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CHITARA MUDOU MEU HÁBITO DE LER

Faz uma semana que algo mudou em meu hábito de ler jornal. Em vez de ir direto à página
esportiva, agora abro o jornal na expectativa de saber notícias sobre ela, Chitara. Não, não é nenhuma
nova cantora colombiana. É a leoa que fugiu do circo no povoado de Salgado, em Paracuru, litoral oeste
do Ceará. A leoa se embrenhou na mata e o Ibama, face o perigo que a situação representa, autorizou o
abate, condenando-a à morte.

Acontece que isso faz uma semana e nada de pegarem a leoa fujona. Moradores já avistaram o
animal bebendo água na lagoa, outro viu o bicho saltando uma cerca... Mas até agora nada de capturarem
Chitara. Polícia, bombeiro, mateiro, atirador de elite, caçador, cão farejador, já mandaram o diabo atrás
dela, mas toda vez que a avistam, ela dribla todo mundo e desaparece. Helicóptero dá rasantes pela mata
todo dia, botam galinhas e carneiros como isca... Não tem jeito. Chitara continua solta na mata,
estressando pebas, preás e cassacos e ludibriando seus perseguidores como se dissesse: Vocês mandam
na selva de pedra, mas nesta aqui mando eu!

Admito que nesse jogo de caça e caçador estou torcendo descaradamente pela caça. Claro que
não desejo que ela ataque alguém. Quero apenas que Chitara aproveite seus últimos dias fazendo aquilo
para o qual nasceu: viver junto à Natureza, caçar outros bichos, correr livre, leve e solta por aí ao vento,
exercitar seus instintos de animal selvagem... Sim, imagino que não deve ser fácil para ela ter que se
esconder o dia inteiro de monstros metálicos voadores e fugir de bípedes cruéis que querem a todo custo
assassiná-la. Mas convenhamos: para Chitara isso é mil vezes melhor que passar o resto da vida
entristecendo numa jaula e ainda tendo que fazer gracinhas num picadeiro de circo.

Não sei se você sabe, mas arrancaram as garras de Chitara quando ela era bebê. Ela está, portanto,
sem sua principal arma de ataque e defesa. Mesmo assim já resiste há mais de uma semana. Logo no
início da fuga ela foi baleada, mas mesmo ferida não se entregou. Se ao menos lhe garantissem que não
a matariam, que apenas lhe aplicariam um tranquilizante e a levariam a um zoológico decente... Mas não.
A ordem é atirar para matar. Numa situação assim, a velha lógica dos guerreiros sempre ressurge: se é
para morrer, morramos defendendo aquilo em que acreditamos.

Talvez alguém me critique por defender um animal selvagem que está pondo em risco a vida de
muitas pessoas, inclusive crianças. Pois estou defendendo mesmo. Defendo porque Chitara não tem mais
como se defender do que lhe fizeram. Defendo porque não é justo retirar um animal de seu habitat, privá-
lo de sua sagrada liberdade, aprisioná-lo numa jaula para o resto da vida e ganhar dinheiro às custas de
sua escravidão e sofrimento. Se nesse momento Chitara ameaça a vida de seres humanos, isso é apenas
a consequência final de todos os atos de desrespeito, ganância e crueldade praticados por seres humanos.
Chitara apenas foi em busca daquilo a que sempre teve direito e que, infelizmente, lhe foi tirado. Eu também
fugiria. Você não?

Torço por ela, mas sei que Chitara não tem chances. Cedo ou tarde a pegarão. Mas ao menos ela
terá provado o sabor da liberdade. Talvez nesse exato instante em que você lê esta crônica, Chitara já
esteja morta, uma bala de grosso calibre alojada em seu corpo. Lerei a notícia com tristeza, sim, mas com
esperança. Talvez a história de Chitara se transforme em lenda para as crianças daquelas bandas. Então
as imagino sentadinhas ao redor da avó, noite de lua, escutando atentas a história da valente leoa fugitiva
e, em seu íntimo, em sua pura compreensão de criança, captando aquilo que a maioria dos adultos de hoje
já esqueceu: é preferível viver os riscos da liberdade que morrer numa escravidão tranquila.

Ricardo Kelmer, Jornal O Povo, 04 de dezembro de 2001.


A CAIXA DE PANDORA

Conta a história grega antiga que haviam dois titãs, um chamado Prometeu (aquele que vê antes)
e o outro era seu irmão chamado Epimeteu (aquele que vê depois). Eles criaram os animais e os homens.
Deram a cada animal um poder, como voar, caçar, coragem, garras, dentes afiados. O homem, criado por
Prometeu a partir da argila, ficou sem nada por ser o último a ser feito. Prometeu deu um pouco de cada
animal para o homem, mas faltava alguma coisa especial.

Prometeu ensinou diversas coisas ao homem. Ensinou a domesticar animais, fazer remédios,
construir barcos, escrever, cantar, interpretar sonhos e buscar riquezas minerais. Porém, irritou Zeus, o
deus supremo, ao roubar o fogo dos deuses e dá-lo aos homens. Zeus decidiu, então, vingar-se de
Prometeu e de toda a humanidade.

Prometeu foi acorrentado a uma montanha. Sua condenação foi passar a eternidade preso a uma
rocha, onde uma ave viria comer seu fígado. Toda noite seu fígado se regeneraria e a ave voltaria no dia
seguinte para lhe comer o fígado novamente.

Para castigar os homens, Zeus ordenou que o Deus das Artes, Hefesto, fizesse uma mulher
parecida com as deusas. Hefesto lhe apresentou uma estátua linda. A deusa Atena lhe deu o sopro de
vida, a deusa Afrodite lhe deu beleza, o deus Apolo lhe deu uma voz suave e Hermes lhe deu persuasão.
Zeus deu instruções secretas a seu filho Hermes que, obedecendo às ordens do pai, ensinou a mulher a
contar suaves mentiras. Com isso, a linda mulher passou a ter uma personalidade dissimulada e perigosa.
Assim, a mulher recebeu o nome de Pandora (aquela que tem todos os dons).

Pandora foi enviada para Epimeteu, que já tinha sido alertado por seu irmão a não aceitar nada
dos deuses. Ele, por “ver sempre depois”, agiu de forma precipitada e ficou encantado com a bela
Pandora. Ela chegou trazendo uma caixa fechada, um presente de casamento para Epimeteu. Ao ver
Pandora, Epimeteu esqueceu-se que Prometeu lhe havia recomendado muitas vezes para não
aceitar presentes de Zeus; e aceitou-a de braços abertos.

Certo dia, Pandora lembrou do presente que os deuses mandaram-na entregar a Epimeteu, e assim
que se aproximou da caixa Epimeteu alertou-a para se afastar, pois Prometeu lhe recomendara que jamais
a abrisse, caso contrário, os espíritos do mal recairiam sobre eles.

Mas, apesar daquelas palavras, a curiosidade da mulher aumentava; não mais resistindo, esperou
que o marido saísse de casa e correu para abrir a caixa proibida. Mal ergueu a tampa, Pandora deu um
grito de pavor e do interior da caixa saíram monstros horríveis: o Mal, a Fome, o Ódio, a Doença, a
Vingança, a Loucura, a inveja, a violência, a ganância e muitos outros espíritos maléficos.

Quando voltou a lacrar a caixa, conseguiu prender ali um único espírito, a Esperança. Assim, então,
tudo aconteceu exatamente conforme Zeus havia planejado. Usou a curiosidade e a mentira de Pandora
para espalhar o mal sobre o mundo, tornando os homens duros de coração e cruéis, castigando Prometeu
e toda a humanidade. Pandora ainda tentou fechar a caixa, mas só conseguiu prender a esperança.
O HOMEM QUE ESPALHOU O DESERTO

Quando menino, costumava apanhar a tesoura da mãe e ia para o quintal, cortando folhas das
árvores. Havia mangueiras, abacateiros, ameixeiras, pessegueiros e até mesmo jabuticabeiras. Um quintal
enorme, que parecia uma chácara e onde o menino passava o dia cortando folhas.

A mãe gostava, assim ele não ia para a rua, não andava em más companhias. E sempre que o
menino apanhava o seu caminhão de madeira (naquele tempo, ainda não havia os caminhões de plástico,
felizmente) e cruzava o portão, a mãe corria com a tesoura: tome, filhinho, venha brincar com as suas
folhas. Ele voltava e cortava. As árvores levavam vantagem, porque eram imensas e o menino pequeno.
O seu trabalho rendia pouco, apesar do dia-a-dia, constante, de manhã à noite.

Mas o menino cresceu, ganhou tesouras maiores. Parecia determinado, à medida que o tempo
passava, a acabar com as folhas todas. Dominado por uma estranha impulsão, ele não queria ir à escola,
não queria ir ao cinema, não tinha namoradas ou amigos. Apenas tesouras, das mais diversas qualidades
e tipos. Dormia com elas no quarto. (…)

Só que, agora, ele era maior e as árvores começaram a perder. Ele demorou apenas uma semana
para limpar a jabuticabeira. Quinze dias para a mangueira menor e vinte e cinco para a maior. Quarenta
dias para o abacateiro que era imenso, tinha mais de cinquenta anos. E seis meses depois, quando
concluiu, já a jabuticabeira tinha novas folhas e ele precisou recomeçar.

Certa noite, regressando do quintal agora silencioso, porque o desbastamento das árvores tinha
afugentado pássaros e destruído ninhos, ele concluiu que de nada adiantaria podar as folhas. Elas se
recomporiam sempre. É uma capacidade da natureza, morrer e reviver. Como o seu cérebro era diminuto,
ele demorou meses para encontrar a solução: um machado.

Numa terça-feira, bem cedo, que não era de perder tempo, começou a derrubada do abacateiro.
Levou dez dias, porque não estava habituado a manejar machados, as mãos calejaram, sangraram.
Adquirida a prática, limpou o quintal e descansou aliviado.

Mas insatisfeito, porque agora passava os dias a olhar aquela desolação, ele saiu de machado em
punho, para os arredores da cidade. Onde encontrava árvore, capões, matos atacava, limpava, deixava os
montes de lenhas arrumadinhos para quem quisesse se servir. Os donos dos terrenos não se importavam,
estavam em vias de vendê-los para fábricas ou imobiliárias e precisavam de tudo limpo mesmo.

E o homem do machado descobriu que podia ganhar a vida com o seu instrumento. Onde quer que
precisassem derrubar árvores, ele era chamado. Não parava. Contratou uma secretária para organizar
uma agenda. Depois, auxiliares. Montou uma companhia, construiu edifícios para guardar machados,
abrigar seus operários devastadores. Importou tratores e máquinas especializadas do estrangeiro. Mandou
assistentes fazerem cursos nos Estados Unidos e Europa. Eles voltaram peritos de primeira linha. E
trabalhavam, derrubavam. Foram do sul ao norte, não deixando nada em pé.

Onde quer que houvesse uma folha verde, lá estava uma tesoura, um machado, um aparelho
eletrônico para arrasar. E enquanto ele ficava milionário, o país se transformava num deserto, terra
calcinada. E então, o governo, para remediar, mandou buscar em Israel técnicos especializados em tornar
férteis as terras do deserto. E os homens mandaram plantar árvores.

E enquanto as árvores eram plantadas, o homem do machado ensinava ao filho a sua profissão.

Ignácio de Loyola Brandão

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