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OS CISNES SELVAGENS

Havia um rei que tinha onze filhos homens e quais deverás tecer onze túnicas. Durante todo o
uma filha chamada Elisa. Ao ficar viúvo, pensou em tempo que este trabalho durar, não poderás
se casar outra vez e contraiu matrimônio com uma pronunciar uma só palavra, pois, do contrário, graves
perversa mulher, que, logo, começou a odiar os desgraças recairão sobre os teus irmãos. Por último,
enteados. Maltratava-os dia e noite e tornava-lhes quando as túnicas estiverem prontas, atirarás cada
impossível à vida no palácio. uma num dos cisnes-príncipes e eles votarão a ser
Um dia, a rainha mandou a pequena Elisa ao homens para o resto da vida."
campo, para que vivesse com os camponeses e Na manhã seguinte, Elisa, lembrando-se do
conseguiu que uma bruxa transformasse os meninos sonho que teve, começou o penoso trabalho que a
em cisnes. Passaram-se os anos. Elisa, que se fada lhe ordenara.
tornara uma belíssima donzela, voltou ao palácio. Um dia, quando estava sozinha na gruta, a
A madrasta, vendo-a tão formosa e tecer as túnicas, ouviu ressoar no bosque os sons de
inteligente, colocou-lhe na água do banho três sapos, trombetas de caçar e ladrar de cães. Pouco depois,
para que se transformasse em moça feia, estúpida e um grupo de caçadores surgiu entre as árvores.
má. Mas a bondade de Elisa era tamanha que os três O rei do país, que fazia parte da turma de
horríveis bichos, ao seu contato, se converteram em caçadores, ficou impressionado com a beleza de
três lindas rosas. Elisa e decidiu casar-se com ela, embora não
A madrasta, enraivecida, untou com uma conseguisse nenhuma resposta às perguntas, que
pasta o rosto e o corpo da princesinha e prendeu–lhe lhe dirigiu. Levou-a para o palácio, se casando já no
completamente os cabelos. Transformou-a de tal dia seguinte. Feita rainha, Elisa continuava tecendo
maneira que o pai imaginou que era uma impostora e as túnicas sem proferir uma única palavra, até que,
expulsou-a do reino. afinal, todos acreditaram que era muda.
Fora do palácio, Elisa dedicou-se a procurar Alguns cortesãos, invejosos do amor que o rei
seus irmãos. Caminhava o dia inteiro, alimentava-se sentia por ela, foram dizer-lhe que a rainha não
com frutos silvestres e passava a noite dormindo passava de uma feiticeira. Certa noite, enquanto a
embaixo de uma árvore qualquer. infeliz soberana havia descido ao jardim para colher
Afinal, chegou a um grande rio. O sol estava urtigas, o rei a viu e, pensando que estava colhendo
se pondo e a jovem viu chegarem à margem da ervas maléficas, convenceu-se de que ela era mesmo
corrente onze cisnes alvíssimos, que possuíam cada uma bruxa.
qual a sua coroa de ouro. As aves pousaram perto Embora muito magoado, entregou-a ao
dela, batendo as grandes asas e, no momento em julgamento do povo. Este condenou a suposta
que o sol desaparecia no horizonte, transformaram- feiticeira a morrer queimada. A infeliz moça não
se em onze belos rapazes. deixou escapar nenhuma palavra ou suspiro para
Eram seus irmãos, que a abraçaram e lhe mostrar sua inocência e, na escura prisão onde tinha
contaram a magia feita contra eles pela bruxa, por sido encarcerada, continuava tecendo as túnicas.
ordem da madrasta e em virtude da qual só Elisa continuou seu trabalho de fazer as
readquiriam a forma humana depois do pôr do sol. túnicas em silencio também na própria carruagem em
"Amanhã, iremos a um país distante", disse o que ia sendo conduzida para a morte.
mais velho, "e tu irás conosco." Passaram a noite Quando, porém, atravessava uma ponte que
tecendo uma rede com a casca do salgueiro e as levava ao lugar da fogueira, a jovem, que havia,
varinhas de juncos. Quando amanheceu, colocaram então, terminado as onze túnicas, viu os brancos
Elisa e, sustentando com o bico as bordas da rede, cisnes, que nadavam lá embaixo, no rio.
saíram voando. Proferindo, então, exclamações de júbilo,
Após muitas horas, chegaram ao longínquo jogou as túnicas sobre as onze aves. Estas, no
país, entraram numa gruta no meio de um bosque e mesmo instante recuperaram sua figura humana e
ficaram dormindo. Só Elisa vigiava, rogando a Deus foram explicar tudo ao rei.
o meio de salvar os irmãos. Apenas fechou os olhos, Elisa, que havia desmaiado de emoção, abriu
apareceu–lhe em sonho belíssima fada, que lhe os olhos, viu-se amparada nos braços de seu real
disse: esposo e rodeada por onze irmãos, que a levaram
"Para libertares teus irmãos do feitiço, tens triunfalmente para o palácio real.
que colher todas as urtigas que puderes, esmaga-las
com teus pés até que se desprendam fibras, com as Hans Christian Andersen
BRINCADEIRA

Começou como uma brincadeira. Telefonou para Mas dali a pouco veio um telefonema.
um conhecido e disse: – Escute. Estive pensando melhor. Não espalha
– Eu sei de tudo. nada sobre aquilo.
Depois de um silêncio, o outro disse: – Aquilo o quê?
– Como é que você soube? – Você sabe.
– Não interessa. Sei de tudo. Passou a ser temido e respeitado. Volta e meia
– Me faz um favor. Não espalha. alguém se aproximava dele e sussurrava:
– Vou pensar. – Você contou pra alguém?
– Por amor de Deus. – Ainda não.
– Está bem. Mas olhe lá, hein? – Puxa. Obrigado.
Descobriu que tinha poder sobre as pessoas. Com o tempo, ganhou uma reputação. Era de
– Sei de tudo. confiança. Um dia, foi procurado por um amigo com
– Co – como? uma oferta de emprego. O salário era enorme.
– Sei de tudo. – Por que eu? – quis saber.
– Tudo o quê? – A posição é de muita responsabilidade – disse o
– Você sabe. amigo. – Recomendei você.
– Mas é impossível. Como é que você descobriu? – Por quê?
A reação das pessoas variava. Algumas – Pela sua discrição.
perguntavam em seguida: Subiu na vida. Dele se dizia que sabia tudo sobre
– Alguém mais sabe? todos mas nunca abria a boca para falar de
– Outras se tornavam agressivas: ninguém. Além de bem–informado, um gentleman.
– Está bem, você sabe. E daí? Até que recebeu um telefonema. Uma voz
– Daí nada. Só queria que você soubesse que eu misteriosa que disse:
sei. – Sei de tudo.
– Se você contar para alguém, eu... – Co – como?
– Depende de você. – Sei de tudo.
– De mim, como? – Tudo o quê?
– Se você andar na linha, eu não conto. – Você sabe.
– Certo Resolveu desaparecer. Mudou-se de cidade. Os
Uma vez, parecia ter encontrado um inocente. amigos estranharam o seu desaparecimento
– Eu sei de tudo. repentino. Investigaram. O que ele estaria
– Tudo o quê? tramando?
– Você sabe. Finalmente foi descoberto numa praia distante. Os
– Não sei. O que é que você sabe? vizinhos contam que uma noite vieram muitos
– Não se faça de inocente. carros e cercaram a casa. Várias pessoas
– Mas eu realmente não sei. entraram na casa. Ouviram-se gritos. Os vizinhos
– Vem com essa. contam que a voz que se ouvia era a dele, gritando:
– Você não sabe de nada. – Era brincadeira! Era brincadeira!
– Ah, quer dizer que existe alguma coisa pra saber, Foi descoberto de manhã, assassinado. O crime
mas eu é que não sei o que é? nunca foi desvendado. Mas as pessoas que o
– Não existe nada. conheciam não têm dúvidas sobre o motivo.
– Olha que eu vou espalhar... Sabia demais.
– Pode espalhar que é mentira.
– Como é que você sabe o que eu vou espalhar? Luis Fernando Veríssimo
– Qualquer coisa que você espalhar será mentira.
– Está bem. Vou espalhar.
O CASAMENTO DO JUAREZ CACHORRINHO ESPERTO
Até que não aguentou mais e resolveu Um dia, numa expedição na África, um
casar. Eu estou me referindo ao sovina do cachorrinho começa a brincar de caçar
Juarez. Sujeito mais pão-duro que essa mariposas e quando se dá conta já está muito
cidade já viu. longe do grupo do safari.
E quando a notícia se espalhou, então?
Nisso vê bem perto uma pantera
Ninguém acreditou. Foi falatório pra mais de
mês: correndo em sua direção. Ao perceber que a
– O quê? Aquele unha-de-fome? pantera vai devorá-lo, pensa rápido no que
Duvido! fazer. Vê uns ossos de um animal morto e se
– Tem certeza, sô? coloca a mordê-los.
– Olha, não brinque com coisa séria, Então, quando a pantera está a ponto de
rapaz! ataca-lo, o cachorrinho diz:
– Se for verdade, eu faço questão de “Ah, que delícia esta pantera que acabo
conhecer a corajosa! de comer!”
– Ora, onde já se viu, o Juarez! Conta A pantera para bruscamente e sai
outra, vai? apavorada correndo do
Realmente era difícil de acreditar que cachorrinho, pensando:
aquele mão-de-vaca fosse capaz de realizar
“Que cachorro bravo! Por pouco não
tamanha proeza. Só vendo mesmo!
come a mim também!”
Mas com o tempo tudo foi se clareando
e o povo – que não é besta nem nada – Um macaco que estava trepado em uma
começou a desconfiar do casamento. árvore perto e que havia visto a cena, sai
Primeiro o Juarez convidou os amigos correndo atrás da pantera para lhe contar
mais chegados na base do “aparece lá pelas como ela foi enganada pelo cachorro.
seis”, pra não ter que gastar com essas O macaco alcança a pantera e lhe conta
besteiras de convites, como ele próprio dizia. toda a história. Então, a pantera furiosa diz:
E teve gente até que ousou perguntar se “Cachorro maldito! Vai me pagar! Agora
não iria ter festança depois, pra festejar o vamos ver quem come a quem!”
acontecido. “Depressa!”, disse o macaco. “Vamos
Mas logo o Juarez tratou de tirar o time alcança-lo”.
de campo: E saem correndo para buscar o
– Qual o quê! Do jeito que as coisas
cachorrinho. O cachorrinho vê que a pantera
andam ...
vem atrás dele de novo e desta vez traz o
E ninguém imagina o custo que foi pra
ele abrir as mãos e receber os cumprimentos macaco montado em suas costas.
dos convidados que compareceram ao “Ah, macaco desgraçado! “O que
cartório. Era gente saindo pelo ladrão! Isso faço agora?”, pensa o cachorrinho.
porque o pessoal daqui é que nem São Tomé, Ao invés de sair correndo, o cachorrinho
só acredita vendo. E foi só no cartório mesmo: fica de costas como se não estivesse vendo
– Bem que eu fazia gosto de casar na nada, e quando a pantera está a ponto de
Igreja, mas com o preço que tá, Deus há de ataca-lo de novo, o cachorrinho diz:
concordar! “Maldito macaco preguiçoso! Faz meia
Uma semana depois, o pessoal ficou hora que eu o mandei me trazer outra pantera
sabendo de toda verdade. E foi a empregada, e ele ainda não voltou!”
que havia sido despedida logo após o casório,
que resolveu botar a boca no trombone:
– Ele casou mesmo foi pra não ter que
pagar empregada!

(AZEVEDO, A. O vendedor de queijos e outras crônicas.


São Paulo: Atual, 2007.)

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