que era fácil ser cristão quando se
mantém separado do mundo, porém, protegido dessa forma, não haveria
tentação, luta e ninguém para testemunhar e converter. Que nosso dever
como cristão era ir ao mundo, mantendo a luz de nossa fé como uma
tocha e ajudando os outros.
— Seu pai não gostou muito desse sermão, não foi? —Imaginei.
— Não. Ele nos tirou da multidão e nos disse que o homem era um
falso profeta. Tudo no mundo para o meu pai era ruim: livros, brinquedos,
escola. Qualquer coisa que conflitasse com uma vida pura.
Eu não sabia o que dizer — Os cristãos não são as únicas pessoas
que fazem isso. Há metamorfos na Fortaleza que nunca vão a cidade.
Eles não querem interagir com quem não é metamorfo. Algumas pessoas
se apegam à sua tribo, Derek. Ele cuidou bem de você. Deve ter te
amado.
Derek deu de ombros. — Tinha a sensação de que se tratava menos
de amor e mais como uma obrigação. Um homem trabalha e cuida de
sua família, então meu pai fazia isso, porque era o dever dele. Nós
éramos sua responsabilidade, e era seu trabalho fornecer e garantir que
nos tornássemos bons e cristãos. O plano era que eu crescesse e me
transformasse em meu pai. Trabalhar em uma fábrica de papel ou, se eu
fosse ambicioso, aprender a soldar ou ser encanador. Casar com uma boa
garota, colocar um trailer na terra dos meus pais. Ter filhos. Ficar nas
montanhas com outras boas pessoas cristãs. Ficar seguro. Eu não queria
estar seguro. Eu queria ser marinheiro.
— Por que um marinheiro?
Ele fez uma careta. — Para que eu pudesse navegar para longe das
montanhas. Eu queria mais.
Agora ele tinha mais. Muito mais do que esperava.
— Meu pai nunca teve muita paciência, —disse Derek. — Maggie,
minha irmã mais velha, discutiu muito com ele. Ela poderia passar horas
discutindo com ele. Ele aguentava até um ponto, então sua paciência
acabava e a mandava para o quarto dela. Depois, ele iria cortar lenha nos
fundos da casa, com vergonha de ter perdido a paciência. Mas meu pai
nunca nos bateu. Depois que ele virou Loup, eu o vi fodendo o cadáver
de Maggie.
Meu estômago revirou. — O loupismo deixa as pessoas loucas. Você
sabe disso.
— Talvez sempre houvesse escuridão dentro dele. O loupismo
apenas trouxe isso à tona.
— Se sempre houve escuridão dentro dele, ele nunca permitiu que
vocês vissem essa escuridão. Isso não faz dele um homem bom, no final
das contas?
Derek virou-se para mim. Os olhos dele estavam vazios. Não havia
tristeza, raiva, apenas o vazio vigilante de um predador. Eu já o vi fazer
isso antes. Era assim que ele lidava com o sofrimento. Ele mergulhava
fundo no lobo.
— Voron foi a coisa mais próxima de um pai que eu tive, —eu disse
a ele. — Ele me alimentou, me ensinou. Ele se importava se eu viveria ou
morreria. As bruxas me disseram que a única razão pela qual Voron
cuidou de mim foi porque minha mãe o enfeitiçou com sua magia. Ela o
enfeitiçou até que ele a amou acima de tudo. Quando meu pai a matou,
Voron não aguentou, então ele me criou para me tornar uma arma contra
Roland. Voron queria machucar meu pai de um jeito ou de outro. Eu
matando meu pai ou ele me matando, de qualquer maneira Voron ficaria
satisfeito com a dor que causaria.
Derek esperou em silêncio.
— Escolhi não me importar com isso, —eu disse a ele. — Eu guardo
esses sentimentos de decepção na mesma caixinha mental em que guardo
coisas como a Terra é um globo e o gelo flutua. Estou ciente de que eles
estão lá e, quando preciso, os retiro e os uso. Mas também tenho
lembranças da minha infância em que Voron cuidou de mim. São minhas
memórias. Eu decido como vê-las, então escolho me lembrar dele como o
homem que me criou e me ensinou a sobreviver. Fico mais feliz em
lembrá-lo dessa maneira.
— Mas é verdade o que as bruxas disseram?
— Eu não sei. Ele está morto, então não posso perguntar. Você pode
se lembrar de seu pai como um homem que escondeu a escuridão dentro
dele, ou pode se lembrar dele como um homem falho que amava sua
família e morreu quando o loupismo o dominou. Você tem que decidir
por si mesmo com o que pode viver ...
Um flash de luz branca dividiu as chamas rubis da pira. Eu levantei-
me. Mas veja só, papai querido decidiu atender o telefone, afinal.
A luz se projetou em um homem. Ele usava uma túnica longa com
capuz. Não, não uma túnica, uma capa, forrada com pele de lobo e presa
com uma grossa corrente de ouro no peito. O tecido branco cobria seus
ombros largos, caindo nas chamas.
E ele não era meu pai. De jeito nenhum.
O homem abaixou o capuz. Era alto, pelo menos um metro e
noventa, talvez dois. Pele branca. Cabelos loiros caindo em um uma
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longa juba sobre seus ombros. Um torque ornamentado estava ao redor
de seu pescoço, parecia ser de ouro e pesado. Rosto bonito, com uma
mandíbula quadrada, ossos da bochecha definidos, nariz reto e olhos
afiados sob grossas sobrancelhas loiras. Os olhos me encararam com
arrogância de um rei. As íris azuis pálidas brilhavam um pouco. Eu não
sabia dizer se era das chamas ou se a magia dele as tornavam
luminescentes.
Ele abriu a boca.
A tecnologia colidiu contra nós. O homem e o fogo carmesim
desapareceram. As chamas se apagaram e a pira caiu em um monte de
cinzas.
Tudo bem então.
Derek se recostou e gargalhou.
Eu dei a ele meu olhar de mau.
Ele nem ligou. — Esse fogo mágico vem com garantia? Porque acho
que deu defeito.
— Não está com defeito.
Ele tremia de tanto rir.
— Vá em frente, pode rir à vontade.
— Dirigimos uma hora e meia até aqui, passamos duas horas
catando galho seco e acendendo esse fogo, para chamarmos o cara
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errado. Você errou o código de área ?
— Você deveria levar esse seu show de humor para os palcos. Fazer
algum dinheiro extra com todas essas piadas.
Ele riu mais ainda.
— Será que isso já aconteceu antes? Só estou pensando: sua família
86 87
tentou ligar para Átila, o Huno , e acabou chamando Genghis Khan ?
— Não vou me dignar a responder isso.
— Talvez você devesse tentar ligar para o seu pai usando um telefone
comum, —sugeriu Derek. — Eu posso ajudá-la a discar os números.
Você sabe, fazer o trabalho pesado.
— Você vai parar com isso?
Ele se esparramou na grama de costas, bufando. — Não.
— Comprarei novas facas se você calar a boca.
— Eu não quero facas novas. Quero minhas velhas facas. —Ele
levantou a cabeça. — Me dê aquela carne seca que você escondeu no
porta-luvas e eu pararei.
— Combinado.
Ele se levantou, puxou um tambor de água da parte de trás do jipe e
o jogou nas cinzas. Entramos no jipe e eu entreguei a carne a ele. Os sons
de um metamorfo faminto comendo encheram o veículo. Eu dirigi o jipe
em direção a Atlanta.
Derek parou de mastigar. — Sem brincadeiras agora, aquele cara era
alguém. Algum deus, rei ou algo assim.
Eu concordei. Havia poder naqueles olhos azuis. Eu teria que
perguntar à minha tia se a chamada da fogueira poderia ser interceptada e
quem teria a magia para fazê-lo.
Ele riu.
— O que foi agora?
— O homem parecia que tinha um discurso inteiro preparado. Agora
ele provavelmente está fumegando em algum lugar.
— Isso é o que me preocupa.
— Eu sempre vou te apoiar, —disse Derek. — Mesmo com essas
magias assustadoras.
— Eu sei. Obrigada.
— De nada.
Seguimos em direção a Atlanta, onde luzes elétricas isoladas
acenavam, prometendo a ilusão de segurança.

*******
— CONTE-ME SOBRE O LOIRO, —disse Curran.
— Alto. Musculoso. Vestido em um luxuoso manto forrado de pele e
preso com uma corrente de ouro. Cheio de si. Cabelo perfeitamente
escovado. —Bebi meu chá.
Nós nos sentamos na cozinha. Enquanto eu estava fora, Curran
colocou nosso filho na cama. Ele e Julie já haviam jantado. Acabei
comendo somente um lanche rápido. Julie sentou na minha frente à
mesa, bebendo seu próprio chá. Derek havia tirado suas facas dos
destroços do jipe queimado, as colocou espalhadas em um pedaço de
lona sobre a mesa e agora estava limpando-as cuidadosamente. A maioria
das lâminas resistiu ao fogo, mas dois cabos de material sintético
derreteram.
— Não esqueça o colar, —disse Derek.
— Não era um colar, era um torque, —eu disse. — Colares possuem
abertura na parte de trás. Este abria pela frente.
88 89
— Que tipo de torque? —Julie perguntou. — Cita ? Trácia ?
— Pesado, ornamentado, com três garras de ouro estilizadas.
— E você tem certeza de que não era seu pai disfarçado? —
Perguntou Curran.
— Sim. Os olhos eram diferentes.
Meu marido cruzou os braços. — Por quanto tempo você olhou nos
olhos dele, exatamente?
— Cerca de três segundos, enquanto eu esperava ele falar. —Apontei
minha colher de chá para ele. — Eu sei o que está pensando. Pode parar.
Julie manteve a cara séria, mas seus olhos riram de cima da borda da
xícara.
Derek parecia estoico.
— O que eu devo pensar? Primeiro, alguém lhe envia uma rosa
vermelha.
— E uma faca. E uma caixa cheia de cinzas.
— Exatamente. Isso é uma ameaça? É uma declaração condicional
de guerra?
Dei de ombros. — Talvez seja um presente de um floriculturista
socialmente estranho.
Julie riu olhando para xícara de chá.
Derek fingiu não ouvir, mas os cantos da boca se curvaram.
— Claro que é. Então você sai para fazer uma chamada para o seu
pai e um garoto bonito de cabelos dourados aparece vestido para
impressionar.
Eu acenei minha colher. — Nisso eu concordo com você. Ninguém
sai por aí no verão de Atlanta se pavoneando com uma capa forrada de
peles e com cabelos perfeitamente escovados. Parecia que ele sentiu meu
chamado, colocou todas as suas coisas da realeza, preparou um discurso
e só então apareceu.
— E então a tecnologia chegou. —Derek deu um sorriso rápido.
Curran se inclinou sobre a mesa. — Então, me diz como devo me
sentir sobre isso. Além de tudo, sua tia explodiu o jipe e desapareceu
depois de ter se sobrecarregado.
Minha tia tinha muita dificuldade em se manifestar durante a
tecnologia e, com a maior parte de seu poder gasto na explosão do jipe,
ela dormiria por um tempo. Eu tentei chamá-la através da sua adaga
quando chegamos em casa e só obtive silêncio.
Abrir meus braços. — Como isso é minha culpa?
— Eu nunca disse que era. Estou expressando minha frustração geral
com essa situação.
— Eu também estou frustrada. Tenho o caso de Serenbe. Duzentas
pessoas se foram e suas famílias não têm respostas. Senhor Tucker
morreu, Yu Fong está em coma, criaturas antigas surgindo dos pesadelos
de minha tia e nos atacando, meu pai se preparando para a guerra, e
ainda por cima há um fae assassino correndo em nossa cidade
provavelmente esperando matar você, eu ou nosso filho, de preferência
todos os três. Estou mergulhada até o pescoço e não tenho respostas.
Zero. Nada.
Nós nos encaramos.
— Vamos treinar, —disse ele. — Nós dois nos sentiremos melhor.
Sim. Eu precisava socar e chutar desesperadamente, meus membros
doíam de tanta frustração. — Essa é uma boa ideia. Não, essa é a melhor
ideia de todas.
Alguém bateu na porta da frente. Derek cheirou o ar, pegou uma
faca grande e a colocou na mão.
— Quem é? —Perguntei.
— O pervertido, —disse Derek, e foi em direção à porta.
Ah não, você não. — Eu atendo.
Eu alcancei Derek na porta e a abri. Um homem estava parado na
nossa porta, vestindo calça cinza, uma camisa de botão cinza clara
enrolada até os cotovelos e sapatos escuros desgastados. Careca. Altura
mediana, características comuns, nem bonito nem feio. Você passaria por
ele no meio da multidão e ele não chamaria atenção. Saiman em sua
forma neutra, uma lousa limpa para um polimorfo que poderia
personificar qualquer humano na face do planeta. Atrás dele, uma van
escura com janelas escuras esperava em nossa entrada.
Olhei para os seus olhos a procura da inteligência afiada usual.
Estava lá, juntamente com apreensão.
— Qual é a emergência?
— Emergência? —Saiman ergueu as sobrancelhas.
— Sim. O que aconteceu de ruim para fazê-lo aparecer por aqui? O
que você fez?
— Nada.
Esfreguei minha testa. — Meu marido está frustrado e eu também,
então é do interesse de todos que me diga logo por que está aqui.
Saiman hesitou por um momento. — Eu não tenho um corpo.
Estendi a mão e toquei seu ombro com o dedo indicador. — Acabei
de realizar um teste de campo e parece que você tem um corpo. Boa
noite.
— Eu não consegui um corpo. O Riscos Biológicos, a Ordem e o
Bando receberam um corpo. Sou o melhor especialista em magias
arcanas de Atlanta, com um laboratório de ponta, e você não me enviou
um corpo.
Ah! — Eu não enviei um corpo para você, porque me cobraria um
braço e uma perna por isso. —Havia trocadilhos demais nessa frase para
o meu gosto. — Não estou interessada nos seus serviços. Seu preço é
muito alto.
Saiman respirou fundo, como se estivesse prestes a pular de um
penhasco. — Vou examiná-lo gratuitamente.
Belisquei meu braço.
Uma sugestão da arrogância do velho Saiman apareceu em seus
olhos. — Realmente, Kate, isso é tão infantil.
Voltei para a cozinha e gritei: — Saiman está aqui e ele quer nos
ajudar ... de graça.
Derek apertou a mão no peito e caiu no chão.
— Oh deuses! —Julie acenou com as mãos. — Escondam as
crianças. O Apocalipse está chegando. Até os metamorfos lobos estão
desmaiando!
Saiman poupou-lhes um único olhar. — Eles eram perfeitamente
razoáveis antes. Este é o resultado de uma exposição prolongada e prova
minha teoria.
— E que teria seria essa?
— Você é contagiosa.
Julie correu para Derek. — Não, não, está tudo bem. Ele não
desmaiou. Foi só um chilique! Alarme falso.
Saiman parecia sentir dor física. — Nada disso é engraçado.
— Toda essa capacidade de se transformar em qualquer um e você
não pode desenvolver um senso de humor. Anime-se, Saiman. O gelo de
90
Jotunheim está longe. Seus pais não saberão que você abriu um sorriso.
Saiman suspirou, abriu a boca e congelou, seu olhar fixo atrás de
mim. Olhei por cima do ombro. Curran apareceu no corredor. Meu
marido tinha um talento para emanar ameaças simplesmente parado, e
agora ele estava exercitando esse talento em toda sua capacidade. Se a
ameaça fosse calor, as paredes ao meu redor pegariam fogo.
— Estou aqui para ajudar, —disse Saiman em voz baixa.
Derek se levantou.
— Qual é a condição? —Perguntei. — O que você quer?
— Não quero nada de você. Nada. Sem condições.
Havia poucas verdades absolutas neste mundo, mas o fato de Saiman
nunca fazer nada sem esperar uma recompensa era certamente uma
delas.
— Você pode se transformar durante a tecnologia? —Perguntou
Curran.
Saiman se recompôs. — Sim.
— Bom. Entre.
— Com licença. —Saiman entrou no corredor e passou por mim até
a cozinha.
Sua Peludeza estava tão intensamente focado no cara loiro, que
estava disposto a trabalhar com Saiman. E isso nem terminaria bem. De
jeito nenhum.
— Kate tentou chamar o pai dela hoje à noite, —disse Curran.
— Chamada de fogo? —Saiman me perguntou.
— É tradição de família, —eu disse a ele.
— Alguém interrompeu. Quero saber como ele era, —disse Curran.
— Você pode fazer isso?
Saiman sorriu. — Claro.
— Bom. Julie, pegue a câmera Polaroid.
Saiman esfregou as mãos. A pele do rosto dele se movimentou, como
se uma bola de sinuca rolasse sob ela.
Meu estômago gritou de alarme e tentou se esvaziar.
— Sério? —Derek levantou as sobrancelhas.
— Ele é um pervertido estranho, mas ele é nosso pervertido estranho
e veio aqui para ajudar. Deixe-o ajudar, —eu disse.
Derek franziu a testa.
Curran lançou-lhe um olhar duro. — Quando necessário, use todos
os recursos disponíveis.
— Estou pronto quando você estiver, —disse Saiman.
Não havia como escapar. Suspirei e comecei. — Mandíbula
quadrada ...
Cinco minutos depois, meu visitante intruso estava na nossa frente.
Ele ainda usava as roupas de Saiman, mas o rosto e o cabelo pertenciam
ao homem no fogo.
— Sim, —Derek disse. — Esse é ele.
Curran o examinou, sua expressão firme.
Julie tirou algumas fotos. — Você não disse que ele era bonito.
Obrigada, Julie, exatamente o que eu precisava. — Ele até pode ser
bonito, mas há algo errado com ele.
— De que maneira? —Saiman perguntou.
— Os olhos dele eram ... —Lutei para descrevê-los. — Frios. Não
exatamente neutros, mas distantes. Era como olhar nos olhos de um
crocodilo.
— Interessante, —disse Saiman.
— Ele se parece com algum Antigo que você conhece? —Derek
perguntou.
— Nimrod e Astamur são os únicos Antigos que conheci
pessoalmente, —disse Saiman. — Os Antigos não costumam andar por aí
como gatos vadios.
Eu levantei. — Volto já. E quando eu voltar se o nosso convidado
estiver machucado, ficarei muito chateada.
Julie abriu os olhos o máximo que eles podiam. — Machucá-lo?
Nós?
Subi as escadas e trouxe a caixa para baixo. — Preciso que você olhe
isso.
Saiman voltou para a sua forma neutra e examinou a caixa,
levantando a tampa com os dedos longos e delgados. — Isso é um
artefato?
— Foi deixado na minha porta. —Eu contei a ele sobre o garoto que
queimou até virar cinzas na porta do meu escritório. Quanto mais eu
falava, mais o rosto de Saiman franzia.
— Queimar um corpo vivo, mas tornar o humano imune à dor ... —
Ele murmurou. — O que tudo isso significa?
— Eu não sei.
— Se for uma mensagem, deve haver uma maneira de descobrirmos
quem a enviou. A menos que a arrogância de quem enviou seja tão
grande, que acredita que seria instantaneamente reconhecido.
— Minha tia nos disse que a caixa é uma maneira genérica de
declarar guerra, —expliquei.
— E você não encontrou nada na caixa ou na faca?
— Nada, exceto este símbolo. —Eu desenhei o símbolo para ele.
— Arsênico? Curioso, —ele murmurou.
— Eu tenho um corpo para você, se ainda estiver interessado, —eu
disse a ele. — Fiquei com um para mostrar ao meu pai. —Essa foi uma
das razões pelas quais a viagem demorou tanto tempo. Tivemos que
parar no escritório e retirar o corpo sobressalente do freezer.
— Eu quero.
Curran nos seguiu até o jipe, pegou o corpo ensacado e enrolado em
correntes e carregou para a van escura de Saiman.
Saiman e eu o observamos.
— Por que está fazendo isso? —Perguntei.
— Tivemos nossos altos e baixos. Já fomos parceiros de negócios, já
passamos por coisas juntos. Para seu pai, sou uma bolsa de sangue
magicamente potente. Ele me acorrentou em uma cela de pedra com uma
janela estreita e trancada. Todos os dias, ao nascer do sol, os soldados de
seu pai entravam na minha cela e quebravam os ossos das minhas pernas
com um martelo, para que ele pudesse tirar o máximo proveito da minha
regeneração. Eu não conseguia desacelerar. Meu corpo reconstruía meus
ossos e produzia mais sangue, e todas as noites os soldados voltavam
para drená-lo. Eu estava sentado naquela cela, olhando um pedaço do
céu, e não tinha nenhuma esperança que alguém viria me socorrer. Eu
ficaria lá até morrer.
Eu não quis interrompê-lo para lembrá-lo que já tínhamos
conversado sobre isso antes.
— Então Curran veio e me tirou daquela cela, porque você pediu. —
Saiman não me olhou, seu olhar fixo em algo distante. Ainda tenho
pesadelos. Há noites em que preciso deixar as luzes acesas, como se eu
fosse uma criança. Eu.
Eu o imaginei dentro de seu apartamento sofisticado, com seu
laboratório ultramoderno, suas artes e os seus objetos de luxo, no último
andar de uma torre encantada, com as luzes acesas por causa do medo.
Oh, Saiman.
Saiman olhou para mim e havia gelo verde afiado em seus olhos. Ele
não parecia humano. Parecia uma criatura que havia renascido de um
lugar onde o gelo antigo nunca derretia.
— Eu não posso sair da cidade. Se eu fizer, seu pai vai me encontrar.
Essas ameaças nunca vão acabar, a menos que você o pare, então farei o
que puder para ajudá-la.
Curran enfiou o corpo na van de Saiman.
— Se eu descobrir alguma coisa, irei avisá-la.
Nós o assistimos ir embora.
— O que acha disso? —Perguntou Curran.
— Acho que ele está apavorado, tem medo do meu pai. E quer
vingança.
— Acha que ele irá nos trair?
— Não. Além disso, se não podemos confiar em um gigante do gelo
dirigindo uma van sinistra com um cadáver dentro, em quem mais
poderíamos confiar?
Curran riu.
— Ele sabe que toda essa rua abriga metamorfos e nenhum deles é fã
dele. Saiman entrou na boca das Feras no meio da noite. Estranho. Estou
surpresa que ele não ligou antes.
— Ele não conseguiu, —disse Curran. — Eu quebrei o telefone.
— Como?
— Eu o esmaguei.
Eu me virei e olhei para ele. Curran se orgulhava de seu controle,
especialmente agora que era pai. Ele não batia nas paredes, quebrava
móveis ou gritava. Até seu rugido era geralmente calculado. Por mais que
eu o provocasse e o incomodasse, eu só o tinha visto perder o controle
além de qualquer razão uma vez.
Observá-lo atirar pedras gigantes de uma montanha foi uma
experiência memorável. Mas ele nunca tinha quebrado nada nosso antes.
— Por que quebrou o telefone?
— Estava tentando colocar Conlan na cama e o telefone não parava
de tocar.
— Isso não foi legal.
— Eu sei. Foi um impulso.
— Você não cede a impulsos. O que está acontecendo?
— Sei lá.
— Curran?
— Seu pai está se preparando para nos atacar, aquele maldito
assassino está correndo em Atlanta, as pessoas estão sendo fervidas,
algum idiota está mandando caixas com flores e facas e delegações de
monstros enlouquecidos, nosso filho estava chorando e aquele idiota da
Imobiliária Sunshine ligou novamente perguntando se queríamos vender
nossa casa. Então, apertei o telefone e ele quebrou. Comprarei um novo
para nós.
— Mudei de ideia, —eu disse. — Em vez de irmos treinar, vamos
tomar um bom banho enquanto o bebê está dormindo.
— Humm. —Sua expressão assumiu um tom especulativo.
— Embora com a nossa sorte, ele acorde enquanto subimos as
escadas.
— Vou carregar você, —ele me disse. — Será mais silencioso.
— Não, não vai.
— Você pisa como um rinoceronte.
— Eu deslizo como uma assassina silenciosa.
Os olhos dele brilhavam. — Uma rinoceronte fofa.
— Fofa?
— Hum-rum.
— Veja, agora você selou seu destino. Vou ter que te matar ...
Ele me beijou. Começou suave e quente, como vagar pela escuridão
da noite fria e encontrar uma fogueira. Afundei-me nela, seduzida pela
promessa de amor e calor, e de repente a fogueira ficou mais quente,
ardente. Sua mão deslizou no meu cabelo. Eu me inclinei contra ele,
ansiosa ...
— Arranjem um quarto! —George gritou do outro lado da rua.
Merda. Nós nos separamos. Pelo canto do olho, vi George soltar um
saco de lixo na lata.
Ela estava sorrindo.
Faíscas douradas piscavam nos olhos de Curran, tão intensas que
seus olhos brilhavam. Bem, e quanto a isso?
— Estamos subindo e vamos tomar esse banho, —disse ele. — Não
terei nenhum problema para implorar.
Nem eu, e se ele me beijasse novamente, descobriria isso. — E se o
nosso filho acordar e começar a bater na porta do banheiro enquanto
estamos ocupados na banheira?
— Ameaçarei dar banho nele e ele voltará a dormir.
Curran pegou minha mão, beijou meus dedos e subimos as escadas.

Capítulo 8

HAVIA DOIS PROBLEMAS de ter um filho que acabou de descobrir


que é um metamorfo. Primeiro, Conlan era uma criança hiperativa.
Segundo, os leões são felinos, e os felinos gostam de atacar. Eles gostam
especialmente de atacar seus pais que dormem felizes, pulando para cima
e para baixo na cama, flexionando suas garras.
— São seis ... —bóim! — da manhã. —bóim! — Eu pensei ... —
bóim! — que vocês ... —bóim! — caçavam ... —bóim! — a noite.
— Somos ... —bóim! — adaptáveis. —bóim! — Leões ... —bóim! —
são ativos ... —bóim! — até o entardecer.
— Nós podemos ... —bóim! — deixá-lo ... —bóim! — menos ativo?
Curran agarrou Conlan e o prendeu. — Pare de irritar sua mãe.
— Raurarauara!
— Por que ele está mudando o tempo todo? Não deveria mudar uma
ou duas vezes a cada vinte e quatro horas e depois desmaiar?
— Ele é especial, —disse Curran, segurando Conlan com uma mão.
Eu gemi e coloquei um travesseiro no meu rosto. Fomos dormir
tarde e valeu a pena. Mas eu realmente poderia dormir uma hora a mais.
Ou cinco.
— Posso levá-lo para o quintal, —ofereceu Curran.
— Não, eu já acordei. — Eu me arrastei para fora da cama. — Deve
ter se cansado muito ontem de tanto mudar de forma, dormiu a noite
inteira. Agora estamos pagando por isso.
— Está vendo? Há alguns benefícios em mudar.
— Certo ... —Eu me arrastei para o banheiro. Precisaria de uma
xícara grande de café e pelo menos duas aspirinas para enfrentar o dia.
Quando desci, Derek e Julie estavam na nossa cozinha. A caixa
ainda estava sobre a mesa, junto com várias enciclopédias de símbolos.
Eu dei a Derek um olhar sonolento. — Por que está acordado a essa
hora?
— Curran quer que eu vá a Associação.
Peguei uma xícara de café e me sentei ao lado de Julie. — Alguma
novidade?
— Pode ser um símbolo do misticismo erudito islâmico. Se
91
interpretarmos como um sinal de marcação de trilha , pode indicar: ‘Muito
92
bem’, ‘excelente’. Pode ou não fazer parte da criptografia dos Illuminati .
93
Tenho certeza de que não é um símbolo Hobos .
Suspirei. Tínhamos pessoas sendo assassinadas e abominações
antigas correndo pelas ruas, mas sim, pelo menos os Hobos não estavam
prestes a invadir.
Olhei através da pilha de anotações de Julie. O símbolo me lembrava
algo. Eu simplesmente não conseguia lembrar onde eu tinha visto isso.
Curran entrou na cozinha, carregando Conlan em forma de bebê
humano. O garoto mudava de forma mais rápido do que eu poderia
contar.
— Roland está se preparando para uma invasão, —disse Curran. —
Descobrimos ontem.
Julie e Derek fizeram uma pausa.
— Então, o que isso significa? —Julie perguntou. — Guerra?
Quando?
— Nós não sabemos, —eu disse. — Depende de como ele irá fazer
isso. Ele não trouxe Hugh de volta do exílio. Já saberíamos se isso tivesse
acontecido. Então pelo menos temos uma vantagem.
— D'Ambray ainda pode ser um problema, —disse Curran.
— Eu duvido. Faz anos que ele deu sinais de vida, —murmurei,
folheando as páginas. Um dos desenhos de Julie mostrava uma linha
ondulada dentro dos círculos com dois pontos no centro. Eu já tinha visto
isso antes, mas onde?
— Talvez ele esteja casado e morando em algum castelo, feliz da
vida, —disse Julie.
Eu soltei uma risada curta. — Hugh?
Ela não respondeu, então olhei para cima. Julie tinha uma expressão
obstinada no rosto, a linha da mandíbula firme. Certo. Eu e minha boca
grande. Hugh tinha sido vinculado a meu pai da mesma forma que Julie
estava vinculada a mim. Hugh era seu único exemplo do que o futuro
reservava para alguém ligado ao nosso sangue. Eu sempre esquecia de ter
cuidado no que dizia toda vez que Hugh era mencionado.
— Eu sei que você quer que ele encontre redenção, mas esse não é
Hugh. Ele é uma bola de demolição. Ele destrói. Se ainda não voltou
para me matar ou a nenhum de nós, provavelmente é porque está morto.
Casamento e estabelecimento não é para ele. Isso não significa que não é
para você, mas não é para ele.
— Às vezes você realmente consegue ter a mente fechada, —disse
ela.
— Às vezes a gente acaba transformando em herói a pessoa errada,
mas quando ela falhar, doerá.
Ela engoliu o resto do chá e se levantou. — Tenho que ir ao Warren.
Alguém está desenhando esses sinais nas paredes. Coloquei alguns
informantes ontem, então tenho que ir ver se eles têm alguma novidade
para mim.
— Espere. E isso? —Mostrei a ela o desenho ondulado.
Julie fez uma careta. — Quando vejo a magia, às vezes é clara ou
radiante e às vezes é nebulosa, mais como névoa. A magia da caixa é
como névoa. Ela muda e oscila e meio que se enrola dentro dos círculos
em um padrão. Não sei se é intencional ou apenas interferência da magia.
—Julie se virou para a porta.
— Tenha cuidado, —eu disse a ela.
— Eu estava pensando em entrar de cabeça nos perigos sem qualquer
cuidado, mas agora que você me alertou, terei todo o cuidado.
— Faça do jeito que você quiser, —eu disse a ela. — Mas se entrar
em problemas, não vou te salvar.
— Ha! Tenho certeza absoluta que você vai. —Ela deu a língua para
mim e saiu pela porta da cozinha, em direção os estábulos dos cavalos.
— O Pervertido está certo, —disse Curran. — Você é contagiosa.
— Hum-rum. —O símbolo definitivamente parecia algo agora. Olhei
para o padrão ondulado. Onde eu tinha visto isso antes ...?
Curran apoiou a mão no meu ombro. Eu toquei sua mão.
— Qual é o plano para hoje? —Ele me perguntou.
— Estou indo para o escritório e me acorrentando ao telefone.
Ligarei para todo mundo que eu puder e falarei com eles sobre Serenbe,
então vou entrar em contato com outras localidades e ver se alguém tem
conhecimento de alguma ocorrência semelhante. Vou ligar para outras
pessoas e ver se eles sabem alguma coisa sobre os yeddimur e as criaturas
que nos atacaram ontem. Se der, passarei no PAD e verei se eles
reconhecem o nosso loiro.
— Pegue o jipe. Vou andar com Derek e comprar um segundo carro
para nós esta tarde.
— Obrigada. —Pontos para mim, fiquei com o jipe. — Adora deve
chegar de um trabalho esta manhã.
Eu liguei para a Associação ontem à noite e o Recepcionista me disse
94
que Adora estava capturando uma harpia e que retornaria à Associação
hoje de manhã.
— Vou pedir que ela venha para casa e fique de olho em Yu Fong.
George e Martha estarão fora hoje, —disse Curran. — Eu posso levar o
garoto comigo para a Associação.
— Você não tem uma reunião de orçamento?
— Eu não me importo.
As reuniões de orçamento da Associação eram como intrigas da
corte espanhola: complexas, cheias de tensão e frequentemente
dramáticas. A última coisa que precisávamos era de Conlan reagindo a
tudo isso. Minha mente imaginou meu filho em meia forma, enquanto
um bando de Mercenários o perseguia com redes pela Associação.
— Posso levá-lo comigo para a Cutting Edge e depois eu me
encontro com você na Associação. Vou te dar um tempo para a reunião.
— Como você quiser, —disse Curran.

*******
QUANDO CHEGUEI A CUTTING EDGE, a luz na minha secretária
eletrônica estava piscando. Apertei o botão, ela chiou por causa da
interferência da estática e me disse na voz de Luther: — Venha me ver.
Eu tenho uma coisa para você.
A experiência me disse que ligar para Luther seria inútil. Como
ninguém, além de Luther, não me deixou uma mensagem esclarecedora,
coloquei Conlan de volta no banco do carro e partimos para o covil do
mago dos Riscos Biológicos.
O Riscos Biológicos, ou o Centro de Contenção Mágica e Prevenção
de Doenças, como era oficialmente conhecido, ocupava um grande
edifício construído em granito cinza local. Um alto muro de pedra,
coberto com arame farpado e cravejado de estacas de prata, se estendia
dos lados para envolver uma grande área na parte de trás do Centro.
95 96
Vários obuses e balistas enfeitiçadas aguardavam no telhado. O lugar
parecia uma fortaleza. O Riscos Biológicos levava a sua função de
contenção a sério.
Peguei Conlan da cadeirinha e atravessei as grandes portas para o
saguão espaçoso. Conlan enfiou a mão na boca e olhou em volta para as
altas paredes de granito, os olhos arregalados. O guarda de plantão na
mesa me acenou sem um segundo olhar. Eu era uma visitante frequente.
Levei Conlan pelas escadas de pedra, passei pelas pessoas correndo
de um lado para o outro e virei à direita em um longo corredor. O
laboratório de Luther ficava a segunda porta à direita. A porta alta e
97
pesada estava escancarada. A música flutuava no ar, David Bowie
cantava algo sobre ‘apagar fogo com gasolina’. Conlan se contorceu em
minhas mãos.
A magia tomou conta do mundo. A música acabou, a nota musical
98
cortada pela metade. As manchas negras de turmalina embutidas no
granito vibraram com energia e brilharam enquanto a magia corria
através delas. Conlan girou a cabeça como um gatinho curioso.
— Paddadada ...
— Brilhante.
— Bianti.
— Isso mesmo. Brilhante.
Fui até a parede e o deixei tocar no granito. Ele tentou arranhar as
manchas escuras e brilhantes, depois se inclinou para a parede e a
lambeu.
Uma mulher vestindo avental passou por nós e me deu um olhar
estranho.
— O lado bom agora, —sussurrei para Conlan. — É que não
precisamos mais nos preocupar com germes.
Luther possuía muito poder mágico, tinha suas próprias opiniões e
não tinha medo de correr riscos. Seu espaço de trabalho refletia isso.
Várias mesas de laboratório à prova de fogo margeavam as paredes,
99 100
cheias de microscópios , centrífugas e outros equipamentos bizarros,
resultado da necessidade de realizar pesquisas através da constante
101
gangorra da magia e tecnologia. Um chuveiro de descontaminação
ocupava o canto mais distante. A parede à esquerda sustentava uma
espingarda, um extintor de incêndio, um lança-chamas e um machado
102
estilo viking e em cima disso tudo havia uma placa que dizia: PLANO B.
Normalmente, uma mesa de exame de metal ocupava o centro da
sala. Hoje a mesa estava empurrada para o lado. Um grande círculo de
giz e sal marcava o piso de concreto. Luther estava no círculo, com os
olhos fechados, as mãos levantadas na frente dele. Ele usava um jaleco
surrado e que provavelmente já foi lavado tantas vezes que ninguém
conseguiria determinar sua cor original sem um trabalho de investigação
séria.
— Aquele ali é Luther, —eu disse a Conlan. — Ele é um mago
importante. Ele também é estranho. Muito estranho.
— Eu posso ouvi-la, pagã, —disse Luther. — Coloque sua espada na
caixa ou não entre.
Suspirei, puxei Sarrat para fora da bainha nas minhas costas e
coloquei na caixa de madeira sobre a mesa de metal perto da entrada.
Esse era um ritual constante desde que eu estava grávida. Luther
afirmava que as emissões de Sarrat interferiam em seu equipamento de
diagnóstico.
— E a faca.
— Por que a faca? Não tem magia.
— Você acha que não tem magia. Mas tudo o que lida diariamente é
manchado com sua magia. Só porque não pode ver, não significa que não
está lá.
Eu arqueei minha sobrancelha para ele.
— Caaaiiixa, —Luther entoou, como se fosse uma oração budista.
Puxei minha faca e a deixei cair na caixa. Coloquei também minha
103
faca de bolso dentes de tubarão , junto com meu cinto.
— Satisfeito?
— Sim.
— Devo colocar o bebê na caixa também?
— Ele não cabe nela.
Suspirei.
— O que você está fazendo?
— Limpando meu espaço de trabalho. Eu gostaria que as pessoas
parassem de tirar porcarias estranhas de Unicorn Lane, porque depois
acabam nos ligando em pânico quando essas coisas tentam comer suas
crianças.
— Você está certo, eles deveriam apenas deixar que essas coisas
devorem seus filhos.
— Há-há-há. Tão engraçada. Por acaso ontem, eu tive que largar
tudo que estava fazendo para realizar uma análise de emergência de um
item que ameaçava crianças, e a tecnologia me interrompeu, então acabei
ficando com todo o tipo de bagunça residual nesse campo de contenção.
Luther apertou as mãos em punhos. Um pulso de magia explodiu
dele, encharcando o círculo. — Pronto. Agora sim.
Ele passou pela fronteira de magia e congelou, seu olhar fixo em
Conlan. Um momento se passou. Luther engasgou e apontou.
— Sim, é uma criança humana, —eu disse a ele.
— Me dê!
104
— Vou deixar você segurá-lo se jurar pela barba de Merlin . —Só
porque seria engraçado.
— Pela barba de Merlin, qualquer coisa, me dê.
Entreguei Conlan a ele. Luther o pegou, com cuidado, como se meu
filho fosse feito de vidro. Conlan olhou para ele com seus grandes olhos
cinzentos.
— Olá, —Luther disse, sua voz quase acima de um sussurro. —
Você não é uma maravilha?
A maravilha peidou.
Eu ri.
— Quando ele acordou? —Luther perguntou.
— Por volta das seis da manhã.
— Não é isso que estou perguntando! Quando a magia dele se
manifestou?
— Alguns dias atrás. Algo o assustou e ele reagiu.
Luther olhou para meu filho com reverência. A imagem deles dois
era interessante, meu bebê com seus olhos de gatinho e cabeça cheia de
cabelos escuros e suaves e Luther, um mago excêntrico e levemente
despenteado.
— É como segurar uma bomba nuclear, —disse Luther.
— Você acabou de estragar o momento.
— Ele está cheio de magia. Brilhando intensamente. Eu não tinha
ideia de que isso estava dentro dele.
— Ele ainda não sabe esconder sua magia.
Luther olhou para mim. — É assim que você se parece? Mostre-me.
Sim, e para o meu próximo truque vou dançar e cantar uma música. —
Não.
— Eu analisei a criatura morta para você. De graça.
— É seu dever como funcionário público. Você faria de qualquer
maneira.
— Kate! Não seja difícil.
— Tudo bem.
Soltei o controle que escondia minha magia. Luther piscou. Ele deu
um passo à frente com muito cuidado, depositou Conlan em minhas
mãos e deu um passo para trás.
Uma mulher loira de avental apareceu na porta. — O que há com
toda essa magia transbordando daqui de dentro? Droga, Luther, você não
pode controlar o seu? ... —Ela nos viu e parou. Os olhos dela se
arregalaram.
— Uau, —ela disse baixinho.
— Eu sei, não é? —Luther disse calmamente.
Por um tempo eles apenas olharam para nós. Conlan se contorceu
em meus braços.
— É isso que seremos um dia? —A mulher murmurou. — Nosso
futuro?
— Isso é o que éramos no passado. —Luther suspirou. — É melhor
escondê-la novamente antes que Allen corra aqui. Passaremos o dia
inteiro tentando convencê-lo a sair.
Eu escondi minha magia.
A mulher permaneceu por alguns momentos, balançou a cabeça e
saiu. Sentei Conlan no chão. Ele correu em direção ao círculo de giz,
intrigado com o limite mágico da linha e estendeu a mão, tocando a
parede de magia com a mão na frente do rosto.
— Ele sente o limite, —eu disse a Luther.
— Isso é assustadoramente fofo. —Luther pegou uma maçaneta em
uma das portas quadradas de metal na parede e puxou uma prateleira
para cadáver. Nele estavam os restos de uma das criaturas que nos
atacou.
Conlan pulou no lugar, ao redor da linha de giz, seu pulo alcançado
cerca de uns três centímetros de altura.
— Você quer pular? —Luther disse.
— Não o encoraje.
— É bom para ele tentar. É um grande marco no desenvolvimento.
As crianças aprendem a dar pequenos saltos por volta dos dois anos de
idade. É emocionante para elas.
— Como sabe disso?
Luther me lançou um olhar. — Tenho sobrinhas. Não há mal
nenhum. Tudo o que ele pode fazer é dar um pulo. —Ele acenou para
Conlan. — Não ouça sua mãe. Você consegue. Pule!
Conlan se agachou em uma bola apertada. Eu já vi Curran fazer isso
cem vezes.
— Você consegue! —Luther o incentivou.
Conlan saltou um metro no ar, atravessou três metros e aterrissou no
meio do círculo. A mandíbula de Luther estava aberta.
Conlan riu e pulou para fora do círculo de novo. Em seguida, voltou
a pular para dentro.
— Então, —disse Luther. — Ele é um metamorfo.
— Oh, sim. Você está desviando do nosso assunto, Luther.
— Eu não estou desviando. Não costumo ficar tentando descobrir a
magia dos filhos dos outros, isso seria meio assustador. Mas seu filho está
emitindo todo tipo de magia.
Dentro e fora. Dentro e fora. Quando chegarmos em casa, eu desenharei
um círculo para Conlan. Isso o manterá ocupado por alguns minutos.
— Ele é um metamorfo, —disse Luther novamente.
— Eu já disse que ele é.
Ele me encarou. — Kate. Ele é um metamorfo com magia.
— Dali também é uma metamorfa com magia.
— Dali é um animal sagrado. Completamente diferente. Toda a
magia dela é de origem divina. Ela amaldiçoa e purifica. Ele é um
metamorfo e tem magia. Montanhas de magia. Oceanos de magia.
Nunca houve nada parecido.
Não me diga. — Algum progresso com Serenbe?
— Vai mudar de assunto descaradamente.
— Sim. Algum progresso?
Luther balançou a cabeça. — Não.
— Nada mesmo?
— Nada além do que eu te enviei. O GBI está entrevistando os
parentes das vítimas. Ninguém andava adorando os deuses das trevas.
Ninguém estava convocando nada. A maioria deles tinha pouca magia.
Havia alguns magos de plantas e insetos. O de sempre. Um deles era um
ex mercenário. Você pode tê-lo conhecido. Ele era conhecido por Shock.
— Shock Collins?
— Sim.
— Ele deixou a Associação quando ela quase faliu. Eu não tinha
ideia de que ele se mudou para lá. Você tem certeza de que ele é uma das
vítimas?
— Sim. Encontramos a carteira dele em sua casa, com o documento
de habilitação e identidade da Associação.
Esta era uma má notícia. Shock Collins tinha sido um mercenário
cuidadoso e habilidoso, que se tornava agressivo quando encurralado.
Sobreviveu a várias missões perigosas que deveriam tê-lo matado, e
poderia eletrocutar um atacante em um piscar de olhos. Ele não se
deixaria levar.
— Sinais de luta na casa dele?
— Não.
— Mas que mer ... meleca é essa?
Luther abaixou os óculos e olhou para mim. Apontei para Conlan
por cima do ombro. — A maternidade faz você vigiar sua boca.
— Eu tenho algo sobre seu amigo monstro peludo, —disse Luther.
— À primeira vista, parecia ser uma nova espécie de monstro pós-
Mudança, até abrirmos esse espécime hediondo e brincarmos um pouco
com suas entranhas.
Ele puxou uma mesa de metal, colocando ao lado da prateleira de
cadáver e abriu um compartimento de metal na prateleira, revelando uma
maçaneta. Luther agarrou a maçaneta, a puxou e o corpo deslizou
ordenadamente sobre a mesa de exame. Luther rolou a mesa para baixo
de uma lanterna a gás. Eu o segui.
Luther puxou o lençol, revelando as grandes cicatrizes da autópsia.
Assim morto, o impacto da criatura não era tão forte, mas a repulsa
passou por mim da mesma forma.
— O que você sente quando olha para isso?
— Fome, —disse Luther.
— Você precisa de ajuda psicológica, —eu disse a ele.
— Eu não tomei café da manhã, nem almocei hoje.
— Sério, Luther, você tem uma sensação de que há algo muito
errado com ele?
— Não.
Suspirei.
105
— A não ser que esteja se referindo ao miasma da corrupção, tão
grossa que se pode cortá-la com uma faca e servi-la com ketchup. Com
quem pensa que está falando? Claro que sinto o miasma. Teria que ser
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cego, surdo e anósmico para não reagir a isso e, mesmo assim, ainda
sentiria.
— Por que sentimos isso?
— Porque essa criatura se originou de um humano.
— Eu imaginei isso. Julie disse que eles emanam assinatura de magia
azul, então provavelmente possuem um ancestral humano.
— Não, não ancestral. —Luther fez uma careta. — Ela nasceu
humana.
Apontei para a criatura peluda e torcida. — Isso já foi um humano?
Luther tossiu. — Sim. Provavelmente.
— Então, o que é isso, alguma forma estranha de loupismo?
— Essa foi a teoria da nossa investigação por um tempo, mas não
encontramos Lyc-V em seu sistema.
— Você tem certeza? Porque eles foram realmente difíceis de matar.
— Tenho certeza. O corpo sofreu mudanças profundas. Todos os
107
órgãos humanos ainda estão lá, mas tudo foi alterado. A fáscia , que é o
... —Lutero tossiu novamente. Ele parecia engasgado.
— ... tecido conjuntivo fibroso que envolve órgãos e musculatura ...
reforçando ... —Luther se dobrou, tossindo.
Atrás dele, uma nuvem de pó verde-esmeralda se espalhou através da
porta. O pó lambeu os limites do círculo e recuou.
Luther se endireitou. Uma nuvem de pó verde escapou de sua boca.
Seus olhos me encararam, vidrados e frios.
Havia mais de um metro entre mim e o círculo. Pulei para dentro do
círculo em um único salto, peguei Conlan no meio do salto e me afastei
em direção ao centro da Proteção.
O pó verde-esmeralda encheu a sala agora, movendo-se como véus
translúcidos ao nosso redor. Somente a superfície do círculo permaneceu
limpa. Sarrat e todas as minhas armas estavam convenientemente
guardadas na estúpida caixa de Luther, profundamente cobertas pelo pó
verde. Maravilha.
Luther deu um passo rígido, como um fantoche puxado por cordas.
— Traidora, —ele sussurrou com uma voz sibilante.
Conlan rosnou em meus braços.
Ah bom, parece que a coisa queria conversar. — Quem eu traí?
— Cadela traidora estúpida. Indigna.
Será que tinha alguma coisa a ver com a caixa? — De todos os insultos
por aí, esses são o que escolheu? Patético.
— Ele fez tudo por você. Você não está preparada para lamber as
solas das botas dele.
— Lamber merda é o seu trabalho, não o meu. —Quanto mais eu
irritasse, mais a coisa falaria e mais rápido eu descobria o que diabos
estava acontecendo. — Tente mais um pouco.
Luther se moveu em pequenos empurrões. Ele estava lutando com a
coisa, seja lá quem ela era. Ele também era uma distração. Quando
alguém quer lançar um ataque surpresa, é muito útil que seu alvo foque a
atenção em outra pessoa.
Luther estava sendo usado para me manter ocupada. Quando o
ataque ocorresse, eu estaria despreparada. Precisava segurar Conlan
também. Teria que deixá-lo sozinho para nos defender e confiar que ele
ficaria no círculo. Ele tinha apenas um ano de idade. Não tinha sentido.
O garoto lambia paredes e comia sabão, pelo amor de Deus.
— Ele te deu a vida.
Não, não tinha nada a ver com a caixa. Era Roland.
— Ele é Deus. Ele é vida. Ele é santo. Você é uma abominação.
Apenas um grupo de pessoas pensaria que Roland era santo e que
servi-lo seria a garantia de ir para o céu. O pó pertencia a um Sahanu.
Vasculhei minha lista mental de Sahanus sobre a qual Adora me
falou. Isso não combinava com ninguém em particular, mas ela disse que
os Sahanus mantinham seus poderes ocultos.
— Meu pai é um mentiroso. —Um ponto em minhas costas coçava.
A Sahanu tinha que estar logo atrás de mim.
— Blasfêmia!
Fanáticos religiosos. Pessoas razoáveis e compreensivas, facilmente
persuadidas por fatos e argumentos lógicos.
— Não há céu esperando por você. Ele te alimentou com mentiras e
você engoliu tudo. Meu pai é esperto demais para se tornar um deus.
Quando se aceita a divindade, seus pensamentos e ações não são mais
seus. Você saberia disso se não fosse cego e surdo. Pense por si mesmo,
tente. Isso vai ajudar.
Usar Palavras de Poder contra os assassinos de meu pai era
arriscado. Alguns deles tinham o benefício do sangue de meu pai, o que
tornava provável a Palavra bater e voltar para mim. Muitos deles usavam
Palavras de Poder. Com Luther possuído, havia uma boa chance de que
qualquer Palavra de Poder que eu usasse o atingisse também.
Luther se inclinou para frente, arreganhando os dentes. — Eu vou te
matar. Vou comer sua carne e depois vou comer seu bebê. Vou mastigar
sua carne macia e serei um deus.
Raiva fria explodiu através de mim. O mundo ficou claro como
cristal. — E o que meu pai fará quando descobrir que você devorou o
neto dele?
— Vai me elogiar. Ele ordenou que nós a matássemos e levássemos seu
filho, mas eu vou comê-lo.
Quando finalmente encontrar meu pai, teremos uma conversinha.
— Vou sugar a medula dos ossos do seu bebê e consumir a magia dele.
Então serei ainda mais poderosa.
— Não, você não vai. —Olhei com desdém para Luther. Eu tinha
um ótimo exemplo em casa quando se tratava de escárnio. Não havia
ninguém que pudesse humilhar melhor a qualquer um como a Eahrratim,
a Rosa do Tigre, a minha tia.
— Você e qual exército, idiota? Eu sou a Princesa de Shinar, a Lâmina
de sangue de Atlanta. Minha linha se estende há milhares de anos no
passado. Minha família estava construindo palácios enquanto seus
ancestrais se encolhiam dentro de suas cabanas de barro. Você é fraca,
estúpida, é um ninguém. Que ameaça você poderia ser? Você sonha com o
poder que eu já tenho. Um tigre não percebe o verme que ele esmaga sob a
pata. Rasteje-se, pequeno verme. Rasteje o mais rápido que puder.
Senti o momento exato em que a criatura saiu da neblina e entrou no
círculo. Larguei Conlan e dei um passo para trás, me afastando. Meu
cérebro registrou o ataque em uma fração de segundo: mulher loira,
esbelta, meu tamanho, minha altura, jovem, uma adaga em cada mão.
A adaga da direita apunhalou o ar a um centímetro do meu peito.
Agarrei seu pulso com a minha mão direita, com o objetivo de esmagar o
cotovelo com a palma da mão esquerda. Ela se agachou e cortou meu
bíceps direito com a outra adaga. Uma linha quente de dor rasgou meu
braço, como um chicote quente batendo na minha pele. Eu dei um chute.
Ela levantou os braços, cobrindo-se no último momento, e se virou. Meu
pé mal bateu nela. A mulher se levantou e saltou de volta para a névoa
verde.
Voltei para Conlan. Ele estava exatamente onde eu o deixei, sentado
no chão. Obrigada, quem quer que esteja no andar de cima, pelo milagre.
Obrigada.
Conlan estava sentado aos meus pés. Fiquei parada. Meu braço
direito ardia de dor. Ela era muito rápida e seus punhais eram afiados
como navalhas. O sangramento não era grave. Eu poderia selar, mas não
iria durar. No momento em que eu usasse o braço, sangraria. Isso era
bom. Eu poderia usar o sangue.
A névoa fluía para frente e para trás, mudando em padrões
cintilantes. Esperei, todos os meus sentidos concentrados em captar
qualquer sugestão de movimento, um sussurro de som. Qualquer coisa.
Momentos se arrastaram.
Conlan virou a cabeça levemente para a esquerda. Eu mantive meu
olhar na névoa, observando-o com a minha visão periférica. Ele virou a
cabeça um pouco mais. Um pouco mais. Meu filho era um metamorfo e
um predador. Com audição sobrenatural.
Continuei olhando para a direita, em direção a Luther.
Um momento.
Outro.
Outro ...
Ela saiu da névoa à minha esquerda, pulando. Dei um passo rápido
com o pé direito para ganhar impulso e a chutei. Meu pé bateu nas
costelas dela. Osso triturou. O impacto a levou de volta à neblina.
Esperei. Conlan estava se voltando para a direita agora. Meu chute a
machucou. Ela tentaria proteger o lado ferido agora.
Um grunhido baixo e animalesco veio de Luther. Parecia meio
bestial, meio obsceno. Os grunhidos aumentaram de volume. Distração
através de barulhos. Ela estava tentando abafar os passos dela usando os
grunhidos de Luther.
— Ainda posso ouvir você, verme. —Levantei minha mão e acenei,
carregando cada gota de arrogância que eu tinha em minha voz. —
Venha até mim. Aceite sua morte com elegância.
Luther ficou em silêncio, mas a Sahanu continuou escondida. Droga.
Por alguma razão, o escárnio funcionava muito melhor com a minha tia
do que comigo. Eu precisava praticar mais.
Conlan virou à direita. Eu não tinha ideia de como sabia que o
ataque viria de cima para baixo. Não vi ou ouvi nada, mas algo me disse
que Conlan era o alvo. Eu me agachei, o peguei no colo e o abracei,
protegendo-o com meu corpo. Uma adaga saiu voando do pó e afundou
sua lâmina no meu ombro esquerdo, uns dois centímetros de
profundidade.
Idiota. Jogar adagas só funcionava em filmes.
Puxei a lâmina e me levantei a tempo de bloquear sua faca quando
ela entrou no círculo. A mulher me golpeou e eu cortei seu braço. Sangue
cobriu minha adaga. Obrigada pela faca, imbecil.
A Sahanu explodiu em uma onda de golpes e facadas. Fechei a
distância, trabalhando nela, rápido e fluido. As cores, os barulhos, seus
movimentos, seus olhos azuis, tudo ficou tão claro e nítido que quase
doeu.
Quando eu tinha oito anos, Voron me levou a um homem chamado
Nimuel. Seu nome significava ‘paz’ em seu idioma nativo, e era
exatamente isso que seus oponentes encontravam quando o atacavam
com uma faca. Enquanto eu lutava com a mulher, bloqueando seus
braços com os meus, envolvendo meus dedos em torno de seus pulsos,
usando meus pulsos para canalizar seus ataques, cortando seus
antebraços, ouvi a voz calma de Nimuel em minha cabeça. ‘Debaixo da
ponte, em cima da ponte, sobre a ponte, dentro, fora ...’
Ela não tocaria um fio de cabelo do meu filho.
A Sahanu rosnou, esfaqueando e cortando, e encontrando apenas ar.
Eu a rasguei uma dúzia de vezes, mas ela era extremamente rápida. Foda-
se!
‘Sobre a ponte ... Abre a janela.’
Eu desviei mais lenta do que devia. A adaga dela pintou uma linha
vermelha brilhante no meu braço esquerdo. Enquanto ela estava ocupada
cortando, eu afundei a minha adaga na lateral do corpo dela.
Ela se afastou de mim, levando a adaga com ela.
Apertei meu braço na minha ferida e joguei meu sangue na direção
dela, as gotas se transformaram em agulhas enquanto atravessavam o ar.
As agulhas de sangue afundaram no rosto dela.
A mulher correu para a névoa. Fui atrás dela, mas ela havia
desparecido no pó verde. Merda.
Atrás de mim, a magia moveu-se.

— Não em meu território! —Luther rugiu.


A magia explodiu fora dele e rasgou a sala, congelando a cortina de
pó verde. O pó explodiu, cada partícula verde-esmeralda se
transformando em uma pequena flor branca. Elas flutuaram em uma
chuva chocantemente bonita, agitada pela mais leve brisa, e eu vi a
Sahanu a três metros de mim, com o rosto atordoado, a boca
escancarada, cheia de afiadas presas desumanas.
Presas.
Ataquei. Tirei um microscópio pesado do balcão do laboratório.
É muito difícil impedir o ataque com força total de alguém quando
suas costas estão contra a parede.
Ela me golpeou e eu esmaguei o microscópio contra sua adaga. A
lâmina caiu no chão. Inverti meu balanço e dirigi o microscópio em sua
mandíbula. O sangue voou. O golpe a empurrou, chocando-a contra a
parede. Ela cambaleou, arranhando-me. Eu martelei o microscópio no
rosto dela. Esse golpe a derrubou. Sentei em cima dela antes que tivesse a
chance de se levantar e a golpeei com o microscópio como um se fosse
um martelo. O sangue voou, grosso e vermelho.
Coma isso, sua puta.
Eu bati nela de novo e de novo, com precisão metódica, colocando o
peso da minha mão na zona de ataque entre os olhos dela. Seu rosto
estava uma massa de ossos e sangue, mas eu tinha que ter certeza de que
estava realmente morta.
— Kate!
Outro golpe. O espirro vermelho de seu sangue manchou as
pequenas flores brancas girando em torno de nós.
— Kate! —Luther gritou ao meu lado, sua voz aguda. — Ela está
morta.
Ele estava certo. Ela estava morta. Mas bati nela novamente, só para
ter certeza, me endireitei e entreguei a ele o microscópio sangrento.
Conlan chorou.
Ah não.
Eu corri para ele e o peguei do chão. — Estou aqui. Estou aqui.
Mamãe te pegou.
Ele lamentou. Percebi que minhas mãos estavam sangrando e acabei
sujando as roupas dele com o sangue da Sahanu.
Conlan chorou mais ainda, sua voz alta, lágrimas molhando suas
bochechas.
— Shiiii. —Eu o balancei. — Está bem. Tudo vai dar certo. Estou
aqui. Mamãe pegou você. Não vou deixar ninguém te comer. Matarei
cada um deles.
Ele não conseguia entender que a mulher estava prestes a comê-lo. O
que diabos estava saindo da minha boca?
Balancei para frente e para trás. Conlan chorou e chorou, lágrimas
caindo de seus olhos cinzentos. Oh, queridos deuses, eu traumatizei meu filho.
Bati em uma pessoa até a morte na frente dele. Ele ficaria marcado pela vida toda.
— Você tem alguma comida?
Luther correu para a geladeira e a abriu. Salada, uma jarra de chá,
um pote de mel.
— Mel, —eu disse a ele.
Ele trouxe o frasco. Segurei a mão de Conlan. — Despeje um pouco
na mão dele.
Luther pegou uma colher e colocou uma grande quantidade de mel
na mão de Conlan.
Conlan fungou e lambeu a mão. Por um momento, ele desconfiou
que poderia ser algum truque sujo e enfiou a mão na boca.
— Os bebês não deveriam comer mel, —disse Luther, sua voz
levemente rouca. — Pode conter Clostridium botulinum. É uma bactéria
que causa ...
108
— Botulismo . Eu sei. Ele tem um ano de idade. É seguro. Além
disso, ele é um metamorfo e seus avós metamorfos ursos o alimentam
com mel desde que ele podia segurar um bolinho de mel na mão, não
importava o que eu dissesse, e depois mentia na minha cara sobre isso.
— Como você sabe sobre botulismo? —Luther perguntou.
— Quando estava grávida, não pude fazer muito, então li todos os
livros sobre bebês. Conheço todas as coisas ruins que podem acontecer.
109 110
—Abracei Conlan mais apertados. — Eu sei sobre roséola , RSV e
111 112
gastroenterite . Seu maior problema não é pegar coqueluche . É o seu
avô megalomaníaco delirante tentando matá-lo.
Beijei o cabelo de Conlan. Ninguém tocaria no meu filho. Nem um fio de
cabelo dele.
Conlan se inclinou contra mim e apontou para o corpo. — Mau.
— Sim, —eu confirmei. — Mau. Muito mau.
Ele estava bem. Eu a matei e ele estava bem. Tudo ficaria bem agora.
Eu só precisava respirar. A fúria estava me sufocando.
Meu pai ordenou um ataque para mim. Ele colocou a vida de seu
neto em perigo. A profecia e todas as visões do futuro que recebi me
disseram que meu pai tentaria matá-lo, mas dá-lo como comida para seus
assassinos de estimação, isso estava além do Roland.
Luther empurrou um banquinho para mim.
Eu sentei.
Ele olhou para a Sahanu morta. — É muita audácia me atacar com a
magia das plantas em meu próprio território.
— Somente você usaria uma palavra ‘audácia' em um momento
como este.
Ele olhou para a cabeça arruinada. — Eu nunca vi você assustada
antes.
— Bem, eu nunca vi você transformar uma sala cheia de esporos que
controlam a mente em uma tempestade de flores antes.
Luther piscou.
— Miasma? —Eu disse a ele. — Você estava me falando sobre as
mudanças no corpo da criatura.
Ele olhou para mim como se eu estivesse falando chinês, depois se
sacudiu. — A criatura. Certo. Por que você vomita quando vê alguém
vomitando ou sente o cheiro de vômito?
— Eu não sei.
— É um mecanismo de sobrevivência biológica. Os humanos
primitivos existiam em grupos familiares. Eles dormiam no mesmo lugar
e comiam as mesmas coisas.
Peças do quebra-cabeça se uniram na minha cabeça. — Então, se
uma pessoa vomitou, é porque provavelmente foi envenenada, dessa
forma todos precisaram vomitar para não morrer.
— Sim. É o mesmo com o miasma. Seu corpo está lhe avisando que
o que fez desse humano essa criatura peluda é um perigo crítico para
você. Deve ser destruído.
Um pensamento horrível me ocorreu. — Acha que pode ser
contagioso?
— Não posso confirmar que não.
Curran e Derek estariam imunes. Lyc-V mataria o patógeno invasor.
Julie tinha meu sangue. Ela deveria ser imune também. Mas e as outras
pessoas?
— O cadáver de Tucker se transformou nisso?
— Não. Eu o verifiquei ontem à noite no necrotério e novamente
nesta manhã. Qualquer que seja esse patógeno, precisa de um hospedeiro
vivo.
— Você está me dizendo que, se essas coisas forem contagiosas, elas
podem infectar a cidade inteira?
— Exatamente. Podemos ter uma versão do nosso próprio
apocalipse zumbi em nossas mãos.
Nós olhamos um para o outro.
— Preciso de algo para beber. —disse Luther saindo do banquinho.
Ele foi até a geladeira, puxou um frasco e estendeu para mim. Eu
balancei minha cabeça. Ele levou o frasco aos lábios e deu um gole. As
linhas de tensão em seu rosto diminuíram.
— O que é isso? —Perguntei.
— Chocolate Artesanal Holandês. Cinquenta por cento de açúcar em
sua composição. Chegou esta manhã, guardo apenas para caso de
emergência. Você não sabe o que está perdendo. —Ele levantou o frasco
em um brinde. — Pelo o bebê brilhante e por você ainda estar viva.
Bebê brilhante. Conlan não podia esconder sua magia. Ele estava
emitindo-a como um farol no meio de uma noite escura. Eu nem tinha
percebido. Aconteceu quando ele mudou pela primeira vez, e eu acabei
aceitando sem pensar. Parecia tão natural e normal de alguma forma. Se
qualquer Sahanu pudesse sentir magia, eles o veriam. Eles poderiam
rastreá-lo. Reconheceriam instantaneamente a assinatura da minha magia
e do meu pai nele. E estávamos sentados aqui. Expostos.
Pulei do banquinho e corri para a caixa.
— O que foi?
— Eu tenho que ir. —Abri a tampa, coloquei Conlan no chão e
agarrei meu cinto. Conlan agarrou minhas calças, abraçando minha
perna.
— Você está sangrando.
— Eu tenho que ir, Luther.
— Kate? Kate!
Enfiei minha faca na bainha e deslizei Sarrat na bainha nas minhas
costas. Eu não me incomodei em pegar a faca dentes de tubarão. Ela
levaria muito tempo. Peguei Conlan e saí correndo pelo corredor. As
pessoas estavam correndo em nossa direção enquanto o resto do Riscos
Biológicos acordava com o fato de que algo havia dado errado. Passei por
eles, desci as escadas duas de cada vez, saí pela porta e corri para o carro,
examinando a praça em busca de perigo.
Comecei a cantar a seis metros do veículo, enfiei Conlan no banco
do carro, levei um precioso segundo para afivelá-lo e entrei no banco do
motorista, trancando o cinto de segurança. Minutos se passaram
enquanto o motor de água encantada esquentava. Eu daria meu braço
esquerdo para poder girar a chave e dar o fora daqui.
Finalmente, o motor mágico ligou. Saí do estacionamento e quase
colidi com outro veículo, um SUV blindado que tinha mais em comum
com um tanque do que um carro. Eu virei para a direita, mas ainda pude
ver o motorista. Norwood, o Cavaleiro-Representante. Fiz a curva a uma
velocidade perigosa. A última coisa que eu precisava agora era dos
Cavaleiros da Ordem fazendo perguntas idiotas.
Eu tinha que chegar a um lugar seguro, em algum lugar onde Conlan
e eu estaríamos protegidos, em algum lugar próximo. Eu não podia ficar
presa no trânsito. A Associação estava longe demais. Meu escritório
também. Isso me deixava apenas com um local. Era seguro, protegido, e
ficava somente a cinco quilômetros de onde eu estava. Três anos atrás, se
alguém me dissesse que eu estaria correndo para lá em busca de um porto
seguro, teria rido na cara deles. Eles eram inimigos por tanto tempo
quanto conseguia me lembrar. A vida era uma cadela irônica.
Eu pisei no acelerador.
Capítulo 9
ENTREI NO CASINO COBERTA de sangue e carregando meu filho. À
minha esquerda, um vasto salão de jogos oferecia mesas de jogos e
máquinas caça-níqueis, reconfiguradas para rodar durante a magia.
Homens e mulheres alimentavam as máquinas com fichas em meio a
luzes cintilantes; a bola rolou ao redor da roleta; as cartas caíam no
veludo roxo, tudo sob os olhos atentos da equipe do Casino, a maioria
aprendizes da Nação, vestidos com calças pretas e coletes roxos. À direita
estava o bar e os clientes afogando suas tristezas ou comemorando uma
vitória inesperada. Surdos e cegos para o mundo lá fora. Em frente estava
o balcão da recepção ladeando a escada que levava para cima e para
baixo.
Uma cacofonia de ruídos pairava no ar, abafando vozes e passos. Por
um breve momento ninguém me notou. Então um jovem Navegador no
balcão olhou para cima. O nome dele surgiu na minha cabeça, Javier. Eu
o conheci antes, durante minhas visitas ao Casino. Ghastek o encontrara
em Porto Rico.
O olhar do Navegador conectou com o meu. Javier bateu em algo
em seu painel de controle. Persianas se abaixaram, protegendo as janelas.
Atrás de mim, enormes portas se fecharam. Ninguém deu atenção a isso.
Um painel no teto se abriu e quatro vampiros saíram de lá. Magros, sem
pêlos, pouco mais do que esqueletos envoltos em músculos secos e pele
esticada, eles me cercaram pelos quatro lados, igualando seus estranhos
passos irregulares ao ritmo dos meus. Suas mentes, cada uma montada
por um Navegador, queimavam na minha mente como quatro nítidos
pontos vermelhos de luz. Se a intenção dele fossem me conter,
precisariam de muito mais sugadores de sangue.
Os vampiros se organizaram, um na minha frente, outro de costas
para mim, um atrás e dois nas minhas laterais. Então compreendi. Eles
não estavam lá para me conter. Esses eram meus guarda-costas.
Javier acelerou em minha direção. — Posso acompanhá-la até a
enfermaria, In-Shinar?
— Não tenho tempo para a enfermaria. Preciso ver Ghastek.
— Por favor, siga-me. —Ele foi em direção à escada, murmurando
no seu rádio. — Belay médico no andar principal. Preciso de médico no
andar do Legatus. In-Shinar e o herdeiro estão a caminho.
Um rápido estalado de saltos clicando em mármore veio da escada.
Rowena entrou em cena. Seus cabelos impetuosos caíam em uma longa
cascata artística por suas costas. Seu vestido, marrom escuro
enfumaçado, abraçava seu corpo perfeito. Seu estilo era uma mistura
equilibrada entre o profissional e sedutor. Seus saltos tinham dez
centímetros de altura. Ela era dez anos mais velha que eu e seu vestido
abaixo da cintura era apertado, mesmo assim Rowena descia as escadas
como uma gazela que viu um leão na grama alta da savana.
— Graças aos deuses. Eu estava tão preocupada.
Ela correu para mim, olhos verdes se arregalaram, agarrou Conlan
das minhas mãos ensanguentadas e murmurou. — Pronto, pronto. Tia
Rowena está aqui agora. Vocês estão todos a salvo. —Ela se virou e
correu escada abaixo, carregando meu filho para as entranhas do Casino.
Olhei para minhas mãos ensanguentadas por um segundo, depois
olhei para Javier. — Que bom que ela estava preocupada comigo. Somos
primas distantes. Dá para perceber o amor da família.
— Sim, Senhora, —disse o Navegador.
Pelo menos ele não me chamou de ‘Minha Senhora ou Madame’.
Graças aos deuses pelos pequenos favores.
Corri para alcançar Rowena. Descemos a escada, atravessamos o
labirinto de corredores torcidos e ramificados e entramos em uma sala
cavernosa. Fileiras e fileiras de celas de vampiros enchiam o chão,
dispostas em seções amplas irradiando da plataforma redonda no centro
da sala. Os sugadores de sangue, presos por correntes grossas, estalavam
para nós enquanto passávamos, seus olhos brilhando, a magia suja deles
poluindo minha mente como manchas sujas em uma janela.
À frente Rowena parou, segurando Conlan. Meu filho cheirou os
vampiros e fez uma careta.
— Feoooor! —Conlan declarou.
Sim, fedor, tem razão.
Observei Rowena subir pelas escadas até um quarto elevado acima
do chão. Dois terços dele eram de vidro colorido. Servia como escritório
de Ghastek, e de lá ele podia inspecionar todo o seu estábulo de
vampiros. Seu antecessor preferia ficar sentado em um trono dourado na
cúpula do Casino, mas Ghastek era um cientista de coração. Ele nunca se
afastaria muito de seus objetos de estudo.
Minha escolta de vampiros parou e se enfileirou no final da escada,
sentando-se em seus quadris como gatos mutantes sem pêlos. Javier me
convidou a subir as escadas com um aceno da mão. Subi atrás de
Rowena e entrei no domínio de Ghastek. Ele era um homem alto e
magro, vestia camisa preta, calça na cor de carvão e sapatos escuros
caros, estava com os braços cruzados, sua silhueta contra uma janela.
Todos os Mestres dos Mortos se vestiam como se esperassem ser
surpreendidos com uma reunião de emergência do conselho, mas desde
que Ghastek se tornara meu Legatus, vinha se afastando gradativamente
de ternos e roupas corporativas e vestindo mais roupas leves e
confortáveis, mais adequadas para um pesquisador acadêmico rico do
que um administrador de empresas. Quando entrei, um vampiro saiu
correndo da pequena cozinha ao lado e colocou uma xícara de café no
granito preto polido da mesa de Ghastek.
Meu Legatus olhou para mim, seus olhos afiados em um rosto
estreito. — O que aconteceu?
— Sahanu.
Ghastek girou em direção ao Navegador. — Iniciar Protocolo Um de
Contra Invasão Sierra Delta, Grupo Alvo Charlie.
— Sim senhor. A equipe médica está vindo para cá. Devo pedir para
eles esperarem?
— Sim, —eu disse.
— Não, —disse Ghastek. — Mande-os entrar imediatamente. Além
deles, não quero ser incomodado.
— Sim senhor.
— Isso é tudo, Javier.
O aprendiz fez uma reverência superficial, ou um profundo aceno de
cabeça, era difícil dizer, e saiu, fechando a porta gentilmente atrás dele.
Através do vidro, eu o vi descer os degraus e parar ao lado dos vampiros.
Ghastek me encarou. — Se bem me lembro, discutimos esta
possibilidade há treze meses. Nós dois já sabíamos que não era uma
questão de ‘se’ Roland tentar capturar seu filho, mas de ‘quando’.
— A Sahanu que nos atacou não queria capturar Conlan. Ela queria
comê-lo.
— O quê? —Rowena recuou. — Seu próprio neto?
— Tenho certeza de que isso não fazia parte dos planos dele, —disse
Ghastek. — Isso não faz sentido. Seu filho é importante demais para ser
desperdiçado assim.
— Meu pai sequestrou um monte de crianças, as aprisionou em uma
fortaleza e as fez uma lavagem cerebral, fazendo-as acreditar que ele é um
deus e assim as moldou em assassinos fanáticos. Então ele as soltou no
mundo em uma missão suicida sem nenhuma supervisão. Você está
certo, como ele poderia prever que algo desse errado com esse plano? —
Minha voz estava cheia de sarcasmo. — Preciso ligar para ele.
Uma mulher correu para a porta, carregando uma maleta, dois
homens atrás dela. Ghastek balançou a cabeça. A mulher e os homens
desceram as escadas e ficaram ao lado de Javier.
— Já expliquei isso a você, —disse Ghastek. — Não se liga
simplesmente para o seu pai. Especialmente agora e não deste lugar.
— Nós o traímos, —disse Rowena. — Todos os nossos contatos
foram cortados.
— Pareço uma idiota? —Perguntei.
Ghastek levantou as sobrancelhas.
— Conheço meu pai e conheço você. Ele tem espiões aqui, mas você
descobriu quem eles são há séculos e sei que agora você os tem na palma
da mão.
Rowena sorriu. Conlan se soltou de seus braços e caminhou pelo chão
até o vampiro que estava imóvel junto à mesa de Ghastek. Meu filho e o
sugador de sangue se entreolharam, os narizes a centímetros de distância.
Ghastek fez uma careta. — Gostava mais de você como mercenária.
— Bem, que pena, porque passei dois anos até os joelhos na política
do Bando e sei como você trabalha. Arranja-me um número de telefone,
Ghastek.
Ghastek inalou. — Não.
Falei devagar, afundando uma ameaça em minhas palavras, para que
não houvesse nenhum mal-entendido. — Como assim não?
Ghastek encostou-se à mesa, trançando os dedos compridos em um
único punho. — Estamos cientes de que há três espiões de Roland aqui.
Desses três, um é Navegador do segundo ano e dois são aprendizes, os
quais a lealdade para com o seu pai está vacilando desde que você os
encantou pessoalmente com a sua atuação de deusa.
A atuação de deusa consistia em demostrar a minha capacidade de
irradiar magia durante uma onda de tecnologia. — Foi você que insistiu
nessa coisa de deusa. Disse que aumentaria a minha moral.
— Sim, eu sei. Você realmente acha que algum desses três espiões
teria uma linha direta com seu pai? Não têm. Eles se reportam a alguém e
esse alguém se reporta a outra pessoa e, essa pessoa passa por várias
outras através da escala de poder, que pode alcançar seu pai ou o Legatus
da Legião dourada ou meia dúzia de pessoas no círculo interno de
Roland. Esses contatos serão mais bem utilizados para subterfúgios e
113
desinformação . Não vou deixar você jogar fora a condição de dupla
espionagem deles só para gritar com o seu pai.
— Tenha muito cuidado com palavras como ‘deixar’, —eu disse a
ele.
— Se você queria alguém que sempre dissesse sim, deveria ter
escolhido outra pessoa.
— Nunca é tarde para corrigir os erros, —eu disse a ele. — Ele deu
uma ordem que resultou em um daqueles malucos tentando comer meu
filho. Conlan provavelmente ficará traumatizado por toda a vida porque
ele me viu matar uma mulher na frente dele.
— Suas mortes são geralmente rápidas, —apontou Rowena. —
Talvez ele nem tenha percebido.
— Ele percebeu.
Conlan levantou a mão, os dedos estendidos, como se tivessem
garras, e deu um tapa no rosto do vampiro.
O morto-vivo continuou imóvel.
— Seu filho não parece traumatizado para mim, —observou
Ghastek.
— Tenho certeza que isso virá à tona como uma memória reprimida
daqui a quinze anos.
Conlan bateu no vampiro novamente.
— Pare, —eu disse a ele.
— Que pena, —murmurou Ghastek. — Ele nem se quer tentou
pilotar.
Conlan levantou a mão.
— Har. —Não. A palavra antiga saiu da minha língua, impregnada
de magia. Eu estava muito agitada.
Conlan baixou a mão, afastou-se do vampiro e veio em minha
direção. Levantou os bracinhos. — Venha.
Eu o peguei e o balancei no meu quadril. Meu braço direito latejava.
— Oh meu Deus, —Rowena sussurrou. — Ele entendeu a
linguagem.
Claro que ele entendeu. — Erra canta para ele em Shinar todas as
noites. Agora Conlan fala melhor em Shinar do que na nossa língua. —
Eu acariciei o cabelo dele. — Preciso falar com meu pai, Ghastek. Você é
meu Legatus. Consiga isso para mim.
Ghastek se inclinou para a janela e bateu no vidro. A mulher subiu
correndo as escadas e abriu a porta.
— Só você, Eve, —Ghastek disse a ela.
A mulher fechou a porta atrás dela e se agachou ao meu lado. —
Posso cuidar de seus machucados, In-Shinar?
Dado que meus braços queimavam como fogo, provavelmente era
uma boa ideia. Eu me virei para Rowena, e ela pegou Conlan de mim e
sorriu para ele. — Este é meu pequeno príncipe.
Conlan acariciou os cabelos flamejantes de Rowena e fez um barulho
fofo.
Tentei tirar minha camisa. A dor disparou por todo o meu ombro.
Não vai dar.
— Você terá que cortar, —eu disse.
Eve abriu sua bolsa e tirou uma tesoura.
Conlan murmurou, parecendo a criança mais adorável do mundo,
toda inocência e luz. O tipo de criança que nunca ninguém esperaria que
se transformasse em monstro e comesse ratos crus na floresta com o pai.
Meu filho era um farsante.
Eve cortou minha manga direita. O pedaço caiu no chão. Enviei um
pulso de magia através do tecido, e o sangue que manchava a roupa se
transformou em um pó escuro, se desmanchando e desaparecendo. A
última coisa que eu queria era o meu sangue coagulado em todos os
lugares.
Rowena ofegou.
O corte no meu bíceps foi bastante profundo. Ele também tinha uma
cor verde estranha. Imaginei que algo estava errado. A cadela tinha me
envenenado.
— Continue, —eu disse a Eve.
A tesoura deslizou pelo meu braço. Minha camisa caiu, me deixando
somente em um sutiã esportivo. Uma dúzia de cortes rasos, florescendo
em verde, cobria meus braços. Minha omoplata queimava onde a adaga
havia apunhalado.
Rowena colocou a mão sobre a boca.
— Por que não disse que estava tão ferida? —Ghastek exigiu.
— O médico já havia sido chamado.
— Parece que você passou por um tornado de facas, —disse
Rowena.
— Ela tinha dois punhais. Eu não tinha armas, porque o Riscos
Biológicos me faz entregá-las antes de entrar no laboratório. Não pude
usar Palavras de Poder porque Luther estava em risco. Eu a espanquei até
a morte com minhas próprias mãos e um microscópio.
Os dois Mestres dos Mortos me encararam.
— Não ia deixá-la tocar no meu filho, —eu disse a eles.
Ghastek virou-se para a médica-maga. — Quão ruim?
— O corte no braço direito é profundo. A cura lenta é melhor neste
caso. Demorará três sessões nas próximas vinte e quatro horas se a onda
de magia continuar.
— Isso não vai funcionar para mim, —eu disse a ela. — Cicatrize o
braço o máximo que puder. Será o suficiente.
Ela encontrou meu olhar. — Se eu fizer isso de uma só vez, será
muito doloroso.
— Não tem problema.
— Vou precisar abrir as feridas. Eles já fecharam. O veneno está
preso dentro.
Abri meus cortes com minha magia, chamando meu sangue. Líquido
carmesim deslizou dos cortes. Eve recuou como se tivesse sido golpeada
com um fio elétrico.
— Isso é o suficiente? —Perguntei.
Ela engoliu em seco e levantou as mãos. — Sim. Por favor pare.
Eu parei o sangramento. Liberei uma faísca de magia e o sangue que
escorria em minha pele se transformaram em pó.
Estendi meu braço para ela. Eve sentou-se ao meu lado, tocou meu
braço, seus dedos frios na minha pele, e começou a entoar. A queimadura
na minha ferida explodiu em lâminas de gelo, esfaqueando meus
músculos com uma dúzia de agulhas afiadas. Ela era uma médica-maga
explosiva. A maioria dos médicos-magos despejavam sua magia no corpo
de seu paciente em uma corrente constante, amplificando a regeneração
natural. Médicos-magos explosivos, que eram muito mais raros,
direcionavam sua magia para seus pacientes, reparando-os como se
fossem objetos inanimados. Eles eram excelentes em emergências, porque
curavam até os piores ferimentos rapidamente, mas a dor era
insuportável.
Uma fera terrível com dentes de gelo mordeu minha ferida e
começou a roê-la.
Abri os dentes antes que eu danificasse minha mandíbula. — Preciso
falar com meu pai. A Sahanu que nos atacou não será a única. Razer está
na cidade, então haverá mais ataques.
Um músculo estremeceu no rosto de Ghastek. — Como sabe que
Razer está em Atlanta?
— O Bando tirou uma foto nítida dele se equilibrando em um
telhado perto de Sandy Springs há alguns dias.
A dor era quase insuportável agora. Olhei só para verificar se meu
braço ainda estava preso em mim. Estava.
Ghastek apertou uma tecla no telefone.
— Sim, senhor? —Disse uma voz masculina.
— Antes de hoje, você estava ciente de algum Sahanu na cidade?
— Não senhor.
— Razer foi visto perto de Sandy Springs há dois dias pelo Bando.
Agora me diga uma coisa, é costume que o nosso serviço de
inteligência conte com o Bando para obter informações?
— Não senhor.
— Qual é a nossa missão? —A voz de Ghastek era quase suave.
— Proteger a In-Shinar e o herdeiro, —respondeu o homem, sua voz
cortada.
Meu braço estava realmente sendo arrancado agora. Eu gostaria de
ter algo para morder.
— Podemos realizar esta missão sem a devida competência da
inteligência?
— Não senhor.
— Você pode me dizer por que o Bando sabe sobre a presença do
Sahanu e nós não?
Silêncio.
— Estou esperando, —disse Ghastek, sua voz gelada.
— Uh-oh, —Conlan avaliou a situação.
— Uh-oh! —Rowena sorriu para ele. — Esse garoto é tão esperto.
Ah não. Agora ela o estava encorajando.
— Uh-oh! —Meu filho disse a ela.
— Uh-oh! —Rowena disse.
— Uh-oh!
Ghastek a olhou. Ela se virou, caminhando alguns passos em direção
à janela de vidro. — Olhe ali. Olhe para todos os vampiros.
O telefone ainda oferecia apenas um silêncio torturado.
— Alguém aí pode me dizer por que esse é o caso? —Ghastek
resmungou.
Silêncio.
— Esta é sua chance de me ajudar a entender o motivo de que
agora, aqui a minha frente, tenho a In-Shinar ferida, preciso explicar a
ela o nosso fracasso. Demonstre para mim que alguém da divisão de
inteligência tem o mínimo de inteligência, ou eu substituirei muitos de
vocês.
— O Sahanu deve ter identificado o padrão de nossas patrulhas, —disse
uma voz diferente.
— Quem fala? —Perguntou Ghastek.
— Navegador Wickert, senhor.
— Wickert, descubra qual o padrão que foi identificado e me
traga os relatórios.
Ghastek desligou.
A dor foi embora. Respirei bem fundo e verifiquei meu braço. Eu
nem conseguia ver a cicatriz. Eva era uma operadora de milagres.
O gelo esfaqueou a ferida no meu ombro esquerdo. Cerrei os dentes.
Aqui vamos nós novamente.
Ghastek se ajoelhou perto de mim, seu afiado rosto sério. — É
minha culpa. Assumo total responsabilidade por esse fracasso. Eu sinto
muito.
Ele abaixou a cabeça. Eu queria estar em qualquer lugar, menos
aqui. O que faço agora?
Acenei para Eve e ela se afastou. — Pare, Ghastek. Nós já falamos
sobre isso. Sem joelhos, sem reverências. Eu não gosto disso.
Ele ficou onde estava. — Proteger você e seu filho é o que fazemos.
Existimos para cumprir esse propósito. Não sabíamos que essa mulher
que a atacou estava aqui. Não sabíamos que Razer estava aqui. É um
fracasso de liderança. Se meu pessoal é incompetente, eu não percebi.
Você me deu rédea livre sobre meus subordinados. Reestruturei a Nação,
supervisionei as designações de pessoal, aprovei patrulhas. A
responsabilidade final por isso está em mim.
Eu finalmente entendi. Ghastek valorizava a competência acima de
tudo. Ele estava profundamente envergonhado. Nesse momento Ghastek
não queria Kate, sua amiga. Convencê-lo de que ele não fez nada de
errado não funcionaria. Ele precisava de absolvição ou punição. Ele
queria a In-Shinar.
Algo em mim morreu um pouco. Primeiro Raphael, depois Teddy
Jo, agora Ghastek. Eu nunca mais seria apenas Kate. ‘Você é a Princesa de
Shinar, o Farol da Esperança de seu povo e, se sucumbir, essa esperança
perecerá com você.’
Mais cedo ou mais tarde, todas as pessoas que eu me relacionava,
iriam presenciar a In-Shinar, e uma vez que isso acontecesse, mesmo que
por apenas alguns instantes, alteraria esses relacionamentos para sempre.
Os Mercenários da Associação nunca esqueceram da minha voz
sacudindo o prédio quando falei em língua antiga com a projeção de meu
pai na sede da Associação. Os metamorfos que lutaram na batalha contra
Roland lembravam-se da fúria da In-Shinar. Depois que eu mostrava a
minha verdadeira face, as pessoas nunca a esqueciam.
Lutei tanto nos últimos três anos, mas no final não importava. Eu
reivindiquei Atlanta e todo mundo nela. Aceitei a responsabilidade pela
segurança deles. Eu era Sharratum na Shar, a rainha que não governava.
Mas uma rainha continua sendo uma rainha mesmo que não queira.
Soltei minha magia e a puxei das profundezas da minha alma. Ela
borbulhou na superfície como um gêiser. Se tivesse uma voz, teria
sussurrado: estou acordada. Estou viva.
Eve se ajoelhou ao meu lado.
— Mama! —Disse Conlan, da mesma maneira que ele tentou me
dizer que as paredes brilhantes do Riscos Biológicos eram bonitas.
Alcancei Ghastek, minha pele brilhava em dourado. Delicadamente
toquei o lado direito da mandíbula e o fiz olhar para mim.
— Eu te perdoo.
A reverência nos olhos de Ghastek quase me quebrou. Ele era
naturalmente cético, mas naquele momento Ghastek me seguiria por um
penhasco. Essa era a última coisa que eu queria.
— Eu te perdoo, —repeti na nossa língua. — Mantenha meu filho
seguro. Eu tenho fé em você.
Ghastek apenas assentiu rapidamente várias vezes.
Pelo menos eu ainda tinha Curran. Curran sempre quis somente a
Kate. Ele queria a humana em mim. Eu era o suficiente para ele.
— Levante-se, —eu disse a ele.
Ghastek levantou-se. Quando ele se moveu, vi Javier e os outros
homens me olhando do outro lado do vidro com admiração nos olhos.
Oh, cara. Apenas o que eu precisava.
Prendi a magia, enrolando-a dentro de mim como as pétalas de uma
flor que se fecha. Uma emoção estranha passou pelos olhos de Ghastek,
quase como se ele quisesse me parar antes que eu terminasse de esconder
a minha magia novamente. Sim, In-Shinar era viciante, e se eu continuasse
mostrando o meu eu verdadeiro às pessoas ao meu redor, logo eu seria
tão ruim quanto meu pai.
— Obrigada por sua ajuda, —eu disse a Eve.
A médica-maga se assustou como se estivesse acordando de um
transe. — De nada.
Ela pegou sua maleta e saiu. Esperei até que ela descesse as escadas.
— Ela não é um dos espiões do meu pai, é?
— Não, —disse Ghastek.
— Conlan não sabe esconder sua magia. Ele é ridiculamente fácil de
rastrear por qualquer um que consiga sentir magia.
— Faz sentido, —disse Ghastek, com voz e expressão neutras.
— Pensei em deixar os avós dele vigiá-lo na Fortaleza.
— Isso pode não ser uma boa ideia, —disse Rowena atrás de mim.
— Por que não?
Ghastek foi até a mesa, abriu uma gaveta e me trouxe uma
fotografia: A imagem de uma estrada arborizada no crepúsculo. Um
homem na casa dos quarenta, cabelos grisalhos, perfil forte, caminhando
entre dois metamorfos em forma de guerreiro, um metamorfo jaguar e
um bouda. Eu reconheci os dois. Renders, os lutadores mais mortais que
o Bando tinha à sua disposição. Jim não estava se arriscando.
— Este é Avag Barsamian, —disse Ghastek. — O segundo em
comando de Landon Nez.
Landon Nez era o homólogo de Ghastek, o necromante direito de
meu pai e o chefe de sua Legião Dourada. Sempre que Nez se envolvia as
coisas iam de mal a pior.
Examinei a fotografia. Avag estava carregando uma maleta. Ele não
parecia estar em perigo. Os dois metamorfos que o flanqueavam não
tinham suas garras nele. As expressões de seus corpos sugeriam cautela,
mas quando guardas transportavam um prisioneiro perigoso, eles
esperavam ameaças externas, tentativas de resgate e assim por diante, o
prisioneiro estaria adequadamente contido e escapar seria improvável.
Esses dois acompanhavam Avag. Ele estava lá por vontade própria.
Eu bati na fotografia. — Reconheço esses carvalhos. Este é o
caminho para a Fortaleza.
— Avag visitou a Fortaleza há duas noites, —disse Rowena. — Eu o
vi através dos olhos do meu vampiro. Ele entrou na Fortaleza carregando
a maleta, ficou lá por duas horas e depois saiu, sem a maleta. Os guardas
o escoltaram até o carro dele estacionado na beira da estrada.
E no dia seguinte, Robert veio até nós com a oferta de aliança.
— Me disseram que meu pai está se mobilizando. Isso é verdade?
— Sim, —Ghastek e Rowena responderam ao mesmo tempo.
Isso não era nada bom. — A pergunta de um milhão de dólares é: o
que havia na pasta?
— Não sabemos, —disse Rowena.
O vampiro na mesa de Ghastek se levantou, agarrou uma corda de
tecido suspensa e enrolada acima da janela e a puxou para baixo,
desenrolando uma tela grande. Nela, com detalhes meticulosos, estava o
mapa de Atlanta. No centro do mapa, havia um pequeno ponto
vermelho. Um círculo irregular em azul delineava os quarteirões ao redor
do ponto, seguido por outro círculo em verde. Linhas irregulares
114
cruzavam tudo isso, parecendo algum tipo de nó górdio . Pontos
coloridos marcavam outros pontos de interesse: o Casino, a Associação e
assim por diante. A coisa toda parecia perturbadoramente como o centro
115
de um alvo de tiro ...
— Por que há um ponto vermelho sobre minha casa?
— Eu tive dois anos para me preparar, —disse Ghastek. — O azul é
a zona de matança, o verde é o perímetro externo. Há ... —ele checou o
relógio na parede, ...— vinte e dois minutos em que dupliquei nossas
patrulhas e mobilizei seis grupos de ataque, cada membro possuem
memorizado o dossiê dos vinte e um Sahanu em nosso banco de dados.
Eles conhecem suas assinaturas mágicas, seus padrões de movimento e os
reconhecerão quando os ver. Trabalham em turnos o tempo todo e
podem ser ativados a qualquer momento, porque dormem aqui no
Casino, ao lado da Sala de Controle. Eu sei que falhamos, mas
pessoalmente garanto que nenhum Sahanu penetrará em nossas defesas e
chegará até você de novo.
E se ele trocasse de lado todos os vampiros do Casino, que agora
estavam em seus estábulos, poderiam convergir para minha casa e matar
meu filho enquanto eu estivesse fora, pensando que Conlan estaria seguro
e protegido. Era improvável que Ghastek mudasse de lado, mas eu
também achava que era igualmente improvável o Bando de nos trair.
Ghastek e Rowena estavam olhando para mim.
— Tudo bem, —eu disse. — Vamos fazer do seu jeito.
— Não vou falhar com você, —disse Ghastek. Parecia uma
promessa e eu não gostei.
— Você ainda tem o corpo da criatura que lhe enviei? —Perguntei.
— Sim, —disse Ghastek.
— As criaturas representam uma ameaça iminente. Se os encontrar,
quero que sejam seguidos e, se não puder segui-los, quero que sejam
destruídos. Minha tia os reconheceu e os chamou de yeddimur.
— Entendido, —disse Ghastek.
— Significaria muito se você pudesse analisar o corpo. Luther
acredita que essas criaturas começaram como humanas e podem ser
contagiosas quando estão vivas. Também seria uma grande ajuda se
pudesse estudar o corpo ou talvez apenas exibi-lo em algum lugar onde
ele possa ser observado por seus Navegadores.
— E possivelmente os aprendizes? —Perguntou Rowena.
— Sim. Talvez alguém poderia ser ouvido usando a palavra
‘yeddimur’ quando se referir à criatura.
Ghastek franziu a testa. — Por quê?
— Porque eu quero que meu pai saiba sobre isso.
Ghastek pensou sobre isso. Eu praticamente podia ver as rodas na
cabeça dele girando, mas ele não perguntou. Preferia descobrir as coisas
por conta própria, e eu lhe dei apenas o suficiente para motivá-lo a
continuar investigando. A minha abominação peluda estaria no topo da
lista da equipe de dissecação da Nação.
Eu levantei. — Você tem uma cópia desta foto?
— Temos, —disse Rowena.
— Posso ficar com este?
— É claro, —disse ela.
Coloquei a foto de Avag no bolso e peguei meu filho do colo de
Rowena. Conlan bocejou e caiu no meu ombro como uma boneca de
pano.
— Preciso de uma escolta para minha casa.
— Seria um prazer, —disse Ghastek.
O telefone tocou. Ghastek pegou, ouviu e virou-se para mim. — Seu
marido está a caminho do Casino. Ele parece chateado.
— Como você sabe?
— Está vindo correndo para cá. Existem dois veículos da Associação
o seguindo, e eles estão tendo dificuldades para acompanhá-lo.
Curran não quis esperar pelos Mercenários. Ele corria muito mais
rápido que um humano comum, mas ele era um leão, não um lobo.
Corridas de longas distâncias nunca foram coisa dele. Ou algo ruim
aconteceu, ou ele descobriu a minha luta no Riscos Biológicos e de
alguma forma me localizou. A Nação trabalhava para mim agora, mas
estivemos em lados opostos por tanto tempo que, embora eu tenha
passado muito tempo com eles nos últimos meses, toda vez que entrava
no Casino, fazia isso em modo de alerta. Eu não esperava ser atacada,
mas também não conseguia ficar à vontade. Curran nunca havia se
acostumado com a Nação. Se ele descobriu o que aconteceu no Riscos
Biológicos e achasse que Conlan e eu estávamos feridos, ele não chegaria
ao Casino como uma pessoa normal. Ele aterrissaria como uma bomba.
Virei-me para a porta, dando um tapinha nas costas de Conlan. —
Vamos encontrar seu pai lá fora antes que ele cause um incidente.
— Eu nunca vou entender o que você vê naquele homem, — disse
Ghastek.
— Ele me ama, —eu disse a ele, e sai.

Capítulo 10
116
PAREI EM FRENTE À FONTE DE SHIVA . Quando Curran corria,
ele assumia uma forma bizarra, nem leão nem humana, mas uma fera
estranha: compacta, poderosa, adaptada para a velocidade. A maioria dos
metamorfos tinha duas formas, animal e humana. Aqueles com talento
poderiam sustentar uma forma de guerreiro. Eu nunca tinha conhecido
alguém que pudesse controlar a transformação em alguma parte de seu
corpo para uma forma e manter o resto em outra. Exceto Curran. Ele
reestruturava seu corpo para qualquer finalidade que quisesse.
Uma poça quente e pegajosa se formou no meu ombro. Conlan
babava enquanto dormia.
Buzinas soaram. Enxerguei de longe um homem saltando sobre os
veículos que estavam parados no sinal de trânsito. Ele pulou sobre os
carros como se não fossem nada, aterrissou e continuou correndo, pernas
longas o impulsionando. Aquele não poderia ser ... Sim, meu docinho
peludo correndo em forma totalmente humana.
Eu esperei. Ele me viu, mas não diminuiu a velocidade; apenas
ajustou o curso.
Cem metros. Setenta e cinco. Cinquenta. Caramba, ele estava muito
rápido. Curran não corria tão rápido assim, não depois de correr por
vários quilômetros.
O suor escorregava pelo seu couro cabeludo, escurecendo seus
cabelos loiros. Cabelos loiros estes que estavam mais compridos. Seu
cabelo estava pelo menos cinco centímetros mais longo do que esta
manhã. Talvez mais.
Que diabos? A única vez que o cabelo de Curran se transformou em
uma juba foi durante um Flare. Não teríamos um Flare por mais dois
anos.
Vinte e cinco metros.
É difícil parecer sexy com uma criança babando no seu ombro, mas
eu fiz o meu melhor. — Você vem sempre aqui?
Ele diminuiu a velocidade. Por um momento, pensei que pararia,
mas ele avançou de maneira lenta e segura, ainda correndo, calculando
cada passo. Seu cabelo estava definitivamente mais comprido.
Emoldurava seu rosto duro e bonito. Olhos cinzentos me analisaram,
procurando por ferimentos. Nossos olhares se conectaram. Um leão
olhou para mim e meu coração acelerou. De repente, fiquei ciente de
cada centímetro de distância entre nós.
Ele fechou essa distância, movendo-se com uma expressão perigosa,
no limite da ferocidade. Parecia meu marido, era meu marido, mas havia
algo alarmante na maneira como Curran tentava se controlar. Virei-me
de frente para ele.
Ele se lançou. Foi muito rápido e, se eu quisesse fugir, não tinha
certeza de que poderia corresponder à velocidade dele. Eu não queria
fugir. Seus braços se fecharam ao meu redor e ele me beijou. O beijo me
aqueceu, tão intenso que foi quase uma mordida. Ofeguei em sua boca.
— Tudo bem? —Ele me perguntou.
Estava tudo bem até ele me beijar. — Sim.
— Conlan?
— Bem. Só cansado.
Ele me abraçou apertado. — O que aconteceu?
— Lutei com uma Sahanu no Riscos Biológicos. Você está me
esmagando.
Ele me soltou.
— Essa é a segunda vez em dois dias. Temos que parar de nos
encontrar assim, —eu disse a ele.
— Você planeja continuar brigando por aí?
— Não fui eu que comecei. Ela me caçou.
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Dois Toyota Land Cruisers emergiram do tráfego e rugiram para o
estacionamento. Cada um deles carregava oito pessoas. Ótimo. Primeiro,
ele correu pelas ruas dramaticamente, depois me beijou em público como
se o mundo estivesse acabando, e agora trouxe uma equipe de
mercenários com ele, o suficiente para um pequeno cerco. Todos os
Navegadores que pilotavam vampiros nas paredes do Casino tinham que
estar adorando o show.
— Você trouxe dois carros lotados de assassinos com você? Esperava
lutar contra um exército?
— Eles me seguiram. —Curran sorriu para mim, arreganhando os
dentes. — O que aconteceu com a Sahanu?
— Ela está morta. Eu estou viva. A Nação tratou meus ferimentos.
Preciso falar com você. E Barabas.
— Bom, porque não vou deixar você ir a lugar nenhum sem mim. —
Gentilmente, ele tirou Conlan do meu ombro.
— Não vai deixar?
— Você me ouviu.
As portas do carro mais próximo se abriram e as pessoas acenaram
para nós.
— Onde você estacionou? —Ele me perguntou.
Apontei para o nosso jipe à esquerda.
— Vou pegar o carro, —disse ele, e saiu com Conlan.
Certo.
Eu corri para o carro mais próximo. Rostos olhavam para mim,
alguns sujos, outros manchados de sangue. Douglas, Ella, Rodrigo ... a
equipe de elite de Curran. O rugido do motor de água encantada era
ensurdecedor, então eu tive que gritar.
— O que diabos estão fazendo aqui?!
— Nós o seguimos! —Ella gritou.
— Então vocês simplesmente se amontoam dentro dos carros e
perseguem Curran pela cidade sempre que ele sai correndo feito um louco
pelas ruas?!
— Estávamos no trabalho, —Ramirez me disse em sua voz calma.
— Terminando uma missão quando ele nos disse que sua esposa estava
com problemas e saiu correndo.
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— Nós o perseguimos desde Panthersville , —acrescentou Ella.
Cada vez mais estranho.
— Obrigada por vir! —Eu disse a eles.
— Onde está a luta? —Douglas exigiu.
— Já matei todo mundo, —eu disse. — Vocês precisam ser mais
rápidos da próxima vez.
Eles vaiaram para mim e eu corri para o jipe. Cinco minutos depois,
saímos do estacionamento.
— Como sabia onde me encontrar?
— Só tive um pressentimento, —disse ele.
— Só isso? Um pressentimento?
Ele assentiu.
Estranho.
Talvez fosse eu. Talvez meu subconsciente tenha o chamado
enquanto eu lutava. Teria que perguntar a Erra se isso era possível.
— O que está acontecendo com seu cabelo? —Perguntei.
— Eu não sei. Começou a crescer e não parou mais.
— Estamos prestes a ter outro Flare?
— Eu não sei. Quão ruim foi a luta?
— Não foi ruim.
— Não me engane, —ele disse calmamente. — Você veio para o
Casino.
— Fiquei assustada. Ela disse que mataria nosso filho e o comeria.
Bati no rosto da mulher até a morte. Eu me excedi, perdi o controle.
Ele estendeu a mão e apertou minha mão.
— Curran, Conlan não pode esconder a sua magia. Desde que
mudou pela primeira vez ele brilha como uma estrela. E eu estava tão
acostumada a tê-lo comigo, que nem me ocorreu que ele poderia ser
rastreado. Foi assim que ela nos encontrou. Eu coloquei nosso filho em
perigo.
— Está tudo bem. —Ele apertou minha mão novamente. — Você o
protegeu. Sempre o protegerá. Você é a mãe dele. Eles terão que nos
matar para chegar até ele. Pense nisso.
Eles teriam que passar por nós dois. Muitos haviam tentado antes e
todos haviam falhado. Até meu pai.
— Temos tudo sob controle, —disse ele. — Nós vamos matar todos
eles.
Nosso filho roncava no banco do carro sem se importar com o
mundo. Assim como tinha que ser.
Curran estava certo. Nós mataríamos todos eles.

*******
EM OUTROS TEMPOS, o prédio que agora funcionava a Associação foi
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um hotel de luxo nos limites de Buckhead . Prédios altos não resistiam
bem à magia, e o hotel não foi exceção. Sua torre brilhante havia rachado
e tombado, deixando um esqueleto de cinco andares. A Associação
colocou um teto improvisado sobre ele, o limpou e só isso.
Alguns anos atrás, quando a Associação oscilou à beira da falência,
um gigante fez algumas dramáticas modificações no telhado com os seus
punhos, o que forçou uma reforma maior. Naquela época, Curran e
Barabas se juntaram a Associação e, eventualmente, assumiram o
controle. Barabas dirigia o lado administrativo, Curran era uma espécie
de Comandante e, há um ano e meio, os Mercenários me escolheram por
unanimidade como Conselheira, o que significava que sempre que os
Mercenários tinham problemas ou queixas com qualquer um deles,
corriam até mim e eu tinha que resolver. Eu precisava dessa
responsabilidade adicional, como precisava de um buraco na cabeça. Na
verdade, nem se quer participei dessa reunião quando me escolheram,
120
porque estava capturando um boggart em uma escola secundária local.
Os Mercenários votaram convenientemente na minha ausência e depois
me apresentaram o Manual de Conselheiro da Associação quando
apareci pingando lodo e arrancando lixo do meu cabelo.
Bob, um dos Quatro Cavaleiros, ocupara a posição não oficial de
Conselheiro antes de mim e aparentemente se colocou na disputa, mas
depois que ele tentou usar o fundo de pensão, sua credibilidade entre os
Mercenários desabou. Ele nunca aceitou de bom grado a minha presença
ou a de Curran. Sua Peludeza, que nunca desperdiçava recursos, o enviou
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a Jacksonville para administrar a novíssima filial da Associação. Três
meses depois, Bob tentou organizar um golpe e declarar independência, e
a Associação de Jacksonville o expulsou. Não tínhamos ideia de onde ele
estava ou o que estava fazendo.
Uma das primeiras coisas que nós três fizemos foi fortificar a
Associação. Curran fortificava todos os lugares que ocupava com
frequência. Eu tive que convencê-lo a não colocar muros ao redor do
bairro que morávamos. Mas com a Associação, eu e Barabas, demos a ele
liberdade para fazer o que quisesse. Algumas batalhas não valiam a pena
lutar.
As paredes do prédio foram reforçadas, a nova alvenaria se
misturando perfeitamente com os restos esqueléticos do hotel. O piso
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superior tinha seteiras . Um telhado novinho em folha, equipado com
quatro obuses e quatro balistas enfeitiçadas, coroava o edifício. Uma
enorme porta de metal bloqueava a entrada, e atrás dela havia uma
segunda porta para o caso de alguém violar a primeira. Foi um milagre
que Curran não mandou cavar um fosso ao redor do lugar.
Estacionamos e entramos. Conlan ainda dormia, então Curran o
carregou deitado na cadeirinha do carro. O interior da Associação
combinava com o exterior: limpo, funcional, profissional. Cumprimentei o
Recepcionista com um aceno de cabeça e viramos à esquerda em direção
as paredes de vidro do escritório de Barabas.
O ex advogado do Bando e atual administrador da Associação estava
sentado atrás de sua mesa. Esbelto, boa forma, pele muito clara, a
imagem de Barabas trazia uma única palavra à mente: afiado. Olhos
afiados, dentes afiados, mente afiada. Até o cabelo ruivo brilhante, que se
erguia sobre a cabeça, parecendo uma floresta de agulhas, dava a
impressão de agudez.
Christopher estava sentado em uma poltrona, lendo um livro. A
primeira vez que o vi, ele estava trancado em uma gaiola. Fragilizado e
quebrado, um fantasma de homem, com cabelos tão claros que pareciam
incolor. Apesar dos meus cuidados e os de Barabas, e de garantirmos que
sempre estivesse alimentado, Christopher ainda parecia frágil e quebrado
até cerca de dois anos atrás, quando finalmente se lembrou de seus
123
poderes. Christopher era um Teófago . Meu pai tentou fundi-lo com um
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Deimos , deus grego do terror. Christopher resistiu e, em um último ato
desesperado de desafio, ele havia quebrado sua própria mente. Como
punição, Roland entregou o que restou de Christopher aos cuidados
carinhosos de seu Senhor da Guerra, Hugh d'Ambray.
Agora Christopher tinha ombros largos e musculosos, com um
poderoso corpo atlético. Enquanto Barabas era afiado e adaptado a
movimentos rápidos e precisos, Christopher possuía uma espécie de
calmaria. Sentado em uma cadeira agora com um livro, parecia quase
inabalável. É claro que a calmaria duraria apenas até Barabas ou um de
nós ser ameaçado, e então Christopher brotará asas e presas e
enlouquecerá. O humano e o divino haviam se fundido dentro de
Christopher, com o humano dominando a divindade. Barabas estava
extremamente paranoico com a possibilidade de as pessoas começarem a
adorar Christopher e o domínio do humano sobre o deus virar para o
outro lado, mas até agora isso não havia acontecido.
Eles eram tão diferentes. Christopher estava apaixonado por
Barabas. Barabas o amava de volta, mas o fato dele ter cuidado de
Christopher enquanto a sua mente estava danificada, fazia Barabas
enfrentar um dilema ético. A última vez que conversamos sobre isso, ele
estava preocupado com a possibilidade de que os sentimentos de
Christopher não fossem amor, mas sim uma gratidão por aquele que
cuidou dele. Barabas não queria tirar vantagem. Eles continuavam
morando na mesma casa. Pareciam um casal. Agiam como um casal.
Nenhum dos dois falava nada sobre o relacionamento deles. Como nós
respeitávamos as suas privacidades, ninguém perguntava nada também.
Os dois homens olharam para nós.
— Más notícias? —Barabas perguntou.
— Sim. —Fechei a porta atrás de nós. Curran gentilmente colocou
Conlan em uma grande almofada no chão. Os metamorfos tinham um
amor profano por almofadas de chão e, embora Barabas passasse a maior
parte do dia em sua cadeira, ele se recusava a não ter algumas espalhadas
por aqui.
Eu sentei na outra poltrona.
Barabas farejou na direção de Conlan. — O que está diferente? Algo
está diferente.
— Ele mudou, —disse Curran em voz baixa.
Barabas endireitou-se. As sobrancelhas claras de Christopher se
ergueram.
— Ele é incomum como você? —Barabas perguntou a Curran.
— É pior, —eu disse.
— Pior como? —Christopher perguntou.
— Conlan pode sustentar uma forma de guerreiro, —disse Curran.
Barabas engasgou. — Como assim? Ele pode ter uma forma de
guerreiro? Por quanto tempo?
— Por quanto ele quiser, —disse Curran.
— Além disso, ele ainda não pode esconder a sua magia, —eu disse.
— Portanto, qualquer pessoa familiarizada com a minha magia ou
especificamente a de Roland pode localizá-lo. Fomos atacados por uma
Sahanu esta manhã. Eu a matei, mas de acordo com Robert, Razer está
na cidade. Meu pai deve ter dado uma ordem geral para matar meu filho.
Então, haverá mais chegado.
Christopher se inclinou para frente e descansou a mão na minha. —
Você está bem? —Ele perguntou calmamente.
— Estou bem, —eu disse a ele.
Christopher levantou-se, serviu uma xícara de chá quente da chaleira
e trouxe para mim.
— Obrigada. —Peguei o chá e bebi.
— O Bando nos informou que Roland está se mobilizando, —disse
Curran. — O que os nossos informantes sabem a respeito?
Informantes? — Vocês têm pessoas vigiando Roland?
— Nós, —disse-me Curran. — Temos pessoas vigiando Roland.
— Ele está fazendo a mesma coisa que fez há um ano, —disse
Barabas. — Trazendo pessoal de estados vizinhos. Da última vez, nada
aconteceu. Desta vez, é muito cedo para saber.
— Como você sabe? —Perguntei.
— Roland precisa mover do Centro-Oeste uma quantidade grande de
tropas para Atlanta. Da última vez, ele enviou pessoas para avaliar as
rotas das linhas Ley, —disse Curran.
Faz sentido. As linhas Ley levavam qualquer um adiante em alta
velocidade, mas, uma vez que a viagem terminava, ela o jogava para fora
no próximo ponto Ley, direto nos braços de quem quisesse emboscar
você lá. Não havia como evitar.
— Por que não me contou?
— Você estava em trabalho de parto, —disse Curran.
— Doolittle nos proibiu categoricamente, —disse Barabas. — De
qualquer forma, nada aconteceu. Ele deve ter decidido que a rota pelo
ponto Ley era muito vulnerável. Desta vez estão vindo de caminhões.
Roland está ganhando a simpatias das associações locais de
caminhoneiros, e há um boato de que ele está contratando mecânicos.
— Se for confirmado de que Roland está adquirindo de fato
mecânicos e motoristas, quero saber sobre isso, —disse Curran.
Barabas assentiu.
— E caminhões, —eu disse. — Roland não tem caminhões
suficientes e não ficará satisfeito com qualquer caminhão. Ele irá querer
os melhores, provavelmente diretamente dos fabricantes só para ter a
certeza que os caminhões correspondam ao seu gosto. Pode até mesmo
mandar pintá-los de dourado.
— Ele os roubaria? —Barabas perguntou.
— Não, —disse Christopher. — Isto está abaixo de seu nível. Ele até
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pode os considerar como despojos de guerra , mas não os roubaria.
— Temos mais dois problemas imediatos. —Eu os atualizei sobre a
caixa e o espetáculo do homem em chamas na frente do meu escritório.
Christopher se inclinou para frente, ouvindo atentamente. Quando
terminei, Barabas olhou para ele. Christopher balançou a cabeça. — Não
tenho ideia do que seja.
— Então o que eles querem? —Perguntou Barabas.
— Não importa. Eles mataram o Senhor Tucker. Seja lá o que
querem a resposta é não, —eu disse a ele.
Barabas olhou para Curran. — O que quer fazer sobre isso?
— Não há nada que possamos fazer, —disse Curran. — Temos que
esperar que esse idiota apareça.
— Você disse que havia dois problemas, —disse Christopher.
— Temos que proteger Conlan, —expliquei. — Ele é como um farol
brilhando durante a noite. Os Sahanus serão atraídos por ele. Curran e eu
temos que ser capazes de nos mover pela cidade.
— Podemos levá-lo à casa do Clã Urso, —disse Curran.
Curran não iria gostar desta parte. Coloquei a mão no bolso, tirei a
fotografia dobrada e a coloquei na mesa. Os três se inclinaram para olhar.
— Avag Barsamian, —disse Christopher, com os olhos escuros. — O
segundo de Landon.
— Quão perigoso ele é? —Perguntou Curran.
Christopher recostou-se, uma perna sobre a outra, entrelaçando os
dedos compridos em um único punho no joelho. — Ele é da Legião
Dourada, por isso é um Navegador formidável. É habilidoso em
diplomacia, de uma maneira que poucas pessoas são. Avag transforma a
habilidade de negociação em arte. É astuto e cauteloso, e tem instintos
quase infalíveis. Eu o usei em várias ocasiões. Eles o enviam quando as
coisas são complicadas.
— Ele foi escoltado para a Fortaleza, entrou carregando uma maleta
e saiu sem ela, —eu disse.
— Você tem certeza? —Perguntou Curran.
— O vampiro de Rowena tirou as fotos. Há outras fotos. No dia
seguinte, Robert nos trouxe a oferta de aliança do Bando.
Ninguém disse nada. Barabas franziu a testa. O rosto de Curran
ficou inescrutável. Christopher ponderava ainda encostado na parede.
— Além disso, há outra coisa que pode ou não estar relacionada, —
acrescentei, — Raphael me pediu para demitir Ascanio.
— Quando? —Perguntou Curran.
— No mesmo dia que Avag foi fotografado.
— Você o demitiu?
— Sim. Não é sobre mim ou sobre o Clã Bouda. É o que Ascanio
queria.
O silêncio caiu novamente.
Bati meus dedos na mesa. — Algo importante estava nessa maleta.
— Pode ter sido um presente, —disse Barabas. — Eles trouxeram um
presente, Jim aceitou a bugiganga, ouviu o que ele tinha a dizer e o
mandou embora. Vi Curran fazer isso uma dúzia de vezes.
— Meu pai não envia bugigangas. Ele envenena as flores do seu
jardim e, quando seu filho cheirar uma, ficará doente, então, ele enviará o
antídoto em um frasco esculpido em ametista e tampado com um
diamante como gesto de boa fé e amizade. O que quer que fosse, Jim
aceitou.
Barabas franziu a testa. — O fato de Robert ter nos procurando no
outro dia é obviamente suspeito.
Eu assenti. — Existem duas possibilidades: ou o Bando disse sim a
Roland e irão nos trair, ou enganaram Roland dizendo a ele o que ele queria
ouvir e consequentemente não irão nos trair.
— Três, —disse Barabas. — Eles podem ter pedido um tempo para
pensar sobre isso.
— O Bando nem precisa lutar contra nós. Basta que eles
simplesmente não apareçam, isso irá nos enfraquecer.
— Se o Bando se abster do conflito entre nós e seu pai, e Roland
vencer, o Bando será o próximo a ser atacado, —disse Barabas.
Christopher se mexeu. — Gallia est omnis divisa in partes três ...
— Toda a Gália está dividida em três partes? —Perguntei.
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— Comentários sobre a Guerra Gálica de Julius César, —disse
Christopher. — César conquistou Gália tribo por tribo. Se eles tivessem
tentado conquistar de uma única vez desde o início, o primeiro
imperador de Roma nunca teria voltado a Roma. Há uma cópia deste
livro na biblioteca do Bando. Eu vi Jim lendo. Ele sabe que divididos,
todos nós cairemos.
— Jim não é um idiota e é amigo de Curran há mais de uma década,
—disse Barabas. — Eu não acredito que ele seja capaz de nos trair.
— Roland tem o dom de subverter amizades, —disse Christopher. —
Ele usa a política de isolamento. Ele se torna sua família, seu amigo, seu
confidente.
Uma sombra passou por seus olhos.
— Então ele te trai, —eu disse. — Roland fez isso com você, Erra,
Hugh, eu. A lista é grande.
— Hugh foi um caso especial, —disse Christopher. — Nós já éramos
adultos. Hugh era criança quando caiu nas garras de Roland.
— Hugh poderia ter ido embora. Em vez disso, cometeu atrocidades
atrás de atrocidades.
— Não é assim tão simples. —Christopher balançou a cabeça.
Havia mais lá, mas agora não era hora de saber. Eu me virei para
Curran. Seu rosto mostrava todas as emoções variadas de um muro de
pedra. Nenhuma. Ele entrou no modo Senhor das Feras.
— Existe alguma maneira de termos certeza de que Jim não nos
trairá? —Perguntei.
— Não, —disse Curran.
Isso foi o que eu pensei. Se o confrontássemos com as fotos, ele
negaria tudo e não poderíamos determinar se era a verdade. Se ele tivesse
mentido para nós, fingiria estar indignado; se ele não estivesse mentido,
ficaria indignado de verdade por não confiarmos nele. De qualquer
maneira, não tínhamos saída.
— Temos que assumir que Jim pode nos trair. É a única maneira
segura de planejar. —Barabas esfregou o rosto.
Olhei para Curran. — Ele tem pontos fracos na sua armadura?
Meu marido virou-se para mim e seu rosto era puro Senhor das
Feras. — Todo mundo tem pontos fracos. O nosso está dormindo no
travesseiro. Pensando em bater em Jim onde dói?
— Não. Mas se Roland está pressionando o ponto fraco dele,
precisamos saber qual é.
Curran se inclinou para trás, sua voz calma e medida. — A curto
prazo, ficar ao lado de Roland seria um benefício para Jim. O Bando
perdeu muitos dos seus na última batalha com seu pai e uma aliança
evitaria mais derramamento de sangue. Há pessoas dentro do Bando que
apoiariam essa solução. Pensando dessa forma, não nos apoiar parece ser
a melhor opção. No entanto, Jim pensa a longo prazo. Se ele não nos
apoiar, Roland vencerá. Seu pai não faz alianças. Ele quer obediência.
Jim não vai aceitar isso e nem o restante do Bando. Além disso, se Jim
nos trai, o Clã Urso, o Clã Bouda e o Clã Lobo se rebelarão.
— Não tenho certeza sobre o Clã Lobo, —eu disse.
— Desandra sempre esteve a seu favor, —Barabas me disse. — Ela
costuma ser provocadora, dizer merdas e tirar qualquer um do sério, mas
sempre apoiou você.
O Clã Bouda, o Clã Urso e o Clã Lobo representariam quase metade
do Bando. Jim enfrentaria uma guerra interna.
— Talvez Jim esteja pensando a um prazo muito mais longo, —disse
Christopher.
Curran virou-se para ele. — Explique.
— As pessoas sempre anseiam pelos bons velhos tempos, —disse
Christopher, seus olhos claros pensativos. — Costumamos olhar para o
passado com lentes cor de rosa.
— Não tenho planos de tomar o Bando de Jim, —disse Curran. —
Ele sabe disso. Jim é paranóico, mas ele é um Senhor das Feras mais
eficaz do que eu fui.
— Mas ele não tem o seu charme, —disse Barabas. — Ele quase
nunca ruge e nem faz todo mundo se encolher.
— Pessoas como indivíduos costumam ser racionais, —disse
Christopher. — Mas pessoas como organização política são meticulosas.
Elas gravitam em direção a símbolos de força e poder. Você tem uma
presença maior do que Jim.
— Você acha que Jim teme que eu tome o Bando dele e então ele
espera que Roland me elimine? —Perguntou Curran, sua voz quase
indiferente.
— Você não. —Christopher olhou para Conlan.
Não. Eu podia acreditar que Jim não nos apoiaria na batalha, mas ele
não iria tão longe. — Ele não faria, —eu o mataria.
— A essa altura Jim provavelmente já sabe que Conlan pode mudar
de forma ou pelo menos espera que ele possa ser capaz de mudar no
futuro, —disse Christopher. — Os metamorfos contam histórias sobre
você agora. Em algumas décadas, essas histórias se tornarão lendas. Se
for permitido a Conlan crescer, ele será o filho do primeiro Senhor das
Feras, o homem que criou o Bando, o homem que nunca foi derrotado
enquanto governava. Conlan terá o poder físico e a mudança de forma
aprimorada de um Primeiro. Será um líder natural. Se você visse uma
erva daninha em seu jardim, a retiraria agora, enquanto é pequena e
frágil, ou esperaria até que ela crescesse?
— Isso é loucura, —eu disse a ele.
— Na minha vida anterior, eu era o Legatus da Legião Dourada, —
Christopher me lembrou, sua voz suave. — Minha existência dependia da
eliminação dos meus rivais antes que eles chegassem ao seu poder total.
Eu eliminaria seu filho agora, de uma maneira que ninguém conseguiria
atribuir a morte dele a mim. Talvez um ataque da equipe secreta de
Roland à Casa do Clã dos avós enquanto seu filho está lá. Todo mundo
seria assassinado. Uma grande tragédia, uma atrocidade. Terrível.
Evocaria indignação, é claro, mas também geraria medo. Pessoas
aterrorizadas se apegam a líderes familiares. Quanto a vocês dois, existem
poucos desafios maiores no casamento do que a morte de um filho.
Eu odiava isso. Eu odiava sentar aqui e imaginar pessoas que eram
nossos amigos planejando matar meu filho. Se isso fosse mesmo uma
possibilidade havia algo de muito errado com o mundo.
— O que iremos fazer? Temos que avisar que isso pode acontecer e
não podemos contar a Mahon, —falei. — Se ele souber, irá invadir a
Fortaleza, rugindo, e ele pode acabar sendo morto ou matando alguém.
— Vamos avisar a Martha, —disse-me Curran.
Martha defenderia Conlan até seu último suspiro. Minha mente
mostrou uma imagem do seu corpo mutilado e ensanguentado enrolado
no chão ao redor do meu filho. Isso era demais. Eu levantei.
Curran estava olhando para mim, preocupação em seus olhos.
— Eu preciso de um minuto.
Abri a porta e entrei no andar principal da Associação. Mercenários
se moviam para cá e para lá, alguns cansados e cobertos de sujeira ou
sangue vindos de um trabalho; outros, limpos e entediados, esperando
por um. A equipe de elite de Curran estava sentada na plataforma
elevada, comendo. A comida no refeitório da Associação havia passado
de gororoba para lendária. Os metamorfos desafiavam-se até a morte por
poder e tinham o potencial de se transformarem em assassinos psicóticos,
mas dê a eles comida ruim e estarão mortalmente ofendidos. A primeira
vez que Curran cheirou a comida do antigo refeitório ele a condenou, e
na primeira chance que teve reformou o refeitório.
Os Mercenários estavam sorrindo. A pequena e simpática Ella disse
alguma coisa. Charlie respondeu de volta, seus olhos se estreitaram em
meras fendas. Douglas King jogou seu maciço corpo de um metro e
oitenta para trás em sua cadeira e riu, a luz refletindo e destacando a
127 128
bagunça de glifos e runas tatuados em sua cabeça careca. O homem
era obcecado por ‘runas mágicas’. Os vendedores de armas em Atlanta
sabiam disso e se aproveitavam para vender a ele todo tipo de lixo que
tivesse alguma inscrição mística. A última espada que Douglas comprou
129
havia uma palavra em Futhark Antigo gravado nela. Ele trouxe para eu
ler. Dizia OTÁRIO, soletrado foneticamente com runas nórdicas. Ele
mal sobreviveu à decepção.
Alguns anos atrás, eu estaria ali, sentada com eles. Naquela época,
eu não me importava com mundo. Minha maior preocupação era pagar
minhas poucas contas e tentar ganhar o suficiente para comprar um novo
par de sapatos.
De repente, senti saudades de casa, não a casa em si, mas de um
tempo diferente e de uma eu diferente. Uma eu que não era responsável
por ninguém. Que não precisava proteger a cidade. Que não era esposa.
Nem mãe. Apenas eu.
Era assim que Voron pretendia que eu fosse. Uma versão dele, uma
assassina solitária. Sem laços, sem raízes, sem apego a amigos ou posses.
Naquela época, a qualquer momento, eu poderia pegar o pouco que tinha
e desaparecer, e ninguém se preocuparia ou se importaria. Eu era uma
mercenária sem nome, cuidando do meu próprio negócio. Agora, apesar
de tudo, eu ainda era a mesma. Uma assassina, filha de Roland. Minhas
mãos ainda eram ensanguentadas, e nenhuma quantidade de magia
poderia transformar esse sangue em pó.
Nessa mesma época fiz um discurso para Curran. Eu não conseguia
lembrar exatamente o que tinha dito, acho que era algo sobre arrastar
meu corpo surrado e ensanguentado para uma casa escura e vazia.
Ninguém se importaria se eu chegasse em casa. Ninguém esperaria,
ninguém trataria minhas feridas, ninguém me faria uma xícara de café e
me perguntaria sobre o meu dia. Quando pensei nisso agora, minhas
lembranças daquela época pareciam cinzas, como se toda a cor tivesse
sido arrancada delas.
Quando pensava em minha casa agora, ela era cheia de calor e luz.
Sempre cheirava a carne grelhada, torta fresca ou café fresco. Era o meu
pedacinho do mundo, acolhedor e confortável, um lugar que eu construí
com Curran. Um lugar para Conlan. Um lugar onde eu pertencia.
Christopher estava certo. Costumávamos ver o passado com lentes cor de
rosa.
Escolhi essa nova vida. Eu a construí dia após dia. Tinha amigos,
tinha um marido que me amava, tinha meu filho e uma cidade para
proteger. De pé aqui, afundando-me em autopiedade e imaginando quem
poderia me trair e como eu lidaria com isso, não resolveria nada.
Não fiz nenhum progresso no caso de Serenbe. Ainda não tinha ideia
de quem havia me enviado a caixa. Eu tinha que descobrir como proteger
Conlan. Precisava parar por aqui com todo esse drama e lamentação e
começar a pensar no que teria que fazer para resolver tudo isso.
Na mesa, Douglas mostrou o braço direito e flexionou, exibindo um
bíceps do tamanho de uma bola de beisebol. Sim, sim, você é grande e
poderoso. Nova tatuagem também.
Espere um minuto.
Eu me afastei da parede e fui em direção a Douglas.
— Ei, Daniels. —Ella sorriu para mim.
— É Lenna-a-a-art, —Charlie cantou. — É Lennart há dois anos. Se
liga, Ella.
— Tinta nova? —Perguntei a Douglas.
Ele sorriu, mostrando seus dentes brancos. — Sim. —Ele bateu na
pele do braço, ainda vermelha da agulha. Uma serpente na forma de um
S. Entre as curvas do corpo da serpente, uma flecha quebrada em dois
lugares formava um Z, a ponta da flecha estava apontada para baixo, a
parte do meio atravessava as curvas do corpo da serpente de forma
diagonal e o restante da haste dobrada acima da cabeça da serpente.
130
Serpente e Z-Haste.
Eu quase ouvi um clique quando pedaços se juntaram na minha
cabeça.
— É escocês, —disse ele.
131
— É Pictórico , —eu disse a ele. — Legal.
Eu me virei e fui para o meu pequeno escritório.
— O que diabos aconteceu? —Charlie perguntou nas minhas costas.
— Dê uma folga a ela, —Ella disse a ele. — Alguém tentou matar
seu bebê hoje. Ela a espancou até a morte com as próprias mãos. Eu
estava entregando uma encomenda no Riscos Biológicos e consegui ver o
corpo. A garota não tinha mais rosto. Sua cara era só hambúrguer cru.
Entrei no meu escritório, deixando a porta aberta, e fui para a estante
cheia de meus livros de referência. Foi nos livros aqui ou nos que estavam na
Cutting Edge? Corri meus dedos pelas capas. Esse não. Não, não, não ... aqui.
Puxei um volume verde da prateleira. W. A. Cummins, Decodificando
132
Símbolos Pictóricos .
Eu folheei. Achei. Dois círculos, unidos, com linhas curvas através
deles, dois pontos no centro e uma haste de flecha quebrada em Z. Discos
133
duplo e Z-Haste . Lembrava o símbolo da caixa. A proporção, a
espessura da peça retangular que liga os dois discos, era o mesmo.
Sentei na minha cadeira, o livro na minha frente. Ninguém sabia
134
muito sobre os pictos. Todo mundo sabia sobre a Muralha de Adriano ,
135
mas os romanos construíram outra, a Muralha de Antonino , em 142 d.C.
Ela dividiu a Escócia. Os romanos chamavam as pessoas ‘pintadas’ do
outro lado da parede de Pictos. Mais tarde, eles foram chamados de
136
Caledonianos . Ninguém sabia ao certo quem eram ou por quanto tempo
viveram na Escócia. Alguns alegaram que eram celtas, outros
argumentaram que eles vieram da Gália. Os mitos pictos faziam
referência a Cítia e chegaram à Escócia mais ou menos mil anos antes do
137
Anno Domini . Ninguém sabia ao certo.
Eles deixaram para trás joias de metal e pedras Pictóricas. Dezenas
de lascas de pedra antigas, cobertas com esculturas misteriosas. A maioria
ocorreu no lado oriental da Escócia. Mas as primeiras pedras pictóricas
datam do século seis. Segundo Erra, a invasão dos yeddimur a Shinar,
aconteceu muito antes disso.
Não havia a Z-Haste na caixa, mas a faca combinava. A faca parecia
ter vindo das Ilhas Britânicas.
Os Pictos não usavam torques. Alguns dos tesouros arqueológicos
atribuídos a eles continham correntes pesadas, mas ninguém sabia o seu
propósito. No entanto, os Celtas definitivamente usavam torques e
acabaram se espalhando pelas ilhas britânicas.
Eu precisava de um especialista em Pictos. Infelizmente, não
conhecia nenhum. A outra opção seria os Druidas. Os Druidas não
gostavam de mim. Eles não gostavam de ninguém. O estigma de
realizarem sacrifícios humanos pairava sobre eles, por isso faziam o
possível para projetar uma imagem benevolente. Eles usavam túnicas
brancas, agitavam galhos de árvores e abençoavam as coisas. Mas
ninguém que eu conhecia havia sido convidado para uma reunião de
Druidas. Eles também nunca respondiam perguntas sobre seus rituais ou
ancestralidade. Aparecer na porta deles e pedir que me ajudassem a
decifrar os símbolos pictóricos me renderia somente um tapinha nas
costas, seguido por uma porta na minha cara. Eu nem sabia onde
encontrá-los.
Eu precisava de ajuda. Alguém familiarizado com os pagãos.
Alguém que conhecia magia antiga ... Alguém que não tinha medo da
história dos Druidas e a quem eles não podiam enganar.
Roman. Ele era pagão, um Volhv negro, e sua mãe era uma das
Bruxas do Oráculo.
Eu precisava visitar os Covens de qualquer maneira, agora que meu
pai estava na ofensiva. Fizemos um plano juntos: os Covens, minha tia e
eu. Mas as Bruxas pareciam estar se arrastando para conseguir
implementar esse plano.
Curran entrou pela porta. Ele deu a volta na mesa e se apoiou nela.
— Estou pensando em ver as Bruxas do Oráculo, —eu disse a ele.
Ele franziu a testa. — É uma má ideia.
Era uma péssima ideia. Eu evitava as Bruxas do Oráculo como
evitava o fogo. Quando se consulta um Oráculo, sua sorte está lançada.
Qualquer coisa que um Oráculo preveja alterará o curso de seu futuro.
Nunca será uma previsão precisa; sempre se aplica a uma situação, mas
nunca da maneira que se pensa. Um Oráculo poderia avisá-lo de que a
água seria um problema para sua casa no futuro, então você se preparava
para uma inundação, mas sua casa acabava pegando fogo e você não
tinha água suficiente para apagá-la. O fato de o Oráculo ter acertado na
previsão não te ajudou a salvar sua casa. Noventa e nove por cento das
vezes, é melhor não saber o significado da profecia. Infelizmente, me
encaixava no um por cento dos desesperados. Eu precisava de respostas
sobre a caixa, precisava garantir a ajuda de Roman e precisava conversar
com as Bruxas do Oráculo sobre como avançar com os nossos planos
finais na batalha com o meu pai.
Além disso, tínhamos que impedir que a tragédia de Serenbe se
repetisse, e se o Oráculo pudesse ajudar com isso, eu beijaria os pés delas.
— Preciso conversar com Roman sobre os Druidas. E quero
perguntar as Bruxas do Oráculo sobre Serenbe. —E outras coisas. — Não
posso simplesmente sentar nas minhas mãos e não fazer nada, Curran.
Pessoas morreram. Temos que fazer algo a respeito.
— Vou cuidar do nosso garoto, —disse ele.
— Obrigada.
— Você voltará para casa hoje à noite?
— Voltarei.
— Bom, —ele disse. — Porque eu tenho planos.
— Que tipo de planos?
Seus olhos cinzentos ficaram quentes. — Quando você chegar em
casa eu te mostrarei.
— Você é insaciável, —eu disse a ele.
— Talvez você seja irresistível.
— Claro que sou.
Ele se inclinou e me beijou, enviando um arrepio através de mim.
Era engraçado como o mundo parava quando ele me beijava. Todas às
vezes.
Curran olhou fixamente para os meu olhos. — Vá resolver o que
precisa. Ninguém machucará Conlan enquanto você estiver fora.
Eu sorri para ele e disquei o número de Roman. Ele atendeu no
segundo toque.
— Três meses. Você não liga, não escreve, —a voz acentuada de
Roman soou ao telefone. — Estou ofendido.
— Não, você não está.
Ele riu. — Tudo bem, eu não estou. O que precisa?
— Preciso ver as Bruxas do Oráculo e conversar com você sobre
algo.
— Você precisa de uma previsão? —Ele perguntou.
Respirei fundo. Uma vez que eu dissesse isso, não haveria como
voltar atrás, e eu teria que viver com qualquer previsão que elas tivessem.
— Sim.

Capítulo 11
POR QUE TEM QUE SER UMA TARTARUGA? —Murmurei,
descendo um caminho estreito através da floresta que costumava ser o
138
Centennial Park .
— Você disse que queria uma previsão, —disse Roman.
139
Ele estava vestindo sua túnica preta de sempre. O panteão eslavo
era dividido em dois lados, a escuridão e a luz, e os Volhvs agiam como
canal entre os deuses e os fiéis. Serviam como sacerdotes, feiticeiros e,
140
ocasionalmente, terapeutas. Roman servia a Chernobog , o Deus da
Morte, a Serpente Negra, o Senhor de Nav, o reino dos mortos. Na
141
teoria, Chernobog era mal e sombrio, e seu irmão, Belobog , era bom e
iluminado. Na realidade, as coisas eram mais complicadas. Alguém tinha
que servir ao Deus das Trevas, e Roman acabou sendo esse alguém. Uma
vez ele me disse que isso fazia parte dos negócios da família.
Roman era a imagem personificada do sacerdote das trevas. Sua
túnica era preta com bordados prateados na barra. Seus cabelos, raspados
nas laterais, longos em cima e na parte de trás da cabeça, pareciam a
crina de um cavalo selvagem, também eram pretos. Até seus olhos sob as
sobrancelhas negras eram de um marrom tão profundo que pareciam
quase pretos.
— Eu sei. Eu estava perguntando em geral.
— Tartarugas são antigas. Elas vivem muito tempo e se tornam
sábias.
— Eu sei o que as tartarugas simbolizam, —rosnei. O caminho virou
e entramos em uma clareira onde uma grande cúpula de pedra repousava
na grama verde.
Roman estendeu a mão com seu cajado e bateu na cúpula.
A cúpula estremeceu uma vez e lentamente começou a subir. Um
focinho preto e sem brilho emergiu. Dois olhos, do tamanho de pratos de
jantar, olharam para mim. Um réptil colossal abriu a boca.
Entrei nela, pisando na língua esponjosa. — O que eu quis dizer foi:
por que as Bruxas do Oráculo não podem se reunir em um prédio? Em um
belo templo em algum lugar?
— Porque qualquer um apareceria por aqui querendo uma previsão
do próximo jogo de golfe, —disse Roman, subindo atrás de mim. —
Dessa maneira, quem ousar vir até aqui, correrá o risco de ser comido por
uma tartaruga gigante só para conseguir sua previsão. Apenas dois tipos
de pessoas fariam isso: os desesperados e os idiotas.
— Se você disser que sou o segundo tipo, vou dar um soco no seu
braço.
— Se a carapuça serviu ...
Suspirei e fiz o meu caminho através da garganta do animal,
descendo o túnel inclinado em direção ao lago de água escura no fundo.
Longos fios de algas pendiam das paredes. O líquido cheirava a flores e
água de lagoa. Eu fiz uma careta. Geralmente era muito mais úmido e
escorregadio. Uma vez, o vampiro de Ghastek veio comigo e acabou
escorregando pela garganta abaixo até o final do túnel.
Andei pelo túnel quase seco. — O que aconteceu com toda aquela
baba de tartaruga?
— Estou usando meu melhor manto, —disse Roman.
Ter uma das três Bruxas do Oráculo como mamãe tinha suas
vantagens.
O túnel virou. Eu o segui e entrei em um grande salão. Um lago se
estendia diante de mim, enfeitado com delicadas flores de lírio entre as
largas almofadas verde-escuras. Uma ponte de pedra, tão baixa que a
água passava sobre ela, atravessava o lago. Acima de nós, uma vasta
cúpula se erguia, a luz do sol da tarde brilhando através de seu topo
translúcido, cintilando com vermelhos e amarelos intensos. As paredes
escureciam gradualmente, primeiro verdes, depois pretas e esmeraldas.
A ponte terminava em uma plataforma onde três mulheres estavam
sentadas. A primeira, velha e muito magra, cochilava silenciosamente na
cadeira, com os cabelos tão finos que pareciam penugens. A primeira vez
que a vi, ela parecia feroz como um pássaro predador pronto para caçar.
Agora Maria passava a maior parte do tempo cochilando. Ela ainda me
odiava. A primeira vez que visitei o Oráculo, Maria me trancou em um
círculo de magia e eu o quebrei. Desde então ela queria me matar. Ao
lado dela, Evdokia, gordinha, de meia-idade, com o cabelo marrom
brilhante preso em uma trança enrolada na cabeça, tricotava algo em sua
cadeira de balanço. Um pequeno gato preto passeava pelas pernas dela. A
terceira era uma jovem mulher, loira e esbelta, sorria para mim. Eu a
salvei da morte, e Sienna sempre tentou me ajudar em troca.
142
Atrás das mulheres, um mural em alto relevo de Hékate cobria a
parede. Hékate estava diante de um grande caldeirão, posicionado no
cruzamento de três estradas. A velha, a mãe e a donzela, todos os
aspectos de sua deusa bruxa.
— Você procura uma visão? —Sienna perguntou.
Parece que íamos passar por toda a cerimônia, então. — Sim.
— Faça sua pergunta.
Evdokia se inclinou e cutucou Maria com sua agulha de tricô. A
velha assustou-se, piscou, me viu e revirou os olhos.
Eu tinha que formular a pergunta com cuidado. — O povo de
Serenbe foi assassinado e os seus ossos foram roubados. Quero saber
quem fez isso e por quê.
Sienna se recostou. Uma corrente de magia pulsou das outras duas
mulheres em direção a ela. Sienna levantou as mãos, parecendo um cisne
prestes a voar. Os olhos dela vidraram. Um sorriso estendeu seus lábios.
Usar sua magia trazia a Sienna uma alegria genuína.
Ela balançou de volta. A parede oposta desapareceu.
Um campo de batalha se espalhou diante de nós, pessoas de
armadura preta azulada lutando contra pessoas de equipamentos
modernos. O fogo queimava longas trilhas pelo campo, ardendo três
metros de altura. O cheiro de carne carbonizada assaltou meu nariz. O
cheiro metálico de sangue saturou o ar. Inalei e provei sangue humano na
minha língua. De repente eu estava na cena, no meio da matança. As
pessoas se entreolharam, seus rostos distorcidos pela raiva e pelo
terror, emoções tão primitivas que os lutadores pareciam atores
mascarados em uma peça grotesca. Suor, sangue e lágrimas
saturavam o espaço ao meu redor, e além dele havia uma parede de
fogo.
Algo rugiu no outro extremo do campo de batalha. Abri meu
caminho em direção a isso. Lâminas brilhavam ao sol, cortando e
golpeando. Sangue espirrou em mim. Ossos humanos, livres de
carne, estilhaçados na minha frente, transformando-se em pó.
Se eu pudesse chegar a um terreno mais alto ...
Os combatentes se separaram. Uma montanha de cadáveres se
ergueu diante de mim. Eu escalei, correndo sobre os corpos
pegajosos com sangue seco. Quase lá. Quase.
Subi ao topo. Ao longe, uma carruagem de ouro esmagava os
lutadores. Pai ... Outro rugido veio baixo e terrível, como nada que eu
já tinha ouvido antes. Eu me virei e vi dois olhos, âmbar, abrasadores,
olhando para mim da escuridão que crescia sobre a batalha corpo a
corpo. Uma forma escura mergulhou no meu lado direito em duas
grandes asas. Parecia vagamente familiar, quase como se ...
O fogo tomou conta de tudo, seu calor me abrasou.
O fogo desapareceu e a parede reapareceu. Sienna estava quieta.
Eu esperei.
Ninguém disse nada.
— Só isso? —Perguntei.
— Isso é tudo que eu pude ver.
— Então, uma grande batalha, sangue, chamas, ossos humanos e
todo mundo sendo queimado?
Ela assentiu.
— Isso não explica nada.
Sienna abriu os braços.
— Há pelo menos uma profecia?
— Nada veio para mim.
Besteira. Sempre havia uma profecia. — Quero meu dinheiro de volta,
—eu disse.
— Você não nos pagou nada, sua ingrata, —Maria me disse.
— Isso não ajuda.
— Desculpe, —disse Sienna. — Isso aqui não é uma ciência exata.
Se eu conseguir ver outra coisa, a informarei.
Eu realmente queria bater minha cabeça contra algo duro, mas não
havia nada por perto.
— Meu pai está mobilizando seu exército. Ele pode estar avançando
com seus planos de invasão.
Evdokia parou de tricotar. — Você tem certeza?
— Foi relatado pelos informantes do Bando e pelos nossos. Como
está indo o seu contato com a Bruxa Branca?
Sienna sentou-se em seu assento.
Evdokia apertou os lábios. — Existem complicações, —disse ela.
— Não pode haver complicações. Você me prometeu que faria esse
ritual. Meu pai não irá matar meu filho ou meu marido. Se ele invadir e
eu tiver que morrer, quero ter certeza de que não será por nada. Preciso ir
lá e falar com essa bruxa?
— Não! —Evdokia e Sienna disseram na mesma voz.
— Por que não? —Elas estavam escondendo alguma coisa.
— Isso é assunto entre as bruxas, —disse Evdokia. — Se você
tropeçar lá, balançando a espada, estragará tudo. Prometemos o ritual e
vamos fazê-lo. Quando é que não cumpri o que prometi, Katya?
O apelido russo saiu. Ah garoto. — Eu só quero ter certeza de que, se
o pior acontecer, não morrerei por nada.
— Nós vamos lidar com isso, —Sienna me disse.
Maria gargalhou. As outras duas bruxas olharam para ela.
Ela parou a gargalhada e cuspiu no chão. — Escória maligna é o que
você é. Escória maligna é o que você sempre será. Espero que todos
morram no fogo.
Evdokia deu um suspiro.
— Impressionante, —eu disse. — Bem, o papo foi bom. Obrigada
pela reunião produtiva. Ansiosa pela nossa próxima.
— Outra coisa, —disse Evdokia. — Alguns Cavaleiros da Ordem
pediram para falar conosco.
— Cavaleiros de Atlanta?
— Não, de fora da cidade.
Norwood, o Cavaleiro-Representante já estava andando por aí. —
Eles estão tentando remover Nick Feldman de sua posição como Líder
do Núcleo. Nick está pressionando a Ordem sobre mim, e eles não estão
gostando.
— Nós cuidaremos disso, —prometeu Sienna.
Eu me virei e sai da tartaruga. Lá fora, o ar tinha um sabor fresco e
doce. As árvores brilhavam na brisa do crepúsculo enquanto o céu
esfriava após o calor do pôr-do-sol. Os vaga-lumes brilhavam aqui e ali,
minúsculos pontos de luz no ar índigo.
Roman se jogou na minha frente. — Você está planejando se matar?
Porcaria. Eu e minha boca grande. — Não.
— Explique-se.
Suspirei. — Meu pai é suscetível à magia das bruxas. É mais antiga
que a dele, primitiva de uma maneira, mas muito poderosa. Erra me disse
que o oponente mais difícil que Roland já enfrentou, fora da guerra que
matou a maior parte de nossa família, foi uma bruxa e essa mulher quase
o matou. O plano é reunir os Covens no campo de batalha e realizar um
ritual que canalizará o poder de todos os Covens juntos em uma única
pessoa. Eu não posso ser essa pessoa. Primeiro, não sou treinada o
suficiente. Segundo, a pessoa que receberá a magia canalizada precisa
agir como um prisma, concentrando e direcionando o poder para fora
dela. Eu sou um péssimo prisma. Meu corpo apenas acumularia toda a
magia.
— Deixe-me adivinhar, —disse ele, com a voz seca. — A Bruxa
Branca é um bom prisma?
— O melhor que elas conhecem. O plano é convencê-la a participar
disso. Exceto que sua mãe e as outras bruxas têm tentado e não chegaram
a lugar algum.
— Você e seu pai estão vinculados. Se elas o matarem, você também
morrerá, —disse Roman. — Este é um plano estúpido.
— As bruxas não irão tentar matá-lo. Elas irão tentar colocá-lo para
dormir. Se tudo funcionar como pretendido, Roland adormecerá no
campo de batalha e esperançosamente dormirá por décadas ou mais. Eles
fizeram isso com Merlin. O mago ainda está em algum lugar lá fora,
dormindo.
Roman pensou sobre isso. — Certo. Explique a parte que você
morre.
— O poder dos Covens pode não ser suficiente. Meu pai é muito
forte. Se ele não adormecer, talvez eu tenha que matá-lo pessoalmente ou
pelo menos enfraquecê-lo o suficiente para que o feitiço funcione.
Existem consequências para isso.
Roman balançou seu cajado em minha direção. — Repito, este é um
plano estúpido! —O corvo no topo do cajado abriu o bico de madeira e
gritou para mim.
— Você sabia que quando está bravo, seu sotaque russo desaparece?
— Isso é idiota. Você tem marido e filho. Você não vai matar seu pai
e morrer por causa disso. Eu a proíbo.
— Certo, Vossa Santidade.
— Estou falando sério. A morte é para sempre. Eu sei. Meu deus é o
Senhor de Nav.
— Pode não haver outra maneira, —eu disse gentilmente. — Se eu
soubesse com cem por cento de certeza que me matar mataria meu pai,
eu o faria sem hesitação. Você está certo. Tenho marido e filho, e quero
que ambos tenham uma vida longa e feliz, mesmo que seja sem mim.
Mas meu pai é muito mais antigo e mais poderoso do que eu. Se eu me
matar, ele ainda pode sobreviver. Com a canalização do poder das
bruxas, pelo menos temos uma chance maior de derrubá-lo.
— Não. Eu não vou aceitar isso.
Estendi a mão e dei um tapinha em seu braço. — Obrigada por ser
meu amigo.
— Curran sabe?
— Não, e você não vai contar a ele. Este é o plano de último recurso.
Se contar a ele, Curran fará algo estúpido para me impedir de entrar nesse
campo de batalha, e eu sou nossa melhor chance de derrotar meu pai. Se
não vencermos, definitivamente terei que me matar.
Ele rosnou algo baixinho. O corvo de madeira gritou.
— Eu tenho uma ideia. E se, em vez de ficar bravo e colocar seu
pássaro para gritar comigo, você me ajudar?
— Ajudar a fazer o que?
— Preciso conversar com os Druidas sobre os Pictos.
— O que os Pictos têm a ver com alguma coisa?
Expliquei a caixa e o símbolo.
Ele bufou. — Bem. Amanhã.
— Obrigada.
Eu me virei para ir embora.
— Kate, —ele chamou.
Eu me virei.
— Você é minha amiga. Não tenho muitos amigos por causa do que
faço. Toda vez que meu deus me chama, eu negocio com ele para manter
pessoas que não conheço vivas: ‘E se matarmos apenas cinco pessoas? E se
for três? Se fizermos assim, talvez não tenhamos que matar ninguém’. Luto
pela vida deles. E aqui está você, nem mesmo tentando. Tem que haver
outro jeito, você me ouviu? Encontre outro caminho.
— Vou tentar, —disse a ele.
— Faça isso.

*******
A MAGIA FOI EMBORA no caminho de casa. Não havia nenhum
veículo novo na entrada e ninguém apareceu na porta. Curran geralmente
me ouvia antes mesmo de eu entrar na garagem.
Entrei dentro de casa. Curran disse que compraria um carro novo
hoje. Ele pode ter se atrasado.
— Olá? —Eu gritei. — Alguém em casa?
— Estou em casa! —Adora gritou do andar de baixo.
Desci até o porão. Totalmente reformado, foi convertido em um
quarto de enfermaria. Yu Fong descansava em uma cama de hospital.
Uma intravenosa estava pendurada no braço dele. Ao lado dele,
afundada em uma grande poltrona, Adora segurava um livro. Esbelta,
músculos definidos, com os cabelos escuros caindo sobre os ombros, de
costas ela parecia familiar. Meus ombros eram mais largos, meu corpo
maior, e eu tinha alguns centímetros de altura a mais do que ela.
143
Substitua sua katana por Sarrat, e Adora seria uma versão do que eu
era quando adolescente.
— Como ele está?
— Do mesmo jeito, —disse ela.
Yu Fong não mostrava sinais de que estava vivo. Eu me inclinei
perto dele e coloquei as costas da minha mão em seu nariz. Um leve
sopro de ar tocou minha pele. Ainda respirando.
— Ele é bonito, —observou Adora.
— Ele é. —Ele parecia uma bela pintura. — Eu não tentaria beijá-lo.
Ele não é a Bela Adormecida.
Ela torceu o nariz para mim. — Não estava planejando isso.
— Você quer ser paga pela Cutting Edge ou pela Associação por esse
trabalho?
Ela inclinou o queixo. — Estou trabalhando de graça.
— Desde quando?
— Este é um assunto de família, —disse ela. — Vou cuidar dele,
porque você e Curran são da família e precisam de ajuda.
— Quem é você e o que fez com Adora?
Ela sorriu para mim. — Você não é tão engraçada quanto pensa.
— Eu sou engraçada o suficiente. Avise-me se ele acordar.
— Você matou uma das minhas irmãs hoje, —disse ela.
As notícias viajavam rápido. — Sim. Ela queria matar Conlan e
comê-lo.
— Ela sofreu?
— Sim.
— Bom. —Adora piscou para mim. — Coloquei as calças de
moletom de Curran nas escadas. Não vou entrar naquele seu ninho de
amor.
— Ninho de amor?
— Seu quarto onde vocês fazem sexo.
Ah garoto.
— Ainda não fiz sexo, —Adora me disse. — Mas decidi que vou
experimentar.
— Existe uma pessoa em particular com quem você deseja
experimentar?
— Não. Estou pensando sobre isso.
— Sexo é sobre confiança, —eu disse a ela. — Você estará no seu
estado mais vulnerável. Tente escolher bem.
Ela torceu o nariz para mim novamente.
Eu subi as escadas. Uma grande sacola de papel estava no primeiro
patamar. Olhei para dentro da sacola. Calça de moletom cinza. Curran
vivia vestido nelas quando morávamos na Fortaleza e continuava
usando-as, apesar de não fazermos mais parte do Bando. Um dois ...
Cinco? Estranho. Ele tinha duas pilhas de calças de moletom no armário.
— Ei, —eu gritei em direção ao porão. — Quem trouxe as calças de
moletom?
— Alguns metamorfos lobos do Bando.
Subi as escadas e abri as portas do armário. Todas as calças velhas se
foram. Estranho. Esvaziei a sacola no chão do banheiro e vasculhei as
novas calças de moletom, verificando a cintura e o elástico na parte
inferior de cada perna da calça para encontrar itens escondidos. Nada.
Certo. Dobrei a calça de moletom e as coloquei de volta na sacola.
Para onde foram as outras calças de moletom?
Procurei no cesto de roupas, não havia nada. Agora fiquei curiosa de
verdade. Desci as escadas e verifiquei a lavanderia, a máquina de lavar e a
secadora. Nada.
Sobrou a lata de lixo lá fora. Saí e abri a tampa. Um grande saco de
lixo estava em cima, cheio, como se alguém tivesse dobrado um cobertor
grosso e o enfiado dentro. Eu peguei o saco, puxei as cordas e o abri.
Calças de moletom. Ainda limpas e dobradas. Bem, isso não é nem um
pouco estranho. De jeito nenhum. Por que Curran jogaria fora todas as suas
calças de moletom e pegaria novas? Elas cheiram mal? Cheirei a calça de
moletom. Cheirava a algodão para mim.
Peguei uma calça de moletom velha e desci para o porão.
— Isso tem cheiro estranho para você?
— Você quer que eu cheire a calça de Curran?
— Elas estão limpas. Tirei-as da lata de lixo.
Adora piscou para mim e levantou um dedo. — Não.
Levei a calça de moletom velha lá para cima, tirei as novas de dentro
da sacola e as guardei no armário, coloquei a calça velha na cama ao lado
da sacola vazia e uma camiseta branca limpa. Armadilha montada.
Agora eu só tinha que esperar o leão voltar para casa.
Levou mais vinte minutos. Ele entrou pela porta, carregando
Conlan. Conlan me viu, saiu de seus braços e subiu as escadas a uma
velocidade vertiginosa, me forçando a tomar uma decisão em uma fração
de segundo: mover ou levar o golpe. Eu levei o golpe. Minhas costas
bateram no chão de madeira. Opa! Ele me abraçou. — Mamãe!
Eu me levantei. — Esse amor repentino é suspeito.
— Ele teve alguns problemas depois que tentou comer velas
perfumadas. —Curran subiu as escadas.
— Onde ele achou velas perfumadas?
— No armário de suprimentos da Associação. Corinna comprou
uma pilha delas. Ela as queima no vestiário. Diz que a ajuda com o
cheiro de cachorro molhado.
Corinna trabalhava para a Associação como Mercenária, mas
também era uma metamorfa chacal e estava obcecada com seu cheiro.
Carreguei Conlan para o quarto. — Você falou com Martha?
— Ainda não.
— O Bando entregou umas calças de moletom para você. Eu as
coloquei no armário. O que aconteceu com as antigas?
— Estavam velhas.
Besteira. Vindo do homem que usava seu olhar alfa só para eu não
jogar fora uma camiseta velha, não era apenas besteira, isso me cheirava
a problemas.
Eu assenti.
— Como foi com as bruxas?
Curran tirou a camiseta e eu consegui ver o melhor tórax do mundo,
todo dourado e musculoso. Humm.
— Grande batalha, fogo, ossos humanos, sangue, mais fogo.
— Só isso? —Ele vestiu a camiseta branca e tirou o jeans. Humm.
— Sim. Não foi muito revelador. Mas boas notícias, Maria ainda me
odeia.
Ele vestiu a calça de moletom. A bainha ficou no meio da canela
dele. Que diabos?
— Espere, bebê. Mamãe precisa fazer uma coisa. —Coloquei Conlan
no chão, virei de lado, levantei minha perna, dobrei o joelho e estendi.
Usava esse golpe para acertar a garganta de Curran com o meu pé. Já
tinha feito isso centenas de vezes quando treinamos. Mesmo que na
maioria das vezes eu não o golpeava de verdade, acabava segurando o
meu pé poucos centímetros antes dele se conectar com o seu pescoço. O
144
chute alto era tão automático para mim que o fazia com muita
facilidade. Dessa vez meu pé não alcançou o seu pescoço.
— Ooo, preliminares. —Curran agarrou meu tornozelo.
Puxei minha perna da mão dele. — Fique em pé.
— Por quê? —Ele abriu os braços.
Eu me aproximei dele. Meu nariz tocou seu peito. Em sua forma
humana, Curran era mais alto do que eu uns dez centímetros. Eu tinha
um metro e setenta e pouco e ele tinha um pouco mais de um metro e
oitenta. Eu estava olhando para ele agora.
— Você está mais alto.
— Odeio dizer isso a você, mas minha fase de crescimento já acabou.
— Você está mais alto e sabe disso. Encontrei suas calças de
moletom no lixo. —Recuei e dei um chute rápido, apontando para a
cabeça dele. Ele se inclinou para trás, deixando meu chute passar.
— Está com pelo menos um e noventa.
— Você mediu minha altura com seu chute?
— Sim. E seu cabelo está mais comprido agora do que estava pela
manhã. O que está acontecendo?
— Nada que eu entenda.
— Por que isso está acontecendo?
Ele levantou os braços. — Estou tentando ficar mais forte.
Curran malhava em todas as chances que tinha.
— Mas nada que me deixaria mais alto. A coisa do cabelo é estranha
também, eu concordo.
— Isso é normal? Essas mudanças são algum tipo de estágio de vida
que os metamorfos Primeiros passam?
— Meu pai não está por perto, então não podemos perguntar
exatamente a ele.
— Você já conversou com Doolittle sobre isso?
Ele sorriu para mim. — Você gostaria que eu fosse vê-lo?
— Sim. Eu gostaria. O que diabos é tão engraçado?
— Você está preocupada com minha saúde.
— Isso me preocupa. —Sentei-me na cama. De repente me sentia
muito cansada.
Ele se agachou no chão na minha frente. — Estou bem.
— Hoje fiquei pensando de como tudo era antes.
— Antes ...?
— Antes do Flare.
Ele sorriu. — Você quer dizer antes de eu invadir sua casa e fazer
café pela primeira vez?
— Você não invadiu minha casa. Deixei a porta destrancada.
— Detalhes.
— Ghastek pediu perdão a In-Shinar hoje. Ele não sabia sobre os
Sahanus e se culpou inteiramente pelo o que aconteceu. Ele não pediu
perdão para a Kate, sua amiga. Ele queria o perdão da In-Shinar.
Raphael me lembrou que eu era a In-Shinar. Algumas pessoas nunca
mais me verão como qualquer outra coisa.
— Eu quero tudo de você, —ele me disse. — A mercenária, a In-
Shinar, a minha esposa, tudo isso. Minha Kate.
— Eu sei. Tenho a terrível sensação de que algo muito podre está
prestes a cair sobre nós. Não quero que nada aconteça com você. Não
suportaria esse golpe, Curran.
— Nada vai acontecer comigo. Estou aqui. —Ele me puxou da cama
para um abraço e me beijou. — Não vou a lugar nenhum, —ele sussurrou
no meu ouvido. — Todo seu. Sempre.
Eu acreditava nele, mas a sensação de mal-estar no meu estômago se
recusava a ir embora.

*******
O TELEFONE ME ACORDOU. Escorreguei de debaixo do braço de
Curran e me arrastei para atendê-lo. O relógio marcava 6:20 da manhã.
— Kate Daniels. Quero dizer Lennart. Kate Lennart.
Curran riu baixinho.
— Oi, Kate, —disse o xerife Beau Clayton ao telefone. Ele parecia
chateado, como se tivesse visto algo que queria esquecer. Eu não iria
gosta desta ligação.
— Ligou por causa de Serenbe. Aconteceu de novo?
— Sim. Estou em Ruby.
— Tenho algumas informações para você também. Estarei aí o
mais rápido possível.
Eu desliguei. Ontem à noite, depois que nós terminamos de
conversar, Curran ligou para Martha e pediu para ela cuidar de Conlan
hoje e trazer com ela o Clube do livro. Ela perguntou se ele queria dizer o
Clube do livro inteiro e ele disse que sim. Ela disse a ele que estaria aqui
às nove.
Se eu esperasse até as nove, a magia poderia ir embora. Eu precisava
ir agora, enquanto a magia estava ativa.
— Eu tenho que ir, —disse a Curran.
— Te encontro mais tarde, —ele disse.
*******
O PEQUENO POVOADO DE RUBY estava bem no coração do
condado de Milton. Duas ruas, dezessete casas, uma agência do correio,
uma pequena loja com posto de gasolina e uma Torre de Defesa Rural. A
Defesa Rural, uma extensão da Guarda Nacional, era encarregada de
proteger os pequenos povoados. Funcionavam como uma milícia, só que
um pouco mais preparada.
Mesmo com Julie dirigindo demoramos cerca de duas horas para
chegar lá. Pelo menos, chegamos enquanto a magia estava em alta.
Agora caminhávamos na rua, as casas ao lado completamente
silenciosas. Um labrador retriever morto estava à minha esquerda. Alguém
havia construído uma pira no final da rua. Tinha um metro e oitenta de
altura e a forma de um cone.
Atrás de nós, Beau Clayton e dois de seus policiais nos esperavam,
todos os três ainda a cavalo: o policial à direita com uma besta e o outro
com uma espingarda. Eram pessoas cautelosas cobrindo todas as bases.
Beau, do tamanho de uma montanha, tinha perdido toda a sua
habitual alegria. Seus olhos estavam frios e escuros. Um funcionário de
uma transportadora relatou a vila vazia ontem à noite, mas Beau estava
ausente, lidando com outro assunto e não recebeu a mensagem até esta
manhã. Ele e os policiais fizeram uma varredura pela vila e encontraram
casas abandonadas, camas desarrumadas e cachorros mortos.
— O que acha que é essa pira? —Perguntou-me Beau.
— Eu não sei. Ontem recebi uma visão das Bruxas do Oráculo.
Havia muito fogo nela. Tem certeza de que não foram os moradores do
povoado que a construiu?
— Não há como saber, —disse Beau. — Não costumávamos vir aqui
muitas vezes.
Nós esperamos.
Finalmente, Julie olhou para mim. — Azul.
— De modo geral?
Ela assentiu. — Magia humana.
Eles levaram as pessoas. Assim como Serenbe. Isso tinha que parar.
Tinha que parar agora.
Um homem entrou na rua, alto, de ombros largos e vestindo uma
armadura azul. As escamas de metal escuro cobriam seu corpo, seguindo
seus contornos, mais largos no peito e mais estreito na cintura. A
armadura fluía, flexível, protegendo sem impedir seu movimento, cada
escama do tamanho certo, quase como se fosse feita sob medida. Eu
nunca tinha visto nada assim até ontem, quando vi essa armadura na
visão de Sienna.
Eu examinei o guerreiro. Uma insígnia dourada brilhava no ombro
direito. O capacete dele protegia o crânio, deixando o rosto descoberto,
145
uma variação de um elmo Calcídico que eu não conhecia. Seu rosto
parecia estranhamente sem emoções. Ele era branco, de olhos azuis, e os
cachos de cabelo que caíam sob o capacete eram loiros. Dois cabos de
espada se projetavam sobre seus ombros. O homem carregava uma tocha
na mão. O fogo crepitando no topo da tocha.
— Pensei que disse que tinha feito uma varredura, —eu disse
baixinho.
— Sim, fizemos, —disse Beau.
O guerreiro deixou cair a tocha na pira. Chamas subiram pelos
galhos secos.
— Ele jogou gasolina ou algo assim? —Julie perguntou.
— Eu não senti cheiro de nenhum combustível quando olhei, —disse
um dos policiais.
O guerreiro parou na frente da pira, de costas para ela, e nos
encarou.
— Departamento do xerife, —Beau gritou, sua voz rouca. — Deite-
se no chão.
O guerreiro levantou os braços e puxou as duas espadas das costas.
Ah bom. Aparentemente parece que ele não ia obedecer tão fácil assim.
As lâminas pareciam ter cerca de sessenta centímetros de
comprimento com uma ponta rapidamente curvada, semelhante a uma
146 147
espada filipina moderna , um cruzamento entre uma espada espanhola e
148
um tradicional Garab . Enérgica e rápida, ao mesmo tempo em que
fornece muito poder de corte em um único golpe ou em um impulso.
O fogo atrás do guerreiro subiu. Espere, não me diga.
Uma figura apareceu projetada nas chamas, um homem alto com
armadura de escamas dourada. Uma capa branca, feita de pele de lobo,
cobria seus ombros, seus cabelos loiros caíam sobre ela em uma onda
arrumada. Um torque de ouro circulava seu pescoço.
Minha caixa e Serenbe estavam conectadas.
Esse filho da puta. A raiva ferveu dentro de mim e solidificou em gelo
escuro. Todas aquelas pessoas mortas. Eu vou te pegar. Apenas espere.
— Que diabos? —Disse o outro policial.
— Estamos sendo invadidos, —eu disse. — Esse é o rei deles e
aquele deve ser seu Comandante.
— Possuem magia? —Beau perguntou.
— Ele está deixando um rastro azul, —disse Julie.
— Kenny, —disse Beau, com a voz calculista, — atire naquele
bastardo.
Kenny levantou a besta. Uma pequena faísca azul acendeu na ponta
da flecha. Ele mirou e disparou. O guerreiro abriu a boca. Fogo disparou.
Os restos queimados da flecha caíram no chão.
Maravilha. Ele cuspia fogo. Meu favorito.
— Acho que essa é a minha deixa. —Eu desembainhei Sarrat.
— Somos cinco contra um deles, —apontou Kenny.
— Não se trata de ganhar, —disse Beau. — Isso é sobre temer. Este
imbecil vem entrando em nossos povoados e levando nosso povo. Ele
acha que pode fazer o que quiser e nenhum de nós pode detê-lo. Ele
precisa saber que um dos nossos pode derrotar um dos dele. Divirta-se,
Dan ... Lennart.
Eu entrei no meio da rua.
O guerreiro avançou um passo leve. Na ponta dos pés. A maioria das
pessoas pisava os calcanhares primeiro. Tínhamos os benefícios
confortáveis do calçado moderno e andávamos principalmente por ruas
pavimentadas. Ele pisava na ponta do pé primeiro, sentindo o chão com
os dedos dos pés antes de colocar todo o peso nele. Quase não se via isso
fora das culturas que ainda andavam descalças.
O guerreiro girou as lâminas, aquecendo os pulsos. Eu fiz o mesmo.
Sem luvas. É difícil segurar efetivamente uma lâmina com luvas
blindadas. Mas isso deixavam sua juntas expostas e fáceis de cortar.
Comecei circular lentamente. Ele tinha um metro e oitenta de altura,
pelo menos noventa quilos, provavelmente mais por causa da armadura.
A pergunta de um milhão de dólares era: qual a espessura dessa
armadura?
Mostre-me o quão rápido você é com suas duas espadas.
Ele olhou para a minha única espada e largou sua espada esquerda
no chão. Esperto. Duas espadas tinham suas vantagens. Elas eram eficazes
para se livrar de uma multidão ou bloquear uma lâmina muito pesada.
Mas no ‘um-contra-um’, uma única espada era mais indicada. Eu estava
gostando disso cada vez menos.
Parei cerca de um metro dele. Ele me observou. Eu o observei.
Mostre-me o que você tem.
O guerreiro atacou rápido, golpeando com a lâmina em direção ao
meu lado direito. Bloqueei o golpe apenas o suficiente para deixar sua
lâmina deslizar pela minha e me afastei.
Forte. Entrar em uma luta de golpe e defesa com ele me desgastaria.
Ele inverteu o balanço. Inclinei Sarrat para deixar o golpe deslizar
pela minha lâmina e me movi novamente.
O guerreiro atacou, derrubando sua espada em um golpe devastador.
Eu me joguei para a esquerda, abaixando-me e empurrei Sarrat em sua
axila. Foi como tentar empurrar através de uma pedra. Afastei a lâmina e
pulei para fora do caminho. Ele deu um passo para trás, seus olhos azuis
sem piscar e frios.
O sangue cobria a ponta de Sarrat. Se não fosse pela armadura, ele
sangraria até a morte. Cortá-lo não iria dar certo. A lâmina não
penetraria. Poderia usar uma Palavra de Poder, mas isso seria contra as
regras. Beau estava certo. Eu precisava bater nesse cara com minha
espada, cara a cara. Nada menos do que isso faria esses imbecis parar os
ataques.
O guerreiro atacou novamente, chovendo golpes, esquerda, direita,
esquerda.
Bloqueei, esquivei, bloqueei, esquivei, recuei, bloqueei. Ele era muito
forte e lutava como se tivesse batalhado por sua vida muitas vezes. Sem
exageros. Nenhum movimento desperdiçado. Cada golpe cruel e
calculado.
Golpe, golpe. Bom truque, mas eu já vi isso muitas vezes. Golpe.
Bloqueei, bloqueei, bloqueei ... A ponta de sua lâmina esculpiu um
caminho através do meu antebraço direito. Merda.
Nós nos separamos.
Eu tinha que ganhar essa luta. Se ele me vencesse, ficaríamos
marcados como presas fáceis.
Ele se lançou. Eu desviei. Ele atacou da direita novamente,
esperando que eu me esquivasse. Em vez disso, entrei no golpe,
plantando meus pés e agarrei seu pulso. Senti o choque do golpe se
espalhar até os meus dedos dos pés e, enquanto o choque ainda se movia
através do meu corpo, dirigi Sarrat em direção ao seu intestino. Ele
agarrou a lâmina com a mão. Eu sorri para ele e puxei Sarrat de volta. A
lâmina cortou sua mão como se fosse manteiga.
Ele rosnou de dor. Os olhos dele brilharam âmbar. A visão das
Bruxas do Oráculo surgiu diante de mim. Olhos âmbar e depois ...
Eu me afastei e corri.
Chamas explodiram de sua boca, o jato de fogo em forma de cone,
rugindo atrás de mim. O calor me cobriu. Eu caí no chão. O calor
abrasador rasgou acima de mim.
Eu me levantei. Uma cortina de fumaça pairava entre nós, chamas
brilhando dentro dela. Ele usou sua magia, então foi ele quem quebrou as
regras primeiro. Ah, que maravilha.
Deslizei a lâmina de Sarrat pelo corte no meu antebraço, deixando o
carmesim molhá-la.
O guerreiro atravessou a fumaça e o fogo, os olhos ardendo, a espada
erguida.
Enviei um pulso de magia através do meu sangue. Uma borda
vermelha fina como o cabelo cristalizou na lâmina de Sarrat.
O guerreiro levantou sua espada em minha direção, enorme, com os
olhos em chamas.
Eu o esfaqueei no estômago. A lâmina cortou a armadura, a carne e
os órgãos e raspou sua coluna, cortando os nervos. As pernas dele
desabaram. O homem caiu de joelhos.
A fumaça se dissipou. Cortei seu pescoço. Quase não houve
resistência. Sua cabeça rolou dos ombros. Peguei a cabeça, caminhei até a
pira e a joguei em direção a projeção do imbecil loiro nas chamas. Caiu
através do fogo.
— Toma. Isso é para você. Guarde-a.
O homem no fogo e eu nos entreolhamos. Sua armadura combinava
com a de seu guerreiro, mas onde a armadura do guerreiro era azul, as
escamas da armadura do homem no fogo eram vermelho-dourado
intenso. Uma corrente de ouro segurava sua capa, com o fecho cravejado
com o que provavelmente eram rubis de verdade. Ele tinha tanto ouro
nele, que seus joelhos deveriam estar tremendo com o peso. Se sua
imagem era em tamanho real, ele era enorme, com pelo menos um metro
e noventa de altura. Claro, ele poderia ter um metro e meio de altura e
apenas se fazia parecer maior através da projeção.
O calor me banhou do lado. O corpo do guerreiro queimava de
dentro para fora, sua armadura derretendo. Lá se foi a minha evidência.
O homem no fogo acenou para mim.
Seja paciente. Não o provoque. Espere que ele lhe diga o que quer e quem ele é
e, em seguida, diga que vai cortar a cabeça dele. Zen. Diplomacia. Eu poderia
fazer isto.
— Você matou o meu povo. —A linguagem de poder saiu da minha
língua. Provavelmente não devia ter começado com isso. Não resisti.
— Eles estavam fora dos limites do seu território.
Ele tinha uma voz profunda e ressonante. O poder nele rolou pelo
povoado, inimaginavelmente antigo. Os pêlos minúsculos na parte de trás
do meu pescoço se arrepiaram. Atrás de mim, um dos policiais emitiu um
som sufocado.
— Todos eles eram o meu povo.
— Você reivindica domínio sobre o mundo inteiro, então,
Filha de Nimrod?
— Eu não reivindico domínio. Reivindico famílias, vidas. Toda vez
que você entra neste mundo e mata, você mata um dos meus.
Ele riu. — Você é arrogante. Como o resto do seu Clã.
Desejei poder alcançá-lo através das chamas. Minhas mãos coçavam.
Quase podia ouvir o som de sua traqueia quebrando sob meus dedos.
— Você já considerou uma resposta?
Eu levantei Sarrat e olhei para a sua borda. Tentáculos brancos de
vapor subiam da lâmina. Sarrat não gostava dele.
Diplomacia, a voz de Curran disse na minha cabeça. Descubra o que ele
quer e quão grande é a ameaça.
— Vamos resumir. Você me enviou uma caixa de cinzas com uma
faca e uma rosa nela.
— Sim. —Ele também mudou para a minha língua, mas isso não
diminui o efeito profundo e avassalador que a sua voz tinha.
— O que eu devo fazer com aquilo? O que significa? É um presente?
Ele fez uma pausa. — Entendo. Você não compreendeu a
mensagem.
— Não. Me esclareça.
— O mundo é meu. Estive fora, mas agora voltei. Muita coisa
mudou.
— Continue.
— Vou precisar de uma rainha.
Eu levantei minha sobrancelha para ele.
— Estou lhe oferecendo uma coroa. Sente-se ao meu lado e
compartilhe meu poder. Seja minha guia nessa Nova Era.
— E se eu não aceitar?
Âmbar brilhou em seus olhos. — Vou queimar seu mundo.
— Você precisa trabalhar melhor nessa coisa de proposta de
casamento. Primeiro vêm as flores e presentes, depois o namoro e só
então vem a proposta de casamento.
Ele me encarou com seu olhar, um olhar duro e sem piscar. — Você
está zombando de mim.
— Você é um garoto muito inteligente, não é? —Citei uma frase de
149
um antigo filme . Ele não entenderia, mas achei engraçado.
— Você não entende o que estou oferecendo.
— Como exatamente você achou que essa proposta funcionaria?
‘Olá, cheguei e já matei um monte de pessoas de uma maneira horrível, case-
se comigo ou vou queimar tudo.’ Quem concordaria com isso? Você não é
um bom partido para se casar. Você é uma ameaça a eliminar.
— Sua tia disse a mesma coisa ao meu irmão uma vez, —disse ele.
Ah droga. — E como isso acabou para o seu irmão?
Ele sorriu. Havia algo errado com os dentes dele. Eles não eram
muito afiados, mas eram mais afiados e mais cônicos do que os dentes
humanos tinham o direito de ser.
— Sua tia e seu pai o mataram. Mas eu não sou meu irmão.
— Então minha família chutou o traseiro de seu irmão. Você percebe
como isso não está a seu favor.
Ele riu. — Você sabe por que meu irmão navegou e tentou invadir as
terras da sua família? Porque ele lutou comigo pelas minhas terras e
perdeu. Sua família enfrentou apenas uma imitação fraca do verdadeiro
poder e do exército do meu povo, e mesmo assim, quase foram
exterminados.
— Deixe-me adivinhar, você é o verdadeiro poder.
— Eu sou. Mantenho deuses prisioneiros, atormento-os pelo meu
prazer. Eu trago guerra e terror. Eu sou Neig, o Imortal. Sou o Lendário.
Todos os que me conhecem se submetem a mim.
A maneira como ele disse ‘Lendário’ enviou arrepios na minha
espinha. Ignorei. — Nunca ouvi falar de você.
— Então terei que remediar isso.
— Por que não sai dessa fogueira e vem até aqui para eu encurtar sua
vida lendária.
Ele riu. Pequenos tentáculos de fumaça rodopiavam ao redor dele.
— Eu lhe darei uma demonstração, filha de Nimrod. Então falaremos
novamente.
O fogo se apagou, como a chama de uma vela.
Virei-me para Julie e os policiais.
— Bem, —disse Beau, sua voz calma. — Kenny, dirija-se até
Meredith, encontre um telefone e ligue para a delegacia. Diga a eles que
temos outra invasão em nossas mãos e que espalhem alertas de
evacuação por aí.
Fui para o posto de gasolina.
— Para onde estamos indo? —Julie me alcançou.
— Vamos reacender essa pira. Você tem certeza de que ele é
humano?
— Sim eu tenho certeza. Por que estamos reacendendo a pira?
— Porque temos um mago de fogo antigo em nossas mãos e ele quer
vingança contra minha família. Preciso falar com meu pai. Verifique o
telefone e, se funcionar, ligue para casa e deixe uma mensagem na
secretária eletrônica para Erra, conte tudo o que você ouviu. Então ligue
para Roman e diga a ele que tivemos uma mudança de planos. Diga a ele
para passar pela nossa casa e pegar a caixa. Adora deve estar em casa e
ela o deixará entrar. Não podemos esperar até hoje à noite. Precisamos
conversar com os Druidas agora.
— Por quê?
— Porque Neig prometeu me dar uma demonstração de seu poder.
Ele não considera nada do que fez até agora uma demonstração
adequada. Segundo ele, fazer duzentas pessoas desaparecerem e enviar
um humano, que queimou até a morte, para entregar uma mensagem não
conta.
— Merda, —disse Julie.
— Encontre o telefone. Ligue para Curran depois que fizer os outros
telefonemas e diga a ele que não precisa se incomodar de vir para cá. Vou
direto para os Druidas quando terminar aqui e duvido que eles o deixem
entrar.
Ela correu atrás do balcão. Eu fui para a bomba. Erra havia me dito
que, quanto mais eu me dedicasse ao fogo, mais alta a chamada seria
para meu pai. Dessa vez, Roland me responderia. Eu gritaria naquele
fogo e o alimentaria com magia até que ele atendesse.

Capítulo 12
— TUDO VAI DAR CERTO, —Roman me disse do banco do
passageiro.
Fiz uma curva muito rápido. O jipe saltou sobre uma raiz saliente.
As árvores dos dois lados da estrada estavam tão grossas que era como
dirigir por um túnel verde. A floresta das bruxas prosperava durante as
ondas de magia.
— Sentei-me ao lado do fogo por duas horas. Alimentei as chamas
com magia suficiente para acordar os mortos. Gritei até ficar rouca.
— Pais, —disse Roman. — Não posso viver com eles. Não posso
matá-los. Você liga, eles não atendem. Você não liga, eles se ofendem.
Então eles infernizam nosso juízo nos dizendo o quanto somos filhos
ruins.
— Ele é um pai ruim! —Eu rosnei.
— Tudo bem, —disse Roman, sua voz suave. — Claro que ele é.
Seja razoável. Eu sei que ele é o tipo de pai que ordenou matar seu
próprio neto. Ninguém está dizendo que ele é um bom pai. Tudo o que
estou dizendo é que os pais não gostam que gritem com eles. Ele sabe que
você está chateada, então ele não vai atender suas chamadas.
— Certo, essa coisa com o meu pai é um problema de família. Mas
agora temos um inimigo nos atacando. É diferente!
Roman suspirou. — Entendo. Eu realmente entendo. Você já tentou
implorar? Talvez chorar um pouco? Dessa forma, ele terá a certeza de
que você está ligando para pedir ajuda e não brigar com ele. Os pais
adoram bancar de heróis.
Eu olhei para ele.
Ele levantou as mãos. — O que eu quero dizer é que quando preciso
falar com o meu pai, não ligo para ele gritando e exigindo saber o por que
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diabos ele bebeu e entrou em uma briga com Volhvs de Perun , e depois
os seguidores idiotas e infantis de Perun decidiram eletrocutar a imagem
151
de Chernobog com uma arma de choque , em seu santuário, porque
segundo eles, é o mais perto que podem chegar de um raio, e agora o
deus que eu sirvo quer que todos sejam mortos. Ligo e digo: ‘Ei, pai, eu sei
que você está ocupado, mas tenho uma situação séria em mãos e preciso do
seu conselho’. Apenas tente do meu jeito. Aposto que vai funcionar.
— Onde diabos é esse maldito acampamento?
— Vire à direita na próxima bifurcação.
Fiz mais uma curva. O jipe pulou e guinchou, protestando contra a
estrada esburacada. Éramos apenas eu, a floresta e o Volhv negro. Enviei
Julie de volta para casa. Eu queria trazê-la, mas Roman havia protestado
incisivamente. Segundo ele, teve que usar de todos os favores que os
Druidas o deviam para conseguir essa reunião, e isso só cobriria ele e eu.
— Sinto que estamos dirigindo em círculos.
— E estamos. Eles estão ainda decidindo se vão nos deixar entrar.
Parei o jipe e estacionei.
— O que você está fazendo?
— Não tenho tempo para joguinhos druidas.
Desliguei o motor, abri a porta do passageiro e saí.
— Isso é um erro, —Roman me disse.
Olhei para as copas das árvores. — Vocês me conhecem, —eu gritei.
— Sabem quem eu sou e o que posso fazer. Trago a vocês um nome:
Neig. Neig, o Imortal. O Lendário. Eu falei com ele hoje e ele está chegando
para destruir a todos nós. Preciso saber quem ele é.
As árvores não responderam.
Esperei. A floresta agitou com vida. Esquilos se agitaram. Um pica-
pau tamborilava um tronco em algum lugar à esquerda. Coisas
farfalhavam no mato.
Nada.
Voltei para o jipe. A floresta das bruxas estava fora do meu território.
A floresta me chamava. Precisava ser reivindicada e protegida. Toda essa
magia, estendendo-se para mim. Toda essa vida, vulnerável a ameaças
externas. Eu poderia reivindicá-la e expulsar os druidas como raposas
quando suas tocas são inundadas.
Isso foi um inferno de um pensamento.
Havia mais de dois anos que eu tinha reivindicando a cidade.
Aprendi a controlar o desejo por mais, mas tinha alguns dias que o desejo
de reivindicar novas terras e torná-las minhas, me agarrava. Minha tia
chamava esse desejo de Shar. A necessidade de ter e proteger foi criado
em nossa família para nos tornar melhores governantes. A maioria dos
meus parentes, agora falecidos, haviam sido ensinados a lidar com o Shar
desde a infância. Eu tive que aprender a lidar com isso já adulta e isso
quase me jogou de um penhasco. Eu o venci, mas de vez em quando, o
Shar erguia a sua cabeça feia, e eu tinha que o empurrar de volta.
Eu não reivindicaria nada hoje. Entoaria o motor de água encantada
de volta à vida, e Roman e eu iríamos para casa.
— Tudo bem, —disse Roman. — Retiro o que disse. Seu jeito é mais
rápido.
Olhei para cima. Uma paliçada surgiu no meio do que há um
momento era densa floresta. Árvores enormes formavam suas paredes,
seus troncos perfeitamente retos e se tocando. Um portão reforçado com
ferro e cerdas com espinhos guardavam a entrada. Sangue escuro
manchava as pontas dos espinhos de um metro.
O portão estremeceu e deslizou para o lado.
— Precisamos nos apressar agora, —disse Roman, pegando uma
mochila, — antes que eles mudem de ideia.
Nós caminhamos para os portões. Um homem branco na casa dos
quarenta estava parado no centro, apoiado em um cajado. Ele usava
calça lisa, botas e nu da cintura parA cima. Espirais azuis e símbolos,
152
pintados em tinta azul, decoravam seu torso musculoso. Seu cocar ,
feito da cabeça de um urso, lhe dava mais quinze centímetros de altura.
Seu rosto se encaixava perfeitamente entre as mandíbulas do urso. Se eu
precisasse lutar com ele, o atacaria de lado. Sua visão periférica tinha que
ser uma merda com todo esse enfeite de urso.
O homem olhou para nós, parecendo que estava prestes a rugir e
soltar uma horda de Pictos. A última vez que o vi, ele usava uma túnica
branca como a neve e estava arrumado como se estivesse prestes a
participar de uma noite de gala. Ele estava sorrindo para algumas
crianças no Festival do Solstício e distribuindo frutas cristalizadas com
outros Druidas como parte de suas obrigações sociais.
‘Olá, somos druidas. Vestimos lindas roupas brancas, distribuímos
doces e ensinamos a honrar árvores e florestas. Olhe para nós, somos gentis
e confiáveis. Nunca nos despimos, nem nos pintamos com símbolos de
batalha e dançamos na floresta com armas selvagens e chapéus de pelos.’
Certo, certo. Não é à toa que eles não queriam que ninguém viesse as
suas festas de máscaras na floresta.
153
— Esse é o Grão-Druida Drest ?
— Hum-rum, —Roman murmurou. — Cuidado com o que diz.
— Eu sempre tenho cuidado com o que digo.
— Se a frase ‘eu não sabia que vocês estavam fazendo uma festa a
fantasia, pena que não fui convidada’ sair dos seus lábios, vou me virar e
voltar para casa. E isso é uma promessa.
— Estraga-prazer.
— Esses são meus colegas de trabalho. Tenho que ter um bom
relacionamento com essas pessoas.
— Tudo bem, tudo bem.
Ao lado do Grão-Druida estava uma mulher. Ela era cerca de cinco
centímetros mais baixa que eu, pele bronzeada e cabelos castanhos
ondulados e grossos. Usava uma roupa de pele e carregava uma lança. A
julgar pela definição dos músculos de seus braços, ela também poderia
usar muito bem essa lança.
— E ela? —Eu murmurei.
— Jennifer Ruidera. —Ele pronunciou ‘Ruidera’ como ‘Rivera’, mas
com um som de D.
— O que ela faz?
— Você não quer saber. E chame-a de Jenn.
Minha sorte com mulheres de nome Jennifer não era exatamente
boa, então ‘Jenn’ funcionaria muito bem.
Atrás do casal estendia-se um acampamento. As pessoas andavam de
um lado para o outro, algumas nuas, outras vestidas e mais pintadas.
Armas esperavam em prateleiras. A magia era tão espessa que, se fosse
neblina, não conseguiríamos ver mais de um metro. Esperava que não
154
houvesse Homens de Vime presentes, porque se eles tentassem sacrificar
alguém ou algo, queimando-os vivos, eu não seria capaz de não fazer
nada, mesmo que isso estragasse o relacionamento profissional de
Roman com os seus colegas de trabalho.
Drest encontrou meu olhar. — Você disse Neig.
— Sim.
Ele olhou para Jenn.
Ela encolheu os ombros. — Tudo é possível.
Dois homens se juntaram a nós, um velho e curvado, vestindo uma
túnica até o tornozelo, a barba branca estendendo-se até a cintura. O
outro estava na casa dos trinta e parecia que se exercitava jogando vacas
no ar por diversão.
Roman curvou-se.
Eu fiz também.
Drest levantou um dedo para nós e virou-se para o velho. — Esta
mulher diz que falou com Neig.
— Ah? —O velho perguntou.
— Neig! —Drest repetiu.
— Eu não consigo te ouvir. Pare de sussurrar.
Drest respirou fundo. — ELA DISSE QUE FALOU COM NEIG!
As pessoas pararam o que estavam fazendo e nos encararam. Drest
acenou para eles.
— Neig? —O velho druida olhou para ele. — Oh, isso não é bom.
Drest parecia que queria dar um tapa em si mesmo. — Brendan, ele
tem que usar seu aparelho auditivo quando for para os rituais.
Brendan levantou as mãos do tamanho de pás. — O que quer que eu
faça? Sentar nele e enfiar o aparelho em seu ouvido? Ele tira. Diz que
quer se conectar de forma natural com a natureza.
— Aha! —Uma voz masculina gritou.
Eu me virei. Um homem estava caminhando em nossa direção.
Magro e pintado de azul, usava uma capa de penas de corvo e carregava
uma grande galinha preta.
O rosto de Drest caiu.
— Eu disse que tinha tido uma visão sobre isso, —anunciou o
homem da galinha. — Eu te disse quinta-feira passada. Eu disse que Neig
está vindo. E você disse: ‘Alpin, pare de sacrificar suas galinhas. Pare de
entrar em transe, pare de olhar para as entranhas e pare de me ligar no meio
da noite’. Você me disse que, se eu não conseguia dormir, precisava beber
uma cerveja e aprender a lidar com as minhas visões.
— Ele está certo, —disse Jenn. — Você precisa deixar essas galinhas
em paz. Não é natural.
— Pela última vez, não sacrifico galinhas, —declarou Alpin.
— Vi uma galinha morta em sua cozinha semana passada, —disse
Brendan.
— Eu ia cozinhá-la para o jantar. Comprei no mercado! Eu não
como minhas amigas. Gosto de tê-las por perto, porque elas me ajudam
com a projeção astral. Os cacarejos delas são calmantes.
Jenn passou a mão sobre o rosto.
Roman pigarreou.
Drest olhou para ele.
Roman abriu o zíper da mochila e a virou para mim. Tirei a caixa.
Os Druidas deram um passo atrás em uníssono. Apenas Jenn
permaneceu. Ela estendeu a mão, tocou a caixa e retirou a mão.
— Abra, —disse Drest.
Abri a tampa.
Eles espiaram o conteúdo. O velho druida estendeu a mão muito
lentamente, sua mão velha tremia, agarrou um pouco de cinza entre os
dedos e a deixou cair de volta na caixa. Suas feições se entristeceram.
Parecia que estava prestes a chorar.
— Vai dar tudo certo, vovô, —disse Drest gentilmente. — Vai ficar
tudo bem.
— Tudo vai queimar, —disse o velho. — Ele vai incendiar o mundo.
— Não, ele não vai. —Drest acenou com a cabeça para Brendan, e o
grande homem gentilmente afastou o Druida idoso.
Drest virou-se para mim. — Guarde isso.
Eu fiz.
— Venha comigo.
Ele nos levou mais fundo no campo. — O que Neig disse quando
você falou com ele?
— Ele me disse que estava fora, mas agora está de volta e vai
conquistar o mundo. Achamos que ele está em algum lugar fora do
155
tempo, como as brumas de Morrigan . Pessoas desapareceram, povoados
inteiros. Serenbe e Ruby no Condado de Milton. Ele os levou, os matou e
os cozinhou para extrair seus ossos. Alguma idéia do porquê estaria
fazendo isso?
Jenn balançou a cabeça. — Não. Mas ele é um velho bastardo
astuto. Se está fazendo isso, não deve ser nada de bom.
Alpin parecia que entraria em colapso a qualquer momento.
Chegamos ao fundo do acampamento. Uma grande laje de rocha se
projetava do chão, um lado polido e coberto de símbolos pictos. Plantas
trepadeiras haviam escalado a rocha, cobrindo o topo. Um esboço da
Irlanda e das Ilhas Britânicas estava esculpido no canto. Drest apontou
para a Irlanda.
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— Primeiro chegou a feiticeira Cessair e seu povo. Eles habitaram a
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ilha por pouco tempo, depois morreram. Em seguida vem Partólomo e
seu povo. Eles introduziram o cultivo de plantas, a pesca e construíram
casas. Mas em uma semana morreram todos de peste.
158
— Depois vem Nemed , —eu disse. Eu havia estudado a história da
magia britânica. A maioria das pessoas pensava que dez por cento era
história, e o resto era mitologia, invencionices e besteira, mas li mesmo
assim.
Roman me lançou um olhar cauteloso.
— O nome correto é N-e-i-m-h-e-a-d-h, —disse Jenn. — Quando
você pronuncia corretamente, soa ...
— Neig, —Drest terminou.
Somente os celtas usariam nove letras para fazer um som curto.
— Ele se chamava assim porque queria que as pessoas pensassem
que ele era sagrado. —Jenn zombou. — Neig dos Céus. Neig, o
Invencível. Neig, o Poderoso.
Drest bufou. — Ele conquistou a Irlanda e seguiu para a Escócia.
— Não é assim que a lenda conta, —eu disse.
— Lendas costumam estar erradas. Isso não é lenda, —Alpin disse
baixinho. — É a nossa história.
— Neig roubava bebês e os transformava em seu exército, —
continuou Drest. — Os Pictos lutaram com ele, até que o empurrou para
o extremo leste da Escócia. Lá não havia para onde ir além do mar e dos
penhascos escoceses. Os Pictos foram mais espertos do que Neig.
159
Esculpiram e levantaram enormes lajes de pedras . Existem muitas dessas
pedras até hoje. Algumas desviam a magia ao seu redor; essas são do tipo
curvadas. Outras funcionam como um aviso, essas são do tipo retas. E
assim por diante.
Ele apontou para as esculturas na superfície da pedra. — As pedras
curvas esconderam as aldeias. As tropas de Neig não conseguiram
encontrar os povoados e, quando os encontravam as pedras de proteção
davam às pessoas proteção por tempo suficiente para escapar.
— O que os símbolos significam? —Perguntei.
— Disco e Retângulo, —disse Alpin. — Esse assentamento possui
uma pedra de aviso que nos permite saber quando Neig irá se aproximar.
A Lua Crescente e o V-Haste significam que o assentamento está
protegido por um escudo de Proteção. Não atire flechas no escudo,
mesmo que Neig esteja vindo, porque elas não o atravessarão. Disco e
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Retângulo significam que o local possui um disco solar , usado para
sinalizar por socorro.
Os símbolos eram sinais explicativos. Como sinais de trânsito. Tão
malditamente simples.
— E disco duplo e Z-Haste? —Perguntei. — Ele marcou a caixa com
esses símbolos.
Alpin fez uma careta. — Neig escolheu esses símbolos para seu uso
pessoal. Suas tropas marcam as coisas com esses símbolos para lembrar a
todos o que acontecerá se qualquer um o desafiar.
— E o que seria isso?
— Grilhões, —disse Jenn. — Neig não tem servos. Apenas escravos.
Alpin traçou o contorno do símbolo na pedra. — Quando você
encontrar uma pedra com o símbolo de uma flecha quebrada, significa
que naquele local Neig não pode vê-lo. Lá você é livre.
Roman perguntou, apontando para outro símbolo, que parecia
vagamente como uma flor.
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— Gaitas de foles , —disse Drest.
— O que as gaitas de foles têm a ver com alguma coisa? —Perguntei.
Ele encolheu os ombros. — Gaitas de fole eram música de batalha.
— Ele matou todo mundo por onde passou, —Jenn nos disse. —
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Então os Fomorianos invadiram seu território e o mantiveram ocupado.
Os Fomorianos mataram a esposa de Neig. Os filhos de Neig ou se
mataram ou fugiram.
— Ele não gosta de competição. —Drest fez uma careta. — Seu
irmão o desafiou, perdeu e partiu com sua própria porção do exército.
Eles foram derrotados em algum lugar da Europa. Apenas um navio
voltou.
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— E os Tuatha Dé Danann ?—Perguntei.
— Eles fizeram uma barganha com Neig, —disse Drest. — Os
Tuatha Dé Danann pagavam tributos a ele. A essa altura, Neig já havia se
mudado para a Escócia. Lugar maior. Mais terra. Ele conquistou as duas
ilhas antes de destruir tudo.
— Como seus ancestrais o venceram? —Roman perguntou.
— Eles não o venceram. —O rosto de Drest estava sombrio. —
Nossos ancestrais sobreviveram a ele. Eventualmente, a magia foi embora
e um dia ele desapareceu. Neig se escondeu em algum covil fora do nosso
mundo e levou seu tesouro e exército com ele. Ocasionalmente, ele
atacava quando havia magia suficiente. Ninguém nunca sabia quando ou
onde ele apareceria. Nosso povo esteve com tanto medo de Neig que
continuamos construindo pedras curvas séculos depois que ele foi
embora.
— Durante todo esse tempo, ninguém conseguiu se aproximar o
suficiente para derrotá-lo? —Perguntei. — Entendo que ele tem magia de
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fogo, mas lutei com Morfran e conheci Morrigan. Você está me
dizendo que ninguém poderia derrotar esse cara?
— Você não entendeu, —disse Drest.
— Mostre a ela, —Jenn disse a ele.
Drest tocou as plantas trepadeiras. Elas se abriram e subiram. A
pedra estava lisa. Olhei para a escultura em cima dela. Meu corpo ficou
frio.
— Neig não é humano, —disse Alpin suavemente.
— Ele é um dragão, —eu sussurrei.
Na escultura um dragão colossal sobrevoava um campo de batalha,
as figuras de combatentes minúsculos em comparação a ele. Um cone de
chamas saia de sua boca, destruindo a paliçada.
Foi um dragão que eu senti nas nuvens acima de mim. Foi por isso
que ele tentou matar Yu Fong. Arrepios correram pelos meus braços.
— Mas a magia dele é azul, —eu disse. — Como a magia humana.
— Toda a magia de dragão é azul, —disse Alpin.
— Todo mundo sabe disso, —disse Jenn.
— Neig nunca irá nos encontrar, —Drest me disse. — Temos pedras
curvas. Mas vocês estão ferrados.

*******
ROMAN E EU NÃO CONVERSAMOS até chegarmos à cidade.
— Pode ser metafórico, —ele finalmente disse.
— Não é. —Eu contei a ele sobre Yu Fong. — Tudo o que lemos
sobre dragões sugere que eles são altamente territoriais. Neig deve ter
sentido a presença de Yu Fong e tentou desafiá-lo.
— Mas o rapaz estava em forma humana quando você o encontrou.
Será que ele pode mudar?
— Eu não sei.
— Aspid não pode mudar de forma, —disse Roman. — E isso é uma
bênção. Imagine ele me seguindo por todos os lugares e me lambendo.
Seria muito estranho.
Aspid, um enorme dragão-serpente preto que pertencia a Chernobog,
tinha um profundo e abrangente amor de filhote de cachorro por Roman,
que ele expressava envolvendo a língua em torno do volhv preto.
— Precisamos convocar o Conclave em caráter de emergência, —eu
disse.
O Conclave se formou como uma maneira de evitar conflitos entre o
Bando e a Nação, mas em uma emergência, todas as facções mágicas da
cidade iriam a ele. Precisaríamos de todos para lutar contra algo assim.
Roman levantou as sobrancelhas negras. — E dizer a eles que
estamos prestes a ser atacados por um dragão?
— Sim.
— Não temos nenhuma evidência, —disse Roman.
Ele estava certo. Yu Fong ainda estava em coma, Beau Clayton e
seus assistentes só viam Neig como humano, e os Druidas não me
apoiariam em público. Eles nem iriam ao Conclave. Eu precisaria de
provas. Algo mais que visões de fogo e pedras esculpidas.
No mínimo, eu tinha que avisar o Bando e a Nação. Com esses dois,
minha palavra seria suficiente. Também tinha que ligar para Nick.
— Deixe-me aqui, —disse Roman.
Eu parei.
— Vou conversar com os Volhvs e as bruxas, —disse Roman. —
Mas só nossas palavras não serão suficientes. Precisamos de provas.
Testemunhas.
— Eu sei. Você acreditaria em mim se eu falasse que estamos
lidando com um dragão?
— Sim, —disse Roman. — Acreditaria em você. Mas não por causa
dos Pictos e pedras. Acreditaria porque é você quem estaria afirmando.
Porque confio em você. Eu não preciso ver. Sua palavra seria suficiente
para mim. Mas não será suficiente para os outros.
— Eu sei.
— Tudo vai dar certo.
Eu duvidava disso, mas assenti de qualquer maneira.
— Não se mate.
Ah, pelo amor de ... — Você vai parar com isso?
Ele balançou o dedo para mim. — Você não vai fazer isso. Estou te
observando.
— Saia do meu carro.
Dirigi direto para a Cutting Edge. Neig estava certo sobre uma coisa:
ele era lendário. Ao longo dos anos, as lendas eram distorcidas. Elas
cresciam e evoluíam à medida que passavam de uma geração para a
seguinte. Todos ‘sabiam’ que os dragões guardavam tesouros, viviam em
cavernas nas montanhas, sopravam fogo e matavam seus rivais. Mas o
quanto disso era verdade, era um mistério.
Havia algum motivo que fizesse a humanidade estudá-los? A maior
parte do que Drest nos havia dito era considerado mitologia. E foi
distorcido pelo cristianismo. Quando o cristianismo se espalhou pelo
Oriente Médio e Europa, os sacerdotes perceberam que o combate a
velhas ideias pagãs condenaria o cristianismo. O paganismo estava
profundamente enraizado na cultura desses povos. Então, em vez de
combatê-las, a nova religião as adotou, incorporando os seus ritos e
crenças, desde o Natal e a Páscoa até a idéia da alma imortal que se
separa do corpo físico na morte. O cristianismo ligou a linha do tempo da
história antiga da Irlanda aos descendentes de Noé e ao dilúvio. E nada
dessas informações seria útil para descobrir como derrotar Neig.
Dirigi para o estacionamento e manobrei o jipe para a nossa vaga. O
meu era o único carro. Nem Curran nem os meninos estavam por aqui.
Abri a porta e entrei. Ao longo dos anos, a Cutting Edge se tornou
minha fortaleza. Como minha casa, era um lugar onde eu podia tirar
minha espada das costas. Soltei a bainha e a deixei cair na minha mesa.
Abri a geladeira, peguei uma jarra de chá gelado e me servi de um copo.
Já fiz isso centenas de vezes antes. Havia conforto no ritual e eu precisava
de conforto hoje, porque a descoberta do dragão havia me baqueado.
Como diabos se luta com um dragão? Quão grande ele era
exatamente? Se a escultura na pedra fosse proporcional em escalas,
estaríamos na merda. Eu podia imaginar a conversa em torno da mesa do
Conclave. ‘Então, que evidência você tem deste dragão? Bem, há esta rocha
coberta de vegetação no campo mágico dos Druidas. Vocês não podem ver a
rocha ou encontrar este campo de Druidas, mas aceitem minha palavra.
Merda.
Alguém bateu na minha porta.
— Entre, —eu gritei.
A porta se abriu. Norwood atravessou o caminho, seguido pelos
outros dois Cavaleiros. Era só o que me faltava.
Apoiei-me no cotovelo. — A Santíssima Trindade. Entrem, não
sejam tímidos. Peguem uma cadeira.
— Você é insolente, —a mulher hispânica me disse.
— Sinto muito, eu deveria ter usado seus nomes. Tão rude da minha
parte. Por favor, sente-se na cadeira à direita, Larry, Moe e Curly podem
sentar ali.
A mulher hispânica abriu a boca. Norwood olhou para ela e ela
fechou as mandíbulas.
Certo. Pelo jeito havia um roteiro. Eles não tinham certeza do que eu
era capaz e queriam descobrir, então a escolheram para me provocar.
Péssima ideia.
Os Cavaleiros sentaram-se.
— Por favor, deixe-me apresentar meus colegas. Cavaleiro-Místico
Younger e Cabrera, Cavaleira-Atacante.
Meu guardião, Greg Feldman, foi um Cavaleiro-Místico durante sua
vida. Eles nem sempre praticavam adivinhações. Eles eram mais como
uma mistura de psiquiatras e sacerdotes e possuíam uma capacidade
única de ‘ler’ pessoas. Eram os confessores da Ordem e os defensores dos
outros Cavaleiros. Um Cavaleiro-Atacante era o equivalente da Ordem a
uma bazuca. Interessante. Diplomacia e força, o Cavaleiro-Representante
tinha os dois lados cobertos.
— Kate Lennart.
— Acho que começamos mal, —disse Norwood.
— Como?
— A Ordem está interessada em verificar o estado das coisas em
Atlanta.
— O que isso tem a ver comigo?
— Você é um poder em Atlanta.
— O.
Ele piscou.
— Eu sou ‘o poder’ em Atlanta, —eu disse a ele. — Reivindiquei a
cidade como minha.
— Uau, —disse Cabrera. — Humilde, não é?
— Vocês vieram aqui procurando por esclarecimento. Estou
esclarecendo as coisas para vocês.
— O que isso significa? —Norwood se inclinou para frente,
concentrando-se em mim.
— Isso significa que quando algo suficientemente grande e perigoso
ameaça a cidade, como meu pai tentando invadi-la, usarei a magia de
Atlanta para protegê-la.
— Então Atlanta tem magia própria? —Cabrera bufou.
Eu a ignorei.
— Bem, tem? Atlanta tem magia própria? —Ela pressionou.
— Não tenho tempo nem vontade de ensiná-la, —eu disse a ela. —
O Colégio de Magos fica na mesma rua sobre a ponte. Se você for lá,
tenho certeza de que eles explicaram a você.
— Você governa Atlanta? —Perguntou o loiro Cavaleiro-Místico.
— Não.
— Por que não? —Ele perguntou.
— Atlanta está indo muito bem por conta própria sem minha
liderança. Temos um governo eleito democraticamente e não tenho
intenção de interferir nele.
— Se você reivindicou Atlanta, por que não acaba com o crime
daqui? —Perguntou Cabrera. Os olhos dela estavam calculando. Ela
estava fazendo perguntas importantes para as quais eles já sabiam as
respostas. Eles queriam a confirmação de que eu não era onipotente e
onisciente.
— Porque não é minha responsabilidade impedir o crime. Temos um
departamento de polícia bem financiado, a sede da GBI e os
departamentos dos xerifes locais, sem incluir várias organizações
privadas, como a Associação, a Guarda Vermelha e, é claro, a Ordem.
— Mas você poderia acabar com todos os crimes? —Perguntou
Younger.
— Ninguém pode acabar com todo crime, Cavaleiro-Místico. Você,
de todas as pessoas, deveria saber disso.
Norwood me estudou. — A Ordem está interessada em estabelecer
um relacionamento de cooperação e entendimento mútuo.
— Eu já tenho um relacionamento de entendimento mútuo com a
Ordem.
— Sério? —Norwood perguntou.
— Sim. Nick acha que sou fruto da árvore envenenada e odeia
minha família, e eu tolero sua idiotice porque ocasionalmente preciso da
ajuda da Ordem. Nick e eu nos entendemos muito bem.
— Achamos que as pessoas tendem a ser mais produtivas em um
ambiente menos hostil, —disse Norwood.
Suspirei. — Certo, então a Ordem gostaria de ser mais amigável.
Ótimo. O que vocês sabem sobre dragões?
— O quê? —Perguntou Cabrera.
— Dragões. Suas fraquezas, seus hábitos, como alguém poderia
matá-lo?
— Isso é o tipo de informação confidencial, —disse Norwood.
— E aqui estamos. Quando se trata de ajudar, não há muito o que
vocês podem fazer porque possui regulamentos que os impedem. A
Ordem divide o mundo em humanos e não humanos, e a definição de
humano para vocês é tão limitada que a influência da Ordem está
entrando em colapso. Eu entendo. É difícil lutar com os braços
amarrados nas costas, mas não é problema meu. Vocês não são problema
meu, a menos que se tornem um.
Cabrera abriu a boca.
Eu não esperei pela resposta dela. — Voltem para Wolf Trap. Nick e
eu temos uma relação de trabalho. Não é perfeita, mas não precisa ser.
Não preciso que ele seja meu amigo. Preciso que ele coloque mão de obra
em campo quando isso for necessário.
— Nikolas Feldman será substituído, —disse Norwood.
— Essa é a Ordem que eu conheço. Sempre colocando as aparências
acima do bem-estar de seus Cavaleiros.
— Que ações você tomará se Feldman for removido? —Perguntou o
Cavaleiro-Místico.
— Impedirei a Ordem de manter seu Núcleo em Atlanta.
— Você não pode fazer isso, —disse Cabrera.
— Eu posso e vou. Estou cansada dos problemas de rotatividade da
Ordem. Prefiro trabalhar com Nick. Depois de tudo o que Moynohan o
fez passar, ele merece ter seu próprio Núcleo. A performance de Nick é
exemplar. Vocês querem se livrar dele porque ele é politicamente
inconveniente, vão em frente. Mas não coloquem batom em um porco e
finja que estão bem comigo. Se vocês o tirarem, prometo, o novo Núcleo
da Ordem não será bem-vindo em Atlanta.
— Você não é ninguém, —disse Cabrera, mordendo as palavras. —
Isso tudo é conversa fiada. Posso sentir sua magia. Não é nada.
O telefone tocou. Eu levantei minha mão e peguei. — Kate Lennart.
— Conlan escapou, —disse Curran.
— O que?
— Ele se transformou e fugiu do Bando. Todos estão o perseguindo
agora, mas ele já está muito longe. Está indo em sua direção.
Nosso filho estava ao ar livre, com Sahanus por toda a cidade.
Eu me concentrei na magia ao meu redor, estendendo-me através do
poder arcano que banha a cidade. Onde está você, meu bebê? Onde ...
Uma faísca brilhante se movia através da magia. Conlan! Ele não
estava longe.
Peguei minha espada e saí correndo pela porta. Os três Cavaleiros
correram atrás de mim.
Corri como nunca corri antes na minha vida. As ruas voavam. Eu
me virei, guiada pela magia, focada na gota brilhante da magia de
Conlan. Estava quase em cima dele. Uma rua deserta apareceu na minha
frente. À esquerda havia o esqueleto de um prédio tombado, com o
primeiro andar todo em arcos de tijolos vazios. Todo o edifício estava
exposto, o telhado desaparecido há muito tempo, os arcos do outro lado,
escuros e sombrios.
Conlan estava lá.
Alguém havia limpado a maior parte dos escombros, empilhando-os
em um monte alto a esquerda e um outro monte menor a direita, do lado
de fora do prédio. Não havia muitos lugares para se esconder.
Fui até o prédio. Atrás de mim, os Cavaleiros dobraram a esquina.
— Conlan? —Eu chamei. — É a mamãe.
Uma pequena criatura explodiu da pilha de escombros e pulou em
meus braços, mudando no meio do salto para um bebê humano. Eu o
abracei. Meu coração estava batendo tão rápido que estava prestes a pular
do meu peito.
— Mama!
— O que você estava pensando, seu pequeno idiota? —Eu o abracei
mais apertado.
Grandes olhos cinzentos olharam para mim, molhados de lágrimas.
— Mau. —Ele fungou. — Mau.
Ah não. — Onde? Onde está a coisa mau, Conlan? Mostre-me.
Ele enterrou o rosto no meu peito.
Algo se moveu dentro do edifício, no fundo dos arcos sombrios do
outro lado.
Um Sahanu havia perseguido meu filho. Eles o encontraram e o
assustaram, e então Conlan correu pela cidade em minha direção.
Eles assustaram meu filho no meu território. Nunca mais.
Um respingo de magia passou por dentro dos arcos e desapareceu.
Eu vi vocês.
Um vampiro pousou ao meu lado, manchado com protetor solar
roxo-uva. — Encontramos Sahanus, —disse o vampiro na voz de
Javier. — In-Shinar, você precisa de ajuda?
Um segundo vampiro caiu do meu outro lado.
— Sim. —Empurrei Conlan nos braços do vampiro de Javier. —
Proteja meu filho.
O vampiro levou meu filho.
Segurei a mente do segundo vampiro. O Navegador o soltou.
Soltei a bainha de Sarrat, deixei cair a bainha no chão e entrei no
prédio, o morto-vivo nos meus calcanhares. Os Sahanus me esperavam
nos arcos. Eu os senti. O maldito edifício tinha muitos buracos.
— Sei que estão aí. —Minha voz se espalhou pelo edifício. A fúria
fervia dentro de mim, apagando todo o resto. — Posso sentir todos vocês.
Puxei a magia para mim. Palavras de Poder saíram dos meus lábios,
mal senti a dor. Tinha praticado muito esses últimos anos.
— Ranar kair. —Venham para mim.
Magia rasgou de mim como uma maré. Os arcos choveram Sahanus,
meu poder arrancando-os de seus buracos escondidos e jogando-os no
chão. Vi rostos familiares naquela fração de segundo: Gust, pálido, cabelos
verdes, mago do ar, usava duas espadas; Carolina, um pouco mais de dois
metros de altura, pele marrom, vestida em uma cota de malha, usava um
165
martelo de guerra , musculosa como uma campeã de levantamento de
peso; Arsenic, cabelo vermelho brilhante, envolto em um tecido fino e leve
como uma múmia, venenoso ao toque. Quatorze Sahanus. Todos eles vieram
buscar meu filho. Todos, exceto Razer.
Cortei a parte de trás do meu antebraço esquerdo e encostei o corte
contra a lateral do prédio. Meu sangue disparou em uma corrente fina
como um cabelo, correndo pelas paredes, através dos espaços abertos dos
arcos, através de tijolos e buracos até que se fecharam, formando um
círculo. Uma parede vermelha translúcida surgiu e desapareceu,
formando uma Proteção de aprisionamento.
Um dos Sahanu, um homem magro de cabelos escuros, saltou, com
o objetivo de escapar por um dos arcos, e se chocou contra a Proteção. Os
assassinos se viraram para mim. Eles finalmente perceberam a verdade:
estavam presos aqui comigo.
— Não há escapatória. —Eu esmaguei a mente do vampiro. Seu
crânio explodiu. O sangue morto-vivo se moveu dele em direção a mim,
obedecendo minha chamada, misturando-se com o meu sangue.
— Não a deixem vestir a armadura! —Carolina gritou.
Eles me atacaram.
Eu gritei uma Palavra de Poder. — Osanda!
Todos caíram no chão. Carolina tentou rastejar para mim, mas
minha magia a segurou.
O sangue do morto-vivo subiu pelo meu corpo, fluindo, moldado
pela minha vontade, transformando-se em armadura. Cobriu meus
braços, meu estômago, minhas costas, uma armadura impenetrável, mas
flexível, da cor de um rubi, da cor do meu sangue. O fluido de sangue
congelou em Sarrat, formando uma cobertura de sangue. Eu senti todas
as correntes que prendiam a minha magia quebrarem. Todos as amarras
se foram.
O vampiro drenado caiu ao meu lado. Eu ataquei.
O primeiro Sahanu tentou contra-atacar e eu o cortei ao meio com
um balanço. Carolina veio até mim, balançando o martelo. Eu me afastei
e cortei seu braço no cotovelo. Ela gritou, e eu abri um grande rasgo em
seu umbigo, suas entranhas caindo no chão. Uma mulher apunhalou
minhas costas com sua lança. Um choque de dor rasgou através de mim
quando a armadura absorveu o impacto. Eu girei e a decapitei.
Gust caiu de cima, mergulhando com as lâminas.
Cuspi uma Palavra de Poder nele. — Hessad. —Meu.
Sua mente quebrou sob a pressão como uma noz rachada. Ele
pousou, mas antes que seus pés tocassem o chão Gust já era meu.
— Amehe, —ordenei, enviando uma explosão afiada de poder
através dele. Obedeça.
À minha frente, Arsenic cuspiu uma Palavra de Poder. Fiz um
escudo com a minha magia e a Palavra de Poder se chocou contra o
escudo. — Mate! —Eu disse a Gust.
O Sahanu de cabelos verdes disparou contra Arsenic, as lâminas
duplas erguidas para matar. O outro assassino girou para fora do
caminho, brotando espinhos nos braços.
166
Gust rodopiou como um dervixe . Os espinhos o perfuraram no
mesmo momento em que ele enterrou a espada esquerda no peito de
Arsenic. Eles afundaram juntos no chão, mas eu já estava em
movimento. O mundo desapareceu com a vívida precisão da batalha.
Todo momento importava. Cada passo contava. Não havia outro lugar
como esse. Esse era o meu chamado. Era isso que eu fazia, então dancei
no campo de batalha, através de jatos de sangue e da magia fervente, a
espada dos ossos da minha avó cantando uma canção enquanto eu regia
a vida e a morte.
Eu os cortei em pedaços. Eu os estripei e os mutilei. Eles nunca mais
assustariam meu filho.
O último Sahanu entrou em colapso.
O chão aos meus pés estava encharcado de sangue. Pedaços de
corpos humanos espalhados.
Eu me virei.
Os Cavaleiros estavam na rua, seus rostos exibindo expressões
idênticas: sobrancelhas levantadas, olhos arregalados, boca abertas, rostos
congelados. Pavor.
O vampiro tinha congelado, Conlan em seus braços. Meu filho
estava olhando diretamente para mim.
Droga, Javier. Isso não era algo que Conlan deveria ter visto. Eu tinha que
atenuar isso. Dissolvi a Proteção de sangue e caminhei em direção a eles,
arrancando a magia em minha armadura de sangue. O sangue se desfez
em pó. Fui até ele, minha magia rodopiando ao meu redor. Não perdi
tempo em escondê-la e não me importava.
Cabrera e Norwood deram um passo atrás. O mais jovem
permaneceu, com reverência no rosto. Ele levantou a mão em minha
direção, os dedos tremendo, e Norwood o puxou de volta.
Levantei meus braços. Conlan me alcançou e tirei meu bebê do
vampiro, minha magia derramando livremente de dentro de mim. Conlan
abraçou meu pescoço e acariciou meu cabelo. — Bianti.
Oh, como eu gostaria de ser brilhante e não uma assassina.
Um jipe disparou pela rua, dobrando a esquina rápido demais. Outro
o seguiu, depois um SUV, depois um caminhão. O primeiro jipe parou e
Martha pulou para fora, movendo-se muito mais rápido do que uma
mulher gordinha e duas vezes a minha idade deveria poder se mover.
Seis vampiros vieram correndo pelo telhado, em cores sortidas de
protetor solar, como se alguém tivesse derramado um pacote de
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Skittles . Apreciem um arco-íris de mortos-vivos.
— Protejam o perímetro, —o líder gritou, aterrissando ao lado do
vampiro de Javier. — O que aconteceu?
Ao meu lado, o vampiro de Javier olhou para a esquerda, olhou para
a direita e abriu as mandíbulas. — A primeira geração Sahanu está
morta. A segunda geração Sahanu está morta. A Ordem
Sahanu está morta. Todo mundo está morto. —Javier fez uma
pausa. — Louvado seja In-Shinar, a Misericordiosa.
— Pare com isso, —eu rosnei para ele.
— Certo, —disse o líder da equipe. — Líder da equipe Um para
a Mãe, quatorze assassinos caídos, sem pulso, cena intacta, a
Pomba e o Pintinho estão seguros. Qual procedimento?
A pomba? Kate Lennart, a pomba? Quando exatamente eu fiz alguma
coisa que remotamente lembrasse uma suave, amável e gentil pomba?
Os vampiros se espalharam pela rua, assumindo posições nos
prédios.
— Roger. Equipe Um, mantenha a posição até a limpeza
acabar. —O vampiro girou para mim. — A equipe de limpeza está
a caminho, Senhora.
Martha me alcançou, com George nos calcanhares. — Eu sinto
muito. Pensávamos que ele estava dormindo. Ele não deveria ter sido
capaz de abrir a trava nas barras da janela.
Ah, mas ele fez. Eu era mãe do garoto mais inteligente do mundo. Eu
o abracei. Ele ainda estava vivo. Poderia ter morrido. Ele teria morrido se
Curran não tivesse ligado me avisando que ele tinha sumido.
Isso me atingiu como uma tonelada de tijolos. Meus joelhos quase
cederam e eu os tranquei no lugar.
George passou o braço em volta de mim. — Está tudo bem, —disse
ela. — Ele está vivo e seguro. Está bem.
Ela me segurou por mais um momento e me soltou.
Os carros continuaram chegando. A rua estava cheia de metamorfas.
As que eu reconheci eram do Clã Heavy. Dez, não doze ...
— Quem são todas essas mulheres? —Perguntei a George.
— O clube do livro, —ela me disse.
Puxei minha magia de volta para mim. — Alguém ouviu falar de
Curran?
— Liguei para a Associação e falei com ele quando Conlan
desapareceu, —disse George.
— Senhora, —disse Javier. — Tenho um relatório das
patrulhas. A Associação está sob ataque. Deseja que
ajudemos?
— Sim!
— Equipe três, In-Shinar solicita assistência na Associação. —
O vampiro de Javier se afastou.
Marta se virou e rugiu: — Virem-se! Todo mundo de volta para os
carros! Meu filho precisa de ajuda na Associação.
O Clã Heavy correu de volta para seus carros.
Eu me virei para os Cavaleiros. — Ajudem ou saia do caminho.
Norwood se afastou e eu corri para o carro mais próximo, Conlan
nos meus braços.

Capítulo 13
DURANTE A REFORMA DA ASSOCIAÇÃO, o arquiteto decidiu
compensar alguns dos danos ao edifício adicionando uma pequena
varanda ao piso superior. Emoldurada por portas francesas, a varanda
recuada estava escondida na parede norte, de frente para o
estacionamento da Associação, quase invisível do chão. Os Mercenários
chamavam de Poleiro de Christopher. Às vezes, ao amanhecer ou ao
entardecer, Christopher vinha aqui e ficava empoleirado no parapeito,
observando o sol, antes de suas asas vermelho-sangue brotar e ele subir
no ar. Eu gostava de vir aqui durante o dia. Trouxe algumas plantas,
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nada extravagante, algumas heras, bambu e jiboias , três cadeiras e um
grande pufe fofo.
Conlan agora dormia no pufe e eu estava sentada na minha cadeira,
observando a agitação das atividades lá embaixo. Cadáveres estavam
espalhados pelo estacionamento. Neig havia enviado uma dúzia de suas
criaturas para atacar a Associação. Entramos no estacionamento a tempo
de ver Curran rasgar o último deles pela metade. Ele agarrou a besta pelo
pescoço e pelo braço e o separou como se estivesse rasgando um pedaço
de papel.
Agora Curran estava lá embaixo, supervisionando a limpeza. O
Riscos Biológicos tinha sido chamado, mas não havia como dizer quando
eles chegariam aqui. Enquanto isso os corpos precisavam ser protegidos,
o estacionamento salgado e desinfectado com fogo e os feridos tratados.
Escolhi me afastar de toda essa movimentação. Já tinha tido a minha
batalha de hoje.
Alguém subia as escadas atrás de mim. A pessoa se movia
silenciosamente, mas todos os meus sentidos ainda estavam aguçados e
eu reconheci o som.
— Oi, Martha.
A mulher mais velha sentou na cadeira ao meu lado e me entregou
uma xícara de chá. Eu tomei um gole. Metade era mel.
— Me desculpa, —disse ela.
— Tudo bem. Ele é cheio de surpresas.
Martha olhou para mim e bebeu seu chá. — Nós o colocamos no
quarto para tirar uma soneca.
George amava tanto o sobrinho, que ela reservou um quarto para ele
em sua casa. Sempre que eu via o quarto, me alegrava.
— Há uma janela no quarto, —disse Martha.
— Eu sei. —Era uma pequena janela a cerca de um metro e meio do
chão, presa com uma grade de barras de prata.
— A grade tem uma trava, —disse Martha.
Eu assenti. A maioria dos quartos tinha grades que podiam ser
destrancadas, caso contrário, o quarto se tornaria uma armadilha mortal
em um incêndio.
— Um filhote de leão não pode abrir a trava. É complicado fazer isso
com patas. —Ela tomou um gole de chá. — Requer destreza de mãos
humanas.
Onde ela estava querendo chegar com isso?
— Mas uma criança metamorfa em forma humana não consegue
segurar as barras, porque elas têm prata que queimarão suas mãos. —Ela
fez uma pausa.
— Ham-ram, —eu disse só para dizer algo.
— Conlan abriu a trava e escapou. Havia marcas de garras na parede
e marcas de garras na trava. Ele fez isso muito rápido. George o colocou
para tirar uma soneca, e quinze minutos depois, quando eu fui ver como
ele estava, o garoto tinha desaparecido.
Eu sabia como ele evitou se queimar com a prata. Ele se transformou
em sua forma de guerreiro, subiu e trabalhou a trava com suas garras.
— Curran não me contou tudo. —Sua voz conteve uma repreensão
suave.
— O que ele te falou?
— Que meu neto é um metamorfo e que assassinos estavam o
caçando. Mas o que mais eu deveria ter sabido?
Nós precisaríamos que ela cuidasse de Conlan. Eu tinha que ser
sincera. — Ele pode manter uma forma de guerreiro, —eu disse.
Martha assustou-se. — O bebê?
— Sim.
— Por quanto tempo?
— Por quanto tempo ele quiser. —Suspirei.
Marta ficou calada.
Eu terminei meu chá.
— O que mais ele pode fazer? —Ela perguntou suavemente.
— Não sabemos. —Coloquei minha xícara na mesinha entre nós. —
Sabemos que ele não pode controlar sua magia, e isso o torna visível para
as pessoas que conseguem senti-la. Meu pai colocou um preço em sua
cabeça. Um dos funcionários de meu pai foi visto levando uma maleta
para a Fortaleza. Ele foi escoltado por Renders e saiu de lá sem a maleta.
No dia seguinte, Robert nos trouxe uma oferta de amizade e aliança.
Martha se recostou. — Jim nunca te trairia.
— Como você pode ter certeza?
— Porque ela cortaria as bolas dele e o alimentaria com elas, —disse
Desandra atrás de mim.
— O que você está fazendo aqui?
A alfa do Clã Lobo entrou na luz e encostou-se na parede. — Eu
estava de passagem. Vi o espetáculo. Pensei em parar por aqui. O que são
aquelas coisas mortas e fedorentas no estacionamento?
— Eles pertencem a um cara chamado Neig. Ele é um Antigo, muito
poderoso e pode ser um dragão.
— O que esse Neig quer?
— Conquistar o mundo. E quer que eu me case com ele para derrotar
o meu pai. Aquela festa lá embaixo foi uma demonstração de seu poder.
Desandra zombou das bestas mortas no estacionamento. — Não foi
exatamente impressionante. Oh, bem, a maioria dos homens tem
problemas com as preliminares.
Ela tinha razão. Pelo tanto que ele exaltou seus grandes poderes, eu
esperava uma demonstração maior.
— Ninguém vai prejudicar meu neto, —disse Martha. — O Clã
Heavy não permitirá isso.
Eu não disse nada. O Clã Heavy era poderoso, mas era apenas um
clã.
— Eles dizem muitas coisas bobas sobre nós, lobos.
Desandra estudou o esmalte nas unhas. Elas eram longas, afiadas nas
pontas, e douradas como a cabeleira brilhante de cabelos loiros caindo
nas costas dela.
— Dizem que acasalamos por toda a vida, que temos a dignidade
dos lobos, que somos estoicos e mal-humorados. Tudo isso é besteira.
Mas uma coisa é verdade. Não esquecemos nada. Lembramos de nossos
amigos e inimigos. Se o Senhor das Feras trair seus amigos, bem, então
ele não é apto a ser um líder. Se Martha arrancar as bolas dele, alguém
terá que arrancar a sua garganta.
Luz laranja rolou sobre os olhos de Desandra. Ela sorriu. — Pobre
Senhor das Feras, —ela ronronou. — Ele não terá como escapar.
Um vampiro correu pelo estacionamento pintando de uva-roxa. E
agora ...
— De olho no cargo de Senhora das Feras? —Eu perguntei.
— Nem que me implorassem de joelhos eu iria querer. —Desandra
sorriu, mostrando os dentes afiados. — Muito aborrecimento. Eu sou
mãe solteira. Tudo o que quero fazer é criar meus filhos em paz.
— E governar com garras de ferro o maior clã do Bando, —eu disse
a ela.
— São de silicone. —Desandra acenou as unhas para mim.
— Jim sabe o que ele enfrentaria, —disse Martha. — Ele não é um
tolo.
— Mesmo assim, não quero Conlan perto da Fortaleza. E eu não o
quero na Casa dos Clãs. Muito arriscado para todos.
— Nós cuidaremos de Conlan, —disse Martha. — Vamos fazer na
sua rua. Não se preocupe com isso.
— E Mahon? —Perguntei.
— O que o velho urso não sabe não o machucará, —disse Martha.
— Vocês fazem o que for preciso, —disse Desandra. — Faremos a
nossa parte.
Um morto-vivo saltou sobre a varanda. — In-Shinar! —Uma nota
desesperada vibrou na voz de Javier.
— O que aconteceu?
— Rowena não registrou entrada no seu turno. Não
conseguimos encontrar seu vampiro também.
Merda.
Levantei-me e fechei os olhos. Magia se espalhou diante de mim.
Não consegui encontrar alguém que não conhecia. Eu poderia detectar
quando um poder significativo rompia minhas fronteiras, mas os Sahanu,
por exemplo, eram invisíveis para mim. Eles não possuíam energia
suficiente. Eu não os conhecia bem, mas Rowena estava relacionada a
mim pelo sangue, um vínculo fortalecido pela amizade e pelo voto de
lealdade. Era uma conexão tênue, mas teria que ser suficiente.
O mar de magia me esperava. Eu tinha que agitá-lo. Puxei meu
poder e o soltei. O pulso da magia rolou pela cidade como o toque de um
sino gigante e silencioso. O chão debaixo de mim estremeceu.
Pulso.
Outro pulso.
Pulso.
Lá, uma trilha fraca, algo fraco, algo pequeno e insignificante, mas
com traços da magia de Rowena. E o vampiro dela. Era na extremidade
do meu território, logo depois da fronteira, mas consegui encontrar. E
havia algo mais. Antigo e abrasador, como se alguém tivesse rasgado o
manto da magia com garras de fogo. Neig.
Abri meus olhos. — Chame Ghastek, —rosnei para Javier. —
Mobilizem suas equipes de ataque. Usem o ônibus. Chame todos.

*******
QUANDO TEDDY JO ME CARREGAVA NO ar, fazia isso em uma
engenhoca que ele chamava de ‘o suporte’ e eu chamava de ‘balanço-
velho-de-parquinho’. Quando Christopher me carregava, fazia isso como
se eu fosse criança. Não era minha maneira favorita de viajar, mas eu
precisava de velocidade, e ele se lançou no ar como um falcão
mergulhando para sua presa.
Estávamos indo para o sudeste, em direção a Panthersville. A cidade
deslizava sob nós, tão pequena que parecia irreal. Como diabos as
pessoas entravam em aviões regularmente antes da Mudança? Eu fazia
muitas coisas de boa vontade. Ficar nas alturas e voar não estavam entre
elas.
— Você gostaria que eu voasse mais baixo? —Christopher
perguntou.
— Não.
O que eu gostaria era que Rowena estivesse sã e salva. Eu me sentia
como se estivesse tentando desviar de uma pedra gigante, rolando em
minha direção enquanto mais pedras caíam sobre mim, vindas de todos
os lados. A força que segurava a minha paciência estava se esgotando e,
quando ela acabasse, haveria um inferno a pagar.
Eu só tinha que encontrar Rowena. Tinha que encontrá-la viva, não
em um tanque de pessoas cozidas ...
A centelha de magia estava quase diretamente abaixo de nós.
— É aqui, —eu disse a Christopher.
Suas grandes asas vermelhas se dobraram. Ele mergulhou. Vento
rasgou em mim. Eu fechei meus olhos.
Mergulhamos e milagrosamente paramos de cair. Abri um olho.
Christopher estava em um campo, me segurando. Um bosque de
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magnólias , com seus galhos grossos retorcendo-se, esperava na nossa
frente, a fronteira do meu território a poucos metros de distância, além da
linha das árvores.
Christopher me colocou no chão, com cuidado.
O campo estava quieto. Insetos gorjeavam. Pássaros cantavam nos
galhos, uma melodia emocionante. O calor do verão brilhava de um céu
tão lindamente azul que quase doía olhar. O fraco ‘brilho’ da magia de
Rowena estava bem na minha frente. Puxei Sarrat para fora da bainha e
segui em frente, sob o denso dossel das árvores.
O som da respiração rouca de alguém ecoou pela floresta, assustador
o suficiente para me dar pesadelos.
Uma árvore enorme estendia seus galhos diante de mim. Uma
corrente sangrenta estava enrolada no tronco.
Avancei com cuidado, um pé sobre o outro, circulando a árvore.
Um passo. Mais um passo.
O outro lado do tronco apareceu. Um vampiro morto estava preso na
corrente, uma grossa lança empurrada em seu coração. Ao lado,
amarrado pela mesma corrente, um yeddimur caia contra o tronco. O
sangue manchou o pelo nas laterais, onde ele deve ter tentado se soltar da
corrente. Acima deles, uma única palavra estava arranhada na casca.
Kings.
— Kings? —Christopher franziu o cenho.
Virei na direção que o sugador de sangue teria olhado se ainda
estivesse vivo. Isso fazia sentido.
Dois vampiros saíram do bosque e galoparam pelo campo, ambos
tão velhos que não havia nenhum sinal de que um dia se locomoveram
na vertical. Eles corriam de quatro, criaturas feias e grotescas, de modo
que ninguém poderia imaginar que um dia foram humanos. O protetor
solar deles era um vermelho intenso, parecia sangue fresco.
— Ela não está aqui, —disse os mortos-vivos em uníssono na voz
de Ghastek, as palavras saindo afiadas o suficiente para cortar.
— Qual é o alcance efetivo de Rowena?
— Sete quilômetros e quinhentos e cinquenta e um metros.
Atravessei a vegetação para o outro lado.
— Kate! —Ele retrucou.
O mato terminou. Ficamos no ápice de uma colina baixa, com
campos e bosques rolando para o horizonte. Uma coluna de fumaça preta
subia ao céu ao sudeste.
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— Kings Row , —eu disse a Ghastek.
O rugido distante dos motores de água encantada veio do Noroeste,
Curran e os Mercenários já estavam a caminho.
Os sugadores de sangue de Ghastek desceram a colina. Christopher
começou a correr, me pegou e voou para o céu.
*******
A POPULAÇÃO DE KINGS ROW era em torno de mil, o povoado
171
nasceu dos restos de uma Decatur destruída. A maioria das pessoas
desistiu de tentar combater a natureza alimentada por esteroides mágicos
e se mudaram para os centros das cidades, mas alguns bairros periféricos
permaneceram, transformando-se em pequenas cidades: Chapel Hill,
Sterling Forest e Kings Row. Eles tinham seus próprios correios, empresas
de abastecimento de água e guardas particulares que mantinham suas
terras vigiadas.
Christopher circulou o povoado. Kings Row não existia mais. Nada
restou, exceto ruínas carbonizadas. Cinzas negras cobriam o chão. A
fumaça subia de meia dúzia de lugares, suja e ácida, juntando-se em uma
única nuvem enorme acima. Aqui e ali restos do fogo ardiam, faixas
vermelhas na crosta negra. Em um incêndio, algumas estruturas ainda
conseguiam permanecer em pé: lareiras, paredes de tijolos,
eletrodomésticos arruinados, carros queimados ... aqui não havia nada.
Nem mesmo o contorno das ruas. Apenas cinzas negras.
Ele levou mil pessoas. Eu não sabia se essas pessoas foram mortas no
incêndio ou se foram sequestradas, mas elas se foram e Neig era o
culpado.
Chega. Eu precisava colocar minhas mãos nele agora. E o que eu
faria com ele quando isso acontecesse? Nem sabia se uma Proteção de
sangue poderia me proteger contra isso.
Christopher deu outra volta. Algo brilhou através da fumaça, um
brilho laranja borrado.
— Lá! —Eu apontei, mas ele já tinha visto. Caímos através da
fumaça e pousamos nas cinzas. Calor percorreu meu rosto.
Um pilar de três metros de altura se erguia no meio do campo
devastado, uma coluna translúcida polvilhada de cinzas. Dentro dela, um
líquido brilhante laranja fluía. Vidro, percebi. O pilar era de vidro, com a
crosta externa sólida, mas por dentro estava derretido.
Christopher fez um som sufocado.
Olhei para cima.
Havia um ser humano no pilar.
Oh, querido Deus!
O corpo estava envolto em vidro até os ombros. A cabeça e o
pescoço estavam livres, manchados de fuligem, todo o cabelo queimado,
mas o próprio corpo flutuava submerso no vidro derretido. Não estava
queimado. O vidro derretido deveria ter fervido a carne até os ossos, mas
eu podia ver pernas claras balançando no líquido brilhante.
Que porra é essa?
A cabeça abriu os olhos.
Vivo. Como?
Os lábios secos e rachados se moveram. — So ...
Os vampiros de Ghastek pararam ao meu lado e congelaram.
— So ... —A pessoa no vidro disse. — Socorro.
Rowena.
Todos os pêlos dos meus braços estavam arrepiados.
Eu me concentrei no pilar de vidro, puxando a magia de dentro de
mim para brilhar como uma luz. Eu não conseguia ver como Julie, mas
consegui sentir os fios brilhantes do meu poder, girando no pilar. Meu
poder se chocou contra uma teia complicada de magia. Um feitiço. Lá
dentro, Rowena estava revestida como se usasse uma roupa apertada.
Um feitiço a cobria, serpenteando por cada centímetro do pilar. A coisa
toda estava ligada. Merda.
O vampiro esquerdo de Ghastek atacou a coluna de vidro.
— Não! —Eu gritei.
O vampiro virou-se para mim.
— Se quebrar o vidro, ela queimará até a morte.
— Tem certeza? —Ghastek perguntou, sua voz cortada.
— Sim.
Um jipe contornou a curva da estrada. Julie e Derek saltaram e
correram em nossa direção.
— Podemos drená-lo por baixo? —Christopher perguntou.
— Ela está envolvida em um feitiço. Está agarrado a ela como uma
segunda pele. Essa segunda pele está conectada ao pilar. Se quebrarmos
qualquer parte, ela morrerá instantaneamente.
O vampiro se virou. — Tire-a de lá. —A voz de Ghastek vibrou
com aço. — Kate!
— Silêncio.
Se quebrássemos o pilar, ela morreria. Se tentássemos tirá-la de lá,
ela morreria. Se a tecnologia chegar, ela morreria.
Vampiros saíram correndo da floresta na extremidade norte da
cidade. A Nação alcançou Ghastek.
Julie me alcançou, olhou para o pilar e colocou a mão na boca.
O que eu faço?
O som horrível de madeira rachando rolou pelo ar. Eu me virei. No
lado sul, as árvores estremeceram. Galhos verdes torceram e caíram.
Algo quebrou os pinheiros de décadas como palitos de dentes. Algo
enorme. A escultura Druida brilhou diante da minha mente. Puxei Sarrat
da bainha.
— Protocolo In-Shinar! —Ghastek gritou.
Os mortos-vivos se alinharam em forma de V atrás de mim.
Um carvalho partiu, seu tronco girou e desabou. Um grande focinho
emergiu na luz, um metro e oitenta de largura. Uma cabeça enorme
apareceu, desgrenhada com pêlos marrons. Duas presas curvas, grandes o
suficiente para espetar um carro, ladeavam o focinho, seguidas por três
pares de presas mais curtas. Chifres pontiagudos se projetavam do crânio
da besta.
Bem, claro. Era isso que faltava nessa festa. Um porco enorme e irritado.
Foda-me.
Atrás de mim, os Jipes da Associação rasgavam a curva da estrada e
aceleraram pelo chão queimado, levantando uma nuvem de cinzas.
172
O javali colossal deu um passo à frente. Cortes irregulares
cruzavam sua pele, formando uma rede de cicatrizes desbotadas. Aqui e
ali, bolas pontiagudas perfuravam sua pele, meio afundadas em sua
carne. Alguém torturou este javali.
A fera virou a cabeça em minha direção. Uma corrente quebrada
pendia do pescoço, tão grossa quanto um poste de iluminação. No final,
pendia um enorme símbolo de metal, os grilhões de Neig.
— É um deus. —Julie deu um passo para trás. — Sua magia é
prateada.
‘Mantenho deuses prisioneiros, atormentando-os para o meu prazer.’
Neig capturou um deus, o manteve prisioneiro por mil anos, o
torturou e agora ele o soltou em nós. Haveria apenas um deus javali nas
Ilhas Britânicas para Neig capturar.
173
— É Moccus , —eu disse. O Javali Celta, Guardião dos Caçadores e
Guerreiros, o Monstro da Caledônia. Um deus, ou melhor, sua
manifestação. Matar não mataria a divindade, mas o baniria da nossa
realidade. Uma mudança de tecnologia o tiraria da existência
instantaneamente. Isso também mataria Rowena.
— Tem alguma fraqueza? —Perguntou Ghastek.
— Não.
O javali abriu a boca e rugiu. O berro bateu nos meus tímpanos, uma
explosão louca de raiva. Ele reverberou pela cidade incendiada. Cinzas se
sacudiram.
Exatamente o que precisávamos.
Moccus bateu no chão. Outro berro bateu em nós.
Os sugadores de sangue esperavam, imóveis.
Nada que eu pudesse fazer daria um soco forte o suficiente para
derrubá-lo. Teríamos que sangrar Moccus. Levaria horas. Não tínhamos
tempo de lutar com ele.
Pelo canto do olho, vi três jipes da Associação correndo pela estrada
em nossa direção. Eles saíram da estrada e atravessaram a cidade cheia
de cicatrizes, levantando nuvens de cinzas.
— Temos que matá-lo rapidamente, —eu disse.
— Rápido não é uma opção, —respondeu Christopher, com a voz
fria e calculada — É muito grande e é um deus. Ele se regenerará.
— Temos que tentar. Rowena não tem tempo.
Moccus nos avistou. Seus olhos profundos inflamaram com fúria. O
javali finalmente ficou livre do confinamento. Livre para se vigar. Neig o
enlouqueceu.
— Protocolo Gigante, —disse Ghastek, sua voz calma. —
Priorizem os danos sobre as mortes dos vampiros.
— Vocês não podem me salvar, —Rowena sussurrou do pilar. —
Vão. Saiam daqui.
Moccus começou a avançar.
Aqui vamos nós. Puxei magia para mim mesma.
O jipe principal parou. Um único homem pulou e correu para o
javali. Eu conheceria essa corrida em qualquer lugar.
Olá querido, estamos aqui, mas por favor nos ignore e corra sozinho em
direção a um javali mágico. É apenas um deus animal gigante enfurecido. Não
precisa se preocupar. Nada de ruim pode acontecer em situações como essa.
— Curran!
Ele passou por nós a uma velocidade vertiginosa. Como se nem
estivéssemos lá.
— Droga. —Eu desembainhei Sarrat.
— Idiota, —Ghastek gritou.
Moccus berrou, dando voz à dor e à raiva insana, e entrou em uma
corrida enlouquecida. O chão tremeu nos meus pés e me segurei para
manter o equilíbrio.
O javali avançou em direção a Curran como um trem em fuga.
Eu comecei a correr. Ele precisaria de apoio. Os mortos-vivos me
seguiram.
Meu marido deu um pulo. Sua pele humana rasgou. A magia vindo
dele me deu um soco, como o primeiro raio de sol surgindo no horizonte.
Pêlo derramou, uma nuvem inteira, preta e enorme. Um leão colossal
bateu no javali.
Eu pisquei. Não, o leão gigante ainda estava lá.
Que diabos? O que maldito ... como?
O leão era do tamanho de Moccus, preto, uma juba majestosa
flutuando ao vento, faiscando com manchas de magia.
O que ...
O leão abriu as mandíbulas, as presas brilhando ao sol e as
mergulhou no pescoço de Moccus. O javali e o leão rolaram. O chão
tremeu.
— Kate!
As duas criaturas colossais rosnaram e rugiram, tentando morder e
sangrar uma à outra.
Como isso foi possível?
— Kate!
Eu percebi que estava parada. Meu exército de vampiros havia
parado.
— Rowena! —Os vampiros de Ghastek gritaram na minha cara.
Rowena era minha amiga. Rowena segurou Conlan ontem, e hoje
ela poderia queimar até a morte. Eu não poderia deixá-la morrer. Eu
sabia exatamente o que tinha que fazer. Tinha que fazê-lo. Era isso ou ela
seria fervida viva.
Uma pedra enorme, do tamanho de um caminhão, passou por mim.
Eu me abaixei e me virei de volta para o pilar. — Pegue madeira. O
quanto vocês conseguirem. Nós precisamos de uma fogueira. Um fogo
enorme.
Os vampiros se viraram. Não havia nada para queimar, exceto as
árvores distantes. Eles levariam muito tempo.
— Tem que ser madeira? —Ghastek perguntou através de seus
dois vampiros.
— Não. Contanto que queime. Precisamos de uma grande fogueira.
Os Mercenários haviam saído dos jipes e encaravam a batalha que
acontecia a poucos metros de distância. Barabas estava na linha de frente.
Eu peguei um vislumbre de seu rosto, transtornado com reverência.
Eu não podia pensar nisso. Não podia tentar entender isso agora.
Não havia tempo. Eu me virei para Rowena. Ela olhou para mim.
— Deixe-me, —disse ela, com a voz embargada.
— De jeito nenhum.
— Você tem Conlan ...
— Conlan vai ficar bem. Eu vou ficar bem. Você vai ficar bem. Tudo
vai ficar bem.
Eu iria para o inferno por fazer promessas como essas.
Um ônibus blindado surgiu por trás da curva da estrada e vinha em
nossa direção. O quartel general móvel da Nação.
Ele acelerou em nossa direção e parou. As portas se abriram e
Ghastek saiu, seguido por dois Mestres dos Mortos e uma dúzia de
Navegadores. Reconheci rostos familiares: Kim, Sean, Javier ...
— Vamos queimar o ônibus, —disse Ghastek sobre os rosnados.
Os mortos-vivos atacaram o ônibus, puxando os contêineres de
gasolina de reserva e cobrindo o veículo com ele.
Os dois animais gigantes ainda brigavam. Levou tudo o que tinha
para não correr até lá e ajudar.
Um dos mortos-vivos de Ghastek o agarrou, passando os braços em
volta das pernas dele. O segundo levantou o primeiro e levou Ghastek ao
pilar. Ghastek tocou com a mão a bochecha de Rowena. Os dedos dele se
afastaram.
— Deixe-me ir, —Rowena disse a ele.
— Nunca, —ele disse.
— Pronto, —Javier me disse.
— Carlos! —Eu gritei.
Um Mercenário baixinho virou-se para mim. Apontei para o ônibus
encharcado de gasolina. — Chamas.
Carlos se concentrou e flexionou o corpo, juntando os braços como
se estivesse apertando uma bola de basquete invisível. Uma faísca surgiu
entre seus dedos abertos e ele torceu as mãos, a faísca cresceu, torceu
mais um pouco, transformando-se em uma chama, primeiro
avermelhada, depois laranja e depois branca. As mãos dele tremiam. Ele
resmungou algo e lançou a bola de fogo no ônibus.
‘Quanto maior o fogo, mais alto será o chamado.’
O veículo blindado explodiu.
Reabri o corte no meu braço e o empurrei no fogo. O calor cozinhou
minha pele. Meu sangue ferveu nas chamas, tornando-as vermelhas. A
dor me atingiu, e eu enviei o meu sangue pelo fogo com a minha magia,
abrindo um caminho através de milhares de quilômetros. O fogo rugiu,
sangrento. Gritei o mais alto que pude.
— PAI!
O fogo estalou, uma cortina de seda brilhante se abriu
repentinamente, e meu pai apareceu dentro das chamas, os olhos
brilhando com força.
— O QUE FOI?
Puxei meu braço para fora do fogo e o segurei. Isso doeu. Deus,
doeu. — Ajude-me.
Ele olhou para mim. Roland escolhia a idade da sua aparência, às
vezes jovem, às vezes mais velho. Hoje ele usava o rosto que eu conhecia,
um homem de quase cinquenta anos, cabelo cheio, rosto sábio e bonito
que poderia pertencer a um professor, profeta ou rei. Ele se deixou
envelhecer assim porque queria parecer um homem que poderia ter me
gerado. Ele ainda o mantinha, mesmo dois anos depois.
— Por favor me ajude.
— VOCÊ ESTÁ ME PEDINDO AJUDA? POR QUE EU DEVERIA
AJUDÁ-LA, SHARRIM?
Meu pai sentia mais orgulho de mim quando eu conseguia vencê-lo.
Fraqueza e mediocridade não funcionariam. Eu tinha que ser inteligente
sobre isso.
— Você se lembra das cinzas de Tiro?
Ele olhou para trás de mim. Seu olhar varreu o túmulo coletivo que
agora era Kings Row e parou em Rowena dentro do pilar. Um músculo
em seu rosto estremeceu. Algo brilhou dentro de seu olhar. Ele escondeu
o sentimento antes que eu pudesse identificá-lo. O que eu dissesse a
seguir determinaria se Rowena viveria ou morreria.
— Ele me disse que você matou o irmão dele, —eu disse. — Esta é
uma demonstração de seu poder. Ele acha que nossa família não pode
derrota-lo.
As chamas se apagaram. O ônibus estava diante de mim,
subitamente frio. Meu braço doía.
Não deu certo. Ele me abandonou. Apostei em seu orgulho e perdi.
Eu me virei.
Uma brisa tocou minha bochecha. Ao meu lado, Roland abaixou o
capuz de sua túnica marrom lisa e olhou para o pilar. Os mortos-vivos se
espalharam. Ghastek estava sozinho ao lado do pilar, o queixo erguido,
os olhos desafiadores. O resto da Nação se amontoou à minha direita,
colocando-me entre eles e meu pai.
— Você já pensou em uma solução? —Ele perguntou, como se
tivesse acabado de me dar uma equação matemática complexa e estava
curioso para saber se eu poderia resolvê-la.
— Eu posso assumir o controle do pilar, mas isso exigirá violá-lo, e
qualquer violação quebrará o escudo protetor ao seu redor. Se eu
reivindicar o escudo protetor e tentar assumir o controle dele, o escudo
poderá se desintegrar e ela morrerá.
Ele assentiu, seu belo perfil ligeiramente curioso. — Continue.
174
— Minha melhor opção é colocá-la em estase usando o feitiço de
175
Kairós , enquanto reivindico esse território. O feitiço de Kairós a
manteria separada da nossa realidade.
Também não seria capaz de segurar o feitiço por mais de um
instante. Eu não tinha prática suficiente.
— Reivindicar me permitiria desintegrar instantaneamente o pilar
antes de queimá-la, mas reivindicar é um processo de duas etapas: o pulso
inicial que se dispersa de mim para os limites do território e o pulso de
retorno que viaja dos limites de volta para mim. No espaço entre os dois
pulsos, estarei impotente. O feitiço de Kairós requer um fluxo constante
de magia de mago. Vai entrar em colapso. O primeiro pulso de
reivindicação interromperá o feitiço que a mantém viva no momento. Se
ela estiver fora de estase entre os dois pulsos, queimará até a morte.
E eu, sem querer, acabei de dizer a ele que Erra estava me ensinando. Eu me
preocuparia com isso mais tarde.
Meu pai se agachou e pegou um punhado de cinzas. — Quando o
tipo de criatura que ele é queima a terra, causa danos a ela. Está
preparada para o que virá se reivindicá-la?
Eu não tinha ideia do que viria. — Sim.
Meu pai assentiu. — Três segundos. Isso é tudo que você tem.
Três segundos eram uma eternidade a mais do que eu teria durado.
Tinha que ser o suficiente.
Eu havia gerado um pulso poderoso de reivindicação apenas uma
vez e precisava de uma torre para fazer isso. Erra estava me fazendo
praticar reivindicar pequenos pedaços de terra, alguns centímetros aqui e
ali, e depois soltá-los, e isso exigia muita preparação.
Tudo que eu precisava era de um círculo de vinte metros ao redor do
pilar. Isso seguraria quaisquer fluxo de magia que se estendessem do
pilar. Eu poderia fazer. Eu só precisava de uma âncora. A reivindicação
exigia uma âncora, fosse uma torre ou um prego no chão. Precisava de
um canal para o meu poder.
Eu não tinha nada.
Espere. Eu tenho minha espada. Agarrei Sarrat com a mão esquerda e
me ajoelhei, segurando-a para cima. Lentamente, deliberadamente
colocando um pé na frente do outro, Ghastek se afastou do pilar para a
equipe da Nação esperando ao lado.
Meu pai levantou as mãos. A luz explodiu delas. Palavras, antigas e
bonitas, saíram de sua boca, movendo a própria magia. Era muito belo.
Era poesia e música envolvida em uma canção de puro poder.
Apunhalei Sarrat no chão e coloquei cada gota de mim nela.
Arranquei um pulso de magia de mim, uma onda carmesim de luz
rolou pela terra. Houve uma pausa, um único batimento cardíaco que
durou uma eternidade. O silêncio me encontrou e, ao longe, ouvi um
barulho, como um tornado vindo de muito longe. Ele cresceu,
ensurdecedor, avassalador e bateu em mim, me puxando do chão. Eu
flutuei um metro acima do chão de Kings Row. Minha pele pegou fogo.
Chamas explodiram dentro de mim, me incinerando. Meu corpo
queimou.
Neig havia drenado a terra, arrancado toda a magia que ela tinha
para fazer o pilar. O feitiço do pilar precisava de magia para sobreviver e
agora estava roubando a minha. Estava puxando a magia das minhas
veias.
A agonia me afogou. Isso doeu. Doeu muito. A terra me consumiria.
Rowena.
Através da névoa sangrenta de dor que cobria meus olhos, cheguei
em direção à mancha de magia queimando em minha mente e bati no
pilar. Minha visão se dissipou por um momento agonizante,
repentinamente afiado, e vi Curran prender suas enormes presas na parte
de trás do pescoço de Moccus e mordê-lo. O grande javali ofegou e ficou
mole, finalmente em paz.
O pilar quebrou, o líquido derretido derramou, cada gota se
transformando em uma esfera perfeita de vidro, impregnado de magia
roubada.
‘Não entre em pânico’, a voz fria de Erra surgiu das minhas
memórias.
O vidro agora era meu. Eu quebrei as gotas com meu poder. Elas se
estilhaçaram de uma só vez, choveram em uma cascata cintilante, e eu as
triturei de novo, devolvendo magia à terra, alimentando-a, enquanto uma
chuva de cristal caía no solo, deslizando na terra.
O lamento diminuiu, depois ficou quieto, depois virou um gemido,
um sussurro e finalmente desapareceu. Caí no chão, aterrissando de lado
e pisquei. Minhas mãos não estavam carbonizadas. Nem mesmo o meu
braço esquerdo que queimei no fogo do ônibus.
Eu me sentei. Um círculo perfeito se espalhava pelo pilar, verde com
grama fresca. Um aroma familiar encheu a área. Cheirava a especiarias e
mel. Flores delicadas brotaram ao meu redor, pequenas estrelas brancas
com miçangas negras. Eu as fiz uma vez antes, quando chorei durante
um Flare, porque um homem que serviu a Morrigan havia morrido. Eu
cuidei dele e tentei mantê-lo vivo, mas no final, tive que deixá-lo morrer.
Rowena estava deitada no chão ao meu lado, nua, mas sem
queimaduras.
Ela abriu os olhos, levantou a mão e lutou para dizer alguma coisa.
Viva. Ela sobreviveu. Nós conseguimos.
Eu me sentia estranhamente entorpecida.
Meu pai sentou no chão ao meu lado e tocou gentilmente uma das
flores. Ghastek se ajoelhou junto a Rowena, a abraçou com um cuidado
sem fim e a levou embora.
O cadáver do javali se esparramava nas cinzas, toda a sua carne
rasgada, os grandes ossos rolando, enquanto o leão afundava no
estômago do javali. Os horríveis sons do mastigar de um predador
enorme ecoaram através de Kings Row. Uma parte de mim sabia que era
Curran e ele estava comendo um deus, e eu deveria estar assustada com
isso, mas a minha mente se recusava a lidar com isso agora. Eu estava
exausta.
— A criatura falou com você? —Meu pai perguntou.
— Sim. Ele quer conquistar.
— O irmão dele também. O que mais ele disse?
— Ele me propôs que eu fosse sua rainha. Quer que eu o ajude a
destruir você. Não chegou a dizer isso diretamente, mas ...
— O que você disse para ele?
— Lembrei a ele que meu pai e minha tia mataram seu irmão e
destruíram seu exército, então ele era uma aposta perdida. Ele me disse
que não era seu irmão e prometeu provar isso. Esta é a prova dele. —
Virei-me para ele. — Ele tem os yeddimur.
Um músculo estremeceu no rosto do meu pai. — Eles são uma
abominação.
Então, o grande e poderoso Nimrod tinha uma fraqueza, afinal.
— Ele é realmente um dragão? O irmão dele era um dragão?
— Sim.
Ótimo. Fantástico.
— Ele disse que seu irmão propôs casamento com Erra.
Meu pai zombou e eu vi as feições da sua irmã mais velha no rosto
dele. — Nós não nos casamos com serpentes. Nós os apagamos do fluxo
da história.
— Ah bom.
Ficamos em silêncio por um longo momento.
— Conte-me sobre o dragão, —Roland perguntou.
— O nome dele é Neimheadh. Ele governou a Irlanda e a Escócia
com seu exército de soldados humanos e criaturas corrompidas. Quando
a magia enfraqueceu, ele se retirou para as brumas com seu exército.
Agora voltou. Raptou pessoas de cidades nos arredores de Atlanta e as
cozinhou, roubando seus ossos.
— O vínculo que aprisiona.
Olhei para ele.
176
— A espécie dele faz seus covis nas realidades de bolso , uma
177
pequena dobra no tecido Espaço-tempo , —disse Roland. — Eles são
criaturas de imensa magia e distorceram a ordem natural das coisas para
construírem o local onde vive. Este Neig levou suas tropas com ele para
seu covil. Eles existiram dentro dessa realidade de bolso por tanto tempo,
que acabaram ficado vinculados a ela. A magia distorcida que permeia
esse local os mudou. A magia na nossa realidade não é suficiente para
sustentar ele ou seu exército, a menos que a onda de magia seja bastante
potente. Ele e suas forças precisam absorver a magia da nossa realidade
para se manter vivos aqui. Os seres humanos são criaturas cheias de
magia e numerosos.
— Eles comem os ossos humanos, para que possam se manifestar
aqui quando a magia é mais fraca?
— Bebe-os, provavelmente. Moem os ossos em pó com magia e os
misturam com leite. Uma prática bárbara.
Esfreguei meu rosto. Explicações simples eram geralmente as
corretas. Consumir pessoas seria logisticamente difícil. Muita massa.
Ossos em pó fazia mais sentido. Aqui está a sua vitamina de ossos, ótima
maneira de começar o dia. Eu queria vomitar.
Roland estendeu a mão e acariciou meu ombro. — A maioria deles
nunca escolhem lidar conosco, mas aqueles que escolhem se misturar
com humanos são uma praga neste mundo. Uma praga que um dia vou
curar.
— Pai ...
— Sim, Flor do meu coração?
— Se eles precisam beber pó de ossos para se manifestar durante a
magia, quantas pessoas precisarão matar para sobreviver durante a
tecnologia?
— Centenas de milhares, —disse meu pai.
— Posso entrar neste reino de bolso e matá-lo?
— Você não pode entrar sem permissão.
— E se ele me desse permissão?
— Você seria muito tola se entrasse.
— Mas se eu fizer ...
— Eu a proíbo.
Há-há-ha, sua opinião e nada é a mesma coisa. Ele não estava
exatamente em posição de me proibir de nada.
Roland suavizou sua voz. — Se de alguma forma você estiver no
domínio dele, não coma ou beba. Se consumir algo, ele a ancorará no
reino dele e você ficará sujeita ao poder dele por um curto período de
tempo, a menos que ele continue a alimentá-la. Contanto que você não
coma nada que ele ofereça, você pode sair na hora que desejar e nada
dentro do covil dele pode machucá-la. Simplesmente deseje estar de volta
aqui, e as brumas irão se rasgar, e estará de volta ao nosso mundo. No
reino dele, você é um fantasma. Não pode se machucar, mas não pode
machucá-lo em troca. Mas não é um lugar que você deva ir, Flor. Os
dragões são imprevisíveis, e seu domínio da magia supera o nosso. Eles
são bons em manipulação.
Curran levantou a cabeça enorme. A boca dele estava
ensanguentada. Ele cambaleou por cima do cadáver, uma enorme fera de
pesadelo, grande demais para ser real.
— Neig enviou seu Comandante para lutar comigo, —eu disse a ele.
— Onde está o Comandante agora?
— Morto.
Meu pai sorriu.
— Você enviou assassinos para matar seu neto. Seu único neto. Eles
queriam matá-lo e comê-lo. Você é desprezível, pai. Como se olha no
espelho de manhã?
— O que aconteceu com os assassinos?
— Eu os matei.
— Eu sei, —ele disse. — Senti eles morrerem.
— Seu próprio neto.
Ele sorriu para mim novamente. — Os Sahanus estavam ficando
problemáticos.
Olhei para ele, sem palavras. — Uau. Apenas Uau. Você me usou
para destruir o seu culto.
Ele encolheu os ombros. — Você me usou para resgatar uma mulher
que me traiu. Eu diria que estamos quites. Além disso, meu neto nunca
esteve em perigo. Você é minha filha, Flor. A minha única filha.
— Nós não estamos quites. Nem mesmo perto disso. Não venha
atrás de Conlan novamente. Eu juro que vou te matar.
Uma estranha contorção tomou conta do corpo do leão. Ele arqueou
as costas e depois apontou a cabeça para o céu. Sua grande boca aberta.
O sol refletia em suas presas, que eram mais longas que minhas pernas.
Ele rugiu, seus olhos brilhando em ouro. Uma nuvem grossa de prata
girava em torno dele, estalando com energia violenta. Duas saliências
estouraram em suas costas. Ele rosnou, e as saliências se desdobraram em
asas negras.
É isso aí. Para mim chega.
Os Mercenários gritavam e uivavam. O olhar no rosto de Barabas
poderia ter lançado uma frota de naves espaciais.
— Alguns nascem deuses, —disse Roland. — Outros se tornam. Eu
a adverti para não se casar com ele.
O leão caminhou até nós.
O vento sussurrou. Meu pai se foi. A grama onde ele estava sentado
balançava lentamente.
O leão parou na minha frente. Ele dobrou as asas, abaixou a cabeça
colossal lentamente e deitou-se cuidadosamente na grama, com o rosto
voltado para mim. Ele poderia me levar inteira em sua boca, e ainda
haveria espaço para mais dez pessoas.
— Ele é prateado? —Perguntei.
Ninguém disse nada.
— A magia dele é prateada? —Eu repeti, levantando minha voz.
— Sim, —Julie sussurrou.
Levantei-me, virei as costas e me afastei dele.

*******
— QUER FALAR SOBRE ISSO?
Deitei na beira da floresta, a grama macia debaixo de mim. As cinzas
de Kings Row estava a alguns metros de distância. O céu acima de mim
era um lindo azul, e pequenas nuvens fofas flutuavam aqui e ali, como
ovelhas fofas correndo uma atrás das outras em um vasto pasto.
— Bebê?
Curran sentou-se ao meu lado. Ele havia rasgado suas roupas
durante sua transformação dramática. Pegou um short emprestado de
alguém, mas o resto estava nu. Seu cabelo caia sobre os ombros em uma
juba loira.
Virei minha cabeça e olhei para ele. Dizer que Curran malhava seria
como dizer que um corredor de maratona ocasionalmente corria. Seu
corpo era uma mistura de força e flexibilidade que se traduzia em poder
explosivo. Ele tinha uma ponta feroz e selvagem que me atraía para ele
como ferro é atraído para um ímã. Eu conhecia esse corpo intimamente.
E agora ele estava maior. Mais alto, ombros mais largos, definição nítida,
proporções perfeitas, músculos duros como aço. Ele estava perfeito.
Nenhum humano era perfeito.
Devia já estar assim há algum tempo. Engraçado como eu não tinha
notado isso antes. Provavelmente porque eu o amava. Para mim, ele
sempre foi perfeito, com todas as suas falhas. Eu me virei para olhar o
céu.
Um braço musculoso bloqueou minha visão das nuvens. Ele estava
se oferecendo para me deixar dar um soco no braço dele.
Eu levantei minha mão, tirei o braço dele e estudei as nuvens.
— Não é tão ruim, —disse ele.
— Quantos deuses animais você andou comendo além do tigre no
castelo do meu pai e de Moccus lá atrás?
— Quatro.
Sim. Exatamente o que eu pensava. — Engraçado como esse é o
número exato de suas expedições de caça.
Ele não disse nada.
E minha tia o encorajou. Não é tão surpreendente, já que ela nunca
gostou dele. A traição doeu.
Ele estendeu a mão para tocar meu ombro. Eu deslizei para fora do
caminho.
— Kate ...
— Você é um deus. Não é mais humano. Seus pensamentos e seu
comportamento não são mais seus. Mesmo com todos as coisas que a
minha família fodida fez, sempre eles evitaram a divindade como se
estivessem evitando o fogo. E você ... você pulou nas chamas. Perdeu sua
humanidade, Curran. Não terá mais controle sobre você. Será controlado
pela fé das pessoas que oraram a você. O que acontecerá quando a onda
de magia terminar? E se você desaparecer?
Ele abriu a boca.
Eu me sentei. — Eu só quero saber o porquê. Conlan e eu não somos
o suficiente para você? O que queria?
— Poder, —ele disse.
— Pensei que você nos amava.
— Eu te amo mais do que qualquer coisa.
— Eu entendo se não sou o suficiente. Isso é fodido, mas eu entendo.
Mas você tem uma responsabilidade com seu filho. Como pôde?
Eu não olhei para ele.
— Por que a Bruxa Branca? —Ele perguntou.
— O que?
— Por que você precisa da Bruxa Branca?
Ah! A melhor defesa é um bom ataque. — As bruxas e eu precisamos
dela para o ritual que enfraquecerá meu pai e o colocará em coma. Para
que funcione, precisamos de alguém que canalize o poder coletivo dos
Covens. Eu não posso ser essa pessoa. Meu poder é muito diferente, mas
ela pode.
— E o que acontecerá se o ritual falhar?
— Quem dedurou?
Ele suspirou. — Ninguém. Vi nos seus olhos quando lutamos com
seu pai. E a sua responsabilidade como minha esposa e mãe de Conlan?
Como fica?
— O que quer dizer?
— Você vai se matar. Ou você o matará e isso matará você. De
qualquer maneira, vai me deixar, vai deixar o nosso filho. Acha que
Conlan se importará com o seu sacrifício se ele não tiver a mãe dele?
Como irá confortá-lo quando ele estiver chorando se não estará mais lá?
— Ele estará vivo para chorar. Você estará vivo. Isso é tudo o que
me interessa. Meu pai e eu estamos vinculados. Enquanto um de nós
viver, o outro também viverá. Acha que eu quero isso? —Eu me virei
para ele. — Faria qualquer coisa por um pouco mais de tempo. Dez anos.
Cinco. Um. Por um momento a mais com vocês dois. Mas ele está vindo.
Ele tentou matar Conlan. A única maneira de mantê-lo seguro é tirar
meu pai da equação.
— Roland não será o único inimigo que Conlan terá.
— Sim, mas agora ele é o pior. Eu não quero fazer isso, Curran. Não
estou ansiosa por isso. Mas se eu tiver que morrer para que nosso filho
possa viver, para que meu pai seja parado, eu matarei aquele filho da
puta, mesmo que eu morra também.
— Eu deduzi que faria isso, —disse ele, sua voz seca.
— Se eu tiver que fazer isso, não tente me impedir.
Ele estendeu a mão e pegou minha mão. Eu o deixei segurar.
— Não vou parar você, —disse ele. — É a sua vida. É sua escolha o
que faz com ela. Tentei impedi-la de fazer coisas no passado e nunca
funcionou. É inútil. Você fará o que precisa ser feito.
Eu esperava uma luta. Isso foi fácil demais.
Ele me deu seu olhar do Senhor das Feras. — Mas se eu compreendo
isso, você deve compreender que farei tudo ao meu alcance para garantir
que você não precise morrer.
— Incluindo se tornar um deus.
— Incluindo isso. Eu precisava melhorar as minhas habilidades. Esta
foi a única maneira que conseguir isso.
— Mas não é mais você, Curran.
Ele sorriu, mostrando-me os dentes. — Continuou sendo eu.
— Besteira. Você viu o rosto de Barabas? O que acontecerá quando
os metamorfos começam a adorá-lo?
— Eles não terão a chance. Algo tinha que ser feito de uma forma ou
de outra. —Ele disse isso com uma fatalização terrível.
Não havia como voltar da divindade. Era um caminho sem volta.
Isso o comeria, lentamente, gradualmente iria mudá-lo até o homem que
eu amava desaparecer. Ele sabia disso, e mesmo assim o fez de qualquer
maneira. Fez isso por mim. Desistiu de seu livre arbítrio para que eu
sobrevivesse. Ah, Curran.
Se de alguma forma sobrevivêssemos, eu ficaria com ele para
sempre, mesmo que tivesse que viver com somente vislumbres do meu
antigo Curran no corpo de um deus.
— O que acontecerá quando a tecnologia chegar?
— Nada vai acontecer. Erra tem medido minha divindade. Ainda
não há o suficiente para me tornar um deus. Eu vou ficar bem.
Ele me puxou para ele, passando os braços em volta de mim, e
inalou meu perfume. — Nunca vou deixar você ir.
Coloquei meu rosto na dobra do seu pescoço. — Você precisa.
— Não. —Ele beijou meu cabelo. — Você e eu, Kate. Nós somos
para sempre. Conlan vai crescer e seguir seu próprio caminho, e você e eu
ainda estaremos aqui, brigando sobre quem vai salvar quem.
Ele me segurou enquanto eu chorava baixinho em seu ombro e
desejava com tudo o que eu tinha por uma vida que não ia conseguir. De
que vale a imortalidade se as pessoas que você ama não podem estar lá
com você?
Pela primeira vez na minha vida, eu desejei que a magia nunca
tivesse retornado.
Finalmente parei. As lágrimas duraram apenas alguns minutos, mas
pareceram uma eternidade.
— Precisamos contar ao Conclave, —eu disse.
Curran fez uma careta. — Sim. Eles não vão gostar. Eles aceitariam
um mago de fogo, mas um dragão não é algo com o qual possam lidar.
Eu sabia. Luther me explicou uma vez. Vivemos em uma era de
caos, sem saber quem comandaria, a magia ou a tecnologia, ou o que elas
nos trariam. A mente humana não foi construída para lidar com a
incerteza constante. Em vez disso, procura encontrar ordem e
consistência, algum padrão, algum tipo de equação lógica onde uma certa
consequência sempre segue um evento específico. A água evapora
quando aquecida até um ponto de ebulição. O sol nasceu no Leste e se
põe no Oeste. Quando as primeiras ondas de magia se foram, a
humanidade extraiu regras do caos. Essas regras se tornaram crenças
fundamentais que nos mantiveram sãos e as protegemos a todo custo,
caso contrário, a base lógica construída sobre essas crenças desmoronaria
e cairíamos na loucura.
— Um ser muito antigo não pode se manifestar a menos que haja um
Flare, —isso era uma crença fundamental. Um dragão era um ser
avassalador, uma criatura de tanto poder e devastação que nada em nosso
arsenal poderia derrotá-lo. Era como a ideia de sermos atingidos por um
meteorito. Teoricamente, tínhamos consciência de que uma rocha
espacial em chamas poderia cair do céu a qualquer momento e nos
matar, mas nos recusamos a pensar nessa possibilidade. A idéia de que
um dragão pudesse se manifestar a qualquer momento e atacar as cidades
e não haver defesas contra ele era tão assustadora que nossos cérebros
pisavam no freio, rejeitando a possibilidade. E este dragão não estava
apenas se manifestando. Ele era esperto e astuto. Ele tinha um exército e
queria invadir. Precisávamos de evidências fortes para puxar
coletivamente as cabeças do Conclave da areia.
— Eu sei que o Conclave não acreditará em nós, —eu disse. —
Teremos que convencê-los.
— Vamos precisar da ajuda de toda a cidade. —Ele acariciou meu
braço. — Temos apenas uma chance de construir essa aliança. Se
dissermos que se trata de um mago de fogo, e Neig se manifestar como
um dragão, saberão que tínhamos conhecimento disso, mas que
deliberadamente não revelamos.
— Então a aliança desmoronará.
Ele assentiu. — E quando seu pai vier, não haverá ninguém para
lutar conosco contra ele.
Um jipe foi embora. A motorista loira fez a curva em alta velocidade.
Julie.
— Onde ela está indo? —Eu me perguntei.
— Quem sabe.
Levantamos e voltamos para a área queimada, eu me virei para ele.
— Você deve desistir de cortar e deixar sua juba crescer.
— Hum-rum. E então podemos ficar acordados até tarde, e você pode
fazer umas tranças nele e colocar uma fita ...
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— Você não quer mostrar seu cabelo bonito, Cachinhos Dourados ?
— Eu vou te mostrar meu cabelo.
Eu levantei minha sobrancelha. — Isso deveria ser algum tipo de
ameaça?
— Espere e você descobrirá.

Capítulo 14
DESLIGUEI O TELEFONE E DEI A ELE UM olhar maligno. Ele não
gemeu e nem fugiu para se esconder embaixo da mesa da cozinha. Que
pena.
A luz da manhã brilhava através das janelas. A metade do meu café
da manhã estava esfriando lentamente na minha caneca favorita. A casa
estava em silêncio.
Ontem à noite, chegamos, pegamos nosso filho de Martha, fizemos o
mínimo necessário para manter a higiene pessoal e desmaiamos, nós três
na nossa enorme cama. Eu tive um pesadelo onde a tecnologia chegava
durante a noite e aniquilava Curran. Acordei suando frio. Levou vários
minutos abraçada a Curran para que meu corpo se livrasse do sentimento
de pânico.
Quando nos levantamos, George veio e pegou Conlan e nos
separamos. Curran foi à casa de George e deu alguns telefonemas para a
convocação do Conclave e eu fiz as minhas ligações de nossa casa. Eu
não queria que ele se afastasse. A magia se manteve durante a noite, mas
a tecnologia poderia chegar a qualquer momento. Curran agia como se
nada estivesse errado. Ninguém sabia quanto dele ainda era humano e
quanto era deus neste momento, e minha tia estava indisponível. Passar o
dia inteiro agarrada ao meu marido para garantir que ele não
desaparecesse quando a tecnologia chegasse não era uma opção.
Tínhamos que convocar o Conclave, mas reunir todos os figurões de
Atlanta em um único local era como arrancar dentes, só que muito
menos divertido.
O telefone tocou.
— Olá, aqui é Amy, da Imobiliária Sunshine ...
— Tire-nos da sua lista de chamadas, ou eu vou encontrar vocês e
fazê-los se arrepender. —Desliguei. Maravilha. Eu agora era uma
especialista em ameaças. Que tipo de idiota sádico liga para o mesmo
número vinte vezes, no espaço de uma semana, incomodando
desconhecidos para vender sua casa?
Bebi meu café. Essa era a primeira vez que eu tinha um tempo para
mim mesma em dias. Lembrei que tinha muitas coisas acumuladas para
resolver, mas agora não conseguia reunir vontade para fazê-las.
Curran agora era um Teófago, como Christopher, só que em um
estágio mais complexo. Ele havia comido seis manifestações de diferentes
deuses animais. Só o tempo diria se Curran sobreviveria à próxima
mudança tecnológica. Pensar nisso era como expor o pescoço e esperar o
machado cair.
Julie desapareceu após o resgate de Rowena. Eu liguei para Derek,
para a Associação, e a última vez que alguém a viu, ela estava indo
embora de Kings Row em alta velocidade. Julie voltaria. Quando ela
sumia assim, geralmente tinha uma boa razão para isso.
Um dragão estava prestes a invadir a cidade. Um dragão cujo irmão
havia matado a maior parte da minha família. Quando finalmente
contasse a Erra, ela atravessaria o telhado. Erra deve suspeitar que um
dragão esteja envolvido, mas duvido que ela tenha imaginado que um
dragão e nosso inimigo antigo estão relacionados. Essa conversa não iria
acabar bem, eu já podia imaginar.
Tínhamos que convencer a cidade de que um dragão estava
invadindo e não tínhamos nenhuma evidência para provar.
E meu pai ainda estava na ofensiva.
Eu sentia que não havia o suficiente de mim para fazer tudo que
precisava ser feito.
Pelo menos Rowena ainda estava viva. Fiz algo certo.
Alguém bateu na porta. Fui até lá e abri.
Saiman estava na minha porta, carregando em uma das mãos um
179
grande abajur estilo Tiffany , do tipo que caberia em uma mesa lateral, e
na outra mão uma mochila.
— Você abandonou sua vida de riqueza e brilho intelectual e decidiu
vender abajur de porta em porta?
— Hilariante, —disse ele. — Acho que tenho uma maneira de nos
comunicarmos com o Suanni.
Afastei-me, o deixei entrar e tranquei a porta atrás dele.
— Isso é mais um objeto da coleção de David Miller? —Perguntei.
180
David Miller era uma versão mágica de um Idiot Savat . Uma piada
cruel da natureza ou do destino, ele não podia usar magia, mas todos os
objetos que manipulou durante sua vida adquiriram algum tipo de poder
aleatório. Saiman gastou uma fortuna adquirindo os bens de Miller após
a morte do homem.
— Não, —disse Saiman. — Onde ele está?
— No porão. Deixe-me ir primeiro.
Liderei o caminho. Adora ergueu os olhos do livro, lançou um olhar
irônico para Saiman e voltou a ler.
Saiman colocou o abajur na mesa lateral de Yu Fong e parou,
estudando-o.
— O que foi? —Perguntei.
— Um rosto impressionante, —disse Saiman.
Em algum lugar no meu futuro—se eu ainda tivesse um—Saiman
apareceria usando o rosto de Yu Fong. Ugh.
Saiman se ajoelhou, abriu o zíper da mochila e tirou um rolo de
tecido, embrulhado em plástico. Desamarrou o nó e puxou um pequeno
tapete, que colocou no chão. As cores do tapete velho devem ter sido
vibrantes em algum momento, mas agora, os azuis e vermelhos das flores
desenhadas nele, desbotaram para um quase bege. Saiman pegou uma
vela perfumada da mochila e a colocou sobre a mesa, ao lado do abajur.
Finalmente, puxou uma pequena caixa da mochila.
— Estenda sua mão.
Ofereci minha mão para ele. Ele abriu a caixa colocou uma ametista
radiante do tamanho de uma noz na minha mão. A pedra pulsava com
cores brilhantes.
— Não solte, ou vai quebrar o feitiço. —Saiman puxou uma caixa de
fósforos. — Este abajur pertenceu ao Hospital Cunningham, uma
instalação na Nova Inglaterra especializada no tratamento de pacientes
em coma. Inúmeras pessoas sentaram-se à luz desse abajur e desejaram
com cada gota de seu ser apenas mais uma chance de falar com seus entes
queridos.
Tanta energia, tanto amor, pesar e tristeza se derramaram à luz de
um abajur. Tanto desespero envolvido nele.
— Isso vai machucá-lo? —Perguntei.
— O abajur não o acordará do coma. Mas se tudo correr bem,
podemos nos comunicar com ele. A vela queimará a uma velocidade
acelerada. Teremos cerca de cinco minutos. Pronta?
— Pronta.
Saiman acendeu a vela. O abajur acendeu com um clique. O fio
elétrico estava ali, enrolado em volta dela. Não estava conectado a
nenhuma tomada, mas brilhava com uma luz elétrica familiar.
— Yu Fong? —Eu perguntei, a ametista fria na minha mão.
— Sim ... —Uma voz claramente masculina respondeu.
— Sou Kate Lennart. Você está em coma na minha casa. Está
seguro.
— Estou ciente dos meus arredores, —disse ele.
Está bem então. — Existe algo que possamos fazer para ajudá-lo?
— A cura que eu preciso está além das capacidades de um humano.
Faça suas perguntas. Você está perdendo tempo.
A vela estava derretendo diante dos meus olhos. Ele estava certo. Eu
tinha que ir direto ao ponto. — Conte-me sobre o dragão que atacou
você.
— Ele é louco. Nós somos uma espécie antiga. Existem tradições.
Regras de conduta. Não se ataca cegamente outro dragão sem provocação.
— Qual era o tamanho dele? —Saiman perguntou.
— Eu nunca vi um tão grande. Até mesmo meu irmão mais velho não é
tão grande como ele.
— Como podemos matá-lo? —Perguntei.
— Quanto você sabe sobre os reinos dos dragões? —Yu Fong
perguntou.
— O reino do dragão é uma realidade de bolso, —disse Saiman. —
Uma dobra no tecido do espaço, onde o tempo e as restrições físicas têm
um significado diferente. Frequentemente, ele está escondido em um
local que é preciso entrar: uma caverna, um palácio, um desfiladeiro, em
algum lugar as duas realidades, a nossa e a do dragão, se encontram e
estão separados por limites.
Olhei para Saiman. — Um lugar em que não se pode entrar, exceto
por convite do dragão, —acrescentei. — Enquanto um visitante não
consumir nada, o dragão não poderá feri-lo.

— Mas o que pode abrir a realidade de bolso? —Yu Fong perguntou.


— O que o mantém fechado?
— Eu não sei, —eu disse a ele.
— Uma âncora. Todo dragão tem um. É um objeto de grande valor
para eles. Pode ser uma espada, um livro, um poema em um pergaminho,
algo que valorizamos além de todo o resto. Nós derramamos nosso poder
nele. Dormimos com ele, lambemos, os banhamos em nosso sangue e em
nossa magia. Nós mantemos a âncora perto. É verdade que o tempo não
nos afeta nos nossos covis da mesma maneira que afeta os outros, mas o
tempo ainda importa. Quanto mais tempo passamos na realidade de bolso,
mais forte é a âncora. É o ponto central sobre o qual todo o reino gira. Um
dragão tão antigo quanto aquele idiota louco teria uma âncora de poder
avassalador. Ele pode usá-lo em qualquer lugar e isso o levará de volta
para o seu covil.
Merda.
— Não podemos matá-lo, —disse Saiman. — A menos que de
alguma forma o matemos instantaneamente, ele chamará a âncora e se
retirará para seu reino toda vez que estiver em perigo.
— Sim, —disse Yu Fong.
Porcaria. Merda, merda, merda. — Podemos destruir a âncora?
— É um objeto de grande poder. Se de alguma forma conseguir
destruí-lo, o reino entrará em colapso sobre você.
Isso não parecia bom.
— Você tem um livro, —disse Yu Fong. — Sobre pessoas pequenas.
Eles vão para o covil do dragão e roubam a sua ...
A vela se apagou.
— Pessoas pequenas? —Perguntei.
Saiman balançou a cabeça.
— Podemos fazer outra sessão? —Perguntei.
— Agora não. Teremos que esperar pelo menos vinte e quatro horas.
Suspirei.
— Pelo menos temos uma confirmação de uma fonte independente,
—Saiman ofereceu.
— Não vai nos ajudar muito. —Porque haverá pessoas no Conclave
que insistirão que dragões não existem mesmo enquanto queimam com o
sopro dele.
Nada era fácil.

*******
— UM DRAGÃO? —Nick me olhou do outro lado da mesa.
Os três Cavaleiros de Wolf Trap haviam sentados atrás dele. A
Cavaleira-Atacante, Cabrera, olhava para mim como se eu fosse uma
cobra venenosa. Sua mão não parava de tocar a bainha da sua espada,
mas as armas eram proibidas no Conclave, então seus dedos
encontravam apenas ar. Eu poderia entender o sentimento.
— Por acaso falei grego? —Bebi meu café. Havia acabado de
descrever os eventos em Kings Row e minha conversa com Neig.
Ao redor da mesa, rostos preocupados franziram as testas.
Nós tínhamos feito o possível para que essa reunião acontecesse pela
manhã, mas quando enfim conseguimos reunir os poderes de Atlanta no
Restaurante Rivers, eram oito horas da noite. Normalmente nos
encontramos no Bernard's, em território neutro, mas precisávamos de
privacidade, e o Bernard's tinha uma clientela de luxo, então eles se
recusaram a fechar a noite para nos acomodar. Rebecka Rivers fechou o
restaurante, colocou um funcionário da cozinha na porta e nos deu o café
que queríamos, o que me fez querer abraçá-la. O desejo era perturbador.
Todo mundo que tinha alguma influência estava aqui. Nick e a
Ordem em frente a nós; Jim, Dali, Robert e Desandra à direita deles;
Ghastek, Rowena, que estava coberta por uma capa, o capuz sobre o seu
rosto, e Ryan Kelly, que parecia um homem de negócios, exceto pelo seu
cabelo moicano roxo brilhante; a guarda vermelha; o Colégio de Magos;
as bruxas, representadas por Evdokia com duas mulheres mais jovens,
ambas provavelmente suas filhas; os Volhvs, Grigorii, Roman, e o seu tio
Vasiliy, que adorava Belobog; Teddy Jo e mais dois representantes dos
neopagãos; Saiman, representando a si mesmo; e Luther, representando o
Riscos Biológicos. Até os Druidas vieram, Drest vestido em uma túnica
branca imaculada, solene e digna. Seu olhar pegou o meu. Sim, sim, não
importa o quão bem você aparenta limpeza, eu ainda te vi correndo em peles de
animais na floresta com seu corpo pintado de azul.
— Então, deixe-me ver se entendi, —disse Nick.
Aqui vamos nós. — Quem me dera se você tivesse.
— Você está dizendo que um dragão está prestes a nos atacar vindo
de uma dimensão de bolso mágica com seu exército.
— Sim.
— E ele quer que você seja sua rainha.
— Sim.
— E, me corrija se eu estiver errado, mas você é tecnicamente uma
princesa, não é?
Será que se eu soltasse sobre a mesa e desse um soco na cara dele seria
contraproducente para a construção de uma aliança?
— Sim.
Ao meu lado, Curran se virou levemente, olhando para Nick. Não
precisei olhar para o rosto do meu marido para saber que seus olhos
estavam dourados.
Nick olhou para o resto da mesa. — Certo, o que temos aqui,
181
senhoras e senhores, é uma partida de Dungeons and Dragons . O dragão
do mal quer roubar nossa princesa para propósitos nefastos e ela está
procurando alguns cavaleiros de armadura brilhante para resgatá-la.
Risos nervosos atravessaram a mesa.
— Você terminou? —Perguntei.
— Não, estou apenas começando. Você realmente viu esse dragão
em sua forma de dragão?
— Não.
— O que faz você pensar que é um dragão? —Perguntou Phillip, do
Colégio dos Magos.
— Recebi informações de uma facção pagã que afirma que ele é.
— Qual facção? —Robert perguntou.
O Druida parecia perfeitamente inocente. Não, não haveria ajuda ali.
— Uma facção pagã que deseja permanecer anônima.
— Posso garantir isso, —disse Roman. — Eu estava lá.
— Você celebrou o casamento deles e é parente dela por parte de sua
mãe, —disse Nick. — Não é exatamente uma parte neutra.
Os Volhvs pareciam ter levado um tapa na cara com um peixe.
— Você está questionando a palavra do meu filho? —Grigorii
trovejou.
Nick abriu a boca.
— Também temos a confirmação de Yu Fong, —disse Saiman. —
Obtido por meios mágicos.
Phillip olhou para ele. — Deixe-me adivinhar, ‘meios mágicos’
significa que somente você pode replicar e que não pode ser examinado
por nós neste momento por causa de dificuldades técnicas?
— O que está sugerindo? —Saiman perguntou, sua voz gelada.
— O dragão, —disse Curran, sua voz cortando os outros.
— Sim, o dragão, —disse Nick. — Alguém realmente viu esse
dragão?
— Você tem alguma evidência disso? —Perguntou Phillip. — Esmas,
garras ...
Rowena abaixou o capuz.
Phillip ficou em silêncio.
— Nossas condolências pelo seu sofrimento, —disse Robert. —
Posso fazer algumas perguntas?
— Continue.
— Kings Row está fora das rotas de patrulha da Nação. O que você
estava fazendo lá?
— Estava indo visitar uma amiga. Eu estava lá no meu tempo livre e
tinha levado um vampiro comigo por segurança pessoal.
— Que tipo de amiga? —Robert pressionou.
— Isso é realmente relevante? —Perguntou Ghastek.
Rowena levantou a mão. — Eu vou responder. Um dos meus
aprendizes morreu. Ele deixou uma noiva grávida. Eu gostava dele e
ocasionalmente visito sua noiva e sua filha.
— Você conseguiu visitá-los?
— Não. Ela teve uma emergência familiar e foi ver sua família fora
do estado. Deixou um bilhete para mim com um vizinho.
Pelo menos a mulher e a filha haviam sobrevivido.
— O que aconteceu depois? —Robert perguntou.
— Quando saí da casa do vizinho, havia um exército na rua.
Você poderia ouvir um alfinete cair.
— Havia guerreiros, —disse ela. — Eles usavam armadura blindada
e estavam matando pessoas nas ruas. As criaturas corrompidas os
obedeciam como cães. Eles correram para dentro das casas e puxaram as
pessoas para fora.
— O que você fez? —Robert perguntou.
— Sou uma Mestre dos Mortos. —Um fogo frio brilhou nos olhos de
Rowena. — Fiz o que faço. Matei o máximo que pude. Eventualmente,
meu vampiro e eu ficamos cercados. Percebi que não escaparia, então
enviei meu morto-vivo para o território de In-Shinar. Os guerreiros me
arrastaram pela rua.
E enquanto eles faziam isso, Rowena empurrou seu vampiro para
longe o máximo que pôde, tomando os cuidados para deixá-lo em um
local que não pudessem matar ninguém, assim, a equipe de Ghastek o
recuperaria e o prenderia de volta no Casino. Ela usou seu vampiro para
amarrar a si próprio na árvore, enquanto um yeddimur o perseguia.
— Eu prendi o vampiro para evitar mais derramamento de sangue,
—disse Rowena.
Perguntei a ela de onde a lança que estava cravada no seu vampiro
tinha vindo. Ela não sabia.
— O que aconteceu depois? —Robert perguntou.
— Fogo.
Nós esperamos.
— Fogo? —Jim solicitou.
— Uma torrente de fogo vindo do céu. Quando acordei, estava
envolta em uma coluna de vidro derretido.
— E, no entanto, aqui está você, sem queimaduras, —disse Nick.
Já chega! — Estávamos todos lá, —eu disse. — Todos nós vimos. Eu
tive que chamar meu pai para tirá-la do vidro.
O Cavaleiro-Protetor se inclinou para frente. — E aí está. Você passa
o tempo todo falando sobre sua eminente batalha com o seu pai e, no
momento em que as coisas azedaram, correu para o papai.
Eu o mataria.
— Ela correu para o papai porque a vida de sua amiga é importante
para ela, —disse Curran. — Assim como a vida de todos vocês importa
para ela. E porque ela tem cérebro suficiente para perceber que Neig criou
essa armadilha elaborada de vidro derretido para provar a todos que não
conseguiríamos igualar sua magia com a nossa. Agora ele sabe que
podemos. —Ele levantou a mão e contou com os dedos. — Ela matou
suas criaturas e resgatou Yu Fong. Ela matou o Comandante dele. Ela
neutralizou a magia de Neig e devolveu a vida a Kings Row. A Ordem
fez algum progresso na identificação das causas das transformações no
corpo que lhe enviamos?
— Não mude de assunto, —Nick disse a ele.
— É uma pergunta de sim ou não, Feldman, —disse Curran. — Sim
ou não?
Todo mundo olhou para Nick.
— Não, —ele disse.
Ha! — A Ordem conseguiu identificar a origem da magia ou
encontrar outros casos semelhantes?
— Não, —disse Nick.
— Então, você não tem nada a trazer para esta discussão, —eu disse.
— Vai ficar sentado aí, reclamando, gemendo e empurrando sua
vingança particular. Aqui está um pensamento, se eu sou uma princesa,
você é um Cavaleiro, Nick. Está no seu título. Cavaleiro-Protetor. Que tal
vestir sua armadura brilhante e proteger a cidade contra este dragão, em
vez de confiar na princesa para fazer seu trabalho sujo?
Nick se inclinou para frente. — Você está me pedindo para aceitar
uma criatura mítica que ninguém vê há centenas de anos e que exige
muita magia para sobreviver, nos invadindo com seu exército mágico. Há
uma explicação mais simples.
— Eu adoraria ouvi-las.
— É seu pai.
Os representantes da Nação e do Associação gemeram
coletivamente.
— Você vai parar? —Eu rosnei para ele. — Apenas pare, Nick! Pare!
Não é Roland.
— Como sabe? Há duas possibilidades: ele está orquestrando isso ou
você é cúmplice nas maquinações dele.
— Cale a boca! —Rowena estalou para ele.
— Ele tem razão, —Phillip gritou. — Não há evidências desse
suposto dragão. É uma impossibilidade mágica. De fato, escrevi um
artigo ...
— Seu artigo é besteira, —Luther interrompeu.
— Precisamente, —Saiman acrescentou.
— Eu sou um Mestre Mago. Não vou permitir que fale assim
comigo!
A mesa explodiu em gritos.
— Falo com você como quiser! —Luther respondeu.
— Você é um canhão descontrolado, Luther! —Phillip balançou o
dedo para ele.
— É Doutor Canhão Descontrolado para você!
— Evidências! —Nick levantou a voz, tentando gritar acima dos
outros. — Você não tem evidências, nenhuma armadura desses
guerreiros, nenhuma escama, nenhuma evidência!
— Diga a eles! —Grigorii apontou para Drest.
— Dizer a eles o quê? —Drest perguntou.
— Você sabe o que, —Grigorii gritou.
— Eu não tenho ideia do que está falando, —Drest gritou.
— Covarde! —Grigorii cuspiu.
— Idiota senil!
O Druida e o Volhv bateram com seus cajados no chão, se
encarando.
— Precisamos acordar Yu Fong! —Phillip gritou. — Ele realmente
viu a criatura. Podemos perguntar diretamente a ele.
— Sobre o meu cadáver! —Dali retrucou.
Todos no lado do Bando pareciam indignados.
De um lado, Evdokia suspirou e revirou os olhos. No outro extremo,
Desandra bateu palmas sobre a cacofonia, cantando: — Briga, briga,
briga ...
Eu me virei para Curran. — Faça a coisa do rugido.
Ele balançou sua cabeça. — Ainda não. Deixe-os gritar mais um
pouco.
A porta da frente se abriu. Hugh d'Ambray entrou, enorme, vestido
em uma capa e na armadura negra dos Cães de Ferro. Uma mulher
bonita o seguia. Ela usava um vestido azul e seu cabelo era
estranhamente branco.
Deixei minha espada no estacionamento. Tudo bem. Eu o rasgaria com
minhas próprias mãos.
Julie se espremia atrás deles.
Minha mente demorou um segundo para processar o fato de que
Julie não estava tentando esfaqueá-lo pelas costas. Na verdade, ela
parecia estar acompanhando-o ... Como se eles tivessem entrado juntos.
Como se ela tivesse os trazido.
Por que eu? Por quê? Eu já estava cheia de tudo isso. Realmente cheia.
D´Ambray levantou uma sacola grande e a esvaziou sobre a mesa.
Metal caiu sobre a madeira: uma caveira com um elmo, um punhal,
amuletos, fotografias de símbolos pictóricos tatuados na pele humana.
Suponho que deveria estar agradecida por ele não ter jogado um cadáver em
decomposição sobre nós.
A mesa ficou completamente silenciosa.
— Eu vim para ajudá-los com seu problema com o dragão, —disse
ele.
O rosto de Nick ficou da cor de uma berinjela. Ao meu lado, Curran
estava completamente imóvel.
— Bem? —Hugh sorriu. — Não precisam me agradecer todos de
uma vez.
A mulher de cabelos brancos sorriu e nos deu um pequeno aceno. —
Por favor, desculpe-o. Ele esquece as maneiras às vezes. Meu nome é
Elara. Vocês podem me conhecer como a Bruxa Branca. Eu ouvi muito
sobre vocês. É tão bom conhece-los. Eu sou a esposa de Hugh.
O mundo levantou e deu um pontapé na minha cara.

*******
HUGH D’AMBRAY TINHA UMA ESPOSA. Possuía um castelo. E
morava no meio de uma floresta em Kentucky. Eles se depararam com as
tropas de Neig pela primeira vez há um ano. Lutaram com eles e
desenvolveram algumas estratégias. D’Ambray estava feliz em
compartilhar essas estratégias conosco. Ele também não tinha dúvidas de
que Neig era um dragão. Ofereceu trezentos de seus Cães de Ferro e nos
disse que os lidaria pessoalmente nessa batalha. Ele sentia muito por não
conseguir oferecer mais soldados, pois teve que deixar uma tropa para
proteger o castelo. Em troca, Hugh d’Ambray esperava que a cidade de
Atlanta os ajudasse na venda de suas ervas.
Venda de suas ervas!
Sentei-me e ouvi tudo como se estivesse debaixo d'água. Não parecia
real. Era tão bizarro que meu cérebro se recusava a digeri-lo.
Sua esposa era a Bruxa Branca. Eu peguei o olhar de Evdokia uma
ou duas vezes. Ela não parecia chocada. As bruxas já sabiam. Julie nem
sequer olhava para mim. Eles vieram juntos. Ela foi buscá-los.
‘Talvez ele esteja casado e morando em algum castelo, feliz da vida.’
Ela sabia onde ele estava e não me contou.
Percebi que a sala estava silenciosa. Todo mundo olhava para mim,
incluindo d´Ambray. Ele deve ter me feito uma pergunta.
Eu fiz de conta que escutei e respondi a primeira coisa que veio na
minha mente. — Preciso pensar sobre isso.
— Devemos suspender essa reunião, —disse Ghastek.
— Ótima idéia! —Phillip alcançou a pilha de armaduras em cima da
mesa.
— Não! —Luther deu um tapa na mão dele.
— Não me bata.
— Esta é a melhor evidência que temos até agora! —Disse Luther. —
Você não irá colocar as suas patas nela.
— Não é a melhor não, —disse Saiman, virando-se para Ghastek. —
Ele tem um espécime vivo.
Luther e Phillip giraram para Ghastek. Luther abriu a boca e lutou
para formar palavras, mas nada saiu.
— Ele o tem há vinte quatro horas e não contou a ninguém, —
Saiman bufou.
— O yeddimur é propriedade da Nação, —disse Ghastek.
Os três especialistas gritaram em uníssono, como se de repente se
transformassem em harpias.
— Chega, —rugiu Curran.
O silêncio reivindicou a mesa.
Eu me virei para Luther. — Você é o melhor especialista em magia
infecciosa que conheço. —Olhei para Ghastek. — Você é o melhor
especialista em transformações induzidas por vírus mágicos. —Virei-me
para Saiman. — Você tem uma ampla variedade de conhecimentos
especializados em vários campos. —Olhei para Phillip. — Você é um
cético profissional conhecido por sua reputação. Trabalhem juntos.
Ghastek pareceu surpreso. — Você quer que eu ...
— Compartilhem, —eu disse.
Ele piscou.
— Trabalhem juntos. Publiquem um trabalho conjunto depois, se
quiserem, não me importo. Apenas me tragam algo que possamos usar.
Curran levantou-se. Levantei-me e saímos.
Atrás de mim, Hugh murmurou: — Não foi tão ruim assim.
— Dê tempo a eles, —disse Elara.
— Steed, —disse Hugh.
Eu parei. Se Hugh desse uma palavra torta a Christopher, eu o
mataria. Pelo canto do olho pude ver Barabas. Seus olhos ficaram
vermelhos.
— Você está vivo, —disse Christopher.
— É o que dizem sobre mim. Sou difícil de matar. Tenho algumas
coisas pelas quais me desculpar.
— Vá até a minha casa, —disse Christopher. — 303 Forest Lane.
Conversaremos.
Eu me forcei a continuar a caminhar.
Curran e eu entramos no jipe. Entoei o motor de água encantada até
ele ligar e saímos do estacionamento. Lá fora do carro chovia. A cidade
parecia irritada, como um gato quando se molha.
— Enlouqueci? —Perguntei.
— Não, —ele disse.
— Isso realmente acabou de acontecer?
— Sim.
— Julie foi buscá-lo quando saiu de Kings Row.
— Parece que sim.
A cidade passou por nós.
— Ele foi até Christopher e disse ‘oi’ e Christopher disse ‘Vá até
minha casa’?
Curran não respondeu.
— Ele colocou Christopher em uma gaiola e quase o matou de fome,
e agora tudo está perdoado e esquecido?
— Eu não esqueci, —disse Curran, seu rosto sombrio. — Lembro-me
perfeitamente de Mishmar.
Quase morri em Mishmar, porque Hugh me teletransportou para lá e
tentou me matar de fome.
— Lembro da Tia B, —eu disse.
Curran não disse nada.
— O que diabos ele me perguntou? —Perguntei.
— Se você aceitaria a ajuda dele.
— Sinto como se tivesse enlouquecido.
— Entre para o clube, —disse ele.
Ele freou, empurrando o braço na minha frente. O veículo parou de
repente.
— O que foi?
— Olhe.
Em frente, na esquina do quarteirão, havia um grande edifício pós-
Mudança. As luzes estavam acesas e no brilho, eu podia ver pessoas
sentadas nas mesas, telefones nos ouvidos. Tinha que ser quase dez horas
da noite. Quem ligaria para alguém a essa hora ...
Finalmente, meu cérebro notou a placa iluminada pelas lanternas à
gás: IMOBILIARIA SUNSHINE.
Eu me virei para Curran. — Nós podemos? Por favor, diz que
podemos.
Os olhos do meu marido brilharam em ouro. — Podemos sim.
Deixamos o carro ligado e fomos para a porta.
— Todo o corpo ou apenas a cabeça? —Ele perguntou, estalando os
nós dos dedos.
— Apenas a cabeça. —Puxei magia para mim. — Fica mais
aterrorizante assim.
Curran tocou a porta e a abriu para mim. Ah, que bom. Desbloqueada.
Eu entrei. Meu marido me seguiu.
Uma jovem loira olhou para nós da mesa. — Olá. Meu nome é
Elizabeth. Você está aqui para vender sua casa?
— Elizabeth, o proprietário da imobiliária está?
— Sim, está! —Ela colocou uma colher extra de açúcar em sua voz.
— Você pode chamá-lo para nós? —Perguntei.
— Quem devo dizer que está aqui?
— Diga a ele que é Kate Lennart. —O primeiro pulso da minha
magia sacudiu o prédio. — Filha de Nimrod. —Um pulso mais forte. As
pessoas ergueram os olhos de suas mesas. — A Espada de Sangue de
Atlanta e seu marido, o Deus Rei da Selva, Curran Lennart.
Todo o edifício ressoou, como se alguém tivesse atingido um gongo
gigante.
O rosto humano de Curran rachou e uma monstruosa cabeça de leão
apareceu em seus ombros. Meu marido rugiu.

*******
QUANDO CHEGAMOS EM CASA, Curran foi à casa de Derek e eu
atravessei a rua. George abriu a porta e levou o dedo aos lábios. Eu me
esgueirei atrás dela, subindo as escadas.
— Onde vocês estavam? —George sussurrou. — Derek disse que o
Conclave terminou há uma hora.
— Tivemos que fazer uma parada. —Não matamos ninguém.
Depois que Curran rugiu, todo mundo saiu e conversamos com o
proprietário sobre a etiqueta apropriada de propagando por telefone,
horário de funcionamento e o significado de ‘tire-nos da sua lista de
ligações’. O proprietário saiu correndo sem um arranhão, mas eu tinha
certeza de que as chamadas indesejadas seriam interrompidas.
Conlan estava em seu quarto, dormindo na cama. Martha estava
deitada ao lado dele, enrolada em volta do meu filho.
— Deixe a mãe ficar com ele hoje à noite, —disse George. — Ela o
perdeu ontem. Ela precisa disso.
Eu não queria deixá-lo. Queria arrancá-lo da cama, levá-lo para casa
e me aconchegar com ele só para me assegurar de que estava bem. Mas
ele estava dormindo e Martha também. Fui embora da casa de George
sem acordar ninguém.
Ao atravessar a rua, vi marcas molhadas de pneus levando a entrada
de automóveis seca de Christopher e Barabas. As luzes estavam acesas.
Eu deveria esperar até amanhã. Era tarde. Mesmo para os padrões de
horário dos metamorfos.
Não, foda-se.
Fui até a casa e bati na porta da frente.
Barabas abriu e se afastou. — É para você.
Christopher saiu da cozinha, com uma xícara de chá nas mãos. Ele
estava descalço, vestindo calça de moletom e uma simples camiseta
escura. Seus olhos eram claros, nenhum sinal de Deimos, e seus cabelos
claros emolduravam seu rosto como uma cortina de seda. — Entre. Chá?
— Não.
— Vou pegar um pouco de camomila para você, —disse Barabas. —
Parece que precisa.
— Nesse exato momento, eu teria que me afogar em uma banheira
de chá calmante para surtir qualquer efeito.
— Vou arrumar uma xícara para você. —Barabas entrou na cozinha.
Tirei os sapatos, entrei na sala e me sentei no sofá. Christopher
sentou-se em uma grande cadeira azul. Havia uma elegância silenciosa
em Christopher, mesmo quando ele se sentava com os pés descalços em
uma cadeira.
— Vá em frente, —disse ele.
— Ele o colocou em uma gaiola. Fez você passar fome por semanas.
Você estava coberto de excrementos. Não conheço ninguém, além de
Raphael, que tem o direito de querer matá-lo mais do que você. E o
convidou para sua casa? Me ajude a entender isso.
Christopher olhou para a xícara. — Você quer matá-lo?
Suspirei. — Não. Não quero. Deveria, porque seus soldados
mataram Tia B, porque ele quebrou as pernas de Curran e por causa da
morte de Mauro. Curran provavelmente o matará se tiver uma chance.
Mas agora, tudo que eu quero é entender você.
— Hugh a sequestrou e quase a matou de fome. Por que não quer
matá-lo?
— Porque eu conheço meu pai. Passei minha vida inteira treinando
para matá-lo, mas quando o conheci, desistir. Meu pai tem o impacto de
182
uma supernova . Roland possuiu Hugh desde criança. Ele o moldou e o
manipulou, e Hugh não tinha defesas contra isso. Ele não tinha como
escapar. Meu pai tem muita responsabilidade pelo o que Hugh d'Ambray
se tornou. Mas isso não importa agora. Hugh é um assassino.
— Sim, seu pai é o grande responsável por isso, —disse Christopher.
Barabas se aproximou e me entregou uma xícara de chá de camomila
fumegante. — Beba.
Tomei um gole. Barabas sentou em uma cadeira de couro, puxou
uma pasta de uma bolsa ao lado, pegou uma caneta e começou a ler o
conteúdo da pasta.
Eu bebi meu chá. Ficamos em silêncio por alguns minutos. Eu
exalei. O mundo se acalmou.
— Tudo bem, —eu disse finalmente, colocando a xícara na mesa
lateral. — Conte-me sobre Hugh d'Ambray.
Christopher sorriu. Era um pequeno sorriso, tingido de
arrependimento. — A primeira vez que percebi que algo estava errado,
tinha acabado de ser nomeado Tribunus, o segundo no comando depois
de Morgan, que era o Legatus da Legião dourada na época. Eu, seu pai,
Morgan e Hugh estávamos em Boston. Roland queria se encontrar com
um senador sobre questões de política mágica. A reunião correu bem.
Estávamos planejando sair pela manhã. Um hospital do outro lado da rua
pegou fogo. Centenas de vítimas de queimaduras, principalmente
crianças. D'Ambray desceu até lá. Ele as curou por horas. De manhã mal
podia ficar de pé. Morgan me ordenou que eu fosse avisar a Hugh que
Roland queria ir embora.
Christopher olhou novamente para a xícara. — Eu o encontrei
coberto de fuligem, passando de criança em criança, às vezes curando
duas de cada vez. D’Ambray me respondeu que não iria agora porque
não havia terminado. Morgan me enviou novamente, depois ele foi
pessoalmente arrancar d’Ambray de lá. Não conseguimos arrastar Hugh
para longe daquelas crianças. Ele estava obcecado em curá-las. Quando
voltamos, seu pai já tinha acordado e estava sentado no restaurante do
hotel, bebendo uma xícara de café e assistindo as equipes de resgate. Ele
pagou a conta, atravessou a rua e disse a Hugh que era hora de partir.
Hugh disse que não havia terminado. Ainda faltava um menino, uma
criança de doze anos que havia inalado fumaça quente e o queimou de
dentro para fora. Toda vez que respirava, a criança emitia um som de
assobio. D'Ambray estava tentando curá-lo. Seu pai olhou para Hugh por
um momento e disse: ‘Vai ficar tudo bem’. Hugh jogou o garoto no chão e
nos seguiu. No caminho para os carros, Hugh fez uma piada sobre o
traseiro de uma mulher que passou por nós.
Eu sabia sobre esses dois lados de Hugh. O Hugh que fazia piadas
enquanto passava por cima de corpos em chamas. E o Hugh curador ...
Ele salvou Doolittle. Salvou Ascanio também, apesar de ter me
chantageado para fazê-lo. Mas ele matou Mauro. Mauro era meu amigo.
— Nos dois anos seguintes, estive ocupado com Morgan, —disse
Christopher. Depois que eu o matei e me tornei Legatus, comecei a
observar melhor Hugh. Como Legatus, eu respondia apenas a Roland.
Eu controlava a totalidade da Nação. Estudei todos os rivais em potencial
que subiam nas fileiras da Nação e estudei Hugh. D’Ambray não era uma
ameaça imediata. Nós éramos iguais, mas separados, e ele não mostrava
sinais de querer tomar o meu lugar. Ainda assim, era preciso diligência.
Christopher tomou seu chá.
— A dor de outras pessoas causa desconforto a Hugh.
Eu quase ri. — Hugh d'Ambray?
Christopher encontrou meu olhar. — Pareço para você um homem
susceptível em tirar conclusões precipitadas?
Barabas riu na cadeira.
— A natureza da magia de Hugh é tal que, quando ele vê uma lesão,
isso cria angústia. Não exatamente dor, mas um alto grau de ansiedade.
Esse mecanismo o permite identificar com precisão o problema e corrigi-
lo. Ele é obrigado a curar.
— Você está descrevendo alguém que é quase empático, mas, em vez
de dor emocional, ele sente dor física. Esse tipo de pessoa não faria mal
aos outros. Hugh é um assassino.
— Um paradoxo, —disse Christopher. — Então eu me perguntava,
como é possível Hugh ser um assassino e um curador obsessivo ao
mesmo tempo? Foi então que comecei a observar o seu pai. O que estou
prestes a dizer é conjectura, mas é baseada em observação cuidadosa e
muita reflexão. Acredito que seu pai desejou ter um Senhor da Guerra
mais forte. Ele queria alguém jovem e com muita magia. Encontrou
Hugh e tentou moldá-lo na ferramenta de destruição de que precisava.
No entanto, a posição de Senhor da Guerra exige um psicopata com um
traço sádico. Hugh nunca foi isso. Ele era perfeito em todos os outros
aspectos: era fisicamente e magicamente talentoso, um lutador superior,
um estrategista talentoso, carismático, leal, feliz em servir, mas ele nunca foi
um sádico. Então seu pai usou o vínculo de sangue entre eles para
manipular suas emoções. Em várias ocasiões, observei Hugh agitado e
discutindo suas opiniões sobre algo com o seu pai. Roland abria a boca e
de repente Hugh passava a concordar com o seu pai e a fonte da agitação
e rebeldia não importava mais.
Eu deveria saber disso. De repente, muitas coisas fizeram sentido.
Mishmar fazia sentido. Meu pai disse a ele que fizesse tudo que fosse
necessário para me levar e manipulou as emoções de Hugh através do seu
vínculo de sangue, de modo que Hugh obsessivamente o fez.
— Você tem um vínculo de sangue com Julie, —disse Christopher.
— Diga-me, isso pode ser feito?
Suspirei. — Sim. Eu posso impor minha vontade sobre a dela. Posso
fazê-la não se importar com mais nada a não ser me obedecer. Mas isso
tem consequências.
Christopher pousou a xícara e recostou-se, trançando os dedos no
joelho. — Quais são as consequências?
— Se sobrepormos as nossas vontades aqueles que são vinculados a
nós através do sangue, eventualmente a mente deles se romperá. Não
sobrará nada, exceto um reflexo do que um dia foi. Serão
183
lobotomizados . Minha tia me dá uma palestra sobre isso pelo menos
uma vez a cada três meses, para o caso de eu esquecer. Ela gosta de Julie.
— Pergunta. —Barabas levantou o dedo. — Hugh esteve vinculado a
Roland por décadas e agora sabemos que Roland manipulou suas
emoções. Então, de repente, Roland quebrou esse vínculo de sangue.
— Sim, —eu disse.
— Por que Hugh não está morto?
Eu levantei minhas mãos. — Porque ele é Hugh. É indestrutível.
Curran quebrou as costas dele e o jogou em um fogo mágico que derretia
um castelo de pedra inteiro, e ele ainda está vivo. Ele nem deveria ser
capaz de formar pensamentos coerentes.
O nome Cães de Ferro se encaixa em mais de uma maneira. Um cão
é programado para agradar um humano. Quando você adquire um filhote
e o cria até a idade adulta é capaz de moldar o cão. Pegue um filhote e dê
a ele um lar amoroso e, na maioria dos casos, ele será um cachorro doce.
Pegue o mesmo cachorro e o acorrente no quintal, e será uma história
totalmente diferente. Meu pai pegou um cão e o espancava sem sentido
toda vez que ele se desviava da linha. Pobre Hugh. Mas ele nunca se
virou contra o seu dono. Ele nunca mordeu a mão que segurava o
graveto.
— Sim, meu pai impôs sua vontade a Hugh, mas isso não o isenta da
responsabilidade por ter feito coisas horríveis.
— Meu ponto de vista é preciso, —disse Barabas. — Não há como
sabermos quanto do que Hugh fez foi Roland e quanto foi ele. Talvez ele
realmente seja um psicopata violento. Hugh poderia ter se rebelado e não
fez.
— Hugh não se rebelaria, —eu disse. — Ele é leal. A verdadeira
questão é: com quem estamos lidando agora? Meu pai se foi. É apenas
Hugh agora. Nenhum de nós sabe quem é Hugh. Ele fez muita besteira.
Não sei se consigo lidar com isso. Não sei se serei capaz. Quero dizer,
Christopher, ele o colocou em uma gaiola.
— Seu pai me colocou em uma gaiola, —disse ele.
— Mas Hugh o manteve lá, —disse Barabas.
— Você já se perguntou como eu sobrevivi a dois meses em uma
gaiola sem comida ou água? —Perguntou ele. — Por que não entrei em
falência de órgãos? Por que eu não tinha feridas, apesar de estar sentado
nos meus próprios excrementos?
— Hugh te alimentou, —adivinhei.
Christopher assentiu. — À noite. Ele vinha falar comigo.
Joguei minhas mãos para cima. — Ele não deveria ter mantido você
em uma gaiola para começo de conversa.
— Ele me manteve vivo.
Barabas suspirou.
A expressão de Christopher se acentuou, ficando um pouco mais
frágil. — Vocês dois lembram apenas do homem na gaiola. Antes disso,
eu era o Legatus da Legião Dourada. Eu matei pessoas no meu caminho
para o topo. Cometi atrocidades. E, ao contrário de Hugh, não tenho
ninguém para culpar além de mim mesmo. Fiz tudo por minha conta. Fiz
porque queria poder. Devo viver com as minhas culpas. Hugh vive com
as memórias dele. Será escolha dele culpar-se pelo o que fez ou não. Eu já
perdoei Hugh, porque se eu não for capaz de perdoá-lo, não há esperança
de perdão para alguém como eu.
Ele se levantou e subiu as escadas. Barabas foi atrás dele, e eu fui
embora.

*******
ENTREI EM NOSSA CASA e desci ao porão. Yu Fong ainda estava em
coma. Adora não estava em lugar nenhum à vista.
Subi de volta e entrei em nossa cozinha. A luz estava acesa, quente e
suave. O ar cheirava a manteiga aquecida e café fresco. Curran estava ao
lado do fogão cortando um pão. Um prato de carne defumada fatiada ao
lado dele.
Soltei minha bainha, Sarrat ainda nela, e a pendurei sobre uma
cadeira.
Era tão confortável aqui, na cozinha. Só eu e ele. Eu amava nosso
filho, mas às vezes era bom fazer uma pequena pausa de ser responsável
por um pequeno humano.
— Onde está Adora?
— Eu disse que ela podia ir para casa, descansar um pouco.
Chuveiro, sono, esse tipo de coisa. Ela voltará de manhã.
Eu arrumei a mesa. Nós nunca seríamos comuns. Nós nunca
teríamos vidas protegidas. Mas poderíamos ter isso, um momento
tranquilo de felicidade simples, imprensado entre o perigo e desespero.
Eu vivia por esses momentos.
— Decidi dar uma chance ao d´Ambray, —eu disse.
— Imaginei que você faria.
Ele deslizou a última fatia de pão no prato e se virou para mim.
— O que me denunciou?
— Você tende a dar às pessoas uma segunda chance. E uma terceira.
E quarta.
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— Panela, chaleira . Você pode trabalhar com ele?
Ele encolheu os ombros. — Precisamos dele e de sua esposa. Eu
sempre posso matá-lo mais tarde.
Sua Peludeza, o planejador à longo prazo. — Teremos que sentar com
eles eventualmente e conversar. Você pode ser civilizado?
Puxei um pedaço de queijo da geladeira e o cortei em fatias finas.
— Você pode?
— Eu sou sempre civilizada.
Ele cruzou os braços. Os músculos de seus antebraços se destacaram.
Humm.
— Sério? —Perguntou Curran.
— Às vezes, pulo na mesa e chuto as pessoas na cara, mas sempre
sou civilizada com isso.
Ele se moveu atrás de mim. Sua respiração tocou minha pele. Parei
de cortar.
— Sempre civilizada? —Ele murmurou. Seus dedos tiraram meu
cabelo dos meus ombros. Seus lábios roçaram o ponto sensível na parte
de trás do meu pescoço. Eu estremeci.
Seus lábios estavam quentes na minha pele. Arqueei minhas costas
contra ele, levantei minha mão e deslizei em seus cabelos. Ele não falou
nada.
— Estamos sem crianças hoje à noite, —ele murmurou no meu
ouvido. — Ninguém em casa, exceto nós.
— E Julie?
— Ela foi dormir na casa de Derek. Pensou que você poderia
precisar de tempo.
O que eu precisava era de um transplante de temperamento, porque
se ela passasse por aquela porta agora, eu gritaria com ela até o
amanhecer.
— Ela sabia onde Hugh estava.
— Parece que sim.
Ele me beijou novamente. Seus braços deslizaram em volta da minha
cintura, me puxando para mais perto dele, seus músculos duros e quentes
contra mim. Sim ...
— Não precisamos ser silenciosos, —prometeu, e beliscou meu
pescoço. Pequenas faíscas de prazer explodiram em mim.
— Não?
— Não.
— O que faz pensar que eu não serei silenciosa?
— Isso é um desafio? —Sua mão acariciou meu braço levantado. A
respiração ficou presa na minha garganta. Não deveria ter havido nada
erótico nele tocando meu braço, mas todo o meu corpo se acendeu,
acompanhando o progresso de seus dedos.
— Você gostaria que fosse, Vossa Santidade?
Ele parou. — Ainda está brava?
Eu me virei e olhei para ele. Realmente olhei para ele.
— Você ainda é o meu Curran?
Olhos cinzentos olharam para mim, cheios de faíscas douradas. —
Eu devoro deuses há quase dois anos. Você mora comigo esse tempo
todo. Comemos, dormimos, fazemos sexo. Me diz você.
— Não sei, —eu sussurrei.
— Teste as águas e descubra. A menos que seja uma covarde.
— Queria que você não tivesse feito isso.
— Eu sabia. Muito medo.
— Estou com medo por você, idiota.
Ele me deu um olhar avaliador. — Continue dizendo a si mesma
isso. Mas seria mais fácil apenas admitir.
— Admitir o que?
Ele apontou para si mesmo. — Tudo isso aqui é demais para você.
Revirei os olhos. — Você está certo. É exatamente isso. Vi sua
masculinidade divina e agora estou dominada pela ansiedade feminina.
Não seja um convencido.
— Não se preocupe, querida. Eu vou ser cuidadoso.
Foda-se. Coloquei meus braços em volta do pescoço dele e o beijei.
Ele tinha gosto de café e Curran. Agarrei seu lábio entre os dentes, mordi
e o lambi. Ele abriu a boca e eu deslizei minha língua, provocando-o. Ele
me pegou, suas mãos apertando minha bunda e me beijou de volta,
provando minha boca. Minha língua passou pela dele. Meus seios doíam.
Meu corpo estava ciente de que eu estava vazia e precisava estar cheia
dele.
— Brincando com fogo, —ele me disse, colocando-me na mesa da
cozinha.
— Não, apenas puxando um leão pelos bigodes. —Eu beijei a pele
sensível sob o canto de sua mandíbula. Ele fez um barulho profundo
masculino. Nós nos beijamos novamente. O mundo ficou quente e
focado. Tirei sua camiseta e passei minhas mãos pelos músculos de seu
estômago, pelo seu peito duro, pelos mamilos endurecidos, beijando-o,
ansiosa, quente e excitada.
Ele tirou minha camiseta. Sua mão deslizou no meu sutiã, libertando
meu seio, seu polegar deslizou sobre o broto sensível do mamilo. Eu
ofeguei e o beijei mais forte. Ele estava pegando fogo, e se eu o beijasse
com força suficiente, eu o convenceria se apressar.
Ele tirou o sutiã de mim e me levantou. Sua boca encontrou meu
seio direito, sugando-o, sua língua pintando calor e textura no meu
mamilo, e uma sacudida de prazer me fez gemer. Enrolei minhas pernas
em torno dele. Ele me levou para a sala de estar. Meus pés tocaram o
tapete macio. Eu estava quente, molhada e com uma pressa terrível. Ele
estava me beijando, me tocando, apertando, acariciando. Ele não
conseguia me tocar o suficiente. Abri seu jeans e puxei seu pau, passando
a mão para cima e para baixo na dureza envolvida em pele sedosa. Ele
gemeu e me apertou para ele. Seus olhos estavam dourados. Seu lábio
superior se levantou, me mostrando as suas presas.
Eu o derrubei, colocando-o debaixo de mim. Foi um movimento
clássico, simples e eficaz. Ele estava desequilibrado, porque queria
continuar acariciando meus seios. Por um momento, seu peso estava na
perna direita, e eu o virei. Ele poderia ter lutado comigo, mas
simplesmente deixou-se cair. Tirei meu jeans e minha calcinha, arranquei
as roupas dele e o montei.
Ele sorriu para mim e não havia homem mais bonito na Terra. —
Belo golpe, chutadora de bundas.
Ele ainda era Curran. Ainda era o meu Curran. Ainda restava o
suficiente.
Eu o beijei e deslizei seu pau duro dentro de mim. Parecia o paraíso.
Ele rosnou e se empurrou para cima. Eu o montei, combinando seus
impulsos com os meus, sentindo cada centímetro dele me encher,
deslizando em meu calor. Suas mãos percorreram meus seios, deslizaram
sobre meu estômago e tocaram o ponto sensível entre minhas pernas.
Gemi alto. Ele rosnou em resposta.
Eu o montei cada vez mais rápido, perdi o ritmo, até que a pressão
que havia construído dentro de mim se elevou e me afogou em êxtase. E
então ele estava atrás de mim, se empurrando com força, e logo eu estava
no topo novamente, depois estávamos cara a cara, diminuindo o ritmo.
Saboreando cada minuto. Todo momento foi um presente. Amei tudo: o
gosto, o cheiro, o toque, a maneira como ele me olhava, o brilho de ouro
em seus olhos, o toque de suas mãos na minha pele, a maneira como
todo o seu corpo ficou tenso quando ele se empurrou ... Eu gozei
novamente, e corpo dele estremeceu gozando junto comigo. Caímos lado
a lado no tapete.
Minha cabeça estava girando. O suor esfriava lentamente no meu
corpo. Eu estava tão feliz. Exausta e feliz. Escuridão suave e confortável
chegando.
— Kate, —ele disse. — Não podemos adormecer aqui. Vem cá,
bebê.
De alguma forma subimos para a cama. Ele passou os braços em
volta de mim e eu adormeci.

Capítulo 15
EU SABIA QUE MINHA TIA HAVIA se recuperado, porque ela explodiu
a porta do nosso quarto e rugiu: — A criança está desaparecida!
Sentei-me de vez na cama. Curran gemeu. Percebi que estava nua e
puxei um cobertor sobre os seios.
— Bata, —eu disse a ela. — Privacidade.
Ela olhou para nós. — Não é hora de fazer sexo! Seu filho está
desaparecido! Não consigo senti-lo.
Alguém me mate. — Ele não está desaparecido. Está do outro lado da
rua com a avó. Você não pode senti-lo porque fortaleci a Proteção na
casa de George para esconder sua presença.
Ela olhou para mim. — Tem certeza?
— Sim. Eu fui lá para vê-lo tarde da noite passada e o vi dormindo.
Grendel está com ele. Há metamorfos ursos suficientes naquela casa para
impedir um exército.
Erra considerou. — Tudo bem. Além disso, o cão de guarda
do seu pai, como é o nome dele? Hugh. Hugh e uma mulher
loira estão em um carro na sua garagem, conversando.
Ela se virou e passou pelos restos da porta que havia quebrado e
entrou no corredor.
Virei e bati minha cabeça no peito de Curran algumas vezes. — Por
que eu?
— Eu não sei. —Ele acariciou minhas costas. — Suponho que
precisamos nos vestir.
— Ugh.
— Se eu tiver que matar Hugh, não quero fazer isso nu, —disse ele.
— Seria estranho.
— Se você mudar para a forma de guerreiro, ficará nu.
— Isso é diferente.
Vesti-me, forcei-me a escovar os dentes e, em seguida, desci as
escadas, abri a porta e caminhei pela entrada da garagem até um SUV
azul e bati na janela.
Elara abriu a janela. Hugh olhou para mim do banco do motorista.
— Oi, —eu disse.
— Estamos tendo uma discussão particular, —disse Hugh. — Você
se importa?
Imaginei-me passando por Elara e dando um soco na cara dele. Não,
eu não o alcançaria.
— Na minha garagem?
— Sim.
Um pequeno sorriso apareceu nos lábios de Elara.
— Bem, quando vocês terminarem de discutir, entrem e venham
tomar café com a gente.
— Obrigada, —disse Elara.
Hugh estendeu a mão sobre ela e fechou a janela.
Acabei de convidar Hugh d'Ambray para o café da manhã. O mundo
estava ficando louco. Não há mais nada a fazer além de esperar e gritar
‘Urruuu!’ em momentos estratégicos.
Voltei para casa. Eu deveria ter dado um soco na cara dele enquanto
ele estava rolando a janela para cima. Direto.
Curran desceu as escadas. — O que eles querem?
— Estão tendo uma discussão particular. Convidei-os para o café da
manhã.
Ele deu de ombros de uma maneira fatalista.
Entrei na cozinha e verifiquei o prato com carne defumada. Ainda
estava lá. Era bom que Grendel não estivesse aqui, ou ele teria limpado
os pratos para nós durante a noite. Ele era tão atencioso.
Tirei os ovos da geladeira.
— O que fez você mudar de idéia? —Perguntou Curran, colocando
uma panela no fogão.
— Sobre Hugh?
— Sim.
Eu quebrei alguns ovos em uma tigela, adicionei uma colher de
açúcar e os bati até formar espuma. — Christopher acha que meu pai
usou o vínculo de sangue para impor sua vontade a Hugh.
— Eu concordo, —disse Curran.
— Por quê?
— Porque seu pai é um maníaco por controle, e se ele podia
controlar Hugh, não perderia essa oportunidade. Mesmo assim ainda
quero matá-lo.
— Eu sei. Christopher perdoou Hugh porque acredita que se ele não
pode perdoar Hugh, também não pode ser perdoado. —Adicionei leite à
mistura e depois farinha.
— Então você o perdoou por Christopher? —Curran levantou a
panela para rolar um pedaço de gordura defumada ao redor.
— Não. Não perdoei nada e, se o fizer, não será por Christopher.
Será por mim. Não quero arrastar o peso da mágoa. Mas, por enquanto
só quero saber por que ele está aqui. Tem que haver uma razão e não
aceito essa desculpa de interesses comerciais com a venda de ervas.
— Eu tenho que perdoá-lo? —Ele perguntou.
— Não.
— Ah bom. Porque fiquei preocupado por um segundo.
Revirei os olhos para ele.
Alguém bateu na porta da frente.
— Está aberta! —Gritei. Eu a deixei destrancada e retirei a Proteção
também. Eu sabia que Hugh era humano. As Proteções comuns não o
barrariam, ele já havia quebrado uma Proteção minha uma vez, o que o
levou a ficar inconsciente por alguns minutos. Mas Elara era outra
história. Algo nela não parecia muito certo.
Hugh abriu a porta e a segurou para a esposa. Ela entrou e veio para
a cozinha. Outro vestido, este na cor lavanda claro. Seus cabelos,
trançados e presos na cabeça, eram tão claros que quase pareciam brilhar.
Havia algo um pouco majestoso em Elara. Algo mágico também, mas ela
o mantinha muito bem escondido, profundamente, e se eu tentasse
alcançar a força, ela sentiria. Que diabos ela era?
Hugh encostou-se na parede, grande, sombrio, a imagem do
psicopata feliz em matar qualquer um que eu lembrava. Entreguei-lhe
uma pilha de pratos. — Faça-se útil.
Ele piscou para mim.
Tirei uma faca do porta facas no balcão e a joguei. Ela cravou a um
centímetro do nariz dele. — Vai precisar de talheres, —eu disse a ele. —
Segunda gaveta à sua direita.
— Aqui, eu ajudo. —Elara abriu a gaveta e começou a extrair garfos
e facas.
Poucos minutos depois, nós quatro sentamos em volta da mesa do
café da manhã, com uma bandeja cheia de panquecas redondas douradas,
uma bandeja de carne defumada entre nós, e ovos fritos divididos em
nossos pratos. Bebemos café. Elara bebeu chá.
Começamos a comer.
— Alguma coisa que queira saber? —Perguntou Hugh.
— Quão bons são os combatentes humanos de Neig? —Perguntou
Curran.
Hugh fez uma careta. — Bons. Há um punhado de Cães de Ferro
que pode derrotá-los individualmente, mas tivemos mais sucesso usando
uma abordagem de pequenas equipes de combate.
— Três ou quatro para cada um? —Perguntou Curran.
— Sim. A armadura é um problema. É uma liga forte, e tivemos um
inferno para atravessá-las com as nossas armas.
— É esmagável?
— Você ou um metamorfo urso, talvez, —disse Hugh. — Para um
185
humano, é preciso uma clava . Infelizmente, eles estão muito bem
protegidos nessa armadura.
— E os yeddimur? —Perguntou Curran.
— As bestas? —Elara perguntou. — Cada soldado pode controlar até
cinco. Eles não são escravos, são como cães. Muito cruéis. Se alimentam
do que matam.
— São contagiosos? —Perguntou Curran.
Ela fez uma careta. — Não que tenhamos notado e tivemos um
contato muito próximo.
Um sussurro de magia escapou dela e passou por mim,
fantasmagórico e frio. Cortei um pequeno pedaço do meu ovo e espetei
com um garfo. Ela era alguma coisa, tudo bem.
— E esse exército? —Perguntou Curran. — Alguma idéia de quão
grande é?
Hugh balançou a cabeça. — Lutamos contra sua vanguarda, talvez
trezentos homens e cerca de mil bestas. Posso dizer que eles passaram
pelas forças de Nez como uma faca na manteiga.
Espere o que?
— Landon Nez? —Perguntou Curran. — O Legatus da Legião
Dourada? Como eles se envolveram?
— Eles nos atacaram na época, —disse Elara.
— Nez morreu? —Meu marido perguntou.
— Não, —disse Hugh, e seu rosto me disse exatamente o quão feliz
ele estava com isso. — Mas a Legião teve que se retirar.
— Precisamos descobrir o que Neig tem. —Curran tamborilou com
os dedos sobre a mesa.
— A menos que ele convide um de nós, não vejo como isso seria
possível, —disse Hugh. — Nós sabemos algumas coisas. Seu pessoal não
pode ser subvertido. Eu até mesmo duvido de que eles não sejam mais
humanos. Neig ataca pequenos assentamentos onde sabe que sofrerá
perdas mínimas. Os cães o odeiam e tudo o que cheira a ele, que inclui
seus soldados e os yeddimur. Os metamorfos do meu povo relatam ter o
mesmo desejo de matá-los, assim como sentem com os Loups.
— Existem metamorfos entre o seu povo? —Perguntou Curran.
— Eu os escolho com base nas habilidades, não nas origens. Você
sabe muito bem disso, Lennart.
— Sério? —Curran franziu a testa. — Talvez você precise escolher
melhor, porque não me lembro deles sendo tão difíceis de matar. Você
não matou uma, querida? —Ele olhou para mim. — Um de seus Capitães
também. Foi difícil?
Elara sorriu para mim. — As panquecas estão deliciosas.
— Sempre que quiser repetir aquele encontro que você e eu tivemos
na sacada, me avise, —disse Hugh.
Coloquei minha caneca sobre a mesa um pouco forte demais, e isso
fez um baque. Os dois homens olharam para mim. — Honestamente,
Hugh, por que diabos está aqui?
— Eu já disse, —disse ele. — Tenho um castelo para proteger. Com
um povoado ligado a ele. Mil civis: padeiros, ferreiros, cervejeiros,
farmacêuticos. Crianças. Idosos. Não estamos preparados para um cerco
a longo prazo. Se Neig passar por você, ele se moverá em nossa direção.
Ele tem um objetivo.
Elara largou o garfo. — Meu marido tem problemas para comunicar
seus sentimentos, então talvez eu precise traduzir por ele. Hugh sente
culpa. Ele se lembra de tudo que fez, das pessoas que matou e das vidas
que arruinou. Isso o atormenta e o está rasgando. Há épocas em que não
dorme por vários dias. Ele se esforça até a exaustão tentando nos proteger
e se culpa por todas as mortes e ferimentos. Deixou nosso castelo e nosso
povo e veio até aqui, porque vocês precisam dele. Estão em perigo crítico.
Ele não pode mudar o passado, mas pode alterar o futuro e, se
permitirem, ele fará tudo o que estiver ao seu alcance para ajudar. Meu
marido não está tentando ganhar o perdão de vocês. Está aqui para
ajudar porque é a coisa certa a fazer. Estou aqui porque o amo. Isso é
muito difícil para ele e eu não queria que ele enfrentasse sozinho.
A mesa ficou quieta.
Olhei para Hugh. Ele olhou para mim. Havia uma dor aguda em
seus olhos. Meu pai causou essa dor. Roland o usou e o jogou fora como
lixo, mas aqui estava ele, tentando corrigir uma vida inteira de ações
erradas, e de alguma forma eu era a chave para isso. Podia sentir. Era
como um fio elétrico nos conectando.
— Sinto muito por Mishmar, —disse ele. — Sinto muito pelos
Cavaleiros, pelo castelo, por tudo.
Ficar sentada aqui era insuportável. Eu queria que um buraco se
abrisse no chão.
O silêncio se estendeu.
Se eu batesse a porta na cara dele agora, eu seria como meu pai.
Hugh era a coisa mais próxima de um irmão que eu tinha. Nós dois
fomos criados por Voron sob a sombra de Roland. Nós dois fomos
treinados para matar e esperavam de nós que obedecêssemos sem
questionar. Nós dois teríamos feito qualquer coisa pela aprovação do
nosso ‘pai’. Nenhum de nós erámos bons o suficiente para Roland, somos
uma decepção. Não tínhamos utilidade para ele se não podíamos servi-lo.
Se não fosse o sacrifício de minha mãe, eu seria Hugh agora, sentada
aqui, esperando uma migalha de misericórdia de alguém que machuquei.
O silêncio era insuportável agora.
— Tenho um dragão em coma no meu porão, —eu disse. — Ele
lutou com Neig e pode saber algo que irá nos ajudar. Tentamos trazê-lo
de volta à vida, mas nada funcionou. Você poderia dar uma olhada?
Hugh assentiu. — Posso.
— Obrigada. —Levantei-me. — Vou te mostrar onde ele está.

*******
HUGH PONDEROU YU FONG. Adora o observava da cadeira como se
ele fosse um cão raivoso.
— Vou ter que abri-lo, —disse Hugh. — Há algo alojado dentro dele.
— Você pode mantê-lo vivo? —Perguntei.
— Sim, —disse Hugh.
— Você me disse que o outro médico falou que nada poderia ser
feito, —disse Adora.
— O outro médico não é Hugh, —disse Elara. — Se meu marido diz
que pode curá-lo, então ele pode.
Hugh virou-se para mim.
Ele poderia estar trabalhando com Neig contra mim. Poderia estar
trabalhando para o meu pai. Poderia matar Yu Fong e depois rir de mim.
Atrás de Hugh, Curran estava encostado na parede, com os olhos
cinzentos claros e calmos. Não parecia estar preocupado.
Ou eu confiava em Hugh, ou não confiava.
— Vá em frente, —eu disse.
Ele tirou uma faca do cinto. Uma densa luz azul brilhou ao redor de
Hugh e se derramou sobre Yu Fong, unindo-os. Hugh se inclinou para
frente e cortou o tórax de Yu Fong do peito à virilha. Um cheiro azedo
encheu a sala. Hugh enfiou a mão na ferida e arrancou algo sangrento.
Ele largou e eu peguei antes que caísse no chão. Meus dedos se fecharam
em torno de um osso ensanguentado. Um fragmento de marfim do
tamanho do meu antebraço, cinco centímetros de circunferência em seu
ponto mais largo.
— O que é isso? —Adora se inclinou para frente.
— Um dente, —disse Curran. — Ou pelo menos o pedaço de um de
qualquer maneira.
— Dente de Neig? —Pensei alto.
— Provavelmenter.
Um tremor sacudiu o corpo de Yu Fong. Uma gota de suor estourou
na testa de Hugh. O brilho ao seu redor se intensificou.
— Acho que devemos sair, —murmurei.
— Vou ficar, —declarou Adora.
— Não o atrapalhe, —eu disse a ela.
Subimos em um fila única, primeiro Curran, depois Elara, depois eu.
Na cozinha, Elara virou-se para mim. — Obrigada por dar a ele uma
maneira de ajudar.
— Ah, ele fará muito mais que isso, —disse Curran. — Você está
certa. Estamos desesperados. Vamos aceitar a ajuda deles e dos Cães de
Ferro.
— Você sabe que ele é um bastardo? —Perguntei a Elara.
Ela levantou um pouco o queixo. — Conheço como ninguém a
mente dele. Ele é meu bastardo.
— As bruxas falaram com você? —Perguntei.
— Sim. Você quer me usar como prisma para colocar seu pai em um
sono eterno. O que acontecerá se falharmos?
— Vamos para o plano B, —eu disse a ela.
— E isso seria?
— Matarei meu pai ou morrerei tentando, o que equivalerá à mesma
coisa.
Elara me estudou. — Você tem a determinação necessária?
— Confie em mim, —disse Curran, seus olhos escuros. —
Determinação necessária não é um problema.
— Temos uma questão mais urgente. Eventualmente, o Bando
rastreará Hugh até nossa casa, e Raphael aparecerá uivando por sangue.
Raphael é um bouda. A Capitã de Hugh matou sua mãe. Eu matei a
Capitã, mas Raphael não vai se incomodar exatamente com os detalhes.
Ele virá atrás de Hugh e será um banho de sangue.
— Nós já resolvemos isso, —disse Elara.
— Vocês resolveram? —Perguntou Curran.
— Sim. Raphael é o moreno que gosta de vestir couro?
— Parece o sexo em pessoa, —eu disse a ela.
— Sim. Com olhos ... —Ela acenou com os dedos para imitar os
cílios esvoaçantes.
— Esse mesmo.
Curran parecia ter acabado de morder um limão.
— Ele veio nos ver no outono passado, —disse Elara. — Tem uma
esposa loira e baixinha.
O que? — Você falou com ela?
— Sim.
— Com licença. —Levantei-me, fui até o telefone e liguei para a
Casa Bouda. Um bouda alegre atendeu. — Residência do Clã Bouda.
— Por favor, diga a sua alfa que a ex melhor amiga dela está
ligando.
— Ela nos avisou que você ligaria.
Houve um clique e a voz de Andrea apareceu na linha. — Ei.
— Você não me contou.
— Não, eu não fiz.
— Por quê?
— Porque você estava grávida na época e tinha merda suficiente para
lidar.
Eu forcei as palavras. — Por que não me contou depois?
— Porque assisti Hugh deixar Raphael cortá-lo em tiras. Se eu lhe
dissesse, você teria largado tudo e ido lá também, e então Hugh teria a
deixado matá-lo, e então você ficaria cheia de remorso e eu teria que cuidar de
sua bunda deprimida. Eu tenho um clã para administrar, um marido para
satisfazer e uma filha para cuidar. Ligue-me quando esfriar a cabeça.
Ela desligou.
A sociedade desaprovaria se eu matasse minha melhor amiga. Nesse
caso, teriam que abrir uma exceção.

*******
MEIA HORA DEPOIS Hugh cambaleou para fora do porão com o rosto
abatido. Parecia que estava prestes a cair, mas ele chegou à sua cadeira
na cozinha e bebeu seu café frio como se fosse água. Eu o deixei
terminar.
— Ele vai viver, —disse Hugh. — Vai dormir por mais algumas
horas, então deve ficar bem.
— Você quer se deitar? —Elara perguntou.
Ele balançou sua cabeça. — Eu poderia comer um pouco mais de
carne.
Trouxe a bandeja inteira e coloquei na frente dele. Ele pegou uma
panqueca, enfiou a carne nela e enrolou.
Curran levantou-se e foi até a porta da frente. Eu o segui.
— O que foi?
— Um veículo do Bando.
Assim como eu previ. — Vou pegar minha espada. Se Raphael estiver
procurando por uma segunda luta com Hugh, não o deixe entrar em casa.
— Não é Raphael, —disse Curran.
O barulho horrível cada vez mais alto de um motor de água
encantada cortou o silêncio, até que a familiar van do Bando desceu a rua
passando por nós. A van parou, deu ré e habilmente entrou em nossa
garagem. As portas se abriram. Dali pulou, pegou uma cadeira de rodas e
colocou Doolittle nela. Seus óculos estavam ligeiramente torcidos no
nariz, e ela se movia com urgência brusca. Dali pegou uma pequena
caixa de madeira, a colocou no colo de Doolittle e o trouxe até nossa
porta como se estivesse prestes a invadir um castelo.
O que diabos aconteceu? Alguma cura para Yu Fong?
— Onde ele está?
— Yu Fong está no porão. Ele ...
— Não ele. —Dali passou por mim, seu olhar fixo nas costas largas
de Hugh. — Ele.
Olhei para Curran. Ela sempre foi impulsiva, mas Dali agora estava
fora de controle. Curran balançou a cabeça e nós a seguimos até a
cozinha.
— As pessoas simplesmente entram na sua casa como se fossem
donas do lugar? —Hugh perguntou a Curran.
— Você não tem idéia, —disse Curran.
Dali colocou a caixa na mesa em frente a Hugh. — Preciso saber o
que é isso.
— Estou comendo, —disse ele.
Tirei minha xícara de café da mesa e me afastei do caminho. Isso
seria interessante.
Os olhos de Dali se iluminaram. — Você vai me ouvir ...
— Você invadiu a casa da pessoa mais próxima que tenho de uma
irmã e interrompeu meu café da manhã.
Dali estendeu a mão para agarrá-lo. Os dedos de Elara a escovaram.
Dali recuou, um olhar de puro horror em seu rosto.
— Se tocar em meu marido novamente, eu comerei sua alma,
tigresa, —disse Elara, e bebeu seu chá frio.
— Ah, doçura. —Hugh sorriu para ela. — Não precisa se
incomodar.
— Ninguém vai comer a alma de ninguém, —eu disse.
Curran olhou nos olhos de Dali e disse com uma voz calma, mas
atada de comando: — Sente-se.
Era a voz do Senhor das Feras. Muito difícil de desobedecer. Eu
ainda conseguia, mas Dali havia crescido no Bando, e velhos hábitos
demoravam a morrer. Ela caiu na cadeira mais próxima.
— Respire fundo.
Dali aspirou o ar e soltou o ar lentamente.
— Por que você está na minha casa? —Ele perguntou.
Dali respirou fundo outra vez. Seu lábio inferior tremia, sua
compostura se rompeu e ela apertou as mãos sobre o rosto. Não havia
som. Apenas as mãos sobre o rosto e o corpo tremulo. Pobre Dali.
Curran se agachou ao lado dela e gentilmente retirou os óculos
debaixo dos dedos. Peguei um lenço e entreguei a Curran que ofereceu a
Dali. Ela agarrou e pressionou o rosto nele. Curran a abraçou. Os ombros
dela tremiam.
Eu me virei para Doolittle. — O que está acontecendo?
Ele suspirou. — Ela está sob muito estresse.
Dali disse algo entre as mãos.
— O que foi? —Curran perguntou gentilmente.
Ela disse de novo.
— Nós não podemos entender você. —Eu mantive minha voz
calorosa, mas firme.
Ela deixou cair as mãos. Sem óculos parecia dez anos mais jovem,
seus olhos escuros arregalados e encharcados de lágrimas. — Eu sou
estéril! Não posso ter filhos.
Eu me virei para Doolittle.
Ele assentiu.
Dali abriu a caixa. Dentro havia um grande frasco de cristal cheio de
líquido âmbar. Ele brilhava intensamente, como se estivesse cheio de
glitter.
— Roland nos enviou isso. É um presente. —Ela cuspiu a palavra
como se fosse veneno. — Nem sabemos como ele soube que estávamos
tentando engravidar. O homem que ele enviou disse que isso irá me
curar. Jim se recusou a aceitá-lo, mas ele o deixou no chão do lado de
fora dos portões, e eu fui buscá-lo. Preciso saber se isso vai resolver
minha condição. Ele se ofereceu para provar a substância, uma forma de
nos demonstrar que não era veneno, mas eu não quiz ser responsável por
ninguém se machucar.
Bem, agora sabíamos o que havia na pasta.
Hugh continuou comendo.
Elara olhou para ele.
Ele encolheu os ombros. — Não é problema meu.
— Por favor, responda a ela, —Elara pediu.
— Você se incomoda, mas eu não, —disse ele.
— Por mim, —ela pediu.
— Você sabe o meu preço, —disse ele.
Elara se recostou e cruzou os braços, o rosto gelado. — É sério?
— A coisa toda. Você o coloca na boca e engole.
O que?
— A coisa toda?
— Eu falo sério, Elara. Você vai comer um frango inteiro.
— Eu não posso comer um frango inteiro. É muito.
A voz de Hugh era impiedosa. — Faça isso ao longo do dia.
— Você espera que eu coma os ossos também?
— Agora está sendo infantil.
— Eu só quero que os termos deste acordo fiquem claros, —ela disse
a ele.
— Não precisa comer os ossos, —disse ele. — Você consumirá a
carne e a pele do frango. Possivelmente alguma cartilagem, se desejar.
Todas as partes do frango que normalmente são comidas por seres
humanos.
— Você é um idiota, —ela disse a ele.
— Você sabia que eu era um idiota quando se casou comigo.
— Bem. Vou comer o maldito frango. Ajude-a, por favor.
Hugh parou de comer, colocou o garfo e a faca no prato, o afastou e
acenou com a cabeça para o frasco de cristal. — Isso é ambrosia. Não é o
néctar real dos deuses, mas um elixir de cura para todos os males
inventado por Roland. Ele leva cerca de um ano para fazer isso. O elixir
irá curar uma lesão em tempo recorde. Pessoalmente, eu não aceitaria.
As poções de Roland vêm com efeitos colaterais divertidos. Você pode
engravidar e, dez dias depois, pode acabar arrancando a cabeça do seu
marido enquanto dorme.
Todo o ar tinha saído de Dali. Cheguei mais perto dela e coloquei
minhas mãos em seus ombros. Curran ainda a estava segurando. Eu
gostaria de poder ajudá-la.
— Então não vai me curar, —disse ela, com a voz amarga.
— Duvido. Você não sofreu uma lesão que precisa ser corrigida. Seu
186
problema é excesso de regeneração. Ambas as trompas de falópio se
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fundiram. Se fosse humana, teria um caso grave de endometriose . O
tecido normalmente dentro do seu útero estaria crescendo fora dele. Mas
você é uma metamorfa, então o Lyc-V tentou resolver o problema
obstruindo todos os orifícios que pôde encontrar e decidiu que suas
trompas de falópio são uma zona de perigo. Antes da Mudança, os
médicos resolviam a infertilidade causada pela endometriose com
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fertilização in vitro . Não é uma opção para nós agora. Deixe-me
adivinhar, você tentou opções cirúrgicas e as trompas se fecharam
novamente e imediatamente após a conclusão da cirurgia?
— Sim, —disse Doolittle.
Hugh olhou para Dali. — Eu posso resolver, mas será necessário
abrir você. Terá que ficar acordada durante o procedimento, e terá que
ser feito sem anestesia, porque preciso que controle o Lyc-V, caso
contrário, o vírus a curará mais rápido do que poderei recuperar seu
tecido. Se for anestesiada perderá o controle do seu vírus e ele entrará em
ação, porque pensará que você está morrendo. A cirurgia não será
divertida. Seu marido não vai gostar. Converse com ele.
— Você faria isso por mim? —Dali perguntou. — Por quê?
— Porque minha esposa me pediu, —disse ele.
— Como você planeja reabrir as trompas? —Perguntou Doolittle.
— Eu não vou reabri-las. Vou cortar as trompas fora e fazer crescer
novas.
Doolittle olhou para Dali. — Mesmo com o poder dele, isso levará
horas.
— Eu disse que não seria divertido, —disse Hugh.
— Pense com muito cuidado, —disse Doolittle. — Vai ser muito
doloroso.
Ela levantou a cabeça. — Eu quero um filho. Uma criança minha e
de Jim. Você não tem ideia de como é não poder ter um bebê. Tudo o
que vejo são bebês. A bebê de Andrea, o bebê de Kate e agora George
está grávida.
— George está grávida? —Essa era a primeira vez que ouvia falar
disso.
— Não sinto inveja de seus bebês. Só quero poder ter um meu.
— Fale com Jim, —disse Curran.
— Não é uma decisão de Jim, —ela disse a ele.
— Eu sei disso, —disse ele. — Mas ele te ama. Ele tem pelo menos o
direito de lhe dizer como se sente sobre isso.
— Estarei presente durante a cirurgia, —disse Doolittle a Hugh. — E
meus assistentes.
— Posso fazer isso na frente de todo o Bando, se quiser, —disse ele.
— Não faz diferença para mim.
— Só quero ser mãe, —disse Dali suavemente. — Quero segurar o
bebê que Jim e eu faremos. Quero abraçar ele ou ela. Cantar para ela. Eu
quero um bebê.
Ela olhou para mim e um pouco da alegria da velha Dali brilhou em
seus olhos. — Quero surtar e levar meu bebê para Doolittle em pânico
quando ele espirrar.
Sério? — Eu não levo Conlan quando ele espirra. Só quando fico
muito preocupada.
Curran levantou abruptamente de seu lugar ao lado de Dali. Ele
pulou sobre a mesa e arrancou a porta. Peguei Sarrat e corri atrás dele.
Nós atravessamos a rua. A janela no último andar da casa de George
estava quebrada, as barras arrancadas. Um homem aterrissou no meio da
rua com uma graça desumana, seu remendado casaco balançando ao seu
redor. Razer.
Ele estava segurando meu filho, apontando a ponta da adaga para o
pescoço de Conlan. A adaga brilhava com prata.
Sarrat fumegava na minha mão. Eu lancei minha magia como um
chicote, ativando a Proteção de longa distância que o trancaria. Ele teria
que quebrá-la para sair da rua, e eu tinha muito mais magia do que ele.
Curran mudou. Um pesadelo de dois metros e meio se levantou ao
meu lado, uma mistura de humano e leão, uma criatura aprimorada em
poder e velocidade, projetada para fazer apenas uma coisa: matar. Um
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enorme Kodiak , sangrando de um corte na cabeça, saiu correndo da
casa de George.
Hugh se moveu à minha direita com uma espada na mão. Ao lado
dele, Elara se adiantou. Dali seguiu à esquerda de Curran. Derek e Julie
correram para nós, vindo da casa de Derek. Um trio de vampiros
irrompeu do outro lado da rua, cortando sua saída. Mais metamorfos
ursos saíram da casa de George.
Razer olhou para cima. Christopher voava sobre a cabeça dele, as
asas vermelho-sangue se abriram.
Minha tia surgiu ao meu lado.
— Dê-nos a criança, —disse Curran, sua voz um rosnado baixo.
Razer apertou Conlan e mostrou os dentes longos e afiados. Dentes
falsos, feitos para tirar a carne dos ossos humanos. Meu filho estava
olhando para mim, seus enormes olhos arregalados e assustados.
— Dê-nos a criança e eu deixarei você viver, —eu disse a ele.
Razer olhou para a esquerda, depois para a direita. Não havia como
escapar. Ele estava preso em um círculo de presas afiadas, olhos
brilhantes e espadas.
— Não seja idiota, —disse Hugh. — Dê-nos a criança.
— Eu digo o que fazer, —disse Razer. Ele moveu a adaga e cortou a
bochecha de Conlan. O sangue derramou, a borda do corte ficou cinza
como fita adesiva, o vírus morrendo por conta da prata.
Eu o mataria.
Todo mundo rosnou.
— Afastem-se! —Razer gritou
Conlan colocou a mão no rosto e a sujou de sangue, ele olhou para a
mão ... Os lábios dele tremeram. Conlan tomou fôlego e gritou.
— Cale a boca! —Razer rosnou em seu rosto.
Os olhos cinzentos de Conlan se arregalaram e brilharam em um
dourado quente e furioso. Seu corpo humano mudou. Um demônio meio
leão e meio criança surgiu. O sangue de Conlan saiu do ferimento no seu
rosto, deslizou em direção as garras dele e formou lâminas vermelhas
sobre elas. Conlan arranhou o rosto de Razer, rasgando pedaços
sangrentos de carne. Suas garras rasgaram o olho esquerdo do Sahanu e o
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arrancou da orbita ocular . O fae uivou e pegou reflexivamente seu olho
em sua mão. Conlan chutou livre e correu para mim. Eu o peguei nos
braços e o abracei.
A coisa toda levou menos de um segundo.
Meu filho tinha acabado de fazer garras de sangue. Ele fez garras
com seu próprio sangue.
Garras de sangue!
A rua ficou tão silenciosa que se podia ouvir as pessoas respirando.
Razer olhou para o próprio olho na mão.
Curran avançou.
Minha tia elogiou Conlan suavemente. — É uma criança tão
talentosa, —ela murmurou. — Um principezinho tão talentoso.
O principezinho em forma de guerreiro sorriu para Erra, mostrando
todos os dentes. Ele se esforçou para dizer algo e voltou a ser humano. —
Vovó.
— Vovó está tão orgulhosa, —Erra disse a ele.
— Esse é o meu garoto. —Forcei minha voz sair alegre e calma.
Conlan abraçou meu pescoço. — Mau.
Razer estava gritando porque Curran havia arrancado seu braço
esquerdo.
— Sim, é mau. Olhe para o papai rasgando o homem mau em
pedaços. Vai Papai!
Conlan bateu palmas.
Curran quebrou a espinha de Razer com um estalo alto e depois
torceu a cabeça do fae.
— Olha, papai matou o mau. Acabou.
Conlan riu.
Dali estava me olhando com um olhar de puro horror.
— Eu não quero que ele tenha pesadelos que o homem mau vai
voltar, —eu disse a ela. — Dessa forma, ele sabe que seu pai matou o
homem mau e ele não pode mais vir pegá-lo.
Curran estava de pé sobre o cadáver rasgado de Razer e rugiu.
— Raurauraur, —disse Conlan humano.
— Isso mesmo, —eu disse.
— O que aconteceu com a sua preocupação de
traumatizá-lo? —Um vampiro me perguntou na voz de Ghastek.
— Desisti, —eu disse a ele. — Somos uma família de monstros e ele
é nosso filho. As pessoas sempre tentarão matá-lo e sempre o
protegeremos. É melhor ele se acostumar com isso.

Capítulo 16
SENTEI NA MINHA CADEIRA NA VARANDA dos fundos, bebendo
um copo de chá gelado. Curran agachou-se no quintal. Seus olhos
cinzentos rastreavam o leve indício de movimento pelos arbustos de
framboesa na beira do gramado. Elara havia entrado em nossa floresta
um pouco depois do incidente com Razer. Eu não tinha certeza se ela
precisava se refrescar ou se recompor, mas agora estava de volta, sentada
no galho mais baixo de um grande carvalho e observando Curran.
A porta se abriu, Hugh passou por ela, abrindo caminho com seus
ombros largos e se sentou em uma cadeira ao meu lado.
— Dali já foi embora?
— Ainda no telefone, —disse ele.
Depois que o cadáver de Razer foi removido e tudo voltou ao
normal, Dali decidiu ter uma conversa importante com Jim sobre a
possibilidade de Hugh fazer a cirurgia nela. Infelizmente, Dali se
recusava a ir embora porque, segundo ela, eu poderia matar Hugh assim
que ela virasse as costas. Em vez disso, optou por ter essa conversa com
Jim pelo telefone da cozinha. A conversa não estavam indo bem porque
Jim, compreensivelmente, não ficou entusiasmado em ter Hugh d
´Ambray cortando sua companheira e removendo partes dela. Ela
desligou na cara de Jim duas vezes e ele desligou uma vez. A última vez
que os ouvi, eles passaram das acusações aquecidas para os frios
argumentos lógicos. Dado que eram as duas pessoas mais inteligentes que
eu conhecia, essa conversa demoraria um bom tempo.
— Ela descuidou da sua segurança, —eu disse. — Poderia te matar
agora, enquanto você está na varanda comigo.
— Se eu não revidasse.
— Você revidaria?
— Estou pensando nisso. —Hugh estava observando Elara sentada
no galho, balançando os pés. A expressão dele ainda era sombria, mas
havia algo mais suave em seus olhos. Algo quente.
Curran girou em nossa direção, longe dos arbustos.
— Você deveria revidar, —eu disse a Hugh. — Ninguém gosta de
perdedores.
Conlan explodiu dos arbustos e atacou as costas do pai. Curran rugiu
dramaticamente e caiu na grama.
— Era isso que você queria? —Perguntou Hugh.
Eu sabia o que ele quis dizer. Ele estava me perguntando sobre
Curran e Conlan, sobre a casa com a floresta nos fundos, amigos e uma
casa que nunca ficava quieta por muito tempo.
— Sim.
— Você sabe que Nimrod lhe daria todo o poder do mundo. Se o
aceitasse, ele se viraria do avesso para agradá-la. Construiria um palácio
para seu filho. —Uma nota de amargura escorregou em sua voz, mas ele
a controlou rapidamente. Tarde demais, eu percebi.
Eu o entendia. Não importava o que Hugh fizesse, por mais que
tentasse ou quão bom ele fosse, meu pai nunca o valorizaria tanto quanto
ele me valorizava. Eu era sangue e Hugh não. Mas a verdade era maior
que isso, Nimrod também nunca me valorizaria.
— Mas todos os presentes dele viriam com uma corrente em volta do
meu pescoço.
— Verdade.
— E de qualquer maneira, não é assim que Roland me vê. Ele não
me vê como uma filha a quem pode ensinar. Ele me vê como uma espada
que poderia usar. De vez em quando ele me toca de um jeito errado e eu
o corto, então ele fica surpreso e satisfeito com o fato de que a espada é
afiada, mas nunca passará disso.
— Você não sabe disso, —disse Hugh.
— Eu sei. Ele tentou morar perto do meu território e a cada pouco
dias me provocava. Roland não conseguiu se conter. É por isso que o
castelo que ele construiu, agora é uma ruína queimada. Você e eu temos
isso em comum, nenhum de nós conseguirá um relacionamento com ele
da forma que desejamos. Roland quer que eu substitua você. O que ele
ainda não percebeu é que eu não tenho o treinamento ou a mente que
você tem. Se ele me desse um exército, eu não teria ideia do que fazer
com ele.
— Sua tia fez bem o suficiente, —disse Hugh.
— Minha tia estudou estratégia e táticas de guerra desde que tinha
idade suficiente para ler. Eu sou uma assassina solitária. É o que faço
melhor.
— Pelo o que eu ouvi, suas estratégias e táticas funcionaram muito
bem quando você lutou com Roland.
— Ele formou suas tropas em dois retângulos e as marchou direto
para as muralhas da Fortaleza. Eu nem acreditei.
Hugh fez uma careta. — Ele andou de carruagem?
— Hum-rum. Era de ouro.
Hugh fechou os olhos por um segundo.
— Andou em cima daquilo lento como um inferno.
— Bem, é claro que foi lento. É de ouro. Sabia que ele queria colocar
uma estátua na proa?
Eu pisquei. — Como em um navio?
— Sim. —Hugh parecia ter acabado de morder um limão podre. —
Ele queria colocar o rosto de sua mãe com olhos de diamante e asas feitas
191
de electrum . Asas abertas. —Hugh levantou as mãos, as pontas dos
dedos voltadas para trás.
— Na forma aerodinâmica. —Eu sorri.
— Eu disse que ele precisaria de um elefante maldito para puxá-la.
— Ele desistiu?
— Não, —disse Hugh. — Da última vez que eu soube de alguma
coisa sobre isso, ele estava construindo um par de cavalos mecânicos
movidos a magia para puxar a carruagem.
— Deixe-me adivinhar, platina? Com crinas de ouro?
— O que você acha?
Nós rimos.
— E quanto a você?
Ele ergueu as sobrancelhas. — E quanto a mim?
— O que acontecerá quando tudo for perdoado, e ele precisar de
você de novo?
Hugh olhou para Elara novamente. — Isso já aconteceu.
E ele disse não. Hum. Isso deve ter custado muito a ele. Meu pai era
tudo para Hugh: pai de criação, comandante, deus ... E Hugh se afastou
disso. Ele poderia estar mentindo, mas parecia falar a verdade. A maneira
triste e resignada do seu olhar me dizia que ele falava a verdade.
— Todos os filhos dele se voltam contra ele eventualmente, —eu
disse.
— Eu nunca fui filho dele.
Revirei os olhos. — Ele te criou, te ensinou, te encorajou.
— Ele fodeu com a minha cabeça.
— Ele fode com a cabeça de todo mundo. Talvez fodeu a sua cabeça
mais do que fez com ou outros, mas por tudo que sei, você é filho dele.
Está fodido o suficiente para ser.
Ele deu uma risada curta.
— Encare isso, —eu disse a ele. — Somos irmãos danificados.
Vimos Curran perseguindo Conlan.
— Como foi? —Perguntei.
O rosto de Hugh se deprimiu. Eu não precisava elaborar a pergunta.
Ele sabia exatamente o que eu estava querendo saber.
— Era como tirar o sol, —disse ele. — Eu ainda tento alcançar o
nosso vínculo por puro hábito, mas só encontro uma ferida crua lá, cheia
de toda a merda que eu fiz.
— Sinto muito, —eu disse a ele.
— Não sinta. Estou livre. Ainda sou um bastardo, mas agora sou um
bastardo por mim mesmo. Ninguém me diz o que fazer. —Ele olhou para
Elara e sorriu. — Bem, ela diz de vez em quando, mas vale a pena.
— Ele daria o mundo a você se voltasse rastejando, —eu disse,
imitando sua voz.
— Eu tenho Elara. Tenho nossos soldados e nosso povo para
proteger. Tenho um castelo para administrar. Não quero o mundo. Só
quero que esse pequeno canto esteja seguro.
— Ir à guerra contra um dragão não vai exatamente manter seus
Cães de Ferro em segurança.
Ele olhou para mim. — Não, mas isso irá ajudá-la.
— Você não precisa pagar suas dívidas antigas, Hugh. Não comigo.
— Apenas aceite a ajuda, —ele rosnou. — Você precisará dela.
— Ah, eu aceito. Trezentos Cães de Ferro e Hugh d'Ambray no
comando, seria uma louca se recusasse.
— Garota esperta.
— Mas está tudo bem entre nós, Hugh. Falo sério.
— Assim, tão fácil? —disse ele.
— Não. Refleti bastante sobre isso. Eu o Perdoei mais por mim
mesma do que por você. Você não é o único com sangue em suas mãos e
cadáveres em suas memórias. Eu também matei sob o comando de outro.
Não perguntava o porquê. Voron apontava e eu matava.
— Você era criança, —disse ele.
— E você teve suas emoções manipuladas através de um vínculo de
sangue. Acredito que é o que chamam de circunstâncias atenuantes.
Mesmo tendo essas circunstâncias não ajuda a superar o que somos, não
é? Não posso mudar o que fiz. Só posso seguir em frente e tentar fazer
melhor. Eu sempre serei uma assassina. Eu gosto disso. Você sempre será
um bastardo. Há uma parte de você que gosta de chutar uma porta e
jogar um cabeça decepada sobre uma mesa.
192
— N'importe quoi .
Fiz uma anotação mental para pedir a Christopher para traduzir. Ele
falava francês fluentemente.
— Que dupla formamos, —disse Hugh.
— Hum-rum. Sentados aqui, deprimidos na varanda, enquanto um
dragão invade cidades e o nosso pai passa por uma crise de meia idade
com carros de ouro ...
Hugh sorriu, e então seu rosto ficou sombrio.
— Faça uma coisa por mim, —disse ele.
— O que?
— Não faça com a garota o que foi feito comigo.
— A vontade de Julie é dela. Nunca a forcei a fazer nada e não
planejo isso.
Elara escorregou do galho e pulou na grama.
— Você não é tão má quanto pensa. —Hugh se levantou e caminhou
na direção de sua esposa.
Eu terminei meu chá.
— Você confia nele? —Minha tia perguntou no meu ouvido.
— Confio no olhar dele quando ele fala sobre meu pai. Como se
estivesse dividido entre amá-lo e querer estrangulá-lo.
— Você pode estar sendo insensata.
— Se eu estiver, vou lidar com isso, —disse a ela.
— Falou como uma rainha. —Minha tia passou os dedos
fantasmagóricos pelos meus cabelos. — Eu finalmente te transformei
em uma.
— Pena que meu tempo está acabando.
— Estou ouvindo um tom de derrota? —Erra ergueu as
sobrancelhas.
— Não, estou sendo realista. Podemos não ter tropas para combater
Neig, e definitivamente não podemos enfrentar ele e meu pai ao mesmo
tempo. O dragão nos odeia, mas odeia ainda mais Roland.
— Você está me pedindo para convencer seu pai a fazer
uma aliança?
— Se você puder, seria bom.
Minha tia ficou quieta. Encarar meu pai custaria muito a ela.
— Você está me pedindo muito, criança.
— Estou ouvindo um tom de derrota?
Ela bufou.
— Como planeja convencer seu pai? —Ela perguntou. —
Orgulho? Ameaças?
O que Roman havia dito? Os pais adoram brincar de heróis. — Não.
Eu vou deixar que seja você que o convença. Se eu for procurá-lo, papai
verá isso como uma oportunidade em se vigar de mim e continuará na
ofensiva. Ele quer ser um herói. Quer entrar, salvar o dia, ser admirado e
amado por isso. Então, pretendo me resignar com o meu destino.
Sombrio, sem esperanças e em um poço escuro de desespero.
— Então seu pai será o seu único raio de esperança na
escuridão?
— Sim.
Ela me estudou. — Você se tornou manipuladora.
— Você desaprova?
— Não. Estou surpresa.
— Bom. Papai ficará surpreso também. Passei muito tempo
convencendo-o de que não sou sutil. Ele acha que eu não tenho
inteligência para manipulá-lo, então não esperará por isso.
— Você não é nem um pouco sutil. Ser sutil para você é se
resignar em quebrar os ossos de alguém ao invés de matá-lo.
— Estou aprendendo.
Ela esperou, querendo algo mais de mim.
— A palavra de uma Sharratum tem valor, —murmurei. Foi o que
Erra me disse quando exigiu que eu jurasse nunca governar a terra que
reivindiquei. — Não domino, mas sou rainha. Eu reivindiquei a cidade.
Todos precisam da minha proteção. Eles nem sabem disso, mas precisam
que eu permaneça viva. —Minha voz parecia morta. — Então eu vou
mentir, trapacear e desistir do meu orgulho. Farei o que for preciso para
manter todos seguros. Não sou mais dona de mim mesma.
Erra se aproximou de mim. Seus braços se fecharam ao meu redor.
Eu não conseguia sentir o corpo dela, mas senti sua magia correndo no
meu corpo.
— Pobre criança, —ela sussurrou, sua voz muito suave. — Tentei
mantê-la longe o máximo que pude.
Senti vontade de chorar, mas não consegui. Eu não podia me dar ao
luxo de chorar. Havia coisas que eu tinha que fazer.
Curran pegou Conlan e o jogou no ar. O sol refletiu neles e vi uma
aura emanando dele, um leve brilho. Meu coração bateu no meu peito. A
humanidade em Curran já estava muito longe.
— Você o encorajou a se tornar um deus, —eu sussurrei em seu
abraço.
— Sim.
— Nunca vou te perdoar por isso.
— Você mudará de ideia com o tempo.
Não, não vou. Eu queria sentir raiva e gritar com ela, mas foi Curran
quem tomou a decisão final. Eu o amava tanto, mesmo agora que o
verdadeiro Curran se afastava cada vez mais de mim.
Um barulho seco ecoou em minha mente, um som discreto. Alguém
tinha acabado de testar minhas proteções. Afastei-me de Erra, levantei-
me, peguei Sarrat e fui para a porta.

*******
O GUERREIRO PAROU NO FIM DA RUA. Ele usava armadura escura,
segurava um elmo na mão esquerda e uma corrente de ouro na direita.
Caminhei em direção a ele, a espada fumegando.
Parei logo antes da minha Proteção. Ele ficou do outro lado.
O homem era jovem, talvez vinte, com olhos azuis claros como duas
lascas de gelo no inverno, figuras tatuadas desciam pela lateral do rosto
de pele clara e longos cabelos loiros puxados para trás com um cordão
dourado. A corrente na mão estava presa a um medalhão com uma pedra
preciosa do tamanho de uma noz que parecia puro fogo vermelho preso
sob o vidro.
— Meu senhor faz um convite, —disse ele, seu inglês muito formal.
— Venha comigo, e ele lhe mostrará o poder de seu reino.
Se meu pai mentiu para mim, quando eu chegasse no reino de Neig,
poderia ficar presa lá para sempre ou ser morta.
Atrás de mim, Curran atravessava a rua. Eu não precisava olhar para
saber que agora ele estava correndo. Se Curran me alcançasse, me
impediria de fazer isso. Precisávamos saber quantas tropas Neig tinha.
Sem ir até lá, estávamos cegos.
— Kate! —Curran gritou.
Meu pai não iria querer que eu ficasse presa no reino de Neig, à
mercê do dragão. Ele e eu tínhamos nossos problemas, mas ele odiava
Neig. Havia muita raiva em seus olhos quando Roland falou sobre o
dragão. Ele não mentiria para mim, não sobre isso.
Curran estava quase me alcançando.
— Confie em mim, —eu gritei. — Vou cuidar disso.
Eu teria um inferno por isso mais tarde. Desfiz a Proteção e estendi
minha mão esquerda. — Lidere o caminho.
O guerreiro pegou meus dedos e pressionou a pedra contra a minha
mão.
Curran estava em cima de nós. Ele pulou, cobrindo os últimos seis
metros.
O mundo ficou branco e então meu estômago tentou ir para um
lado, enquanto o resto do meu corpo ia para o outro. A luz branca
desapareceu. Meu corpo apertou. Eu me virei e vomitei no chão rochoso.
Entrada impressionante. Majestosa e imponente mais do que isso impossível.
Eu me endireitei. Paramos em uma ponte de pedra, atravessando um
desfiladeiro profundo. À nossa frente, um castelo se erguia. Construído
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com pedra escura, não possuía pináculos elaborados e trabalhos
ornamentais de palácios ingleses vitorianos ou castelos alemães. Não, era
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uma fortaleza de pedra quadrada Anglo-Normanda , com paredes grossas
e uma grande quantidade de torres enormes arranhando o céu. À
esquerda, uma cordilheira curvava-se para baixo e para longe na névoa.
À direita, um vale largo e profundo se estendia, limitado no horizonte por
mais montanhas. Ao longe, ao pé daquela outra cordilheira, um lago
refletia o sol e brilhava. O ar cheirava a pinheiros. Uma corrente fria
deslizou contra a minha pele e eu tremi.
‘No reino dele, você é um fantasma ...’ Bem, esse fantasma deveria ter
trazido um casaco.
— Por aqui, —o guerreiro me disse.
Eu embainhei Sarrat. Descemos a ponte de pedra até os portões
enormes. Não conseguia ver o sol, mas o céu estava claro.
— Há quanto tempo você serve Neig? —Perguntei.
— Desde sempre.
— E sua família? Você deixou alguém para trás?
Sem resposta.
— Você se lembra onde morava? Foi aqui na Geórgia? Foi na
Irlanda?
Sem resposta.
Chegamos aos portões.
— Tem certeza de que não se lembra da sua família? Você deve vir
de algum lugar. Qual era o nome da sua mãe?
Sem resposta.
Os portões se abriram e entramos no pátio. Um segundo par de
portões se abriu com a nossa aproximação. O soldado parou e apontou
para o portão. Eu estava sendo convidada a continuar o caminho
sozinha.
Caminhei pelas portas e entrei em uma sala do trono, iluminada por
globos de vidro penduradas nas paredes. O chão brilhava. À primeira
vista, parecia vidro, mas era ouro. Derretido e deixado esfriar até se
tornar uma superfície perfeitamente lisa que brilhava como um espelho.
Um riacho artificial serpenteava pelo chão em curvas suaves, com apenas
alguns centímetros de profundidade. Pedras preciosas cobriam o leito do
riacho, brilhando na água: rubis vermelhos, esmeraldas verdes, safiras
azuis, ametistas roxas, peridotos verde-claros ... Uma fortuna em joias
preciosas, lançadas ali como pedras de vidro no fundo de um aquário.
Um trono dominava a parede oposta, esculpido a partir dos ossos de
uma criatura enorme, na forma de um dragão de perfil. Uma pedra
vermelha do tamanho de uma laranja ocupava o local onde deveria ser o
olho do dragão. Parecia quente e impregnado de magia, como se estivesse
viva de alguma forma. Eu a toquei com a minha magia e a magia do
trono rebateu a minha. Uau. Era magia condensada, tão potente que
parecia um sol minúsculo.
A âncora. O bastardo arrogante colocou sua âncora bem ali, logo
depois da porta da frente.
Neig esperava por mim no trono, vestido com roupas de gala, a capa
de pele pendurada sobre a armadura, o torque dourado brilhante. À sua
esquerda, uma mesa comprida oferecia um banquete. Carne assada, pães
dourados, frutas, vinho. O aroma encheu minha boca de água.
— Deveria colorir a água em seu riacho de vermelho, —eu disse a
ele.
— Um rio de sangue? —Ele disse. Sua voz me envolveu, profunda e
vibrando com poder.
— Seria mais honesto.
— Mas você não seria capaz de ver a beleza das joias. —Ele indicou
a mesa com um movimento da mão. — Por favor. Sacie sua fome.
Boa tentativa. Hora do sarcasmo à moda Erra. — É sério?
Neig sorriu, as pontas de seus dentes afiados a mostra. A mesa
desapareceu. Está bem então.
Ele saiu do trono e se aproximou de mim. Eu tinha calculado a sua
altura antes por volta de um metro e noventa, dois metros. Errei por cerca
de quinze centímetros. Ele se elevava sobre mim.
— Quero que conheça os meus domínios.
— Ah, que bom.
Saímos da sala do trono para um corredor de enormes janelas em
arco.
— Você é um homem ou um dragão? —Perguntei a ele.
— Sou ambos.
— Mas como você nasceu?
— Foi há muito tempo. Eu não lembro. Alguns de nós nascemos
com garras, outros com mãos, mas somos todos dragões.
— O que são dragões?
— Uma raça antiga. Estávamos aqui quando os seres humanos se
arrastaram para fora da lama. Nós assistimos vocês tentarem andar de pé
e bater pedras umas contra as outras, em uma tentativa de fazer garras e
dentes.
Certo, certo. — Você não é tão velho assim.
Ele sorriu de novo. Pequenas faixas de vapor escaparam de sua boca.
Impressionante. Se eu estivesse com muito frio, eu poderia pedir para ele
soprar em minha direção.
— Por que quer conquistar? —Perguntei.
— Por que eu não faria?
— Trouxe-me aqui para me convencer a me unir a você. Até agora
está fazendo um trabalho terrível.
— Você é uma criatura interessante, filha de Nimrod.
— Meu nome é Kate Lennart. Não sou o que sou por ser filha do
meu pai.
— Mas usa o nome do seu marido.
— Eu escolhi esse nome. Decidi que queria usá-lo.
Suas sobrancelhas grossas se juntaram.
— Se não responder a minha pergunta, será uma conversa unilateral,
—eu disse a ele.
— Muito bem. Responderei sua pergunta. Quero conquistar porque
isso me agrada. Gosto de governar, gosto de possuir e gosto de ser
reconhecido como um poder supremo.
— Sua conquista custará centenas de milhares de vidas. Milhões.
— Vidas humanas.
— Sim.
— Sempre haverá humanos, —disse ele. — Nunca faltará.
Passamos do corredor para uma sala enorme. Prateleiras alinhadas
nas paredes de cinco metros. Livros enchiam as prateleiras, milhares e
milhares de livros: alguns encadernados em couro, outros guardados em
tubos, papiros, placas de argila, livros chineses de bambu, longas tiras de
pele de animal protegidas por capas de madeira ... Acima de tudo, uma
claraboia derramava um raio de sol no meio da sala sem tocar os volumes
preciosos. Se meu pai visse isso, se mataria de inveja.
— Você leu alguns desses?
— Sim.
— Eles foram escritos por humanos?
— A maioria deles.
— Então você conhece suas mentes. Sabe que cada humano é único.
Depois de matar um, nunca haverá outro exatamente igual.
Neig foi até a prateleira e puxou um livro pesado, encadernado em
couro e incrustado em ouro. A escrita na capa lembrava o alfabeto
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Ashuri , mas os antigos hebreus escreviam em pergaminhos, não em
livros encadernados. Neig foi até a janela, a abriu e jogou o livro lá fora.
— Espere! —Eu me joguei em direção a janela e vi o livro mergulhar
e desaparecer na nevoa em algum lugar bem abaixo.
— Cinquenta humanos escreveram esse livro, —disse Neig, e
apontou a biblioteca com um movimento da mão. — Minha coleção é
menos magnífica agora?
Suspirei.
— Por que se importa? —Ele perguntou. — Você é mais poderosa
que eles. É mais rápida, mais forte, melhor em todos os sentidos. Eu a
assisti matar. Você gosta disso.
— Mato para me proteger e proteger aos outros. Não começo a
violência, eu respondo a ela.
— Por que não matar por prazer?
— Porque encontro prazer de outras maneiras. Quando vejo pessoas
prosperando e curtindo suas vidas, isso me faz feliz.
Ele ficou intrigado comigo e continuou sua caminhada. Eu o segui.
— Por quê? —Ele perguntou.
— Porque quando as pessoas prosperam, o mundo é mais seguro.
Existem prazeres no mundo com os quais você nunca sonhou. Por que
você lê livros?
— Para entender aqueles que desejo subjugar.
— Besteira. Você está preso aqui, em um lugar onde o tempo não
tem sentido, sem nada para fazer. Você lê porque fica entediado.
Ele riu. Todos os cabelos na parte de trás do meu pescoço estavam
arrepiados. O agudo e frio soco do alarme me atingiu no estômago. Nota
para mim mesma: evite fazer dragões rirem.
— Se você conquistar todos, a vida será entediante e vazia de todo
significado. Não haverá mais livros para ler nem conversas divertidas.
— Levará algum tempo para conquistar o mundo. Enquanto isso,
vou me divertir muito.
— Você já tentou andar entre as pessoas?
Saímos da biblioteca para outra sala grande. Montes de ouro
estavam encostados nas paredes. Moedas, pepitas, joias. Ele estava me
mostrando seu tesouro. Como era esperado.
— Sim, quando eu era jovem, —disse ele. — Vivi com humanos por
meio século. Aprendi que vocês são frágeis, estúpidos e facilmente
intimidados. Dada a chance, preferem lutar entre si do que se unir contra
uma ameaça. Eu nunca vi criaturas que se odeiam tanto.
— Então você terá uma surpresa, —eu disse.
— As coisas peludas e corrompidas que você lutou e matou, —disse
ele. — Meus caçadores de escravos.
— Os yeddimur.
— Cada um começou sua vida como um bebê humano. Cada um
inalou a fumaça do meu veneno. Agora eles são bestas, primitivas e sujas.
Eles não sentem nada, exceto raiva e fome. Eles se devoram uns aos
outros. Essa é a verdadeira natureza da humanidade. Eu simplesmente as
trago à superfície.
À frente, portas duplas se abriram diante de nós.
— Deixe-me mostrar meu poder, —disse ele.
Atravessamos a porta para uma varanda. O vale abaixo se espalhava
diante de nós, coberto por uma estranha vegetação azul. Eu apertei os
olhos.
Ele me passou uma luneta. Olhei através dela.
Guerreiros. Estavam empilhados um ao lado do outro como
sardinha. Quilômetros e quilômetros de guerreiros parados,
completamente imóveis.
Oh céus!
— Meu exército, —disse ele. — Nos meus domínios, não há tempo,
nem fome nem sede, a menos que eu queira. Aqui eu governo sem
contestação.
Eles formavam quadrados, dois, quatro, seis, vinte homens por fila.
Vinte por vinte eram quatrocentos. Quantos quadrados? Um, dois, três ...
— Eles hibernam até que eu os chame. No tempo do seu mundo eles
estão a milhares de anos esperando por minhas ordens, mas para eles esse
tempo é um piscar de olhos.
...Vinte e um, vinte e dois, vinte e três ...
— Seus músculos são treinados, suas habilidades são aperfeiçoadas.
Eles vivem em batalha em meu nome.
... Trinta e quatro ... Eu parei. Não tínhamos pessoas suficientes.
Mesmo se o Conclave colocasse todos os lutadores que tinham em
campo, não teríamos o suficiente.
Girei a luneta para a esquerda, em direção a algumas manchas
marrom-escuras, e vi currais cheios de yeddimur, empilhados uns sobre os
outros como enxame de abelhas. Uma horda esperando para ser
desencadeada.
— Como terei certeza que isso tudo não é uma ilusão?
— Não preciso mentir, —disse ele. — Qual seria o objetivo? Seria
uma decepção de curta duração. Você concordando ou não com a minha
proposta eu ainda vou colocar meu exército em campo. Preciso de
sustento para permanecer em seu mundo e estou pronto para a batalha.
Verás o tamanho da minha força quando a libertar. Nada a impediria de
me atacar se eu mentisse.
Milhares e milhares de tropas. Náuseas se contorciam através de
mim. Atlanta estava condenada. — Você cozinha pessoas e devora seus
ossos.
— Sim. É mais rápido e mais eficiente do que devorá-las inteiras.
Eventualmente, consumirei o suficiente e não precisarei mais.
— Quantas pessoas morrerão para alcançar esse eventualmente?
— Restará o suficiente da humanidade, —disse ele.
Ele se aproximou de mim. Seus dedos descansaram nos meus
ombros.
— Você odeia seu pai, —disse ele. — Todo mundo sabe disso. As
pessoas comentam.
— Eu também amo meu pai.
— Famílias são complicadas. Amei meu pai, mas o matei e tomei
suas terras. Estou lhe dando a chance de fazer o mesmo. Preciso de um
guia para o seu mundo. Você pode ser minha rainha. Está repleta de
magia poderosa. Eu posso provar.
Ele se inclinou ao meu lado. O vapor de sua boca roçou minha
bochecha. Minha pele se arrepiou.
— Nossos filhos seriam poderosos além da medida. Eles seriam reis
e rainhas.
— Sou casada e já tenho um filho.
— Mantenha ele. Mantenha seu marido como um brinquedinho. —
Sua voz profunda rolou sobre minha pele. — Vou ajudá-la a matar seu
pai. Nós governaremos o mundo juntos.
— E o que acontecerá com Atlanta?
Ele tocou meu cabelo. — A cidade é sua para fazer o que quiser. Um
presente de casamento, se quiser. Só preciso dos escravos.
— Escravos?
— Os humanos. Podemos negociar, se você quiser. Quantos deseja
manter? Vou te dar os mais belos.
— Ugh. Você é realmente desumano.
— Riquezas, poder, prazer da conquista, prazeres da carne, prazeres
da mente. O que quer, Kate Lennart?
— Quero cortar a sua cabeça.
Ele riu de novo. Suas mãos flexionaram meus ombros como se seus
dedos tivessem garras. — Vou lhe dar três dias para decidir. Três dias de
paz e contemplação. Depois de três dias, com a primeira onda de magia
que chegar, vou atacar.
Ele tinha tropas suficientes para atacar a cidade em vários lugares ao
mesmo tempo. Não tínhamos muralhas, fortificações para detê-lo e
soldados suficientes para responder a ataques simultâneos. Estaríamos
lutando em todos os lugares e eu estaria cruzando Atlanta como uma
galinha com a cabeça cortada, tentando apagar os incêndios. Precisava
definir as regras desse compromisso antes que ele fizesse.
— Encontre-me em três dias nas ruínas do castelo do meu pai.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Mostre-me a totalidade do seu exército. Deixe-me contemplá-la.
Eu vou te dar minha resposta então.
— Concordo, —ele prometeu, sua voz rolando através da vastidão
de seu castelo. O vapor escapando de sua boca.
— Essa é a minha deixa para ir embora.
— Fique comigo por mais um tempo. Vou lhe mostrar mais das
minhas maravilhas.
— Eu já vi o suficiente.
— Mas você não me viu.
Ele se afastou e deslizou a capa de pele dos ombros. Sua armadura
caiu no chão. Neig estava diante de mim nu, grande, musculoso e com
uma ereção do tamanho de um campeão.
Sério? O que ele pensava que ia acontecer aqui? ‘Eu sei que você me
odeia, porque sou um assassino em massa desumano, mas eis aqui a minha
ereção gigante. Isso fará você trair tudo o que acredita e ama.’
Cruzei os braços no peito. — Isso deveria me convencer?
— Não, —ele disse. — Mas isso sim.
Ele correu e deu um mergulho na varanda. No meio da queda
catastrófica seu corpo rasgou. Uma forma colossal surgiu livre, negra
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como obsidiana , com uma terrível cabeça de réptil em um pescoço
comprido e duas asas que se abriram. Meu coração bateu forte no peito
enquanto todos os meus instintos gritaram para eu correr, me esconder e
esperar que ele não me encontrasse.
Ele era maior que Aspid. A envergadura de uma asa a outra
superava os maiores aviões que eu já vi.
O dragão mergulhou e passou pela varanda em direção ao chão. Um
momento depois sua cabeça empinou acima do parapeito, dois olhos
ardentes olhavam diretamente para mim. Ele subiu no ar, subindo direto,
seu olhar fixo em mim. Levou cada grama de minha vontade para ficar
onde estava.
Sua boca se abriu, revelando presas de pesadelo.
‘No reino dele, você é um fantasma ...’
O fogo saiu de sua boca em uma torrente ardente e tomou conta de
mim. As chamas me cegaram, passando por cima do meu corpo, mas
sem causar danos.
Esperei até ele terminar. Quando as chamas acabaram, eu estava
exatamente no mesmo lugar, meus braços ainda cruzados no peito.
Os olhos do dragão me estudaram e, pela primeira vez, vi uma
pitada de incerteza em suas profundezas.
Forcei demonstrar indiferença e ao mesmo tempo, na minha mente,
foquei em voltar para casa.
O mundo ficou branco. Pousei na grama, pisquei e vi meu pai, com o
rosto torcido de fúria.
— SHARRIM! O QUE VOCÊ ESTAVA PENSANDO?

*******
TUDO DOÍA. Não era uma dor aguda, mas meu corpo inteiro doía. Cada
célula do meu corpo palpitava.
— VOCÊ TEM ALGUM PROBLEMA EM OUVIR, SHARRIM?
ME RESPONDA! SHARRIM?
Ocorreu-me que ele esperava que eu emitisse algum tipo de som. —
Não.
— VOCÊ PODE FALAR? ENTENDE AS PALAVRAS QUE EU
PRONUNCIO?
— Sim. —Eu me sentei. Estava sentada na grama do lado de fora do
nosso quintal. Curran, Hugh e Elara estavam em pé a poucos metros de
distância. Pareciam gritar, mas por algum motivo eu não os ouvia.
— REPITA DE VOLTA PARA MIM O QUE EU LHE DISSE
SOBRE NÃO IR AO REINO DE NEIG.
— Você me proibiu de ir, —entoei.
— E O QUE VOCÊ FEZ?
— Eu fui.
— ENTÃO DELIBERADAMENTE ME DESOBEDECEU.
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— Sim, Mufasa .
— PAREÇO ESTAR NO HUMOR PARA PIADAS? —Meu pai
trovejou.
Quando não se tem certeza do que dizer, ganhe tempo. Eu tinha um
papel a desempenhar nesse drama, e tinha que pensar exatamente em
como representar esse papel para empurrar meu pai ao limite. Isto é,
assumindo que a minha tia não iria se acovardar.
— EU LHE DEI UM CONJUNTO CLARO DE INSTRUÇÕES. FIZ
MAIS, EXPLIQUE-LHE POR QUE ERA NECESSÁRIO TER
CUIDADO.
Curran começou a correr e pulou. Uma parede invisível pulsou em
vermelho brilhante e o rebateu, derrubando-o.
— Você colocou uma Proteção de sangue ao nosso redor, só para
poder gritar comigo e não ser incomodado?
— SIM!
Claro que ele fez. — Continue então.
Deitei-me na grama. Era agradável e macia. Vamos, Rosa do Tigre.
Não me deixe esperando. Se Erra não aparecesse, teria que repensar minha
estratégia rapidamente.
Ele se inclinou sobre mim. — Você entrou no covil do dragão.
Poderia ter morrido.
Ah! Era por isso todo esse escândalo. — Estou viva. Você ainda está vivo,
pai. Não seja tão dramático.
— ESTAVA PREOCUPADO COM VOCÊ, FILHA INGRATA!
— Você ficou preocupado com sua própria sobrevivência.
Meu pai bateu a mão no rosto. — Por que deuses? Por que eu? O
que fiz para merecer esse castigo?
— Invadir, saquear, manipular, impôs sua vontade aos outros ...
— Matar seus filhos, —disse a voz gelada da minha tia atrás de
nós.
Eu quase aplaudi.
Meu pai ficou completamente imóvel. Torci o pescoço e vi Erra. Ela
passou pela Proteção de sangue como se não estivesse lá.
— Então, é verdade, —disse ele, as palavras antigas líricas e cheias
de dor. — Você me traiu.

— Você fez uma Ordem de assassinos para me matar. —


Havia muita coisa na voz da minha tia: dor, raiva, surpresa, tristeza. Isso
quase partiu meu coração.
Ela poderia fazer isso. Se eu tinha que engolir meu orgulho e lidar
com um homem que queria matar meu filho, ela poderia lidar com ele
também.
— Eu nunca planejei usá-los para isso.
Erra levantou a mão. Meu pai ficou calado.
— Destruímos nossa família, irmão, —disse ela. — Nós a
arruinamos.
— Estávamos travando uma guerra.
Ela balançou a cabeça. — Morrer me deu uma perspectiva
diferente. Nós destruímos Shinar. Não foram os invasores. Fomos
nós. Na nossa dor deixamos a raiva nos cegar. Destruímos tudo
o que nossa família havia construído. Olhe para nós agora.
Veja o nosso legado. Mãe chora por nós.
Meu pai desdenhou. Era quase tão impressionante quanto minha tia
fazendo isso. Aparentemente, o sarcasmo, o desprezo corriam na família.
— Nossa mãe cometeu muitos de seus próprios pecados.
— Essa criança, —Erra apontou para mim, — é nossa melhor
esperança para o futuro do nosso sangue. Como você pode?
Roland levantou o queixo.
— Sim. Eu sei, —ela disse. — Você a vinculou. Realmente tem
tanto medo da morte?
— Eu fiz isso por amor, —ele falou.

— Você fez algo que não pode ser desfeito para um bebê
ainda no útero. Você trava guerra contra bebês não nascidos
agora, Nimrod? Está tão desesperado assim?
Levantei-me e toquei a Proteção de sangue. A magia agarrou meu
pulso. Por um momento a Proteção ficou visível, uma cúpula translúcida
de vidro vermelho. Ela segurou por meia respiração, rachou e quebrou,
desmanchando-se no ar vazio, e o rosto enfurecido de Curran me
cumprimentou.
É agora ou nunca. — Nada disso importa, —eu disse. — Eu vi o
exército de Neig. Ele tem milhares de guerreiros. O suficiente para
invadir a cidade e matar todas as pessoas que moram aqui. Em seu covil
há uma horda gigantesca de yeddimur aguardando serem usados. Ele
captura crianças recém-nascidas e depois as envenena com seu veneno
até que elas se transformam nessas criaturas. Ele me disse que são bestas
corrompidas e primitivas, que conhecem apenas raiva e fome e que
comem uns aos outros. Ele disse que essa é a verdadeira natureza da
humanidade. Ele é pior do que você, pai. Você deseja governar. Ele quer
nos exterminar.
Poderia ouvir um alfinete cair.
— Não tenho aliados. Estou sozinha. Somos apenas eu e a cidade.
Nenhuma ajuda chegará. Mas eu sou In-Shinar e não vou me curvar a um
dragão. Lutarei pela humanidade, mesmo que ninguém esteja comigo.
Eu sou a Sharratum desse lugar. Sou responsável por esta cidade. Não
desonrarei meu sangue e minha família.
Curran franziu o cenho para mim. Não ouse estragar meu discurso.
Apertei todos os botões que meu pai tinha.
— Neimheadh chegará em três dias. Atlanta vai queimar. Nós
vamos morrer. Então você será o próximo, pai. Fique em paz.
Fui embora e não olhei para trás.

*******
SENTEI NOS DEGRAUS DA VARANDA e segurei um copo de chá
gelado. O gelo derretera há muito tempo, então o que eu tinha era
principalmente água com sabor de chá. Meu pai e minha tia ainda
discutiam em nosso gramado. Eles colocaram a Proteção de volta em
busca de privacidade, suponho, o que não lhes serviu muito bem, porque
eu ainda podia ver seus rostos, os acenos do seus braços e os
apontamentos de dedos, e isso era bastante divertido.
Curran estava sentado à minha esquerda. Hugh se inclinou contra o
poste da varanda à minha direita. Conlan estava no porão, cercado por
metamorfos ursos e guardado por Adora e Christopher. Meu pai teria que
passar por mim e Curran para alcançá-lo, e se isso acontecesse,
Christopher o levaria para fora de lá enquanto os metamorfos ursos
seguravam Roland.
Dali e Doolittle foram embora depois que eu desapareci. Éramos
apenas nós novamente, família e amigos. Bem, nós, Hugh e Elara.
Meu pai cerrou os punhos. A luz explodiu na cúpula da proteção,
escondendo-o de vista. A luz desvaneceu-se, revelando minha tia, com os
braços cruzados no peito. Ela revirou os olhos e disse alguma coisa.
Meu pai se virou, levantando os braços.
— Corrigindo, —disse meu marido. — Há outra pessoa que pode
deixar seu pai tão louco quanto você.
— Nunca o vi tão humano como agora, —eu disse.
— Você não está sozinha, —disse Hugh, com a voz plana. — Aquele
foi um belo discurso. Pensei que você tinha ficado louca por um segundo.
— Nós precisamos do exército dele. Meu discurso foi só uma
preparação para os argumentos de minha tia. Se alguém puder convencê-
lo, ela o fará.
Vimos o drama se desenrolar na cúpula. Minha tia começou uma
palestra. Meu pai beliscou a ponta do nariz com a mão, olhando para
baixo.
— Vamos, seu idiota egoísta, —Hugh rosnou baixinho.
Na extremidade do gramado, Julie havia se acomodado, um olhar
determinado em seu rosto. Derek esperava com ela, seu rosto impassível.
— Quantas tropas Neig tem? —Perguntou Curran.
— Eu parei de contar quando chegue em treze mil.
Curran não disse nada. Mil não seria um problema. Cinco mil seria
difícil. Eles estavam blindados, então teríamos que arrancá-los da
armadura para matá-los, enquanto cuspiam fogo em nós. Dez mil eram
impossíveis.
Dez mil soldados, mais soldados do que a Guarda Nacional tinha
antes da Mudança. E eu tinha certeza que Neig tinha ainda mais que isso.
A cúpula da Proteção se desmanchou. Meu pai virou-se para nós.
Minha tia caminhou até os degraus da varanda.
— Seu pai concordou em se aliar com você para enfrentar
o dragão.
— Aha. —Esperei a bomba cair.
— Ele quer ver Conlan, —disse Erra.
— Não, —disse Curran.
— Quero segurar meu neto, —disse Roland, — e ele tem que saber
que sou seu avô. Esse é o meu preço.
Tudo em mim se rebelava com a ideia de colocar Conlan em
qualquer lugar ao alcance desse homem.
Não poderíamos sobreviver sem meu pai. Não era apenas o exército
dele. Era ele. Precisávamos do poder e da magia de Roland. Ele lutou
com um dragão antes e venceu.
Eu senti como se estivesse descendo uma escada em caracol. Cada
degrau era um pedaço da minha vida que eu lutaria até o fim para
manter. Meus amigos. Meus relacionamentos. Cada degrau tinha um
nome ou alguma concessão que eu não estava disposta a fazer. Meu
orgulho. Minha dignidade. Minha privacidade. Julie. Derek. Ascanio.
Ghastek. Rowena. Jim. Dali. Curran ...
Lutaria por cada um deles. Rastejaria, me seguraria na borda com as
minhas unhas, mas no final, eu seria obrigada a me render em nome do
bem maior. Eu era a Sharratum, e se pudesse encontrar alguém para tirar
esse peso de mim, eu o daria em uma fração de segundo.
O nome desse degrau em que eu estava agora era: ‘Nunca deixar meu
pai tocar em meu filho’.
Deixei minha magia sair. Ela saiu de mim como um manto. Eu
decidi não me preocupar mais em escondê-la.
O poder fluiu de mim, ramificando, esticando, alcançando. Tornei-
me o centro de Atlanta, o coração da terra que reivindiquei. Estava
sentada nos degraus da varanda, mas poderia muito bem está sentada em
um trono.
Meu pai sentiu isso. Os olhos dele se estreitaram. Ele piscou e todo o
seu ser parecia ter recebido um leve brilho dourado. Não era mais uma
conversa entre Roland e eu. Essa era uma conversa entre Nova Shinar e
Atlanta. Dois reinos rivais negociando uma breve paz.
— O que você oferece, In-Shinar? —Eu perguntei.
Os olhos do meu pai se estreitaram ainda mais. — Todo o poder do
meu exército e o meu.
— Você lutará com Neig até que ele esteja morto. Honrará nossa
aliança durante a guerra.
— Sim.
— Kate, —disse Curran.
— Não faça isso, —Julie gritou do outro lado do gramado.
Era isso. Isso era a última coisa que me faltava abrir mão. Eu estava
prestes a colocar meu filho nas mãos de meu pai.
— A palavra de Sharrum é lei, —eu disse. — Jure para mim, pai, que
você colocará meu filho de volta em meus braços depois de segurá-lo.
— Eu juro, —disse ele.
Havia linhas que meu pai não cruzaria. Eu tinha que acreditar nisso.
— Atlanta aceita sua aliança. Traga meu filho para mim, —eu disse.
Minha voz carregou, deslizando através das paredes como se fossem
feitas de ar. Eu sabia que Adora me obedeceria.
Julie xingou.
Houve um barulho de luta na casa. Um momento depois, Adora
abriu a porta, colocou Conlan no meu colo e deu um passo para trás, com
a mão na espada. O sangue escorria por sua têmpora esquerda, mas ela o
ignorou.
Conlan piscou para a luz. Meu bebê. Meu pequeno doce bebê. Os
olhos cinzentos de Curran e meu cabelo castanho.
Apontei para o meu pai. — Este é seu outro avô.
— Vovô?
— Vovô. Meu pai. O grande rei.
Meu pai se agachou ao meu lado. Nesses poucos segundos, ele de
alguma forma se tornou tudo o que um avô deveria ser: sábio, gentil,
caloroso e cheio de amor. Se eu o conhecesse quando criança, confiaria
nele instantaneamente.
Cuidadosamente, passei Conlan para ele.
Suas mãos se fecharam ao redor do meu filho.
Todos no gramado esperaram, prontos para explodir. Curran parou
meio agachado, um fio de cabelo longe da violência. Hugh arreganhou os
dentes. Adora focou no meu pai como se nada mais existisse no mundo.
Apenas minha tia parecia relaxada, ao lado de Roland.
Meu pai se endireitou e levantou Conlan.
Meu filho piscou.
Os olhos de Roland estavam cheios de admiração. Um sorriso
estendeu seus lábios, um sorriso caloroso e real que chegou até os olhos
dele.
— Você é uma maravilha ... —Ele disse suavemente.
Minha tia sorriu.
— Você vê o Selvagem? —Roland perguntou a ela.
— Sim. Não tem idéia do que ele pode fazer com isso. Ele
não é a coisa mais linda que você já viu?
— Ele é. Muito bem, minha filha, —disse meu pai. — Bem feito. Ele
é brilhante como uma estrela nos céus.
Merda.
O mesmo olhar bateu nos rostos de Hugh e Julie. Eles já tinham
visto essa expressão antes.
Meu pai gostava de coisas brilhantes e crianças talentosas. Era o
potencial, o atraia como um ímã. Ele me disse uma vez que Hugh tinha
sido um meteoro brilhante que ele pegou e forjou em uma espada. Se
Hugh era um meteoro, meu filho era uma supernova. Conlan era como
nada mais que eu já tinha visto.
Meu pai queria meu filho. Ele o queria mais do que qualquer coisa
no mundo. E se ele o levasse, o criaria como um príncipe. Daria tudo a
ele e isso seria terrível.
— Conlan, —eu chamei. — Venha para a mamãe.
Meu filho se torceu nas mãos de seu avô.
Roland hesitou. Curran inclinou-se para a frente alguns centímetros.
Meu pai deu três passos à frente e depositou Conlan nos meus
braços. Eu o abracei.
— Temos três dias então, —disse meu pai. — Possivelmente mais, já
que o ataque virá com a primeira onda de magia após os três dias. Eu irei
discutir a nossa estratégia antes disso.
Ele desapareceu em uma explosão de luz dourada.
Todo mundo gritou comigo de uma vez.
Abracei Conlan para mim. — Vovô é mau, —eu sussurrei para ele.
— Não vou deixá-lo te pegar. Não vou.
Esse era o único preço que eu não estava disposta a pagar.
A onda de magia foi embora, a tecnologia se reafirmando mais uma
vez.
Curran entrou em colapso.
Capítulo 17
ATRAVESSEI O ESPAÇO ENTRE NÓS em uma fração de segundo.
Ele gemeu, suas pálpebras fechadas tremulavam. Passei meus braços em
volta dele, apertando Conlan, desejando tudo o que eu tinha para manter
Curran vivo. Não desapareça. Por favor, não desapareça.
— Curran, olhe para mim. Olhe para mim.
Eu não o sentia sólido, seu corpo se tornando insubstancial. Meu
Deus. Isso tinha acontecido. O equilíbrio dentro dele havia mudado. Curran
era mais deus do que homem agora, e a parte do deus não poderia existir
sem a magia. Eu estava perdendo-o.
— Curran! —Tirei a magia de mim e enviei uma explosão para ele.
Seus olhos cinzentos abriram e focaram em mim.
Eu o abracei e beijei seus lábios, desesperada. — Fique comigo.
Fique comigo, querido.
Os músculos dele sob meus dedos ganharam substância.
— Eu te amo. Fique comigo.
— Estou aqui, —disse ele. —Estou aqui. Apenas me pegou de
surpresa, só isso.
— Você não deveria ter comido o último animal, —disse Erra acima
de nós.
— Obrigado, isso ajuda muito. —Ele me beijou de volta. — Você
pode parar agora, querida. Estou bem.
Cortei a corrente de minha magia. A dor se foi também. Nem percebi
que estava sentido dor até que parou.
Curran agarrou minha mão. Eu o puxei de pé. Ele passou o braço em
volta de mim. Quando chegamos à cozinha, Curran já se movia por
conta própria. Ele sentou em uma cadeira. Eu mantive minha mão em
seu ombro. Não queria que ele desaparecesse.
— Roland quer o garoto, —disse Hugh.
— Claro que ele quer o garoto, —rosnou Curran. — Ele vai nos
esfaquear pelas costas na primeira chance que tiver.
Os dois olharam para mim. — Eu sei, —disse. — Não tínhamos
escolha. Sei que é ruim aceitar a ajuda de Roland, mas Neig é pior. Neig
é morte e genocídio. Roland quer governar humanos. Neig quer nos
devorar.
A cozinha estava silenciosa.
— Sabemos que Roland vai se voltar contra nós, então planejaremos
nossa defesa, —disse Curran. — Nós não vamos aceitar essa aliança às
cegas.
E mesmo se fôssemos surpreendidos, sempre haverá a opção nuclear.
Meu pai não poderia viver sem mim.
— Precisamos resolver o problema de Neig, —disse Hugh.
— E suas muitas tropas, —acrescentei.
— Sem contar com os yeddimur, —disse Curran. — Se eu fosse ele,
usaria os yeddimur primeiro e depois, quando estivéssemos abatidos,
usaria as trompas para finalizar o ataque.
— Parece que foi essa a estratégia que usaram para nos atacar em
Kentucky. Yeddimur são difíceis de matar. Podemos lutar por horas antes
de alcançarmos o exército deles, —disse Hugh.
— Podemos ganhar essa guerra? —Elara perguntou.
Os olhos de Curran ficaram frios. — Não temos escolha.
— Se conseguirmos que Roland cumpra a estratégia, —disse Hugh.
— E isso é um grande ‘se’.
— Ele vai cumprir, — Erra assegurou.
— Nós sabemos onde Neig irá começar o ataque? —Derek
perguntou.
— O antigo castelo do meu pai, —eu disse. — Eu disse a ele que
queria ver seu exército. Essa é a única área em torno de Atlanta grande o
suficiente para ele reunir todas as suas tropas. Eu queria evitar ataques
em várias frentes.
— Com alguma sorte, ele fará o que Roland fez, —disse Curran.
— Organizar suas tropas em retângulos e colocá-las contra nós? —
Perguntei.
— Hum-rum. Ele provavelmente está acostumado a contar com sua
vantagem numérica.
— E fogo, —eu disse. — Não se esqueça do fogo.
— Ele sopra fogo? —Julie perguntou.
198
— Como um jato de napalm inflamado.
— Você pode segurá-lo se ele estiver nos limites do seu território? —
Perguntou Hugh.
— Possivelmente.
Curran se inclinou para trás. — Precisamos convocar outro
Conclave.
— O problema é que não podemos matá-lo, —eu disse.
— Quem? —Perguntou Curran.
— Neig. Quando ele percebe que está em perigo de morte,
simplesmente chama sua âncora e retorna para o seu covil.
Um sussurro de movimento soou no corredor e Yu Fong entrou na
cozinha, vestindo jeans, camiseta, e um casaco com capuz marrom claro.
Ele não parecia muito bem, se movia com uma ligeira rigidez, mas sua
cor era boa.
— Tentei te contar antes, —disse ele. — Pode haver uma maneira de
matá-lo.
Todo mundo olhou para mim. — Saiman, —eu disse a eles. —
Saiman veio aqui e realizou um ritual que me permitiu conversar
brevemente com Yu Fong quando ele estava em coma. Cada covil de
dragão tem uma âncora. É a posse mais preciosa do dragão, seu maior
tesouro, estimado acima de todos os outros. Os dragões derramam sua
magia nele e é o fundamento do reino onde o dragão faz seu covil. Mas
não pode ser destruído.
— Como eu tentei lhe dizer, —disse Yu Fong, — não precisamos
destruir a âncora. Se conseguirmos roubá-la por um tempo, o reino não
responderá aos comandos de Neig. Ele ficará preso aqui e agora.
Todo mundo fez uma pausa, refletindo sobre isso.
— Você conseguiria? —Perguntou Hugh.
— Não. Eu sou outro dragão. Neig me sentiria assim que eu entrasse
em seu reino. Mesmo se eu pudesse, não faria. A âncora é uma coisa de
grande magia que não pode existir fora de seu reino por muito tempo. Ela
procurará retornar. Será necessário um poder enorme para contê-lo. A
tentação para mim seria grande demais. Se eu tocar nessa âncora, ela me
puxará para o reino de Neig, e não tenho intenção de deixar este mundo.
Meu lugar é aqui.
— Se não pode ser você, quem poderia então? —Perguntou Curran.
— Você tem um livro, —disse Yu Fong. — Sobre pessoas pequenas
que se escondem no covil de um dragão e roubam sua âncora. Alguém
pequeno e insignificante.
— Sou pequena e insignificante, —disse Julie.
— Não, —eu disse.
— Sim, —ela me disse. — Kate, sou pequena, sorrateira e silenciosa.
Tenho uma grande reserva de magia e sei como usá-la.
— A criança tem razão, —disse Erra.
— Todo mundo é necessário, —continuou Julie. — Você é a In-
Shinar. Curran tem que liderar os Mercenários e inspirar os metamorfos.
Hugh tem que liderar os Cães de Ferro, Elara tem que absorver a magia
das bruxas, e Yu Fong não pode fazê-lo porque também é um dragão. Eu
posso fazer isso.
— Eu vou com ela, —disse Derek.
— Teria que ser feito durante a batalha, quando o louco estiver
ocupado, —disse Yu Fong. — Eu sei o que o ocupará.
Eu levantei uma sobrancelha para ele.
— Eu, —ele disse. — No momento em que ele me ver, atacará.
Ganharei algum tempo para vocês.
— Há uma falha neste plano, —eu disse. — Como Julie chegará ao
reino do dragão?
— Você guardou o fragmento da presa dele? —Yu Fong perguntou.
— Sim.
— Isso funcionará como uma chave. Vou abrir o caminho. O
momento terá que ser perfeito. —Yu Fong se inclinou para frente, seu
olhar em mim. — Repito, uma âncora quando removida sempre
procurara voltar para o seu reino de origem. Ela não pode existir fora de
lá. Exigirá grande poder para manter a âncora aqui. E não sabemos quão
vasto é o reino de Neig. Não sabemos onde ele esconde a âncora.
O telefone tocou. Julie atendeu. — Sim?
Ela estendeu para mim. — Ghastek.
Peguei o telefone com uma mão, mantendo a outra em Curran. —
Por favor, me diga que tem alguma coisa.
— Sim, —disse Ghastek.
— Eu já vou. —Desliguei e me virei para Julie. — A âncora é o olho
do seu trono de dragão. É um rubi do tamanho de uma laranja,
localizada na primeira sala em que você entra depois de atravessar a
ponte levadiça. Ele é um idiota arrogante. Acredita que não precisa
escondê-la. Sem heroísmo, Julie. Entre, saia, traga-me a âncora e eu a
segurarei aqui.

*******
GHASTEK NÃO QUERIA ARRISCAR trazer pessoas de fora da Nação
para os estábulos dos vampiros. Então, ele ordenou que o yeddimur fosse
transferido para uma das salas laterais. A besta estava sentada em uma
gaiola, olhando para nós com seus olhos de coruja. Em algum momento
essa coisa tinha sido um bebê humano. Atlanta tinha muitos bebês.
Ghastek, Luther, Saiman e Phillip haviam se arrumado em torno de
uma mesa cheia de anotações. Algumas anotações tinham anéis de
xícaras de café.
Curran cheirou o ar. Seu lábio superior subiu, mostrando a ponta dos
dentes. O yeddimur fedia. Apertei a mão de Curran. Ele ainda estava aqui
comigo. Até agora, a tecnologia não conseguiu roubá-lo de mim.
Atrás de mim, Hugh fez uma careta para o yeddimur. Ele insistiu em
vir. Nós deixamos Elara no Covens. Agora estávamos todos diante do
yeddimur, Luther, Ghastek, Phillip e Saiman. Os quatro especialistas
pareciam bastante convencidos.
— Nós descobrimos como o yeddimur é feito, —disse Phillip,
empolgado.
— Veneno, —Saiman me disse.
— Veneno de dragão, —Luther corrigiu. — Aplicado logo após o
nascimento, provavelmente inalado.
— Isso ainda precisa ser determinado, —disse Phillip.
— Concentrem-se, —eu disse a eles, antes que iniciassem outra
sessão de discussão.
— É como um cão, —disse Ghastek. — Para todos os efeitos, atua
como um. Um cão precisa discernir comandos.
— No entanto, de acordo com todas as anotações de d'Ambray, os
guerreiros nunca fazem gestos, —disse Luther.
— Nós teorizamos que os comandos são subvocais, —disse Saiman.
— Eles têm ouvidos extremamente eficientes, sensíveis o suficiente para
ouvir um sussurro.
— Eu já sabia disso, —disse Hugh.
— Como isso nos ajuda? —Perguntei.
— Esperem. —Ghastek apertou uma tecla no telefone. — Tragam o
indivíduo B.
As portas duplas da parede se abriram e dois aprendizes empurraram
uma segunda gaiola, também contendo um yeddimur.
— Onde você conseguiu o segundo? —Perguntou Curran.
— Beau Clayton, —disse Saiman. — Os policiais dele pegaram um.
Os aprendizes uniram as duas gaiolas, trancando-as juntas. Eles
agarraram uma alça de aço, empurraram-na para o lado e o portão entre
as gaiolas se abriu. O yeddimur à esquerda se apressou e sentou-se em seus
quadris ao lado do yeddimur à direita.
— São como nós. São animais sociais, —disse Luther.
— Eles ficam felizes em compartilhar a gaiola, —disse Phillip. —
Dormem juntos e comem juntos.
— Então nos perguntamos: se são controlados por comandos
subvocais, ou seja, comandos que utilizam sons, qual seria exatamente o
som que provocaria o oposto do controle? —Disse Saiman.
Ghastek virou-se para Luther. — Se você quiser.
Luther assentiu, chegou atrás da mesa e pegou um conjunto de gaitas
de foles.
— Você toca gaita de foles? —Perguntei.
— Não, mas descobrimos por experimentação, que a gaita é o
instrumento que apresenta o melhor efeito. —Luther enfiou o bocal da
gaita na boca e soprou. Uma nota penetrante gritou pela sala.
Os yeddimur gritaram.
Luther soprou nos canos. Uma cacofonia de sons encheu o espaço.
Curran colocou as mãos nos ouvidos. Os yeddimur rosnaram e rasgaram
um ao outro. Pele e sangue voaram.
Luther parou.
Os yeddimur deram mais alguns golpes um no outro e se separaram,
cada um se escondendo em seu próprio canto das gaiolas unidas.
— Tentamos mais de cinquenta sons diferentes, —disse Ghastek. —
As gaitas de foles são as mais eficientes. Nós testamos quinze vezes e
todas as vezes obtivemos a mesma resposta deles.
De repente, as gaitas de foles na pedra druida fizeram total sentido.
— O som os enlouquece, —disse Luther.
— Isso me deixa louco, —disse Curran, seus olhos brilhando com
ouro.
Olhei para ele e Hugh. — Poderíamos usar isso?
— Nós poderíamos, —disse Hugh.
— Se pudéssemos fazer o som alto o suficiente, —disse Curran.
Ghastek olhou para Phillip. O mago sorriu. — O Colégio de Magos
oferece trinta e sete especialidades. Uma delas é a amplificação de som e
luz. Contanto que vocês encontrem gaiteiros, amplificaremos o som alto
o suficiente para acordar os deuses.
— Isso é maravilhoso, —eu disse a eles, e quis dizer isso.
Tudo o que tínhamos a fazer agora era reunir a cidade e montar um
exército para enfrentar Neig. Tínhamos três dias para fazê-lo. Tinha que
ser o suficiente.
Atlanta se uniria. Não estávamos sozinhos. Éramos muitos:
metamorfos, necromantes, bruxas, magos, Mercenários ... Chegaríamos em
todas as formas e tamanhos, de todas as épocas, de todas as cores
humanas, de todas as variações de magia, e disso extrairíamos nossas
forças. Seríamos surpreendentes e inesperados, e estaríamos unidos.
Atlanta resistiria. Ela sempre resistiu.

*******
— BEBÊ, —Curran sussurrou no meu ouvido.
Abri meus olhos. Eu estava tão quente e confortável, envolvida nele.
Contanto que ficássemos na cama assim, debaixo dos lençóis, nada
poderia dar errado.
A magia estava em alta. Era o quinto dia. Finalmente, tivemos uma
pausa de sorte e, após uma curta onda de magia no primeiro dia da nossa
linha do tempo de três dias, a tecnologia permaneceu por três dias e
quatro noites. A mudança aconteceu enquanto estávamos acordados, e
Curran permaneceu sólido dessa vez. A tecnologia, como magia,
inundava o mundo com várias intensidades. Uma forte onda de
tecnologia poderia varrê-lo para longe de mim. Vivi esses dias em um
estado de paranoia constante.
O resto foi um turbilhão de negociações, explicações, demonstrações
e formação de alianças. Entre Curran e eu, provavelmente tínhamos
dormido cerca de doze horas nas últimas setenta e duas, mas ontem à
noite, depois que as escavadeiras finalmente saíram do campo e a última
preparação foi feita, finalmente fomos dormir, em uma tenda, nos
arredores do campo de batalha. Martha e Mahon levaram Conlan para
que pudéssemos descansar. Nós estávamos sozinhos.
Neig estava chegando.
Abracei Curran. Ele me beijou. Nós compartilhamos uma
respiração. Eu o beijei de volta e, de novo e de novo, seus lábios, sua
mandíbula raspada, seu rosto. Seu cabelo tinha crescido durante a noite
em uma juba emaranhada, e eu passei meus dedos por ela.
Ele me puxou para mais perto, nossos corpos deslizando juntos com
facilidade e prática. Ele beijou meu pescoço e meus lábios. Por três dias
fui a Sharratum, precisei ser. Eu me encontrei com o prefeito e o
governador, como parte da delegação do Conclave. Cobrei favores.
Prometi ajuda ao céu e à lua. Mas agora eu era Kate e o beijei com uma
necessidade desesperada. Ele respondeu como se tivesse sido incendiado
e mal podia esperar para queimar.
— Esta não será a última vez, —disse ele.
— Não se eu puder evitar, —eu disse a ele.
— Prometo a você, —disse ele, sua voz baixa, quase um rosnado. —
Esta não será a última vez. Você confia em mim?
— Com tudo que sou.
— Não será a última vez, —ele jurou.
Fizemos amor, quente e selvagem. Então nos levantamos, nos
limpamos, nos vestimos e saímos da barraca.
À nossa frente e atrás de nós, tendas ladeavam os campos limpos em
ambos os lados da estrada. Um mar de tendas. O sol mal nascera acima
do horizonte e, sob a luz recém-nascida, o mundo parecia fresco. Peguei
Sarrat e uma outra espada que sempre carregava e caminhei para o leste
até o ápice da colina baixa que se estendia de norte a sul. Erra já estava
lá, olhando o campo de batalha.
Estendia-se diante de nós, rolando para longe. Meu pai havia
limpado tudo isso dois anos atrás, porque planejava construir os Jardins
Aquáticos lá, o lugar favorito de suas memórias de infância.
Normalmente, a vegetação já deveria ter se recuperado, mas quando meu
pai queria que algo ficasse limpo, ele o fazia. Era um amplo campo
retangular, com três quilômetros de largura e dez quilômetros de
comprimento. Os restos irregulares de uma torre de pedra, ainda negros
de fuligem, estavam no meio dela, tudo o que restava do castelo de meu
pai. Nós o deixámos lá. Segundo Andrea, era um local útil para as
balistas.
Olhei para a direita, onde as tropas estavam posicionadas. Uma
mulher estava lá, apontando algo e discutindo com o coronel da
199
MSDU . Os militares se juntaram a nós. A Guarda Nacional veio
primeiro. Os guardas não eram soldados em tempo integral. Na maioria
das vezes, eram mecânicos, professores, policiais, funcionários de
escritórios. Enquanto reuníamos a cidade para a batalha, muitos deles
foram embora. No segundo dia, a Tenente-general Myers, uma mulher
negra, em seus cinquenta e poucos anos, entrou em nossa sede na
Associação. Eu estava tentando ler o documento complicado que os
Druidas haviam elaborado, descrevendo os termos de sua cooperação, e
finalmente joguei o papel na cara de Drest e lhe disse que ou ele lutava
conosco ou poderia lidar com Neig sozinho depois que o dragão
queimasse Atlanta até chão e fosse atrás dos Druidas, e que não tinha
tempo para suas maquinações.
Ele xingou e saiu em disparada, e então ela estava lá. Nós nos
entreolhamos por um longo momento, e finalmente ela disse: — O que
você precisa?
Sem condições. Sem barganha. Apenas ‘o que você precisa?’ Eu disse
o que precisávamos, e ela providenciou.
Nós precisávamos de tudo. Tínhamos tudo o que havia agora: o
MSDU, a Guarda Nacional, os voluntários humanos, os Mercenários, a Guarda
Vermelha, o Bando, a Nação, a Ordem, os Magos, os Covens, os Volhvs e
outros pagãos ... Até mesmo os Druidas, e era por isso, que se eu
apertasse os olhos com força, poderia ver pequenas pedras brancas
colocadas em ambos os lados do campo.
Estávamos tão prontos quanto poderíamos estar.
Não seria suficiente, a menos que meu pai aparecesse. Ele veio me
visitar durante a curta onda de magia no primeiro dia para discutir a
estratégia. Ele se sentou à mesa da cozinha enquanto Hugh, Curran e
Erra tentavam explicar as coisas para ele em dois idiomas. A certa altura,
Roland declarou que estávamos complicando demais, e então Hugh
desenhou figuras em pedaços de papel, tentando explicar. Meu pai havia
entendido a estratégia até o final, mas se ele iria cumpri-la era uma
incógnita.
— Acha que o pai vai aparecer? —Perguntei a ela.
— Ele vai, —disse ela.
Martha se juntou a nós, seguida por George, carregando Conlan. Eu
o tirei dos braços de George e abracei meu filho. Pensei em mandá-lo
para fora da cidade, escondê-lo em algum lugar, mas não adiantaria. A
magia de Conlan brilhava muito. Meu pai ou Neig o encontrariam e, se
eles não o encontrassem, outra pessoa faria. Para meu filho sobreviver,
tínhamos que triunfar.
Tudo estava em jogo.
O Clã Lobo começou a se posicionar em frente à colina, bem dentro
dos limites do meu território. A maioria de nossas forças já estava
posicionada estrategicamente, mas o Clã Lobo era a frente e o centro,
apoiado pelo Clã Chacal, pelos Mercenários da Associação e pela
Guarda Nacional. Eu podia ver a juba loira de Curran lá embaixo,
enquanto ele se movia entre as fileiras. Os metamorfos olhavam para ele
com reverência. Curran era o deus deles que veio à vida.
Os Magos estavam se arrumando na colina à esquerda. Um bom
número deles pareciam muito jovens. Phillip trouxe estudantes.
As bruxas esperavam na retaguarda, ladeadas pelos Cães de Ferro de
Hugh.
Andrea subiu a colina. — Ei você.
— Ei.
— Você e eu estamos bem? Ou vai continuar jogando na minha cara
a coisa de Hugh?
— Nós estamos bem. —Eu nem me importava mais com Hugh. —
Arrase com eles.
— Você ainda me deve um jantar.
— Ah, pelo amor de ... tudo bem. Quando e onde?
— Você sabe onde.
— Certo. Partenon, daqui a duas semanas.
— Combinado.
Ela levantou o punho. Eu bati com o meu. Andrea voltou para as
tropas.
Minha tia girou para mim, arreganhando os dentes em um sorriso
cruel. — Ele chegou.
Uma linha de luz branca atravessou o horizonte, do outro lado do
campo.
Abracei Conlan perto de mim. — Eu te amo. Mamãe te ama muito.
Ele se agarrou a mim, subitamente alarmado.
A luz rachou e cuspiu no campo uma linha de homens vestidos em
armadura. A essa distância, pareciam soldados de brinquedo.
200
Shofares soaram do nosso lado. O MSDU levantou um estandarte
vermelho, branco e azul, a Guarda Nacional adicionou a bandeira da
Geórgia e, em seguida, estandartes individuais foram levantados em
diferentes partes do campo: cinza do Bando, vermelho Borgonha da guarda
vermelha, preto da Associação e entre a tropa da Nação o meu próprio
estandarte verde-esmeralda com uma única faixa azul, o estandarte da In-
Shinar de Atlanta.
Outra linha de soldados saiu da luz. Outra. Mais outra. Eles
continuavam chegando.
Javier subiu a colina, seguido por dois outros Navegadores, cinco
mortos-vivos recém-criados ao seu lado. Javier inclinou a cabeça. — In-
Shinar.
— Está na hora, —disse minha tia.
Eu não queria deixar meu filho ir.
— Kate, —disse Erra.
Beijei a testa de Conlan e o devolvi à avó. Martha o beijou. — Você
seja bom para sua tia. A vovó tem que dar uns tapas em algumas pessoas
más.
George pegou Conlan e sorriu para ele. — Diga tchau para a vovó.
Os mortos-vivos se ajoelharam diante de mim. Cortei meu braço e
levantei Sarrat. Os olhos do morto-vivo brilharam em vermelho quando o
Navegador o soltou, liberando sua mente. Balancei minha espada e abri a
garganta do vampiro. Meu sangue se misturou com o do morto-vivo, e a
magia que deu vida a nós dois despertou. Puxei o sangue para mim,
moldando-o, deslizando-o sobre o meu corpo.
Os soldados continuavam chegando.
À esquerda, Barabas olhou para Christopher, depois para as filas de
soldados. O rosto de Christopher parecia calmo, mas os músculos de seus
braços nus estavam contraídos, tensos.
— Quer se casar comigo? —Perguntou Barabas, ainda olhando para
o exército que inundava o campo.
— Sim, —disse Christopher.
Barabas virou-se para ele. Christopher se inclinou e eles se beijaram.
Julie subiu correndo, ofegante. Ela usava uma placa reforçada no
peito, pintada de verde e ajustada precisamente ao seu pequeno corpo. O
modelo parecia familiar, mesmo que a cor não fosse. Eu já tinha visto
essa armadura antes nos Cães de Ferro. Hugh havia feito para ela.
— Onde você esteve? —Perguntei a ela.
— Despedindo-me, —disse ela.
Abri o segundo vampiro, misturei meu sangue com o sangue dele e
prossegui. A última gota se endureceu em minha pele. Eu me estiquei,
testando a armadura vermelho-sangue. Flexível o suficiente.
— Bom. —Minha tia aprovou.
Abri o terceiro vampiro e deixei o sangue revestir Sarrat e a outra
espada, fortificando ambas, dando a elas uma borda sobrenaturalmente
resistente e mais afiada.
— Suas lâminas, —eu disse a Julie.
Ela entregou sua lâmina e sua lança. Mergulhei as duas no sangue e
as selei com magia. Eu não conseguia fabricar armas duradouras como
meu pai. Ainda não. Mas essas durariam por toda a onda de magia, e
teria que ser suficiente.
— Você sabe onde estar e o que fazer? —Perguntei.
Ela assentiu.
— Eu te amo, —eu disse a ela. — Tome cuidado.
Ela me abraçou e desceu a colina, de volta para os Cães de Ferro.
Hoje seu lugar era com as bruxas e Elara.
Os soldados de Neig continuavam chegando. Eu não conseguia nem
estimar os números. Quinze mil? Vinte? Trinta? Uma massa escura
rodopiava na frente deles, atravessando as fileiras em direção a frente das
tropas do exército inimigo. Os yeddimur.
Curran pulou, atravessando a colina em três grandes saltos. Ele me
beijou.
— Boa caçada, —eu disse a ele.
— Você também.
Ele voltou a descer.
Olhei para os Magos. Phillip conseguiu reunir todos os gaiteiros de
Atlanta. Eles se aglomeravam atrás da fila de estudantes. O resto dos
Magos havia se movido para a esquerda. Phillip pegou meu olhar e
assentiu.
Olhei de volta para o campo de batalha e esperei.
Nick subiu a colina e parou ao meu lado. — Retiro o que eu disse, —
disse ele.
— Qual parte?
— Você não exagerou na ameaça do ataque.
— Espere, meu coração não vai aguentar. Isso significa que está
pronto para acreditar que seremos atacados por um dragão?
— Acredito no que vejo.
— Você é um idiota.
— É preciso ser um para conhecer outro. Tente não morrer, Daniels,
—ele disse.
— Você também. Com quem eu implicaria se você não estiver mais
aqui?
Uma luz ao longe brilhou em vermelho intenso. Os soldados se
separaram ao meio, permitindo que uma carruagem passasse entre eles.
Era enorme e ornamentada, e brilhava em ouro claro.
— Olha, é uma carruagem de ouro e não é a do papai, —eu disse a
Erra.
Ela me ignorou. Bem, eu achei engraçado.
A carruagem avançou, puxada por quatro cavalos brancos. Foi em
direção à frente das fileiras, passando pela torre arruinada do meu pai. A
voz de Neig rolou pelo campo de batalha. Não deveríamos ter ouvido
isso de tão longe, mas de repente a voz estava em toda parte, enchendo o
ar, nos tocando.
— EIS MEU EXÉRCITO.
As fileiras dos defensores de Atlanta ficaram paradas. Vimos filas e
filas de soldados, um mar de armaduras e armas.
— QUAL É A SUA RESPOSTA, FILHA DE NIMROD?
Puxei a magia da minha terra para mim e respondi, enviando minha
voz pelo campo de batalha.
— VOCÊ QUER ATLANTA? VENHA E PEGUE-A SE FOR
CAPAZ.

*******
O EXÉRCITO DE NEIG se moveu como um, avançando, passando por
ele, mirando nossas linhas. Os yeddimur começaram a correr
selvagemente, fervilhando como abelhas. Eles estavam vindo direto para
nós, confiando puramente em seus números. Eu quase gritei de alívio.
À esquerda, a voz clara de Phillip ordenou: — Preparem as esferas
de amplificação.
Magia moveu-se. A fila de estudantes levantou os braços. Uma esfera
transparente se formou acima de cada um deles, com um metro de
largura, girando e tremulando como o ar quente quando sobe acima do
pavimento aquecido.
Os yeddimur pairavam diante de nós, gritos excitados e estridentes,
enquanto corriam.
— Mantenham-se firme, —disse Phillip.
Setecentos metros até os limites do meu território.
Quinhentos metros.
Eu queria estar lá embaixo, no campo, na linha de frente com os
metamorfos e Curran.
Trezentos e cinquenta metros.
Yu Fong apareceu e ficou à minha direita sem dizer uma palavra.
As tropas de balistas de Andrea dispararam uma saraivada de flechas
enfeitiçadas. Explosões verdes brilhantes perfuraram a tropa de
yeddimur, mas havia muitos. A intenção não era pará-los, era apenas
atordoá-los. Andrea queria conservar as flechas enfeitiçadas.
O enxame de bestas continuou chegando. Por trás deles, os soldados
de Neig marchavam como uma avalanche imparável de aço.
Duzentos e cinquenta metros.
— Senhoras, senhores, —disse Phillip. — As gaitas de foles, por
favor.
Um uivo estridente das gaitas de foles respondeu ao pedido de
Phillip. Eu perguntei a Phillip o que eles tocariam, e ele me disse que era
201
‘Bloody Fields of Flanders ’. Era uma velha marcha de gaita de foles,
composta na Primeira Guerra Mundial. Mais tarde, tornou-se outra
202
música, ‘Freedom Come-All-Ye, ’ uma história de uma nação que amava
mais a liberdade do que a guerra.
Erra estremeceu ao meu lado.
Nick fez uma careta.
Duzentos metros. Os yeddimur estava quase em cima de nós.
— Comecem, —Phillip gritou.
As esferas ficaram paradas. As gaitas de foles ao nosso lado
subitamente ficaram quase silenciosas, enquanto as esferas de
amplificação sugavam seu som. Um momento depois, um som
ensurdecedor atingiu os yeddimur.
O enxame parou, desmoronando sobre si mesmo.
— Continuem tocando, —disse Phillip, com a voz otimista. —
Continuem tocando. Alunos, continuem a projetar. Todos estão fazendo
espetacularmente. Tenho o privilégio de trabalhar com um grupo tão
talentoso.
O enxame de yeddimur se despedaçou. Aqueles na frente e no meio
rasgavam uns aos outros, aqueles na parte de trás se viraram e atacaram
as tropas de soldados da linha de frente de Neig. Uma luta eclodiu no
meio do exército de Neig.
Um grito áspero de ânimo veio através de nossas fileiras.
As tropas de Neig se separaram, fluindo ao redor das linhas
envolvidas na luta com os yeddimur, como um córrego dividido ao meio
por uma rocha. Eles se aproximavam das margens do campo e
continuaram seu avanço, cada vez mais perto das pedras dos Druidas.
Mais perto.
Mais perto.
Quase lá.
Estavam a cem metros da fronteira de nossos limites quando o chão
sob as duas colunas de soldados cedeu. Centenas de homens desabaram
nas trincheiras gêmeas. Nós as cavamos com escavadeiras e explosivos
nos últimos três dias. As trincheiras tinham três metros de profundidade e
vinte e cinco metros de largura e engoliram por inteiro as colunas de
soldados que avançavam.
Uivos de dor subiram pelo ar, quase cobrindo o som das gaitas de
foles. Enormes tentáculos negros e brilhantes chicoteavam, saindo das
trincheiras, puxando os soldados próximos para dentro delas.
— Que diabos é aquilo? —Nick perguntou.
— Não queira saber. —Roman estava no comando das trincheiras.
Os soldados de Neig tentavam se afastar das trincheiras, indo mais
longe para os lados do campo, quase para o limite das árvores dos dois
lados.
A floresta no lado esquerdo estourou. Corpos enormes e peludos
rasgaram homens de armaduras, empurrando-os para as trincheiras,
direto para a morte que chicoteava seus tentáculos lá dentro. O Clã
Heavy chegou. Os guerreiros de Neig revidaram, mas os metamorfos
ursos tinham massa e impulso como vantagem.
À direita, vampiros saíram correndo da floresta, cortando a outra
coluna. A maré dos soldados de Neig diminuiu. Cortamos ao meio e os
sangramos. Mas havia ainda muitos. Muitos.
Minutos se passaram. Os metamorfos ursos e os vampiros
massacraram os extremos das duas colunas das tropas de frente de Neig.
O sangue encharcava a grama.
Neig saiu de sua carruagem. Merda.
Estendi a mão e toquei a mão de Nick. — Veja.
Neig avançou, seu manto peludo fluindo atrás dele. Seu corpo se
abriu, liberando a escuridão interior. Ele ondulava, solidificando,
crescendo, expandindo, construindo sobre si mesmo. Um dragão preto
apareceu no campo, elevando-se sobre a linha de batalha, tão grande que
minha mente se recusava a acreditar que era real.
A boca de Nick ficou aberta.
Os soldados de Neig correram para os lados, se afastando do dragão,
mas as linhas de frente, lutando com os yeddimur enlouquecidos, não
tinham para onde ir.
O réptil colossal abriu a boca. Uma torrente de fogo atingiu o
emaranhando contorcido de yeddimur e seus soldados. Eles
desapareceram no fogo, sombras escuras engolidas pelo inferno branco.
Neig mergulhou no campo como um lança-chamas colossal,
queimando tudo em seu caminho. Limpou o bloqueio. Custou-lhe os
yeddimur e uma boa parte de seus soldados, mas agora o campo estava
limpo e estávamos ferrados.
Nick fechou a boca. — Ele vai abrir caminho. Preciso ir para baixo.
Nick saiu correndo.
As enormes asas de Neig se abriram.
— Recuem! —Gritei para Phillip.
As gaitas de foles tocaram a última nota. O Clã Heavy se soltou e
começou a correr, galopando em nossa direção. No outro lado, os
mortos-vivos corriam para os limites.
Levantei meus braços para os lados, reunindo a magia para mim,
moldando-a em um escudo. Eu já tinha feito isso antes. Segurei o ataque
do meu pai quando ele tentou chover fogo e pedras na Fortaleza. Eu não
podia fazer nada sobre os soldados de Neig, a magia deles era muito
pouca e insignificante, mas Neig era enorme, cheio de magia e possuía
um objetivo bem definido. Se Neig pensava que estava prestes a nos
fritar, teria uma surpresa.
As asas de Neig bateram uma vez, duas vezes, e ele subiu ao ar,
disparando para cima.
O Clã Heavy estava correndo por suas vidas. Mais rápido, desejei.
Mais rápido.
Neig desceu do céu e incendiou a floresta a esquerda, circulou e
incendiou a floresta a direita.
Os mortos-vivos saíram correndo de lá, mas o Clã Heavy era lento.
Dois metamorfos ursos ficaram para trás. O fogo os pegou a vinte metros
da fronteira. Seus corpos peludos desapareceram, instantaneamente
queimados. Neig disparou para cima, ganhando velocidade.
Espero que a minha magia seja suficiente.
O dragão desceu como um falcão impressionante, e cuspiu fogo. Eu
levantei o escudo da magia. O fogo rebateu contra ele e um pressão
imensa caiu sobre mim. Cerrei os dentes e segurei.
Aqui. O que acha disso, seu imbecil?
Neig subiu mais alto, virou-se no ar e se jogou na minha barreira.
Ao meu redor, as pessoas se esquivaram por instinto.
O dragão bateu no meu escudo. O impacto reverberou através dos
meus ossos. Parecia que meu esqueleto inteiro estalou. Rosnei e segurei o
escudo no lugar. Ele saltou de volta para o céu, girou e bateu de novo. O
escudo segurou.
— Preparem-se, —minha tia rugiu.
O campo estava livre. Todos os yeddimur estavam mortos. Não havia
nada entre nós e os guerreiros de Neig, exceto cadáveres incendiados
O exército de Neig atacou.
*******
FOGO.
Garras.
Fogo.
Fogo.
Batendo a toda velocidade.
Fogo.
Meu nariz estava sangrando. Minha respiração vinha em suspiros
irregulares, como se eu tivesse corrido uma maratona com um peso de
cem quilos nos ombros.
Abaixo de mim, a luta se enfureceu. O perigo de cair nas trincheiras
empurraram o exército de Neig para um campo de matança de
quinhentos metros. Contornar as trincheiras do lado de fora não era uma
opção, Neig havia incendiado a floresta. As árvores queimavam como
tochas. Fuligens e fumaça enchiam o ar, misturando-se com sangue e
calor. As balistas enfeitiçadas zumbiam, lançando flechas explosivas na
massa de tropas, seguidos pelos estrondos constantes de explosões.
Andrea tentou acertar Neig, mas ele era rápido demais.
203
As tropas de Neig trouxeram catapultas e atiraram pedras de fogo
contra nós. Eu segurei os três primeiros ataques, então eles mudaram de
alvo e miraram na frente de sua própria linha, logo fora do meu limite de
proteção. As pedras rolaram contra o nosso povo, e eu não podia detê-los
e segurar Neig ao mesmo tempo.
Estávamos presos em quinhentos metros de inferno na Terra, e as
catapultas de Neig nos transformariam em mingau. Os Magos lançavam
seus feitiços e os soldados de Neig cuspiam fogo de volta. As bruxas
convocavam maldições, os pagãos evocavam seus deuses, os militares
batiam nos guerreiros com armas mágicas avançadas, e as tropas de Neig
continuavam chegando, imparáveis e intermináveis. Sempre havia mais.
O banho de sangue se enfureceu. Gritos, uivos e rosnados encheram
o ar. Os tocadores de gaita de foles há muito tempo pararam de tocar.
Agora apenas a voz da batalha podia ser ouvida. Ela pairava sobre nós
como um barulho opressivo, a canção da morte, da dor e da fúria.
Onde diabos estava meu pai?
Eu não sabia quanto tempo havia passado, mas tinha que ter sido
horas. O sol atingiu seu ápice. Meu mundo havia encolhido para Neig e
magia. Eu queria estar lá embaixo, no campo de batalha, mas Neig estava
de olho em mim e em Yu Fong ao meu lado, nós éramos um alvo muito
tentador. Tudo que eu podia fazer era segurá-lo.
Neig estava cansando. Eu também. Eu não tinha certeza de quanto
mais poderia aguentar.
Uma metamorfa lobo em forma de guerreiro apareceu na minha
visão, coberta de sangue e entranhas de alguém. Ela pegou um balde de
água ao meu lado e virou, derramando-o sobre seu rosto monstruoso. —
Não iremos aguentar muito mais, —ela rosnou na voz de Desandra.
Neig mergulhou em mim, desencadeando uma torrente de fogo. Eu
segurei de volta.
— Aguentem mais um pouco, —eu disse a ela.
— Se você tem um ás na manga, agora é a hora.
Um morto-vivo correu até mim. — Estamos sofrendo baixas
pesadas, —afirmou na voz de Javier. — A Tenente-general Myers
está morta. Ghastek nos informou que em mais meia hora,
ficaremos sem vampiros.
Neig gritou e bateu no meu escudo. Dei um passo para trás, rosnei e
joguei a magia de volta para ele.
Meu pai não estava vindo
Tínhamos que recuar. Se havia alguma esperança para alguém
sobreviver, tínhamos que recuar.
Outra explosão de fogo. Droga, esse maldito dragão nunca se cansa?
Um grupo de soldados de Neig voou no ar. Curran emergiu,
sangrento, enorme em sua forma de guerreiro, parecendo um demônio.
Os metamorfos reuniram-se ao seu redor, mas até ele parecia exausto.
Roland não viria. Ele nos traiu mais uma vez.
— Kate, —Desandra rosnou. — Preciso de uma decisão.
O vampiro pairava aos meus pés.
À esquerda, Julie e Derek, ambos cobertos de sangue, esperavam.
Perdemos. Se recuássemos agora, pelo menos algumas pessoas
sobreviveriam.
Abri minha boca, pronta para ordenar todo mundo recuar.
Magia explodiu no outro extremo do campo. O céu acima de nós
escureceu. Rochas enormes incandescentes caíram das nuvens e
esmagaram as tropas no campo diante de nós.
Oh meu Deus!
A rocha no chão rachou e se abriu, enxames brilhantes de abelhas
verdes saíram das rachaduras, picando os guerreiros de Neig. As pedras
no chão derreteram, fervendo em um lodo brilhante. O lodo subiu,
agarrando as tropas restantes. Gritos foram ouvidos enquanto seus corpos
começavam a derreter. Um enorme buraco se abriu no centro das forças
de Neig e, através dele, vi meu pai.
Eu esqueci de respirar.
Nimrod montavam uma carruagem brilhante, puxada por cavalos
mecânicos. Sua jovem e bela aparência estava cheia de magia tão
poderosa que doía olhar para ele. Ele brilhava, intenso e afiado, como um
segundo nascer do sol. Atrás dele, um exército se levantou.
Minha tia apareceu ao meu lado. — Olhe! Este é o seu
verdadeiro pai! Este é o irmão que eu não vejo há eras. Olhe,
criança!
Meu pai levantou a mão, uma serpente de pura magia saiu dela e
serpenteou seu caminho através do campo de batalha, devorando tudo
em seu caminho.
Ele veio. Ele não me abandonou. Meu pai veio lutar.
Neig girou no ar. Um grito terrível saiu das mandíbulas do dragão.
— Seu pai é gostoso! —Desandra disse, surpresa.
Eu me movi.
Neig mergulhou no meu pai.
Eu me virei para Yu Fong. — Faça agora.
Yu Fong arrancou um pedaço de dente de suas roupas e o usou para
riscar no ar uma linha vertical, do mais alto que pôde alcançar até o chão.
Um buraco brilhante se abriu no tecido do mundo. Derek sorriu,
arreganhando os dentes. Julie entrou na brecha e ele a seguiu. O brilho
desapareceu.
Yu Fong jogou o dente de lado. Um calor avassalador emanou de
sua pele, o ar fluindo dele em correntes transparentes.
Eu me afastei.
O corpo de Yu Fong se abriu. Uma criatura surgiu, oito metros de
comprimento, um musculoso corpo leonino coberto de escamas. Uma
enorme cabeça coroada com uma juba vermelha estava em um pescoço
grosso, mas ágil e escamado, o rosto uma mistura de dragão e leão. Uma
cauda serpentina chicoteou.
A besta, que costumava ser Yu Fong, atacou no campo. Seu corpo
explodiu em chamas, fogo vermelho o cobrindo como um manto. Os
guerreiros de Neig se separaram como água, deixando-o passar.
Do outro lado do campo, Neig se afastou do meu pai.
— Eu sou o Senhor do Fogo! —O Suanni rugiu, rasgando os
guerreiros como se ele fosse um cometa. — Enfrentem-me, covardes!
Peguei minhas espadas e corri para o campo, através da brecha que
Yu Fong havia feito. Eu tinha que encontrar Curran.
As fileiras de guerreiros estavam se aproximando. Um momento, e
eles me cercariam. Cuspi um Palavra de Poder: — Osanda. Eles se
ajoelharam e eu abri caminho por eles, avançando, até o centro do campo
de batalha. Sangue pulverizado para todos os lados. Corpos caíram em
meio a gritos roucos. Ataquei, cortando membros e esculpindo corpos
com as minhas lâminas e magia. Fogo e raios riscavam acima da minha
cabeça, arrancados por um fluxo de projéteis verdes brilhantes de uma
metralhadora. Lutadores se chocavam, metamorfos estripavam seus
oponentes, vampiros rasgavam corpos. O massacre reinava, o rugido, o
lamento e os gemidos dos moribundos se fundiram em um terrível
barulho.
Dividi um corpo em dois, abri a boca e gritei. Um Palavra de Poder
explodiu de mim, reta como uma flecha, queimando os combatentes de
Neig, destruindo seus corpos. Rasguei a brecha, cortando como um
dervixe em um padrão relâmpago familiar, cortando membros e
borrifando sangue, imparável, sem piedade.
Um yeddimur apareceu na minha frente, o único sobrevivente do fogo
e das gaitas de foles. Eu o esculpi do ombro à cintura e continuei minha
colheita de vidas, cuspindo magia e trazendo a morte. À esquerda, um
grupo de corpos voou, e Hugh surgiu, rugindo e coberto de sangue, uma
espada de sangue na mão. Nós nos aproximamos e encostamos nossas
costas uma na outra. Por um breve momento ficamos parados ao redor
da carnificina, depois nos separamos e voltamos à batalha.
De repente, o grupo de guerreiros ao meu redor começou a fugir em
pânico. O vento me atingiu, quase me tirando do chão. Um enorme leão
negro pousou ao meu lado, suas asas largas, brilhando com prata. Curran
assumira sua forma divina.
Eu pulei e subi, agarrando os pêlos negros nas costas de Curran. Ele
correu e então estávamos no ar. A batalha fervia abaixo de nós. À frente,
Neig cuspiu fogo em Yu Fong em uma torrente constante, circulando-o,
grandes asas batendo. Yu Fong mancava, se arrastando no chão, com o
lado rasgado, mesmo assim enviou uma torrente de chamas brancas de
volta a Neig. Meu pai estava parado, preso no meio de tudo, uma bolha
protetora de magia brilhando ao seu redor, refletindo o fogo dos duelos.
Ele segurava uma lança nas mãos.
Curran mergulhou em Neig. Eu pulei, apontando para o pescoço do
dragão, e errei. Merda.
Não havia nada sob meus pés. Eu mergulhei. Não havia tempo para
pânico. Não havia tempo para nada. Eu estava prestes a morrer.
O ar me segurou. Eu não estava mais caindo, agora flutuava
suavemente no ar. Olhei para baixo. Meu pai balançou a cabeça em
reprovação, como se eu tivesse quebrado um vaso caro. Acima de mim,
Curran disparou contra o dragão, travando as mandíbulas no pescoço de
Neig. Ao lado de Neig, Curran parecia pequeno. O dragão chutou
Curran. Suas garras enormes pegaram o leão, rasgando um corte no lado
de Curran. Curran rosnou e arrancou um pedaço do pescoço de Neig.
Eles giraram juntos, arranhando e mordendo.
Espere, querido. Estou chegando.
O cansaço desapareceu. Apenas a fúria permaneceu, um voraz
animal aquecido dentro de mim que pedia para ser alimentado. Eu corri.
Eles caíram diante de mim como folhas da grama. Abri um caminho
claro em torno da carruagem de meu pai. Sangue chovia sobre nós, Neig
e Curran rasgando um ao outro. Yu Fong pulverizou o campo com fogo
tão quente que derreteu a armadura dos guerreiros ao nosso redor.
Meu pai quebrou seu feitiço de Proteção. Os guerreiros de Neig
tentaram atacá-lo pelo lado. Ele moveu a mão como se estivesse
golpeando uma mosca e os guerreiros voaram, caindo aos meus pés. Eu
os cortei, ainda cuspindo magia e morte.
Yu Fong caíra de lado, uma enorme estaca brilhando com magia
entre as costelas. Adora saiu da multidão e parou em cima dele com sua
katana, protegendo-o dos soldados.
Meu pai levantou a lança, uma longa corrente brilhante presa a uma
extremidade.
Curran caiu no chão. Neig também, as bocas abertas, prontas para a
matança.
Meu pai atirou sua lança. Ela riscou o ar, brilhando com um
vermelho violento, e cravou Neig na garganta. A outra extremidade, com
a corrente, mergulhou no chão. Meu pai gritou uma ordem. A corrente
esticou. Neig se debateu no final, como um peixe preso no arpão. Roland
agarrou a corrente. Uma cena surreal, ele era tão pequeno e Neig era
gigantesco, mas meu pai o segurou.
— Kate!
Eu me virei. Julie mancava em minha direção, com os cabelos
ensopados de sangue. Atrás dela, Derek em forma de guerreiro rosnava,
seu braço esquerdo pendurado em seu corpo em um ângulo estranho.
— Kate! —Julie me alcançou e colocou um rubi brilhante em minhas
mãos. Eu peguei. Magia me mordeu com mandíbulas quentes. A âncora.
A maldita coisa pesava uns vinte quilos. A força da pedra ameaçou me
arrancar dos meus pés. O rubi me puxou como se estivesse tentando
sugar minha alma. Queria voltar ao seu reino, e se eu deixasse me
puxaria para lá com ela. Precisava segurá-la aqui.
Enfiei-a na minha armadura, sobre o quadril direito, onde fiz um
bolso especificamente para ela.
— Eu tenho isso! —Eu gritei. — Agora! Temos que fazer agora!
Acima de mim, Neig soltou um grito horrível.
Curran correu ao meu lado. Metade de seu corpo fumegava, o pêlo
desapareceu, sua pele borbulhando por conta das queimaduras. Ele rolou
e se lançou em Neig. Comecei a correr, peguei sua asa e deixei que ela
me levasse com ele. Neig diminuiu de tamanho diante dos meu olhos.
A forma gigantesca do dragão provavelmente era um feitiço, porque
agora o dragão de Neig não tinha nem um terço do que era.
Pulei. O ar assobiou por mim, e então eu estava nas costas reduzidas
de Neig. Corri para cima, deslizando para frente em sua cabeça.
Curran prendeu as mandíbulas no pescoço de Neig e o mordeu. Neig
se debateu, tentando levantar o pé com garras contra Curran e se libertar,
mas meu pai o segurou no lugar.
Neig rolou a cabeça, tentando afastar Curran. Uma torrente de
chamas saiu de sua boca. O chão ficou coberto de fogo. Adora
desapareceu nas chamas.
Não! Não, não, não, não ...
As chamas desapareceram. Um corpo carbonizado ajoelhava-se
sobre um joelho na terra, sua katana presa na mão. Um soldado passou
por ela e a derrubou de lado.
Morta. Adora estava morta. Neig a matou.
Uma dor imensa me rasgou. Eu gritei e subi, sobre o pescoço maciço
de Neig, sobre seus chifres, sobre sua cabeça e rosto. Dois olhos enormes,
ardendo em âmbar, focaram em mim por uma fração de segundo.
Levantei minhas espadas de sangue e as mergulhei nos olhos de Neig.
Um líquido âmbar, quente e cheio de magia, espirrou em mim.
O dragão uivou, balançando a cabeça, tentando me derrubar, mas eu
me agarrei às minhas lâminas.
— MORRA! —Eu gritei, alimentando magia em minhas espadas. —
MORRA, MORRA, MORRA!
Neig gritou e se livrou das restrições de meu pai, disparando para o
céu. Vento rasgou por mim. Eu segurei minhas espadas, um corpo
enorme debaixo de mim tremia e balançava. Subimos cada vez mais alto
em direção às nuvens.
— Você me matou, filha de Nimrod, —o dragão sussurrou. — Mas
vou levá-la comigo.
Começamos a cair. O campo de batalha se aproximava de nós a uma
velocidade vertiginosa.
Era isso. Era o meu fim.
Uma forma escura surgiu do chão e empurrou Neig por baixo,
Curran tentando retardar a queda do dragão, mas Neig era muito pesado.
Mãos agarraram meus ombros e me puxaram para cima, arrancado a
mim e Sarrat do corpo do dragão. De repente, eu estava voando e Neig
ainda mergulhava, minha outra espada ainda em seu olho esquerdo.
Acima de mim, Teddy Jo voava com as suas asas de meia-noite.
Curran saiu debaixo de Neig. O corpo enorme do dragão atingiu o
chão, quicando uma vez. A poderosa cabeça do dragão despencou e ficou
parada. Neig, o Lendário, estava morto.
Teddy Jo desceu. Meus pés tocaram a grama. Ele me soltou, rolei no
chão e me levantei.
Curran desabou ao lado do dragão. Eu não sabia dizer se ele estava
vivo ou morto. Um medo gelado tomou conta de mim. Ao nosso redor, a
batalha ainda continuava.
— FILHA.
Virei. Meu pai estava olhando para mim do alto de sua carruagem, e
seu rosto estava triste. Atrás dele, suas tropas formaram uma parede, filas
e filas de pessoas em armaduras táticas.
— Não faça isso, —eu disse a ele. — Não, pai.
Sua voz rolou pelo campo de batalha. — Renda-se, minha filha.
Ele me traiu. Eu sabia que ele faria. Já esperava por isso, mesmo
assim doeu muito.
— Não, —respondi a ele. — Por favor, não.
— Renda-se e eu deixarei seu povo viver.
— Como pode fazer isso? Você é meu pai!
— É para o seu próprio bem.
— Não. É só para o seu próprio bem.
Hugh atravessou as fileiras. Atrás dele, os Cães de Ferro separavam
as tropas de Neig como se fossem água, e eu vi Elara. Ela brilhava em um
brilho branco: seu vestido, sua pele, seu cabelo todo branco como a neve,
sua magia ardendo com força. Ela não parecia humana.
Elara abriu os braços. Ouvi um canto flutuando acima do campo de
batalha. Os Covens estavam canalizando seu próprio poder. O poder das
bruxas atingiu Elara pelas costas em uma explosão. Um raio branco puro
saiu de Elara e atingiu meu pai. Ele ofegou, girando na direção dela. O
raio de magia poderosa o empalou como uma lança.
Suas tropas surgiram ao seu redor e caíram nas garras dos Cães de
Ferro.
O raio se intensificou, tão branco que era difícil de olhar. Meu pai
cambaleou. O rosto dele relaxou. Os olhos dele vidraram.
Estávamos quase conseguindo. Quase. Só mais um pouquinho.
Durma. Por favor, pai, pelo bem de todos nós. Apenas durma.
Magia surgiu dele, bloqueando o raio.
Elara gritou.
Não foi suficiente. As bruxas não eram suficientes.
Lentamente, muito lentamente, meu pai se endireitou, seu rosto
tremendo de esforço e empurrou uma mão contra o raio.
Ele venceria e então não havia esperança para Atlanta e Conlan.
Julie correu entre os corpos em luta, a espada erguida acima da
cabeça.
Eu senti a magia dentro do meu pai estalar, bloqueando o raio de
Elara. Se Julie o atacasse agora, ele a mataria. Ele a esmagaria como um
mosquito.
Ele mataria minha filha.
Vi o braço de Julie recuar como se estivesse em câmera lenta,
enquanto ela se preparava para um salto.
Se ela tocasse meu pai, ela morreria. Eu tinha que pará-la. Precisava
...
Os músculos de suas pernas ficaram tensos, prestes a mandá-la para
o ar.
Não!
— Pare! —Eu rosnei, afundando magia no comando.
Senti o momento exato em que minha vontade esmagou a vontade
de Julie. Ela desmoronou no meio do salto e caiu no chão.
Ah não. O que eu fiz?
Uma luz vermelho sangue saiu do meu pai. Elara tropeçou para trás.
O raio branco morreu. Ele se virou para mim. — Você realmente pensou
que isso me impediria, criança tola?
Havia vinte metros entre nós e uma onda de soldados atrás dele. Eu
não seria capaz de chegar até ele. Os seus soldados me impediriam e
então meu pai me bateria com sua magia, e tudo acabaria. Ele podia
manter-me em estase até as tropas dele me prenderem.
O rubi mexeu na minha armadura, como se estivesse vivo.
O rubi.
Essa era a minha única chance.
— RENDA-SE IN-SHINAR. TOME SEU LUGAR.
Curran, amo você. Eu te amo meu filho. Amo vocês dois mais do que tudo.
Eu te amo Julie. Não há saída.
Levantei Sarrat e me esfaqueei.
Meu pai gritou.
Senti o sangue sair de mim e torci a lâmina. Aqui vamos nós. Cortei a
204
aorta abdominal . A morte seria rápida.
Caí de joelhos, puxei o rubi da minha armadura, a escondi por baixo
de mim e caí de lado. O rosto do meu pai apareceu. Ele estava chorando.
— Por quê? Por quê? —Ele me puxou para ele, segurando minha
cabeça em seus braços. — Você tinha tudo, Flor do meu coração. Por
quê?
Seu rosto estava ficando cinza. Os dedos dele tremiam. Ele gritou.
Eu senti sua magia lutando por sua vida, faminta, procurando qualquer
fonte para se alimentar. Eu conhecia essa fome. Era ofuscante. A fome
agarraria qualquer magia apenas para se manter viva, e eu tinha uma
fonte de magia à mão.
Abri meus braços. Eu estava muito fraca para conter a âncora de
qualquer maneira. Ele viu o rubi e o pegou.
Tome, pai. Pegue-o e use-o.
Sua pele ficou da cor de concreto velho. Se ele tivesse um segundo
para pensar não teria pegado a pedra. Mas ele não tinha um segundo.
Estávamos morrendo juntos, e meu pai queria viver. Isso o deixou
descuidado.
Seus dedos se fecharam sobre a joia brilhante. O brilho carmesim da
pedra o cobriu. Ele se alimentou do rubi, absorvendo cada gota, até que
toda a magia da âncora se fundiu com meu pai.
Lutei para dizer alguma coisa. Nimrod se inclinou sobre mim para
ouvir.
— Eu o venci, pai.
A âncora não poderia existir longe do seu reino de origem e tentaria
retornar a ele a todo custo. Meu pai havia absorvido a âncora. Eles agora
eram um só.
Um portal se abriu atrás dele. Eu só vi uma parte, mas o senti. A
magia por trás do portal agarrou meu pai e o engoliu inteiro.
Um momento ele estava lá e depois se foi. E tudo acabou bem.
Nós vencemos. Conlan viveria. Curran também viveria, se ainda
estivesse vivo. Eu consegui.
Meu sangue estava por todo o chão. Pensei que doeria. Não doeu.
Minha tia me agarrou, frenética. — Fique comigo. Hugh! Tragam
Hugh!
— Tarde demais, —eu disse a ela.
Erra olhou para mim, seus olhos selvagens, seu corpo translúcido me
cobriu. A dor esmagou meu corpo, arrancando um grito de mim. Ela
estava alimentando minha magia com a dela, tentando me manter viva.
— Não, —eu sussurrei. Não queria o sacrifício dela, mas não tinha
forças para lutar com ela. Minha tia empalideceu e desapareceu. Magia
me inundou em uma corrida fria.
Não foi o suficiente. Julie estava chorando. Alguém estava me
segurando. A luz diminuiu. A escuridão veio.
Eu gostaria de poder segurar Conlan uma última vez.
Eu gostaria de poder ver Curran. Ouvir a voz dele. Segurar a mão
dele. Não queria ficar sozinha antes de partir.
Eu gostaria de ter um pouco mais de tempo. Havia tantas coisas que
eu queria fazer. Daria qualquer coisa por apenas mais um dia.
Eu amo todos vocês.

*******
MORRER ERA ESTAR EM UMA NÉVOA.
Caminhei por ela aleatoriamente, sem saber para onde ir. Ela me
puxava e eu me deixei ir.
Eu estava desaparecendo. A minha essência estava desaparecendo,
desfazendo-se suavemente na névoa cinza ao meu redor.
Solte-se, a névoa sussurrou. Deixe tudo ir ...
E então me soltei.
Uma vasta planície surgia a minha frente, grama verde sob meus pés.
A luz do sol dourada fluía de um céu azul. Ao longe, rebanhos de
animais selvagens pastavam, grandes formas peludas.
Senti uma presença atrás de mim e me virei.
Um leão colossal caminhava em minha direção através da planície.
Ele era negro e suas asas estavam dobradas sobre o corpo. Seus grandes
olhos dourados estavam cheios de magia. Seu corpo inteiro brilhava,
cobrindo todos os seus pêlos. Ele era um deus.
O leão gigante me alcançou e abaixou a cabeça.
Eu levantei minha mão e toquei seu focinho. Ele veio se despedir. Eu
o veria uma última vez.
O leão abriu a boca, mostrando-me presas brilhantes.
— VIVA! —Ele disse.
Magia prateada irrompeu dele para dentro de mim.
DOR.

*******
AGONIA RASGOU MEU CORPO em pedaços e eu gritei, me
contorcendo. Havia algo sólido debaixo de mim.
— Eu tenho ela, —disse a voz de Hugh.
Ele estava em cima de mim. Eu estava viva.
Balancei e dei um soco na mandíbula de Hugh o mais forte que
podia. Ele tombou para o lado. Eu me levantei.
Curran estava deitado ao meu lado na grama ensanguentada,
humano e imóvel. Eu me arrastei sobre minhas mãos e joelhos para ele e
o agarrei. — Curran? Curran?
Ele abriu os olhos, me viu e sorriu. — Oi, chutadora de bundas.
— Você está machucado?
— Sim. Muito cansado também.
— O que você fez?
— Eu ressuscitei você, —disse ele.
A dor floresceu no meu estômago e eu desabei em seu peito.
— Esse era o plano o tempo todo, —disse ele. — Meu plano e o de
sua tia. Poder divino suficiente para um milagre.
Eu me enrolei em uma bola, segurando-o. Se isso fosse algum tipo de
alucinação de quase morte, eu me ressuscitaria só para poder dar um soco
na cara dele.
— Desculpe se doeu, —disse ele. — Foi a minha primeira vez.
Eu beijei seu peito. Ele acariciou meu cabelo.
— A última vez também, —disse ele. — Não tenho mais nenhum
poder divino, então deixe Hugh curá-la, porque se você morrer agora,
vou ficar realmente chateado e posso acabar fazendo besteira.
Eu apenas o segurei. Afundando-me lentamente em seu calor.
— Prometi que esta manhã não seria a última vez, —ele me disse. —
Mantenho minhas promessas.
Alguém mais estava gritando. Finalmente percebi que não era eu e
me virei. Minha tia estava esparramada na grama, nua, seu corpo se
debatendo, furiosa como o inferno e muito viva.
— Ops, —disse Curran.
Eu chorei. Deitei em seu peito e chorei.

*******
SENTEI-ME NA VARANDA e assisti Conlan brincar na grama à luz
fraca da noite. Ele atacava os vaga-lumes como um grande gatinho
humano. Curran sentou-se ao meu lado, com o braço em volta dos meus
ombros. Uma semana se passou desde a batalha.
Com a morte de Neig e o desaparecimento de Roland, suas tropas se
dispersaram. Nós vencemos, mas perdemos muitos. Enterramos as cinzas
de Adora na pequena colina atrás de nossa casa. Eu chorei no funeral
dela. Chorava toda vez que pensava nisso.
Christopher também foi pego no fogo do dragão. Ele não morreu,
mas perdeu uma asa. Nenhum de nós sabia se a asa voltaria a crescer.
Christopher lamentava a possibilidade de não poder voar mais assim
como as pessoas lamentavam a morte de uma criança. Desandra perdeu
seu casal beta. Eles eram amigos e a dor dela ainda era crua. Jim perdeu a
irmã. As bruxas perderam Maria. O dreno de energia foi demais para ela.
Da elite de Mercenários de Curran, apenas cinco sobreviveram.
Saiman não voltou do campo de batalha. Ele sempre teve pavor de
dor física, mas por alguma razão assumiu sua verdadeira forma e correu
para o meio do massacre. Talvez ele tenha entrado em pânico, talvez
tenha ficado furioso, talvez estivesse tentando proteger alguém. Nós
nunca saberíamos. Trouxeram o corpo dele para mim. Saiman foi
perfurado com quatro lanças. Eu sofri. Ele deixou um testamento. Queria
ser enterrado em Unicorn Lane. Nós cumprimos seu desejo à risca. Era o
mínimo que podíamos fazer.
Curran, O Deus, não sobreviveu. Não restou mais nenhum de seu
poder divino. Seu cabelo não crescia mais rápido do que o normal,
embora ele mantivesse agora maior do que costumava deixar, por quanto
tempo ninguém sabia. Ele perdeu a consciência mística de nós. Sua
divindade permitia que ele soubesse onde Conlan e eu estávamos o
tempo todo, mas agora não podia mais nos sentir sobrenaturalmente. Ele
disse que parecia que tinha ficado cego. Foi uma espécie de morte, mas
eu não poderia estar mais feliz com isso.
Houve outra morte que eu não lamentei. Sharratum também morreu
naquele campo de batalha. Quando Curran me ressuscitou, não senti
mais a força da terra. A Reivindicação não sobreviveu à minha morte. Eu
era mais uma vez apenas eu. Mantive meu poder, mas agora estava livre
de Atlanta e do pequeno pedaço de terra em Kings Row.
Ghastek veio até mim após o massacre. Ele parecia perdido. Disse-
me que eu sempre seria a In-Shinar. Eu disse que ele ainda era meu
amigo, mas agora ele estava livre.
Enterramos amigos e lamentamos, mas lentamente, pouco a pouco,
Atlanta estava acordando de um pesadelo. O dragão estava morto. O
Riscos Biológicos havia reivindicado seus ossos, e Ghastek e Phillip
quase começaram a brigar com Luther por causa disso.
Hugh e Elara sobreviveram e retornaram ao castelo em Kentucky.
Hugh não curou Dali. Jim a pediu que ela esperasse seis meses. Pelo o
que eu sabia, isso só daria a Dali mais seis meses para convencê-lo, e
minhas entranhas me diziam que Jim perderia essa luta.
Christopher e Barabas marcaram a data do casamento. Barabas fez
um tumulto terrível com os ferimentos de Christopher e continuou
alimentando-o com litros e litros de sopa de galinha, esperando que a asa
de Christopher se regenerasse. Os Druidas desfilaram pelas ruas com suas
peles tatuadas e reivindicaram crédito por sua parte na vitória. Martha
ficou gravemente ferida e Mahon cuidou dela até ficar curada. Ele tentou
assar bolos de mel, mas os bolos eram horríveis. Minha tia não estava
falando com nenhum de nós. Ela levou sua ressurreição para o lado
pessoal. Aparentemente, queria continuar morta.
Julie também não estava falando comigo.
Eu mereci. Quebrei à minha palavra. Tentei falar com ela, mas ela
acabou se afastando de mim. Eu fiz uma promessa e a quebrei. Eu não
sabia se Julie me perdoaria algum dia. Esperava que sim, mesmo assim
não havia como voltar atrás do que eu havia feito. O tempo ajudaria. Eu
esperava.
— É melhor eu fazer logo isso, —eu disse a Curran. — Já faz uma
semana. Ele deve ter se acalmado.
— Dê a ele mais um ano, —disse ele.
— Se em uma semana ele não se acalmou, não fará em um ano. —
Coloquei minha xícara de chá na mesinha. — Não vou demorar.
Fechei os olhos e, quando os abri estava atravessando a ponte
levadiça do castelo de Neig. O lugar estava vazio. Ninguém me
cumprimentou. Ninguém tentou me matar. A falta de drama era bastante
decepcionante.
As pedras tremeram sob meus pés. Ah não! Falei muito cedo.
O castelo abriu os portões como se fossem uma boca bocejando e me
engoliu. Eu a atravessei, ou melhor, fiquei parada, e o castelo passou por
mim até eu ficar cara a cara com meu pai na sala do trono. Ele estava de
volta a sua aparência mais velha. Devia estar esperado que eu aparecesse.
Ele era a âncora desse reino agora. Para todos os efeitos, Roland era o
próprio reino. Nunca poderia sair daqui. E como compartilhávamos um
vínculo de sangue, eu poderia vir visitá-lo sempre que quisesse. Conlan,
Julie, Hugh, todos nós que tínhamos o benefício de seu sangue, podíamos
visitá-lo a qualquer momento, entrar e sair de seu reino como
quiséssemos. Isso tinha que estar o matando. Eu fiz o meu melhor para
não rir, mas foi muito difícil.
— Você sobreviveu, —ele disse.
— Meu marido me ressuscitou, —eu disse a ele. — Ele desistiu de
divindade por mim. Ressuscitou tia Erra também. Ela se sacrificou para
me manter viva e, aparentemente, nós estávamos no mesmo corpo
apenas o tempo suficiente para nós duas sermos atingidas com o mesmo
milagre de ressurreição. Ela está um pouco furiosa com isso.
— Você me baniu, —disse ele. A fúria estremeceu em sua voz.
— Não foi banimento.
— Então, foi o que?
— Aposentadoria, pai. Você já teve muitas vidas. Estou na minha
primeira e, se dependesse de você, nem essa primeira eu teria. É um
castelo muito bonito. A biblioteca é incrível. Pense em todas as coisas que
poderá fazer com este lugar.
— O mundo precisa de mim. Preciso salvá-lo. Preciso aprimorá-lo.
Suspirei. — Eu te amo, pai. Trarei Conlan quando ele for mais
velho.
— Kate, —ele disse. — Vou encontrar uma saída.
— Possivelmente. Se alguém pode, esse alguém é você. Mas levará
um longo tempo. Enquanto isso, teremos paz. É o que você sempre quis,
não é? Existência idílica e pacífica, livre da destruição sempre presente?
— Isso ainda não acabou, —disse ele.
— Sim, acabou, pai. E se você encontrar o caminho de volta, estarei
te esperando.
Fechei os olhos e me encontrei inclinada contra Curran.
— Como foi? —Ele perguntou.
— Tão bem quanto poderia ser. Ele está furioso. Ficará facilmente
entediado, mas dentro do reino de Neig ele tem um poder supremo à sua
disposição. A próxima vez que eu o visitar, aquele local provavelmente se
parecerá com os Jardins Aquáticos. Acho que Conlan vai gostar de
brincar lá quando for um pouco mais velho.
Eu beijei meu marido. Sentamos juntos na varanda e assistimos
nosso filho brincar com vaga-lumes.
— Deveríamos ter outro, —disse Curran.
Eu sorri para ele. — Talvez.
— Você não quer uma garotinha?
— Eu quero. Quando Conlan crescer um pouco mais. Temos tempo
agora, não é?
Curran sorriu para mim. — Todo o tempo no mundo.

Epilogo
ERRA
O sol estava prestes a nascer. O clima já estava quente. Poderia estar
mais quente, realmente. Eu estava acostumada a verões mais quentes.
205
Também estava acostumada a cavalos melhores, embora o Frisão fosse
bonito e ele seguisse pela estrada calma e em ruínas com grande
entusiasmo.
Nunca pude resistir a um cavalo preto. Ou um homem de cabelos
pretos. Embora tenha havido alguns loiros na minha vida.
Minha sobrinha ainda estava dormindo. Eu a verifiquei antes de sair
de casa. Não entrei no quarto, a porta estava trancada, mas pude senti-
los. Kate, seu marido e seu filho estavam aquecidos e seguros juntos. Eles
mereciam.
Eu não queria esse tipo de segurança. Pelo menos ainda não. Uma
mulher tinha certas expectativas depois de ser ressuscitada. Queria viver a
vida ao máximo. Agora não havia lugar para mim no mundo deles. Eu
havia ensinado a Kate tudo o que ela precisava saber para sobreviver.
Minha sobrinha me mudou de uma maneira que ela nunca entenderia
completamente. Kate precisava de uma mãe, e eu entrei para preencher a
vaga, sem esperar nada em troca. Então ela teve um filho e o bebê
precisava de uma avó.
206
Pensei que Eahrratim estivesse morta. Ela era uma menina alegre,
a Rosa do Tigre, bonita e ingênua do jeito que os jovens muitas vezes são.
Aquela menina que brincava na água, cultivava flores, gostava de
vestidos bonitos e fazia pequenos planos tolos para o futuro. Um marido.
Filhos. Sobrinhas e sobrinhos. Festas de família. Uma vida que era
felicidade e calor. Eu enterrei essa menina nas cinzas da guerra, para
poder pegar uma espada. Pensei que ela tinha desaparecido
completamente nos anos de dor e sofrimento, até que apenas a
Devoradora de Cidades permaneceu. Mas agora a menina estava de
volta. Ela não era mais jovem ou ingênua, mas estava dentro de mim.
Minha mãe costumava dizer que a família, de sangue ou a que
encontramos no caminho da vida, era a nossa salvação. Era a rede que
nos puxaria quando afogássemos e gentilmente nos levantaria das águas
furiosas. Minha mãe era sábia.
Minha sobrinha ficaria triste quando acordasse, mas depois
superaria. Ela tinha um marido e um filho para cuidar, e o Shar não a
incomodaria mais. Estava na hora de deixá-la respirar. Nos
encontraremos novamente e em breve.
A vegetação no meu lado esquerdo se mexeu novamente. A terceira
vez agora.
— Saia, —eu disse.
Um cavalo preto e branco saiu da floresta, carregando um cavaleiro
de cabelos loiros. Julie.
— Fugindo de casa? —Perguntei.
Ela levantou o queixo. Criança engraçada.
— Sim, —ela disse.
— Isto é por causa da sua mãe?
Ela encolheu os ombros. — Sim.
— Volte. Não tenho tempo para mentirosos.
207
A criança das estepes me olhou nos olhos. — É sobre mim. Kate
havia me prometido nunca fazer o que acabou precisando fazer. Ela vai
se odiar por isso. O arrependimento vai comê-la. Pensará alguma vezes
que se transformou em Roland. Não quero que ela se sinta mal por isso.
Ela cuidou de mim quando ninguém mais se importava se eu viveria ou
morreria. Não quero que a minha presença a faça se lembrar que não
cumpriu sua promessa. Isso tornará tudo complicado.
A vida era complicada. Estar morta era muito mais fácil.
— De qualquer maneira, —disse ela, — já estava na hora de ir
embora. Eu poderia ficar, esperar que ela superasse isso e continuar como
eu tenho feito há anos. No mesmo lugar, do mesmo jeito, na mesma
cidade. Mas eu quero mais. Eu quero ... as minha próprias conquistas,
meu próprio lugar. Já estava pensando sobre isso a algum tempo, mesmo
antes de tudo acontecer. É hora de ir.
— Onde você vai?
— Qualquer lugar exceto aqui. Deixei uma longa carta para ela, não
quero que Kate ache que fugi com raiva.
Suspirei. — Suponho que você gostaria de me acompanhar.
Ela cavalgava ao meu lado. Montava como se tivesse nascido em
cima de um cavalo. O sangue sempre fala mais alto. Eu disse isso a ele e
ele não acreditou em mim. Meu irmão, com sua mente cheia, tão cheia
de idéias. Ele costumava esquecer que as pessoas não eram simplesmente
engrenagens que alimentavam a máquina de sua ambição. Bem, olhe
quem estava sentado em um covil de dragão agora.
— Qual é a nossa primeira parada? —Perguntou Julie.
— Mishmar. Tenho uma promessa a cumprir com minha mãe.
— Se Kate é minha mãe, isso faz de sua mãe a minha avó?
— Possivelmente.
— Você também é uma espécie de avó, não é?
— Sim.
— Posso te chamar de vovó?
— Não se você quiser manter os dentes.
Ela riu, seu riso era como um pequeno sino de prata. O sol rolou
acima do horizonte, brilhando sobre nós.
Julie ficou pensativa por um momento e depois disse: — Ela também
é avó de Hugh. Devemos contar a ele? Podemos levá-lo conosco a
Mishmar para visitá-la?
— Talvez, —eu disse.
O garoto precisaria conhecer a avó em algum momento. Mas agora,
ele estava com as mãos cheias e eu duvidava que sua esposa iria gostar
que nós o arrastássemos para os negócios da família.
Não era tão ruim ter uma neta, decidi. Eu nunca tive uma antes, e
esta era cheia de magia.
Havia muita coisa que eu poderia ensiná-la.

FIM ...

Cenas Extras
Era originalmente um twitter, mas funciona melhor como
mensagens de texto.

Aniversário de Conlan

Jim para Curran: O que devo comprar para o seu filho no


primeiro aniversário dele?
Curran: Nada barulhento.
Curran: Nada que faça sons muito altos ou luzes. Sem luzes.
Jim: Ótimo.

Jim para Dali: Precisamos de algo bem barulhento.


Dali: Podemos comprar uma bateria completa.
Jim: Quero algo mais barulhento. Algo que grite como uma
208
banshee .
Dali: Deixe-me pensar sobre isso.

Raphael para Curran: O que devemos comprar para


Conlan?
Curran: Nada barulhento.
Raphael: Entendido.

Raphael para Andrea: Ele disse nada de coisas barulhentas.


Andrea: kkkkkkkkkkkkkkk.
Raphael: Eu sei, certo? Eu sinto sua dor. É deliciosa.
Andrea: Agora falando sério, o que vamos dar a ele? Que
tipo de presente você dá a uma criança humana? O que você
tinha quando era pequeno?
Raphael: uma faca.
Andrea:
Raphael: Era incrível. Tinha uma alça de couro e cheirava a
couro e óleo. Levava para todo o lado. Eu farejava e
esfaqueava as coisas.
Andrea: Eu já te disse que você é muito estranho?
Raphael: E foi por isso que você se casou comigo.
Andrea: O que você esfaqueava com sua faca?
Raphael: Tudo. Árvores. Almofadas dos sofás. Eu até
esfaqueei a mesa da mãe uma vez.
Andrea: Aposto que Tia B adorou isso.
Raphael: Sim, ela tomou minha faca o dia todo.
Andrea: Você nem sabe o quanto mimado foi. Se dermos
uma faca a Conlan, Kate explodirá de fúria. Além disso, o
garoto tem apenas um ano de idade. Ele não precisa de uma
faca.
Raphael: Não sei. A maneira como a criança se move e
balbucia é mais como se tivesse dois anos. Às vezes me dá
calafrios.
Andrea: Ele é neto de Roland. O que esperava?

Dali para Jim: eu encontrei. É um caminhão.


Jim: O que?
Dali: O presente para Conlan. É um caminhão de
bombeiros.
Jim: Você quer dar a ele um caminhão de bombeiros?
Dali: Não é um caminhão de verdade. É um caminhão de
bombeiros de brinquedo. Tem aproximadamente um metro de
altura e é de madeira. Tem uma escada e pode subir nela.
Funciona com água encantada e, quando está funcionando,
um monte de luzes pisca e soa a sirene.
Jim: Quão alto?
Dali: Eu mal consigo me ouvir pensar.
Jim: Compre.
Dali: É caro.
Jim: Eu não ligo. COMPRE. Antes que alguém o faça.
Dali: Podemos colocar um grande laço azul.
Jim: Adoro isso.

Raphael a Andrea: O que você ganhava no seu


aniversário?
Andrea: Uma surra. Às vezes, com um incentivo adicional
de ‘por que você ainda não está morta?’
Raphael: ... eu sou um idiota
Andrea: Tudo bem.
Raphael: Andy, você está em casa?
Andrea: Sim.
Raphael: olha na minha gaveta de roupas íntimas.
Andrea:
Raphael: Apenas faça.
Andrea: Quem sabe o que eu vou encontrar lá? O que
estou procurando?
Raphael: Você saberá quando ver.
Raphael: ...
Raphael: Andrea?
Raphael: bebê?
Andrea: Eu te odeio, tenho um clã se reunindo em dez
minutos e estou sentada aqui, me desmanchando em lágrimas.
Raphael: Você gostou?
Andrea: É lindo.
Raphael: A safira é para você, o rubi é para mim e o
diamante é para a baby B. Estamos todos juntos. Estava
guardando para o nosso aniversário na próxima semana, mas
acho que hoje é o melhor dia.
Andrea: Ainda estou chorando.
Raphael: eu te amo. Você é minha vida. Amo você e a
baby B mais do que tudo, Andy.

Curran para Kate: Olá, bebê.


Kate: eu quero fugir.
Curran: Não está nada bom por aí, hein.
Kate: Sim.
Curran: O que ele fez?
Kate: Ele jogou uma laranja no vaso sanitário.
Curran: ... Como assim? Laranjas flutuam.
Kate: Ele a descascou.
Curran: Você está falando sério?
Kate: Sim. Encontrei-o no banheiro com a água saindo do
vaso sanitário. Ele estava sentado no chão, batendo na água e
rindo.
Kate: Eu sei que você está rindo. Não ria!
Curran: Isso é terrível.
Kate: Por que eu? Por quê?
Curran: Como diabos ele percebeu que precisava
descascar a laranja?
Kate: eu não sei. Ele é especial.
Curran: O que você está fazendo agora?
Kate: Ele encontrou o presente de Derek e Julie no armário
e o abriu antes que eu pudesse alcança-lo.
Curran: O que eles compraram?
Kate: Um chapéu de cowboy e uma sela.
Curran: Eu não quero Conlan perto dos cavalos. Ele é uma
criança humana. Poderia cair e quebrar o pescoço. Um cavalo
poderia pisar nele.
Kate: É uma sela muito pequena. Feito sob medida.
Curran: Para quê?
Kate: Para Grendel. Cabe perfeitamente.
Curran: Kate? O que nosso filho está fazendo exatamente?
Kate: Eu tive que dar banho nele depois da aventura com
a água do banheiro. Sequei-o e depois fui limpar o banheiro.
Enquanto eu limpava o banheiro, ele encontrou o presente,
colocou a sela em Grendel e agora está andando pela casa.
Curran: Nu?
Kate: Não. Está usando um chapéu de cowboy.
Kate: Quando volta para casa?
Curran: Espere, bebê. Estarei aí em meia hora.
Kate: Bom.
Kate: traga comida.
Kate: Vou tirar uma folga amanhã. Você acha que algo
poderia atacar a cidade?
Curran: Algo sempre ataca a cidade.
Kate: Oh, ainda bem. Preciso de um dia para mim.
Notes

[←1]

Coven, conventículo ou conciliábulo é o nome genérico dado a uma agregação


ou reunião de bruxos para a realização de rituais religiosos e ritos. Tradicionalmente, ele abriga o máximo
de treze pessoas.
[←2]

Dilmun ou Telmun é associada a sítios da Antiguidade nas ilhas de Barém, no Golfo Pérsico.
Devido à sua localização junto à rota de comércio marítima que ligava a Mesopotâmia à civilização do Vale
do Indo, Dilmun desenvolveu-se fortemente durante a Idade do Bronze, por volta de de 3 000 a.C.,
tornando-se um dos maiores entrepostos de comércio do mundo antigo.
[←3]

Thanatos é filho de Nix (personificação da noite) e Érebo (personificação das trevas).


Nasceu a 21 de agosto, essa é a sua data favorira para arrebatar almas, com a ajuda do seu irmão gêmeo
Hipnos (personificação do sono). Os irmãos gêmeos habitavam os Campos Elísios (lugar do mundo
subterrâneo).
[←4]

Serenbe é um bairro dentro dos limites da cidade de Chattahoochee


Hills, Georgia, no condado de Fulton, na área metropolitana de Atlanta. Serenbe é um exemplo de novo
urbanismo. Steve Nygren, que já havia aberto um Bed & Breakfast na área, desenvolveu Serenbe.
[←5]

A Interstate 85 é uma importante rodovia interestadual que viaja de nordeste a


sudoeste no estado americano da Geórgia. Seu atual terminal sul está em um intercâmbio com a I-65 em
Montgomery, Alabama; seu terminal norte troca com a I-95 em Petersburg, Virgínia, perto de Richmond.
[←6]
Rodovia Interestadual-Georgia, EUA.
[←7]

Depois de 1 a 17 anos vivendo na forma de ninfa (forma jovem e imatura


sexualmente), as cigarras (insetos) saem de suas tocas para acasalar e reproduzir.
[←8]

Na arquitetura conceito aberto é a ideia de que os ambientes são delimitados


pelos móveis. Geralmente sala e cozinha ficam em um mesmo ambiente sendo divididos pelos móveis, dando
uma sensação de amplitude e convívio mais íntimo.
[←9]

O xarope de bordo, mais conhecido no mundo como maple syrup, é a seiva circulante das
árvores de bordo. Apesar do nome ser pouco conhecido, a folha dessa árvore é bastante famosa, pois está
presente na bandeira nacional do Canadá, sendo considerada um emblema do país.
[←10]

Iara Nego d’água Boto


O Encantado é uma figura do folclore Brasileiro com origem principalmente indígena, um tipo
de entidade sobrenatural. Há multiplicidade de crenças a respeito dos encantados, variando entre criaturas
que vêm de um reino paradisíaco subaquático, podendo se referir a seres espirituais, tais como os
antepassados, até mesmo a cobras encantadas. Também são associados ao mito do boto que se
transforma em ser humano para atrair mulheres, ao mito do nego d’água que também seduz as mulheres,
a Iara, mãe dos rios, que seduz os homens com o seu canto.
[←11]

Labrador retriever é uma raça de cães do tipo retriever originária de Labrador


no Canadá. Utilizado originalmente para a caça de aves aquáticas, o labrador é conhecido como uma raça
versátil, inteligente e dócil.
[←12]

Bestas e dardos
[←13]

Kitsune (狐 IPA: [kitsɯne]) (Pronuncia) é a palavra japonesa para


raposa. Raposas são um assunto comum no Folclore Japonês; kitsune refere-se geralmente neste
contexto. Histórias as descrevem como seres inteligentes e com capacidades mágicas que aumentam com
a sua idade e sabedoria.
[←14]

Centro de distribuição do Walmart visto de cima.


Walmart, Inc., é uma multinacional estadunidense de lojas de departamento. A companhia foi eleita a
maior multinacional de 2010. A companhia foi fundada por Sam Walton em 1962, incorporada em 31 de
outubro de 1969 e feita capital aberto na New York Stock Exchange, em 1972.
[←15]

Vick Vaporub é o nome comercial de uma pomada criada para desobstruir o nariz
trancado em situações de gripe e resfriado.
[←16]
O ágar-ágar, também conhecido simplesmente como ágar ou agarose, é um hidrocolóide fortemente
gelatinoso extraído de diversos gêneros e espécies de algas marinhas vermelhas que consiste em uma
mistura heterogênea de dois polissacarídeos, agarose e agaropectina.
[←17]

Um Grande Imundo é um Grande Demônio grotescamente corpulento do Deus da


Praga Nurgle , o Deus do Caos da doença, morte e decadência. Esses daemons repugnantes são os
precursores do senhor da podridão e da ruína, e entre os maiores servos do avô Nurgle, portadores de
suas mais sagradas pragas e varíolas.
[←18]

Djinn é uma entidade sobrenatural proveniente da cultura e mitologia islâmica. No mundo


ocidental, é representado como um génio na lâmpada. Na mitologia árabe ou islâmica, Djinn é um génio ou
uma entidade sobrenatural. Os Djinns habitam em um mundo intermediário, entre o humano e a instância
onde se encontram os anjos.
[←19]

Manipulação de Realidade de Bolso é um poder que gira em torno de manipular e criar


realidades de bolso. Geralmente significa que o usuário é capaz de controlar aspectos da realidade de seu
bolso, como manipular o tempo ou distorcer a realidade. Na maioria das vezes, limita-se aos limites da
realidade do bolso. O bolso ou a bolha é um universo em miniatura produzido artificialmente. Esses
universos coexistem com o nosso e não paralelo ao nosso.
[←20]
Flare significa um alargamento, dilatação, erupção. Na trama o Flare é um período onde a magia vem
com força total e desenfreada, costuma acontecer a cada sete anos.
[←21]
Livro 02 – Fogo Mágico.
[←22]

Rakshasa (em português, raxasa) é uma raça de seres mitológicos humanoides ou


espíritos malignos na religião Budista e Hindu. O nome vem do sânscrito "raksha", pedir proteção, já que
eram seres tão horripilantes que induziam, a quem quer que se deparassem com eles, a pedir proteção.
Livro 03 - Ataque Mágico.
[←23]

Veículo utilitário esportivo (conhecido como SUV, do inglês: "Sport Utility


Vehicle") é um veículo semelhante a uma camionete, normalmente equipado com com tração nas quatro
rodas para andar sobre todos os tipos de terreno.
[←24]

Cisterna
[←25]
A frase que se tornou popular para estampar camisetas é essa: Muggle in the Streets Wizard in the
Sheets (Trouxa nas ruas, magos na cama ou nos lençóis). É uma brincadeira adulta com o Universo de
Harry Potter que diz que você é um trouxa (uma pessoa que não tem qualquer tipo de habilidade mágica e
não nasceu em uma família mágica. Trouxas também podem ser descritos como pessoas que não têm
sangue mágico dentro delas) nas ruas, mas um mago nos lençóis. Basicamente, significa que você é um
qualquer nas ruas, mas um mágico no sexo.
[←26]

O ghoul é um monstro folclórico associado com cemitérios e que consome carne


humana, comumente classificado como morto-vivo. Na mitologia árabe, sua origem, é um monstro canibal
que habita debaixo da terra e outros lugares desabitados. O nome de origem da criatura é ‫اﻟﻐول‬,
significando demônio.
[←27]

macacão de segurança, riscos químicos e biológicos.


[←28]

Biscoitos Scooby é uma marca de biscoitos fictícia recorrente na série


Scooby-Doo. São frequentemente usados por Daphne ou Velma para convencerem Salsicha e Scooby-Doo
a serem iscas das armadilhas de Fred. O desenho é conhecido pelo desvendamento de mistérios a
parentemente sobrenaturais, mas que no final os amigos acabam descobrindo ser tudo uma farsa.
[←29]
Três Condados de do estado Americano da Georgia.
[←30]
São cervejas que no seu processo de produção é utilizado o mel para sua fermentação ao invés de
açúcar.
[←31]

O Kentucky é um estado da região sudeste dos EUA, delimitado pelo rio


Ohio ao norte e pelos Apalaches ao leste, que tem como capital a cidade de Frankfort. A maior cidade do
estado, Louisville, recebe o Kentucky Derby, a renomada corrida de cavalos realizada em Churchill Downs
no primeiro sábado de maio. A corrida é precedida por um festival de 2 semanas e celebrada no Kentucky
Derby Museum durante todo o ano.
[←32]

Tacos de frango
[←33]

muffins de mel
[←34]

Anatomia do fio de cabelo.


[←35]

Wilmington é a cidade mais populosa do estado norte-americano do


Delaware, no condado de New Castle.
[←36]

Universidade de North Carolina - A University of North Carolina


Wilmington é uma universidade pública de pesquisa em Wilmington, Carolina do Norte, Estados Unidos.
[←37]

A Colônia de Roanoke na Ilha de Roanoke no Condado de Dare na atual Carolina do


Norte foi um empreendimento financiado e organizado por Sir Walter Raleigh em fins do século XVI para
estabelecer um assentamento inglês permanente na Colônia da Virgínia. Entre 1585 e 1587, grupos de
colonos foram deixados ali com este intuito, todos os quais ou abandonaram a colônia ou desapareceram.
O último grupo desapareceu após um período de três anos sem suprimentos vindos da Inglaterra, o que
levou ao surgimento de um mistério que perdura até os dias de hoje, conhecido como "The Lost Colony"
("A Colônia Perdida"). A principal hipótese é que os colonos foram recebidos e incorporados a uma das
populações indígenas locais, embora também possam ter sido massacrados, pelos espanhóis ou
pelos índios powhatan.
[←38]

A Ilha de Páscoa, território chileno, é uma ilha vulcânica remota na Polinésia. Seu
nome original é Rapa Nui. Ela é famosa por seus sítios arqueológicos, que incluem as quase 900 estátuas
monumentais chamadas moais, criadas pelos habitantes durante os séculos XIII a XVI. Os moais são figuras
humanas esculpidas com cabeças gigantes que, muitas vezes, ficam sobre enormes pedestais de pedra,
chamados ahus. Ahu Tongariki tem o maior grupo de moais verticais.
[←39]

Índios pueblo são nativos norte-americanos que vivem no sudoeste dos Estados
Unidos e que têm em comum o seu estilo de vida em cidades construídas de adobe, pedra e outros
materiais locais.
[←40]

Anasazi é o termo utilizado para designar “os antigos” ou “antigos inimigos” pelos
Navajos, uma tribo indígena da América do Norte.
[←41]

O Enigma de Hoer Verde - A Cidade que desapareceu ou que jamais existiu ... Para mais
informações sobre esse caso: http://mundotentacular.blogspot.com/2016/11/o-enigma-de-hoer-verde-
cidade-que.html. Vale muito a pena ler.
[←42]

Wolf Trap é uma Região censo-designada localizada no estado


norte-americano da Virgínia, no Condado de Fairfax.
[←43]
GBI - Georgia Bureau of Investigation: Departamento de Investigação da Geórgia.
[←44]

A Kate se refere ao Bat-Sinal: um dispositivo de sinal de socorro que aparece nos


quadrinhos americanos publicados pela DC Comics, como forma de convocar o super-herói Batman.
[←45]

Norwood é uma cidade localizada no estado americano de Geórgia, no Condado de


Warren.
[←46]

Skean
[←47]

Chow-chow
[←48]

Sangria é o nome de uma bebida de origem espanhola. A sangria, também chamada de


zurra, é uma bebida ou coquetel feita com base numa mistura de vinho tinto ou vinho branco, sumo de fruta,
pedaços de frutas e açúcar. Pode levar outras bebidas como aguardente.
[←49]

O Cherufe é uma grande criatura mítica devoradora de homens encontrada na mitologia


mapuche do povo indígena mapuche do centro-sul do Chile.
[←50]

Raijū é uma criatura lendária da mitologia japonesa.


[←51]

Rottweiler é uma raça canina desenvolvida na Alemanha. Cão criado por açougueiros
da região de Rottweil para o trabalho com o gado, logo tornou-se um eficiente animal de guarda e
boiadeiro, além de ser útil na tração. Devido à sua utilidade, tornou-se popular em todo o mundo.
[←52]

pinças para churrasco


[←53]

Nínive, uma "cidade excessivamente grande", como é chamada no Livro


de Jonas, jazia na margem oriental do rio Tigre, na antiga Assíria. Nínive era um grande amontoado de
vários vilarejos ao longo do rio tigre. Onde atualmente existe a cidade moderna de Mossul, no estado de
Ninawa do Iraque.
[←54]
Os hatitas eram um povo indígena que habitava a região de Hatti (na Anatólia central), perto da
atual Ancara, Turquia, antes de povos indo-europeus se assentarem na região e do surgimento do Império
Hitita.
[←55]
Shalmaneser I, II, III, IV e V foram reis da Assíria entre os anos de 1274 A.C. até 722 A.C. Erra não específica
qual deles foi o avô de Kate. Provavelmente foi o Shalmaneser V: foi rei da Babilônia e da Assíria, sucessor
de Tiglate-Pileser III. No que se refere aos registros seculares, seu reinado é obscuro. Ele parece estar
alistado como rei da Babilônia por cinco anos, sob o nome de Ululaia.
[←56]

Dermestidae, popularmente chamados de besouros. Existem cerca de 500 a


700 espécies em todo mundo. Seu tamanho varia de 1 a 12mm. A principal característica é que os adultos
são ovais cobertos de cerdas ou escamas. Em geral são predadores, que se alimentam de animais ou
material orgânico seco, como por exemplo: células mortas de pele, pólen, pelos, penas, insetos mortos
e fibras naturais. Estes besouros são muito importantes para a Entomologia forense. Algumas espécies são
conhecidos por estarem associados com carcaças humanas, que contribuem com investigações criminais.
[←57]

Tíbia. Um dos ossos da perna.


[←58]

O termo em inglês é high-five.


[←59]
O Armagedão ou Armagedom é identificado na Bíblia como a batalha final de Deus contra a sociedade
humana iníqua, em que numerosos exércitos de todas as nações da Terra encontrar-se-ão numa condição
ou situação, em oposição a Deus e seu Reino por Jesus Cristo no simbólico "Monte Megido".
[←60]

Halteres
[←61]

Arsênico: um metaloide quase insípido e inodoro que causa significativa toxicidade aguda
e crônica em todo o mundo.
[←62]

Símbolo da oposição.
[←63]

Ursa Major, a Ursa Maior, é uma grande e famosa constelação do hemisfério celestial
norte. O genitivo, usado para formar nomes de estrelas, é Ursae Majoris.
[←64]
Em inglês está: ‘— Natned! Natned.’ Conlan que dizer Naked! Pelado, nu, sem roupas.
[←65]
Trata-se de um tratamento utilizado quando o casal por algum motivo não pode engravidar. Nesta
situação, este casal gera o embrião através de técnicas de fertilização in vitro (FIV) e, este embrião, é
transferido para o útero de outra mulher, que "carrega" o bebê por nove meses e dá a luz. Após o
nascimento, o bebê é devolvido aos pais.
[←66]

A subfamília Lutrinae pertence à família dos Mustelídeos. Existem 13


espécies, dentro de 7 géneros. Todas as espécies são nadadoras, vivendo no litoral, em rios ou em lagos, e
possuem os dedos unidos por membranas interdigitais, que facilitam a natação.
[←67]

Sandy Springs é uma cidade localizada no estado americano da


Geórgia, no Condado de Fulton.
[←68]

Animais que se locomovem em duas pernas, como os humanos.


[←69]

São músculos profundos do antebraço.


[←70]

Importante vaso sanguíneo do pescoço.


[←71]

A artéria femoral é a segunda maior artéria do corpo (a primeira é a aorta), localizada


ao longo da coxa, sendo o principal vaso sanguíneo a irrigar o membro inferior.
[←72]

tomahawks
[←73]
PAD (Paranormal Activity Division) – Divisão de atividade paranormal.
[←74]

Suanni, semelhante a um leão e tem uma afinidade


com o fogo, mais informações nesse site ... https://www.chinalinktrading.com/blog/lenda-do-dragao-
chines/
[←75]

Os Sidônios, mais conhecidos como fenícios*, eram um


povo oriundos do norte da Palestina. O termo Sidônio deriva do nome Sídon. Sídon, de acordo com a
Bíblia, era filho de Canaã e neto de Cã sendo, portanto, pertencente ao grupo de nações camitas. Viviam
no Norte da Palestina, entre o Mar Mediterrâneo e o território que hoje corresponde ao Líbano, Síria e
Israel. Os fenícios são conhecidos como o povo do mar. Isso porque eles foram grandes mercadores
marítimos e contribuíram para o desenvolvimento da Astronomia.
[←76]

Tiro é uma cidade fenícia, localizada no atual Líbano, na costa do


mar Mediterrâneo, a cerca de 30 km de Sídon. A cidade moderna é chamada hoje de Sur.
[←77]

Faca Bowie usada para Caça e Pesca.


[←78]

Gainesville é uma cidade localizada no estado norte-americano


da Flórida, no condado de Alachua, do qual é sede. Foi incorporada em 1869.
[←79]

O robalo riscado é um peixe anádromo encontrado ao longo da Costa Atlântica da América


do Norte, do norte da Flórida ao estuário do Rio São Lourenço.
[←80]

O lago Lanier é um lago artificial na parte norte dos Estados Unidos, estado da Geórgia.
Foi criado pela realização de Buford barragem no rio Chattahoochee em 1956, e é também alimentada
pelas águas do rio Chestatee.
[←81]
No original Teddy Jo diz: It’s not a corpse bus. It’s a Multiple Recently Deceased Efficient Removal
vehicle. (Tradução: Isto não é um ônibus de cadáveres. É um veículo de Remoção Eficiente de Vários
Recém-mortos.) Sendo a sigla em inglês MURDER. Murder em inglês é morte, matança, assassinato, crime,
homicídio. Na tradução para o português perdeu a comicidade e eu não encontrei algo para substituir que
desse a mesma intenção da autora.
[←82]

Um célebre médico russo do início do século 20, chamado Ivan


Pavlov, treinou cachorros para que eles salivassem sem que houvesse nenhuma comida por perto. A coisa
funcionava assim: toda vez que os bichos eram alimentados, o médico tocava uma sineta. Com o tempo, os
cães começaram a associar as badaladas à comida. E chegavam a babar famintos só de ouvir o sino,
mesmo que o prato deles estivesse vazio. A ideia do médico russo era propor uma novidade científica: os
reflexos condicionados.
[←83]

Faes também chamados de fadas são seres mitológicos, característico dos


mitos célticos e germânicos.
[←84]

Torque, é um grande anel rígido ou rígido em metal, feito como uma peça única ou com fios
torcidos juntos. A grande maioria está aberta na frente, embora alguns tivessem fechos de gancho e anel e
alguns tivessem travas de treliça e trava para fechar. Muitos parecem projetados para uso quase
permanente e teriam sido difíceis de remover.
[←85]
O código de área serve para identificar uma localidade ou um conjunto de localidades e deve ser
usado para a realização de ligações de longa distância.
[←86]

Átila, o Huno, também conhecido como Praga de Deus ou Flagelo de Deus,


foi o rei dos hunos, que governou o maior império europeu de seu tempo desde o ano 434 até sua morte
em 453. Suas possessões se estendiam da Europa Central até o mar Negro, e desde o Danúbio até o
Báltico.
[←87]

Gengis Khan, grafado também como Genghis Khan foi o título de um


conquistador e também, atualmente, o nome do imperador mongol, nascido com o nome de Temudjin nas
proximidades do rio Onon, perto do lago Baikal. Gengis Khan nasceu cercado de lendas sobre a vinda de
um lobo cinzento que devorava toda a Terra.
[←88]

Os Citas eram um povo nômade que dominou o estepe


Pôntico no século VII aC até o século III aC.
[←89]

Os trácios foram um povo indo-europeu, habitante da Trácia e regiões adjacentes.


Falavam o idioma trácio.
[←90]

Na mitologia nórdica, Jotunheim ou Jötunheimr é o mundo dos gigantes. A partir deste


mundo, os gigantes ameaçavam os seres humanos em Midgard e os deuses em Asgard. A cidade principal
de Jotunheim é Utgard.
[←91]

Sinais de trilha são símbolos usados por aqueles que costumam fazer trilhas
ecológicas. Esses sinais podem ser: Direcionais, confirmatórios, calmantes, indutiva e interpretativa. Creio
que Julie está se referindo a um sinal do tipo calmante: que é aquele que de tempos em tempos
reassegura ao caminhante de que está no caminho correto.
[←92]

Os Illuminati é um nome dado a vários grupos, tanto reais quanto fictícios.


Historicamente, o nome geralmente se refere aos Illuminati da Baviera, uma sociedade secreta da época
do Iluminismo fundada em 1 de maio de 1776.
[←93]

Hobo é um termo da língua inglesa que designa um trabalhador itinerante, sem-teto,


muito pobre mas com certo espírito aventureiro, que viaja sem destino, frequentemente como passageiro
clandestino de trens de carga. Para lidar com as incertezas da vida, os hobos desenvolveram um sistema
de símbolos que escreveriam com giz ou carvão para fornecer aos colegas "Cavaleiros da Estrada"
orientações, ajuda e avisos.
[←94]

As harpias são criaturas da mitologia grega, frequentemente representadas como aves


de rapina com rosto de mulher e seios. Na história de Jasão, as harpias foram enviadas para punir o cego
rei trácio Fineu, roubando-lhe a comida em todas as refeições.
[←95]

Um obus é um tipo de boca de fogo de artilharia que se caracteriza


tradicionalmente por dispor de um tubo relativamente curto e por disparar projéteis explosivos em
trajetórias curvas.
[←96]

Balista
[←97]

David Bowie, nome artístico de David Robert Jones, foi um cantor, compositor,
ator e produtor musical britânico. A música que Kate se refere é: Cat People (Putting Out Fire).
https://www.youtube.com/watch?v=VpdHMaccjw4
[←98]

A Turmalina Negra é uma super pedra de proteção capaz de absorver e dissipar todas
energia negativas. Sua vibração neutraliza até os ataques mais fortes de magia negra, inveja e vampirismo
energético.
[←99]

O microscópio é um instrumento óptico com capacidade de ampliar imagens de objetos


muito pequenos graças ao seu poder de resolução. Este pode ser composto ou simples: microscópio
composto tem duas ou mais lentes associadas; microscópio simples é constituído por apenas uma lente
células.
[←100]

As chamadas centrífugas são aparelhos construídos a fim de permitirem a separação de


substâncias que possuam densidades diferentes em uma mistura via decantação. É utilizada, a exemplo, na
separação dos elementos sanguíneos.
[←101]

Chuveiro de descontaminação ‘chuveiro de emergência’ é um equipamento projetado


para promover uma descontaminação eficiente, por meio de um fluxo controlado de água, com velocidade
relativamente alta para o fim ao qual se destina, porém inofensiva ao usuário.
[←102]

Machado estilo viking bordas duplas e única


[←103]

faca de bolso dentes de tubarão


[←104]

Merlim, Merlin ou ainda Merlino foi um mago, profeta e conselheiro do rei Artur nas
lendas e histórias do Ciclo Arturiano. Surgido pela primeira vez em obras do século XII, o personagem
tornou-se um dos mais populares das lendas arturianas.
[←105]
Miasma significa poluição, mas não no sentido que hoje lhe damos. Miasma é toda a sujidade associada
ao mundano, a sujidade que este gera: quando corremos e transpiramos estamos a criar miasma, quando
sangramos temos miasma, se caímos numa poça de lama geramos miasma. Antiga palavra usada para se
referir a vapores provindos de lugares pútridos, dos quais se pensava que causavam várias doenças, como
a cólera e a malária.
[←106]
Anosmia: diminuição ou perda absoluta do olfato, que pode ocorrer por lesão do nervo olfativo,
obstrução das cavidades nasais, reflexo de outras doenças ou ainda sem qualquer lesão aparente.
[←107]

Fáscia são planos de tecido conjuntivo, organizados no corpo humano


em camadas. Elas envolvem e dão forma aos músculos, preenchem os espaços e dão unidade à estrutura,
ao mesmo tempo em que criam as condições necessárias a que cada segmento do corpo funcione de
maneira adequada e em cooperação mútua. Flexibilizar os tecidos, descolar as camadas umas das outras e
reposicioná-las, reduzindo as tensões e os encurtamentos, estão entre as principais tarefas empreendidas
no processo de integração.
[←108]
Intoxicação pela exotoxina de Clostridium botulinum e Clostridium parabotulinum, bacilos que se
desenvolvem na comida enlatada mal esterilizada, assim como em carnes, conservas e embutidos
culinários; alantíase.
[←109]
Roseola é uma infecção causada por um vírus. É caracterizada pelo início repentino de febres altas,
seguido pelo aparecimento de uma erupção cutânea. Normalmente, essa condição se cura sem problemas
e pode brotar em qualquer época do ano, mas é mais comum na primavera e no outono.
[←110]
O vírus respiratório sincicial (RSV) é uma das principais causas de doença respiratória grave em bebês
prematuros e crianças de até 5 anos. Os sintomas podem variar de uma leve gripe até bronquiolite e
pneumonia.
[←111]
Infecção intestinal marcada por diarreia, cólicas, náuseas, vômitos e febre.
[←112]
Coqueluche é uma doença altamente contagiosa, que ocorre principalmente em crianças e adolescentes,
causada por bactérias Gram-negativas Bordetella pertussis.
[←113]
Desinformação (termo originalmente militar) é a informação falsa que se espalha como parte de um
esforço estratégico para enganar, subterfugar ou confundir.
[←114]

O nó górdio é uma lenda que envolve o rei da Frígia e Alexandre, o Grande. É


comumente usada como metáfora de um problema insolúvel, resolvido facilmente por ardil astuto ou por
"pensar fora da caixa”.
[←115]

Alvo de tiro
[←116]

Shiva é um dos deuses supremos do hinduísmo, conhecido também como "o destruidor e
regenerador" da energia vital; significa o "benéfico", aquele que faz o bem. Shiva também é considerado o
criador do Yoga (Ioga), devido ao seu poder de gerar transformações, físicas e emocionais, em quem
pratica a atividade.
[←117]

Toyota Land Cruisers.


[←118]

Panthersville é uma Região censo-designada localizada no


estado americano de Geórgia, no Condado de DeKalb.
[←119]

Buckhead é um distrito comercial e residencial rico


de Atlanta, na Georgia, compreendendo aproximadamente o quinto norte da cidade. O elegante bairro é
conhecido por shoppings de luxo e galerias de arte independentes que se agrupam em torno da Miami
Circle e da Bennett Street. Os habitantes locais, que estão sempre bem vestidos, frequentam os
restaurantes modernos da Peachtree Road e da Roswell Road, já os bares e clubes animados são os
favoritos dos jovens na casa dos 20 e poucos anos. A mansão do governador em arquitetura neogrega e o

Atlanta History Center são os pontos de referência sobre a história local. Para
quem tem curiosidade, esse é o saguão do hotel que acabou sendo transformado na sede da Associação
depois da Mudança. Sheraton Atlanta Hotel, que fica em Buckhead, Atlanta EUA.
[←120]

Boggart é um dos numerosos termos relacionados usados no folclore Inglês


para um espírito familiar ou um gênio maléfico que habita campos, pântanos ou outras características
topográficas
[←121]

Jacksonville é a cidade mais populosa do estado


norte-americano da Flórida, localizada no condado de Duval, do qual é sede. É a terceira cidade mais
populosa na costa leste dos Estados Unidos, depois de Nova Iorque e Filadélfia e a 11ª mais populosa do
país. Foi fundada em 1791 e incorporada em 9 de fevereiro de 1832.
[←122]

Uma seteira, em arquitetura militar, é uma abertura ou um


rebaixamento na muralha, que em sua primitiva concepção permitia aos defensores lançar flechas.
[←123]
Significado de Teofagia. substantivo feminino Em algumas religiões primitivas, ingestão sacramental do
respectivo Deus, sob a forma de um homem, um animal ou qualquer imagem simbólica. Etimologia
(origem da palavra teofagia). Teo + fago + ia.
[←124]

Deimos na mitologia grega, é o deus do terror. Na Teogonia, de Hesíodo, ele é um


dos três filhos de Ares e de Afrodite, sendo irmão de Fobos, o medo, e Harmonia, que se casou
com Cadmo. O terrível Deimos é a personificação do pânico e acompanhava seu pai e seu irmão Fobos,
fazendo as tropas abandonarem a formação e fugirem desordenadamente.
[←125]
Battle spoils ou spoils of war (Despojos da Guerra) é quando os vencedores se apropriam de tudo o que
poderia ser de valor que tenha sobrada da batalha.
[←126]

Commentarii de Bello Gallico é um texto de Júlio César onde ele relata as


operações militares durante as Guerras da Gália, que se desenrolaram de 58 a.C. a 52 a.C., das quais ele foi
vencedor. http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/cesarPL.html
[←127]

Glifo designava a princípio qualquer signo entalhado ou pintado, a exemplo dos glifos
da escrita maia e dos hieróglifos egípcios.
[←128]

As runas são letras características, usadas para escrever nas línguas germânicas da
Europa do Norte, sobretudo Escandinávia, ilhas Britânicas e Alemanha desde o século II ao XI.
[←129]

O Futhark antigo é a versão do alfabeto rúnico usada na Escandinávia e Alemanha


desde o século II até ao século IX. Foi sucessivamente substituído pelo Futhark recente. É constituído por
24 caracteres conhecidos como runas.
[←130]

Serpente e Z-Haste
[←131]

Os Pictos eram antigos habitantes da Escócia que estabeleceram o seu próprio


reino e lutaram contra os romanos na Britânia. Fontes romanas afirmam que os Pictos teriam um poderoso
reino com centro em Strathmore.
[←132]

W. A. Cummins, Decoding Pictish Symbols.


[←133]

Discos duplos e Haste em Z. Símbolo Pictórico.


[←134]

A Muralha de Adriano é uma fortificação construída principalmente em pedra e


madeira, no norte da Inglaterra, aproximadamente na atual fronteira com a Escócia. Foi assim denominada
em homenagem ao imperador romano Públio Élio Trajano Adriano, que ordenou a sua construção.
[←135]

A Muralha de Antonino é uma fortificação construída basicamente de turfa e pedra


pelos romanos na área atualmente conhecida como "cinturão central" da Escócia, ou Central Belt. Foi
assim denominada em homenagem ao imperador Antonino Pio que ordenou sua construção.
[←136]
Caledônia ou Caledónia é a denominação atribuída pelo Império Romano à região setentrional da ilha da
Grã-Bretanha, grosso modo correspondente ao território atual da Escócia. Em alguns contextos pode
significar o norte da área da Muralha de Adriano.
[←137]
Anno Domini, também apresentado na sua forma abreviada A.D., é uma expressão utilizada para marcar
os anos seguintes ao ano 1 do calendário mais comumente utilizado no Ocidente, designado como "Era
Cristã" ou, ainda, como "Era Comum".
[←138]

Centennial Olympic Park é um extenso parque público localizado no centro de


Atlanta, Geórgia. Pertence e é operado pela Georgia World Congress Center Authority. O parque foi
construído pelo Comitê de Atlanta para os Jogos Olímpicos, como parte das melhorias de infra-estrutura
para os Jogos Olímpicos de Verão de 1996.
[←139]
Panteão significa literalmente o conjunto de deuses de determinada religião. Eventualmente, o termo
"panteão" passou a significar tanto o conjunto de deuses quanto o templo específico a eles devotado.
[←140]

Também conhecido como Crnoglav, Czernobog, Chernabog e


Tchernobog, Chernobog é uma divindade da mitologia eslava, cujo o nome significa deus negro e tem
como opositor seu irmão, Belbog, que representa a bondade, felicidade e vida.
[←141]

Belbog, Belobog ou Bilobog (em português, "Deus Branco") é o deus da bondade, luz ou
vida na mitologia eslava. Se opõe ao deus Chernobog que representa a maldade.
[←142]

Hécate é uma das deusas mais cultuadas do panteão grego. É conhecida como deusa
do submundo, da magia, da bruxaria em si, da encruzilhada, da noite e do fogo. Ela reina sobre a terra, o
céu e os mares, e também é identificada como alma do mundo cósmico. É uma deusa trina, que
geralmente é representada segurando tochas, uma chave, e com seus animais símbolos, a serpente e o
cão. Apesar disso, todos os animais são consagrados à Hécate, e ela pode ser retratada como uma deusa
com faces de animais. Estes animais podem ser o cavalo, a vaca, o porco, além do cão e da serpente.
[←143]

Katana
[←144]

Chute alto
[←145]

Um capacete de calcio ou um capacete do tipo da Cálcida era um capacete feito de


bronze e usado por antigos guerreiros do mundo helênico, especialmente popular na Grécia nos séculos V
e IV aC. O capacete também foi usado extensivamente nas partes gregas da Itália no mesmo período.
[←146]

Espada y Daga - As técnicas originais do Kali, mano y


daga, entre outras, foram somadas e adaptadas à estratégia espada e adaga dos espanhóis e as noções de
ângulos de ataque.
[←147]

Espada espanhola
[←148]

Garab
[←149]

A Kate se refere ao filme ‘The Killers’ (em português Os Assassinos), lançado no


Reino Unido como "The Killers", de Ernest Hemingway, é um filme de crime americano de 1964 lançado
pela Universal Studios. Escrito por Gene L. Coon e dirigido por Don Siegel, é a segunda adaptação de
Hollywood do conto de Ernest Hemingway de 1927, com o mesmo nome, após a versão de 1946.
[←150]

Perun era o deus do raio e da tempestade da mitologia eslava.


[←151]

Arma de choque.
[←152]

Um cocar é o adorno usado por muitas tribos indígenas americanas na região


da cabeça. Sua função variava de tribo pra tribo, podendo servir de adorno a símbolo de status ou classe na
tribo. Geralmente, é confeccionado de penas presas a uma tira de couro ou de outro material.
[←153]

Drest ou Drust , filho de Erp, é um rei lendário dos pictos de 412 a 452.
[←154]

Há um ritual pagão celta que consiste em queimar uma estátua gigante de vime que possui a
forma de uma pessoa. Há alguns relatos sobre a mitologia celta que havia pessoas vivas dentro dessas
estátuas e que elas eram queimadas em sacrifício. O ritual servia de agradecimento à boa colheita, porém
também era usado como condenação: em geral, as vítimas eram ladrões e criminosos variados. As
“oferendas” ficavam presas em gaiolas de madeira dentro da estátua que era incendiada diante a
comunidade que entoava cânticos.
[←155]

Morrigan é a patrona das sacerdotisas e das bruxas. É também a deusa celta da guerra e seu
nome significa “Grande Rainha”.
[←156]

Cessair era, na mitologia celta, uma rainha-feiticeira que invadira a ilha, que se
tornaria a Irlanda, após o grande dilúvio com seu séquito numeroso. Trata-se de uma reencarnação de
Circe de Homero.
[←157]

Partólomo é um personagem da história cristã irlandesa. Segundo a tradição, ele


foi o líder do segundo grupo a se estabelecer na Scotia (hoje Irlanda), o Muintir Partholóin (pessoas de
Partólomo). Chegaram na ilha desabitada cerca de 300 anos após o Dilúvio de Noé e são responsáveis pela
introdução da agricultura, da culinária, da fabricação de cerveja e da construção de edifícios. Depois de
alguns anos, todos eles morreram de peste em uma única semana. Partólomo vem do nome
bíblico Bartholomaeus ou Bartholomew , e ele pode ter sido emprestado de um personagem com esse
nome que aparece nas histórias cristãs da São Jerônimo e Isidoro de Sevilha.
[←158]
Nemed, que significa "sagrado" ou "privilegiado", é uma figura da Mitologia irlandesa que aparece
no Livro das Invasões. Ele foi o líder dos terceiro grupo de habitantes da Irlanda, os Nemedianos.
[←159]

Pedras antigas
[←160]

Disco Solar
[←161]

Gaita de fole é um instrumento da família dos aerofones, composto de pelo menos


um tubo melódico e dum insuflador mediado por uma válvula, ambos ligados a um reservatório de ar; na
maioria dos casos, há pelo menos mais um tubo melódico, pelo qual se emite uma nota pedal constante
em harmonia com o tubo melódico.
[←162]

Na mitologia irlandesa, os Fomorianos foram uma raça semi-divina que habitou a


Irlanda nos tempos antigos. Ela afirma que estes seres precederam aos deuses, da mesma forma que os
Titãs gregos. Representavam os deuses do Caos e da natureza, ao contrário dos Tuatha Dé Danann, que
representam os deuses da civilização.
[←163]

Os Tuatha Dé Danann formam um grupo de personagens na mitologia irlandesa e


escocesa. Foram o quinto grupo de habitantes da Irlanda, de acordo com a tradição do Lebor Gabála
Érenn.
[←164]

Morrigan e Morfran
Morfran é uma figura da mitologia galesa. Normalmente retratado como um guerreiro sob o rei Arthur,
ele é conhecido pela escuridão de sua pele e seu hediondo. Ele aparece nas narrativas sobre o bardo
Taliesin e nas tríades galesas, onde costuma contrastar com o belo e angelical Sanddef.
[←165]

martelo de guerra
[←166]

Dervixe são praticantes do islamismo sufista que segue o caminho ascético da


"Tariqah", conhecidos por sua extrema pobreza e austeridade. Os dervixes mais conhecidos no mundo são
os da ordem Mevlevi, célebres pela cerimônia de adoração em que rodopiam num ato devocional
denominado "dhikr". A Ilona se refere aos rodopios que os dervixes fazem durante uma celebração, ela
usou esse termo como alusão ao giro preciso de ataque.
[←167]

Skittles é uma marca de doces com sabor de frutas, atualmente produzido e


comercializado pela Wm. Wrigley Jr. Company, uma divisão da Mars, Inc.. Eles têm cascas duras de açúcar
que carregam a letra S.
[←168]

Jiboia.
[←169]

Magnólias
[←170]

Bairro de Atlanta
[←171]

Decatur é uma cidade localizada no estado americano de Geórgia, no


Condado de DeKalb.
[←172]

javali
[←173]

Moccus é um deus celta que foi equiparado a Mercúrio. Ele é o deus javali /
porco / suíno da tribo continental Celtic Lingones. Moccus foi invocado como protetor de caçadores de
javalis e guerreiros. A carne de javali era sagrada e consumida em festas rituais.
[←174]
Na medicina ocidental, estase significa o estado no qual o fluxo normal de um líquido corporal para. Por
exemplo, o fluxo de sangue através dos vasos sanguíneos ou o fluxo do conteúdo intestinal através do trato
digestivo. De forma semelhante, para a medicina chinesa, mais conhecida no ocidente através da acupuntura,
a estase é a retenção da energia vital em alguma parte específica do corpo (órgão ou víscera), constituindo por
si só uma patologia. O termo encontra, entretanto, aplicação em outros ramos do conhecimento, com o
sentido genérico de entorpecimento, paralisia.
[←175]

Kairós, na mitologia grega, é o deus do tempo oportuno. Os gregos antigos tinham duas
palavras para o tempo: chronos e kairós. Enquanto o primeiro refere-se ao tempo cronológico ou
sequencial (o tempo que se mede, de natureza quantitativa), Kairós possui natureza qualitativa, o
momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece: a experiência do momento oportuno.
[←176]
O bolso ou a bolha é um universo em miniatura produzido artificialmente. Esses universos coexistem
com o nosso e não paralelo ao nosso.
[←177]
Dobra Espaço Tempo: A teoria de viagem através de dobra espacial baseia-se no conceito acima e na
Teoria da Relatividade de Albert Einstein, a qual afirma que as grandes massas de gravidade aglomeradas
criariam fendas no espaço-tempo, que concentrariam não só massa e energia, mas o próprio tempo junto.
[←178]

A História dos Três Ursos, Os Três Ursos, Cachinhos Dourados e os Três


Ursos mais conhecida apenas como Cachinhos Dourados é uma história infantil primeiramente registada
em forma de narrativa pelo autor e poeta inglês Robert Southey e publicado pela primeira vez num volume
de seus escritos em 1837.
[←179]

Um abajur Tiffany é um tipo de abajur feito com vitrais, projetada por Louis Comfort
Tiffany e seu estúdio de design. O mais famoso foi o abajur de vidro com chumbo manchado. As lâmpadas
Tiffany são consideradas parte do movimento Art Nouveau.
[←180]
Idiot Savat é alguém que tem uma deficiência mental, mas que é muito bom em fazer uma coisa em
particular, por exemplo, lembrar de coisas. A síndrome do sábio, síndrome do idiota-
prodígio ou savantismo (do francês savant, "sábio") é considerado um distúrbio psíquico com o qual a
pessoa possui uma grande habilidade intelectual aliada a um déficit de inteligência. Tais habilidades são
sempre ligadas a uma memória extraordinária, porém com pouca compreensão do que está sendo
descrito.
[←181]

Dungeons & Dragons é um RPG de alta fantasia desenvolvido originalmente


por Gary Gygax e Dave Arneson, e publicado pela primeira vez em 1974 nos Estados Unidos pela TSR, Inc.,
empresa de Gary Gygax. Hoje o jogo é publicado pela Wizards of the Coast. Suas origens são os wargames
de miniaturas.
[←182]

Supernova é um evento astronômico que ocorre durante os estágios finais


da evolução de algumas estrelas, que é caracterizado por uma explosão muito brilhante.
[←183]
Tornar bruto, estúpido; embrutecer, estupidificar.
[←184]
A expressão completa em inglês é: ‘The pot calling the kettle black’ (A panela falando da chaleira preta).
Essa expressão significa alguém criticando o outro por algo que ele poderia facilmente aplicar a si mesmo.
[←185]

Clava
[←186]

As tubas uterinas, também denominadas como trompas de Falópio, são dois tubos
contráteis, com 10 centímetros cada aproximadamente, que se estendem do ângulo súpero-lateral do
útero para os lados da pelve. As tubas uterinas transportam os óvulos que romperam a superfície do
ovário até a cavidade do útero.
[←187]
Distúrbio em que o tecido que normalmente reveste o útero cresce fora do útero.
[←188]
A fertilização in vitro é uma técnica de reprodução medicamente assistida que consiste na união do
espermatozoide com o ovócito em ambiente laboratorial.
[←189]

Kodiak
[←190]

Órbita ocular é a cavidade no crânio onde o globo ocular fica encaixado.


[←191]
Electrum: uma liga de ouro natural ou artificial com pelo menos 20% de prata, usada para joias,
especialmente nos tempos antigos.
[←192]
A tradução da expressão francesa N’importe quoi ao pé da letra é “não interessa o que”. Ela pode
significar “Qualquer coisa” em frases do tipo: Je peux faire n’importe quoi, mas no seu maior uso ela teria
um significado mais pejorativo, algo que seria próximo do nosso coloquial “bobagens”
[←193]

Pináculo é o ponto mais alto de um determinado lugar, um edifício ou uma torre, por
exemplo
[←194]

Fortaleza típica Anglo-Normanda.


[←195]
Ashuri ou Ashurit, geralmente traduzido como "assírio", refere-se ao alfabeto aramaico usado no
judaísmo. Embora chamado Ashurit, é hoje amplamente conhecido pelos filólogos como o alfabeto
aramaico. Acredita-se que, durante o período de domínio assírio, a escrita e o idioma aramaico receberam
status oficial.
[←196]

obsidiana
[←197]

Mufasa é um personagem do desenho animado Simba, da Disney. Mufasa é o rei leão, pai de
Simba que é morto por seu irmão Scar.
[←198]

Napalm (Naftenatos de alumínio/Palmitato de alumínio mistura), NP (NaPalm) é


associado a um conjunto de líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada, utilizados como armamento
militar incendiário.
[←199]
MSDU – sigla para ‘Military Supernatural Defense Unit’: Unidade Militar de Defesa Sobrenatural.
[←200]

O shofar é considerado um dos instrumentos de sopro mais antigos. Somente a flauta do


pastor – chamada ugav, na Bíblia – tem registro da mesma época, mas não tem função em serviços
religiosos nos dias de hoje. Feito de chifres de animais. Quem tiver curiosidade: O som do shofar
https://www.youtube.com/watch?v=sOJSjVp6UTc
[←201]
Bloody Fields of Flanders https://www.youtube.com/watch?v=MFFA6jCfX5k&t=27s
[←202]
Freedom Come-All-Ye https://www.youtube.com/watch?v=rIDqtL0s-w4
[←203]

Catapulta
[←204]
A aorta é o principal vaso sanguíneo do corpo. Ela sai do coração, passa pelo peito e segue rumo ao
abdômen, onde se divide para levar sangue às pernas.
[←205]

Frísio (ou frisão), também chamado de friesian, é uma raça de cavalos de cor negra
originária da Frísia. É um animal de temperamento dócil e fisicamente bastante robusto. É criado
principalmente na Frísia, litoral norte dos Países Baixos, de onde se origina seu nome.
[←206]
O nome de infância de Erra.
[←207]
Erra se refere as Estepes Russas, local de origem dos antepassados de Julie.
[←208]

Banshee é um ente fantástico da mitologia celta que é conhecida como Bean Nighe na
mitologia. Fala-se que a Banshee seria um ser maligno.

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