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Hans Belting O FIM DA HISTORIA DA ARTE uma revisao dez anos depois Traducao Rodnei Nascimento COSACNAIFY PREFACIO Hans Belting © fiom da histéria da arte nao & mais capaz de impressionar quem jé se hhabituou & questo do fint da arte e, além do mais, constata o sucesso com que nos iiltimos tempos a hist6ria da arte, tanto como objeto cul- tural quanto como disciplina académica, foi disseminada mesmo entre camadas populares, isso sem mentionar 0 boom das exposigdes de arte. Com igual razo, poderfamos falar também de uma “vitéria da historia da arte”, sem diivida uma vitéria 4 maneira de Pirro, que, assim como toda autoridade longamente estabelecida, conferiu a ela certo dogma~ tismo. © que se mostrou é que um apego cientifico A ordem nao esta preparado justamente para a arte cadtica do século xx e que 0 pretenso universalismo da hist6ria da arte é um equivoco ocidental. © ambiente atual, no qual as imagens técnicas instituem uma nova confusfo, altera a imagem da historia da arte, surgida em determinado momento para ‘uma finalidade precisamente delimitada. Por isso, nao € absolutamente ‘um sinal de extravagincia querer fazer um balango e eleger um posto de observagio para examinar o fim de um modo de pensamento em priti- ca nao apenas na ciéncia especializada como também na arte. discurso sobre o fim de algo ¢ certamente uma forma oportuna de introduzir hoje um argumento que, com tal ressalva, esta protegido contra seu proprio pathos. Assim, esse discurso é também uma maneira de falar que visa aproximar-se do objeto e transformé-lo num problema. Dito de outro modo, a restrigao presente no fim da histéria da arte oferece a desejada oportunidade de tratar da hist6ria da arte com cer- to distanciamento ¢ sob o seguinte lema: “O rei est4 morto, viva 0 teil”, No entanto, jé 0 pequeno niimero de historiadores da arte ofe- rece uma garantia suficiente de que o tema que eles transformaram em profissao nao tera fim, ¢ isso é semelhante nas demais ciéncias huma- nas. Ainda assim vejo motivo suficiente para conceder importancia a0 problema, se levarmos a sério a idéia originaria que esta presente no conceito de uma “histéria da arte”: a idéia, a saber, de restituir uma hist6ria efetiva e trazer & luz o seu sentido. No conceito esta presen- te tanto o significado de uma imagem como a compreensio de um enquadramento: 0 acontecimento artistico, como imagem, no enqua- dramento apresentado pela historia escrita da arte. A arte se ajustou a0 enquadramento da historia da arte tanto quianto esta se adequou a ela, Hoje poderfamos, portanto, em vez do fim, falar de uma perda de enquadramento, que tem como conseqiiéncia a dissolugio da imagem, vvisto que ela nao é mais delimitada pelo seu enquadramento. O dis- curso do “fim” nao significa que “tudo acabou”, mas exorta a uma mudanca no discurso, ja que o objeto mudou e nao se ajusta mais aos seus antigos enquadramentos. Ha muito tornou-se moda empreender uma arqueologia da pr6- pria disciplina e dos seus métodos hist6ricos ~ e essa historizacao da prdpria corpora¢io mostra que alcangamos condigdes alexandrinas, ‘nas quais ela € reunida e examinada. A aproximago do fim do século foi uma oportunidade para um novo exame da arte ¢ também de todas as narrativas com que a descrevemos. Mas nem mesmo se esperou essa data, colocando-se hé muito tempo em circulago palavras de ordem sobre o fim ¢ decidindo-se o fim da modernidade apenas para poder comecar algo novo mais uma vez e poder dar um nome & imagem mo- dificada da hist6ria. Mesmo a lembranga do tiltimo fin de siécle, com semelhantes fogos de artificio de idéias gastas, ainda nao est suficien- temente apagada para combater o temor de uma repeticio. Assim, tam- bém se recorre esporadicamente a férmulas sonoras e vazias acerca do fim do século, como se nao faltasse 20 pensamento moderno exatamen- te a capacidade de lembrar de tal periodo e olhar retrospectivamente para além da borda da modernidade. No entanto, a declarago de que (0 nosso conceito de arte é um produto dos tempos modernos deveria inibir o prazer em formular lugares-comuns precipitadamente. O fim per- ‘manente pertence ao ritmo de aceleragao do breve ciclo da assim chamada modlernidade. Talver, diferentemente do que se pensa, seja apenas o fim de um episédio no turno tranqtilo de um percurso hist6rico mais longo. © autor que se atreveu a ir tio longe parece cair agora na armadi- tha do titulo de seu pr6prio livro. Por isso, por precaugio, seja feisa a ‘observagao de que falo do fim de determinado artefato, chamado hist6- ria da arte, no sentido do fim de regras do jogo, mas tomo por premissa que 0 jogo prosseguira de outra maneira. De qualquer maneira, o tema nao pode ser tratado de modo conclusivo e com o auxilio de demonstra- ‘Ges triunfantes, pois se encontra em processo continuo de transformagio interna ¢ externa. Assim, também me torno arquedlogo do meu proprio ‘objeto, na medida em que parto de uma revisio do meu precério ensaio dos anos iniciais que passei em Munique. Tratava-se entio de uma aula inaugural que empreendi num gesto de revolta contra tradigies falsamen- te geridas. O titulo provocou mal-entendidos, razao pela qual acrescentei na edigio italiana 0 subtitulo Liberdade da arte, a saber, em oposigio uma historia da arte linear. A descrigao da disciplina também causou irritagao, pois nao era meu objetivo, e agora menos do que antes, uma 0 cultural encontra-se mais nas condig6es que formam a sociedade e as. critica abrangente da ciéncia ou do método. Hoje meu interesse crit lo do livro oferece instituigdes. Digamos ainda de outro modo: 0 apenas um mote que me dé a liberdade de formular reflexes totalmen- te pessoais sobre a situagio da hist6ria da arte e da arte que de modo algum tratam apenas da questa do fim. ‘A modificago que primeiro salta a vista nesta nova versio &a supressio do sinal de interroga¢o que anteriormente havia no titulo. O que na- quela época era ainda uma pergunta tornou-se certeza para mim nos t ‘timos anos. 0 leitor apressado perguntara agora por que e exigird, além disso, um punhado de novas teses que diferenciem a presente revisio do texto antigo. Mas devo aqui pedir-the paciéncia e, se a tiver, remeté-lo 20 novo texto que foi redigido para esta edigao. Nao se trata de algumas palavras de ordem convincentes, mas de juizos e observagdes que preci- sam de espago onde se desenvolver ¢ que, além disso, s20 to provisé- rias como, afinal, é provis6rio tudo 0 que hoje vem a baila. Gostaria de dizer, contudo, algo sobre a génese do antigo ¢ do novo ensaio. Quanto mais 0 novo ensaio avancava, mais me via obrigado a reescrever o an- tigo. A diferenga reside em que no texto antigo permanego no quadro dos argumentos anteriores, mas preencho de maneira diferente e nio coloco mais a ciéncia da arte no centro. Certas coisas que queria dizer naquela época, s6 hoje consigo fundamentar de maneira satisfat6ria, No novo texto, ao contrario, trata-se de novas experiéncias ¢ novos te- mas, tais como Oriente e Ocidente, o museu atual e as midias, as quais conheci mais de perto em Karlsruhe. O didlogo interno que mantenho comigo mesmo como historiador da arte e como contempordneo to- mou forma de texto nos dois ensaios. A segunda modificagao sofrida por esta edicio esta na parte ico- nografica, que nao existia na edigao antiga. Ela exibe o tema num aos de imagens que querem falar por si mesmas ¢ nao sio destina- das somente a ilustrar 0 texto. Sua miscelanea é 0 reverso exato de uma histéria da arte coerente e, justamente por isso, representativa do estado de coisas. Talver.resulte as vezes mais convincente do que 0 préprio texto, em todo caso de maneira mais intuitiva, j4 que o texto se encontra sempre na contradigao entre um discurso académico e um mundo em mudanga que nao se deixa reproduzir verdadeiramen- te nesse discurso. Aqui deparei subitamente com um dilema que nao consiste apenas na coexisténcia da ciéncia da arte e da arte atual, mas mostra o estado da nossa cultura cientifica, que confere validade a si mediante teses ¢ raciocinios num mundo sobre o qual jd nao tem mais nenhum poder. As ciéncias sempre procuraram oferecer ao espirito do tempo as formulas adequadas nas quais cle deve se reencontrar € to- mar consciéncia de si. Todavia, se formos honestos, o célebre discur- so académico satisfaz apenas a si mesmo. Ou ser que esse discurso no quer convencer insistentemente o mundo nao-académico que este depende dele, embora a realidade pareca diferente? Do fingimento académico, a cultura de massas eo mundo da midia assimilam apenas palayras isoladas, para consumi-las rapidamente como informagées culturais em busca de sua prépria clientela. No caso da arte, 0 dis- curso ultrapassa de antemio 0 cenario académico, motivo pelo qual 0 tema tem resistido ultimamente a ordem de um método cientifico. O texto reescrito comega com um balango dos débitos ¢ créditos a par- tir do qual compreendo a situagao presente em total contraste com a assim chamada modernidade. Nele consigo hoje formular a tese do fim dda histéria mais claramente do que ha dez anos, depois que o transcur- so de uma evolugdo, que naquela época apenas se iniciava, se deixou ver melhor em seu conjunto. Desde ento surgiu também uma discussio sobre essa tese & qual posso agora retornar (em didlogo, por exemplo, com Arthur Danto). O papel do comentério sobre a arte, que caiu nas infos dos criticos de arte e dos artistas, apresenta a melhor oportuni- dade para diferencié-lo da forma narrativa da historia da arte de velho tipo. A lembranga do estilo ¢ da hist6ria tem o sentido de perseguir a cigncia da arte até as idéias e as ideologias da modernidade classica «que essa ciéncia ainda preserva como artigo de fé. A periodizagao que tenho em mente com a denominacao “culto tardio da modernidade” move-se conscientemente fora da evolugio interna da arte, pois foram datas exteriores, como o fim da guerra, que modelaram a consciéncia dda situagdo da arte e do andamento da hist6ria da arte. No centro do novo texto esté uma trilogia de grandes temas que no so propriamente temas da hist6ria da arte e, nao obstante, alteraram a histria da arte e continuardo a alteré-la. Somente durante a redagao é que tomei consciéncia do nexo interno do texto. Cronologicamente, comego com o tema da arte ocidental, depois que os Estados Unidos assumiram a condueio do cenério artistico no pés-guerra, ao passo que hoje se adota ali cada vez mais uma atitude de distincia em relagio 3 Europa. A Europa, contudo, por meio da temética recém-surgida sobre Oriente e Ocidente = para a qual ainda no existe uma resposta da historia da arte -, repen- tinamente esta mais uma ver referida a si mesma, depois que pareceu ter escapado a essa divisdo na “parceria do Ocidente”. A arte universal ‘emerge finalmente como a quimera de uma cultura global pela qual a historia da arte é desafiada como um produto da cultura européia. Em contrapartida, as minorias reclamam sua participagao numa hist6ria da arte de identidade coletiva em que nao se véem representadas. A conclusio deste novo texto é formada, por sua vez, por trés outros temas cujo sentido é conhecido de todos. A problematica do high and Iow conduz a0 centro da nossa situagao cultural, depois que a histéria da arte, como tradigo, tomou-se aqui nao o simbolo, mas a imagem ne- sativa da atividade artistca. A arte multimidia, seja como instalacao seja PREFACIO I 11 como video, suscita questdes inteiramente novas com as suas estruturas material e temporal que nao esto mais no horizonte do discurso habitual da histéria da arte. Os museus de arte contemporanea transformam-se, ‘como instituigdes, cada vez mais em palcos para espetaculos artisticos inusitados ¢ oferecem por isso 0 melhor discernimento do provesso inter- no da cultura que descrevi ha dez, anos como “fim da histdria da arte”. (O texto antigo nao foi apenas completamente reescrito, mas também ampliado com um novo capitulo em que as teses anteriores sao desenvol- vidas, Este comega com a miragem experimentada pela idéia de historia da arte na arte atual ¢ reconduz essa idéia, num passo seguinte, a0s seus primérdios. Ap6s Hegel, a histéria da arte desprendeu-se dessas origens para seu proprio prejuizo e com isso provocou imediatamente a reagio dos seus criticos, dentre os quais Quatremére de Quincy que, em minha opiniao, desempenhou um papel hoje desconhetido. O tema da ciéncia da arte ¢ da vanguarda, cuja coexisténcia comporta tragos decididamente paradoxais, também propicia que se conquiste, a partir de uma visio re- ‘trospectiva da historia, a liberdade de uma nova posigao sobre a hist6ria da arte, Por isso, e do mesmo modo, o exame que as regras do jogo de uma disciplina experimentam nao ¢ visto como exercicio obrigatério da histéria da cigncia, mas como proposta de desmascarar nos intérpretes da historia da arte os problemas temporalmente condicionados ¢ nao ‘confundi-los por mais tempo com artigos de fé indispenséveis. A realidade da obra de arte, que encontra seu lugar no centro des- te segundo texto, é pouco afetada pelo tema do fim da historia da arte, pois obra de arte ¢ hist6ria da arte encontram-se numa contradicio insolivel. Mas como 0 conceito de obra esta disponivel na arte atual, segue-se conseqiientemente uma consideracao sobre a histéria das mi dias e da historia da arte, as quais por enquanto tém diferentes temas ¢ constituem diferentes disciplinas, 0 que hoje, depois de minhas ex- periéncias em Karlsruhe, posso ver melhor do que antes, quando in- troduzi a comparacao. Os capftulos conclusivos constituem um novo centro de gravidade, pois relacionam dialogicamente uma com a outra a modernidade e a pés-histéria atual e as concebem, cada uma em sua especificidade, do ponto de vista da historia da arte. A pés-histéria do artista, assim quero concluir, comegou mais cedo ¢ descnvolveu-se de maneira mais criativa do que a pés-histéria do pensador da arte. A conclusdo légica é representada por um filme de Peter Greenaway, que durante a elaboragao deste texto descobri, cada vex. mais, como 1 interlocutor imaginario, Nele encontrei novamente a temética do enguadramento e da imagem, j4 aplicada por mim a relago entre a historia da arte e a arte, F afinal uma espécie particular de alegoria {que um texto publicado na verdade em 1983, ou iniciado antes, trate de um filme de 1991 [Prospero’s Books] em que se refletem inespera- damente muitos dos meus pensamentos daquela época. Resta-me apenas o desejo de agradecer a todos aqueles que volun- tiria ou involuntariamente estimularam meus pensamentos e incentiva- ram tanto o texto anterior como o atual. Naquela época, foi o editor de Munique Michael Meier que, para poder editar “finalmente um texto sem reprodugdes”, persuadiu-me amigavelmente a publicar minha aula igural de Munique, em cujo tema meus colegas do instituto nao te- iam visto sendo uma extravagancia supérflua. A ressondncia alcangada no exterior pelo pequeno escrito constrangia-me sempre a fazer interven- ‘gbes e corregoes nas diferentes tradugdes — com excecao da edigao japo- nesa, que tive de entregar & sua propria sorte. Com isso crescia minha satisfacdo em relagao a versio anterior do texto, que consistira apenas na primeira tentativa. Entao aceitei agradecido, apés hesitacio ini- cial, a oferta da editora C. Hi. Beck para lidar mais uma vez com o tema, jf que se esgotara havia muito tempo a edigio alema. Os estudantes da Hochschule fiir Gestaltung [Escola Superior da Formal de Karlscuhe, a qual me encontro novamente nas disciplinas recém-inauguradas de citneia da arte e teoria das midias, constituiram um f6rum com disposi- io critica inesperada, diante do qual eu devia explicar o que afinal é a histéria da arte. Aqui também encontrei ajuda, no sentido pratico, nos estudantes Barbara Filser e Joachim Homann, que cuidaram paciente- ‘mente da bibliografia explorat6ria. Helga Immer amparou-me na luta contra as muitas versdes do texto, domadas por ela no computador. Os amigos da Beck Verlag, sobretudo Karin Beth e Ernst-Peter Wieckenberg, demonstraram mais uma vez a assisténcia tantas vezes comprovada no caminho incerto da composigio do texto. Agradego a Peter Greenaway por permitir a reprodugao de Jano que guarda a entrada do meu ensaio. Karlsruhe, agosto de 1994 PREFACIO | 13

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