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Catalogação Proposta
SAUDADES DA TERRA
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
PALAVRAS PRÉVIAS
Palavras Prévias VI
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
documento autobiográfico de grande valor para um dia se conhecer melhor a vida do cronista,
punham em relevo a sua familiaridade com a literatura clássica e o conhecimento que parecia
ter dos escritores portugueses e castelhanos do seu tempo. Pelo título que encima o capítulo
XV, Rodrigo Rodrigues induziu não lhe ter passado despercebida a “poesia, então,
revolucionária dos célebres inovadores Juan de Boscan e Garcilazzo de la Vega, que
introduziram o metro endecassílabo e o gosto italiano na arte poética da sua pátria”, os quais,
na sua opinião, certamente conheceu através de uma edição feita em Salamanca em 1547,
sob o título de “Las Obras de Boscan y algunas de Garcilasso de la Vega repartidas em quatro
libros” (4).
E, de facto, é com entusiasmo que Frutuoso exalta a nova faceta literária, acusando de
néscios aqueles que não a compreendiam e participando dela com os sonetos em castelhano
que, em homenagem aos ditos poetas, no mesmo capítulo se contêm e com outros em
português, como seja a referida composição poética dedicada a Camões.
Tudo isto nos ajuda a definir a personalidade de Frutuoso, integrando-a no movimento
renascentista da sua época, em que não é raro vermos numa mesma pessoa, ao lado do
homem de ciência, do historiador ou da artista (Rodrigo Rodrigues fala-nos da sua predilecção
pela música), o cultor apaixonado das belas letras, numa variedade de aptidões que envolve
tudo quanto poderia interessar um espírito cultivado, de acordo com os cânones humanistas
então em voga. De resto, na parte já conhecida da sua obra era fácil apercebermo-nos da
multiplicidade de interesses por que se dispersava a sua atenção de homem extremamente
curioso e observador. Como diz Rodrigo Rodrigues, não tenhamos, pois, receio de o colocar
dentro do brilhante fenómeno literário e científico do quinhentismo peninsular, cujo
conhecimento copiosamente revelou através das “Saudades da Terra”.
Embora sem qualquer originalidade que a imponha na literatura portuguesa como peça de
real valor e nos apareça, mesmo, como testemunho pouco relevante do talento de Frutuoso
para o romance e para a poesia, a “História de Dois Amigos” permite-nos, contudo, um
delineamento mais exacto do seu perfil de escritor, por quem não poderiam ter passado
indiferentes ou vãos os anos que viveu nos meios universitários de Salamanca e, porventura,
de Évora (5). Aliás, dizem os seus biógrafos que no ambiente de alta cultura intelectual da
primeira destas cidades, onde professavam homens eminentes que deixaram nome afamado
na História, na Política e na Literatura, Frutuoso conseguiu sobressair, acrescentando Chaves
e Melo que foi tão distinto no seu curso, que na Universidade o apelidavam de “el grande sabio
de las islas de Portugal” (6).
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formas arcaicas ou desusadas dos vocábulos, e modificou-se a pontuação, sempre que disso
não resultasse deturpamento da ideia. Apenas nas poesias em castelhano se respeitaram as
grafias do original, visto considerarmos não ser prudente alterar o que quer que fosse numa
língua que desconhecemos.
Embora haja razões para supor que o Livro V fosse um dos primeiros, ou talvez o primeiro,
a sair da pena de Frutuoso, como adiante diremos, o que é certo é que foi ele próprio quem lhe
deu a numeração, colocando-o entre o IV e o VI Livro, como o atestam o título, escrito pelo seu
punho, em que se declara natural da ilha de S. Miguel — única vez que faz tal afirmação — e
ainda as palavras com que finaliza o respectivo texto, também da sua mão em que diz que a
narrativa que vai seguir-se versará sobre as “Ilhas de Baixo”.
Também no último parágrafo do Livro IV expressamente se afirma que a Fama mostrou
desejo de ouvir da boca da Verdade a “História dos Dois Amigos que houve na ilha de S.
Miguel”, a qual vem a propósito contar-se antes de entrar nos assuntos respeitantes aos
grupos Central e Ocidental do Arquipélago, que são os que constituem a matéria do Livro VI,
último da obra.
Fica assim desfeita a suposição de João de Simas, com fundamento no que se lê na parte
final do apógrafo da Biblioteca da Ajuda, de que este Livro V constituiria primitivamente o fecho
da crónica, figurando o VI com aquela numeração.
De facto, nessa cópia, que suprime a “História de Dois Amigos”, o Livro VI aparece com o
número cinco e termina com as seguintes palavras: “Dizendo eu à Fama, isto é, senhora, o que
pude saber destas dos Açores e mais ilhas, afora a história dos dois amigos, que é larga de
contar, nos fomos por entre mato praticando, comendo das uvas da serra, pretas, roxas e
brancas, e das alvas camarinhas que se parecem na cor e grão com o fino aljofre, recolhendo-
nos na minha sombria pousada, onde passamos escura noite, às vezes dormindo, outras
falando claras, amorosas palavras, agradecendo ela o trabalho de lhe dizer tantas
particularidades destas ilhas, mostrando-me desejar de me meter em outro de também lhe
contar a História dos dois amigos que houve nesta de S. Miguel, como amanhecesse, do qual
trabalho me escusei por imaginar tereis enfadado” (sic).
Repare-se que toda esta tirada, com que finaliza o apógrafo da Ajuda, no manuscrito
original é a que encerra o Livro IV, donde foi extraida pelo copista, que lhe introduziu as
necessárias alterações (aqui sublinhadas em romano) no manifesto propósito de se furtar ao
traslado da “História de Dois Amigos”, que consideraria desprovida de interesse para a alta
personalidade a quem a cópia se destinava ou que a tinha encomendado.
Se é certo que esta seria o Padre Martim Gonçalves da Câmara, valido de D. Sebastião e
próximo parente dos capitães-donatários da Ilha da Madeira, donde era natural, segundo a
opinião de João de Simas na sua “Notícia Bibliográfica das Saudades da Terra”, compreende-
se que ao copista não interessava uma narrativa novelesca, que, além de pouco original, se lhe
afigurava completamente deslocada na gravidade do conjunto histórico que formava o teor
fundamental do códice. D’aí a fraude que cometeu e só agora, compulsando o autógrafo e
confrontando-o com a cópia da Ajuda, foi possível desvendar. Porque não é difícil
apercebermo-nos de que já naquela época a obra impunha-se mais como fonte primeva e
fidedigna dos tempos recuados da vida portuguesa nos dois arquipélagos atlânticos do que
pelo valor literário da sua prosa. Não é pois de estranhar a omissão, por assim dizer, geral que
da “História de Dois Amigos” se observa em todas as cópias que chegaram ao nosso
conhecimento (8).
Tal como o Livro I, este, de que agora tratamos, está todo escrito pelo punho do autor, e
com caligrafia tão apurada, sobretudo nas primeiras páginas, que não hesitamos em considerá-
lo como um dos que mais passou a limpo.
As entrelinhas e interpolações não aparecem aqui com a frequência que se regista nos
restantes Livros; uma ou outra emenda, geralmente nos versos, significa que Frutuoso até ao
fim da vida se preocupou com a forma, no que parece ter sido bastante exigente. Não é difícil
supor-se que sentisse especiais responsabilidades ao redigir uma novela que ficaria como o
melhor documento das suas aptidões literárias.
Não encontramos aqui, também, as substituições de folhas ou cadernos que se notam nos
Livros II, III e IV.
Tudo indica, enfim, que estamos em presença de um trabalho feito amorosamente, talvez
ainda no vigor da vida, para não dizer em plena juventude, como parece revelá-lo a abundante
produção poética que nele se contém e melhor se ajusta aos devaneios literários próprios dos
vinte anos do que à gravidade e compostura inerentes a épocas mais avançadas da existência.
Não será ousado aventar que cedo se afirmassem as tendências espirituais de Frutuoso.
Lembremo-nos do que diz o Padre António Cordeiro ao referir a sua adolescência, decorrida
mais no apego aos livros do que nos trabalhos da lavoura do pai, rico proprietário em Ponta
Delgada, o qual tão impressionado ficou com a vocação do filho, que resolveu mandá-lo
estudar para Salamanca. Aí, na convivência com escolares e homens de letras, é provável que
tentasse as suas primícias literárias, como julgamos pelas poesias em castelhano que compôs
e introduziu neste livro das “Saudades da Terra”, à imitação de tantos da sua estirpe
intelectual, que, só depois de passada a juventude e de experiências mais ou menos felizes no
campo da literatura de ficção, enveredam ostensivamente pelo trabalho sério e erudito da
investigação e da ciência. E o que mais nos firma nesta conjectura é a circunstância de já no
Livro I das “Saudades da Terra” Frutuoso aludir à “história de cavaleiros” e aos versos que
constituem o texto do Livro V. Isto nos leva a imaginar que no plano que arquitectou para a
composição da sua obra foi seu pensamento introduzir na devida altura as poesias que
compusera na mocidade, embora enquadradas numa novela, concebida provavelmente com
esse fim.
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No original o Livro V começa a pág. 444 e termina a pág. 484, verso, ocupando, por
conseguinte, quarenta folhas do códice, todas pertencentes a cadernos de papel almasso
bastante encorpado e em tudo igual ao dos outros livros que o autor escreveu com o seu
próprio punho.
A filigrana, que aí se reproduz, representa uma coroa aberta, de aro elíptico, com um florão
trilobado e dois meios florões laterais, cada um deles bilobado, assemelhando-se algum tanto
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às que figuram com os números 4667, 4678 e 4679 no grande reportório de Briquet ( ),
segundo informação amavelmente fornecida pelo Sr. Dr. Jorge Peixoto, ilustre Director da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Identificando-a com a última das filigranas
indicadas, poderíamos admitir ser o papel de origem alemã, com data de 1584.
Como se sabe, a identificação através das marcas de papel não é processo muito rigoroso;
auxilia, dá uma ideia, mas não uma certeza. Por isso, a aceitamos com certa reserva, tanto
mais que a data provável, atrás citada, anda muito próxima daquela em que Frutuoso deu início
à sua crónica, que, pelos dados cronológicos que nos fornece o Livro II, deve ser pouco
anterior a 1580 ou 82. Com mais facilidade se poderá admitir que o papel fabricado em 1584 só
fosse utilizado quando o autor se dispôs a passar a limpo o seu trabalho, isto é, alguns anos
depois daquelas datas.
Ao falecido bibliófilo João de Simas, que examinou a autógrafo quando a Junta Geral do
Distrito o confiou à sua guarda, na qualidade de Director da Biblioteca Pública e Arquivo
Distrital de Ponta Delgada, a marca de água não pareceu ser das usadas em Portugal no
século XVI. Por isso, sugeriu igualmente algum dos países do norte da Europa (Inglaterra,
França ou Holanda), com os quais esta ilha mantinha já relações comerciais de vulto, como
aquele donde teria sido importada a maior parte do papel que constitui o original das
“Saudades da Terra” (10).
Palavras Prévias IX
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
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Palavras Prévias X
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Um dos capítulos da novela ocorre nas margens do rio Tormes, afluente do Douro, que
passa em Salamanca, e cujas águas congeladas em pleno inverno são motivo de inspiração
para uma das composições poéticas que na obra se incluem. Aí se encontram os dois amigos,
Filomesto e Filidor, que, na hipótese aventada por Rodrigo Rodrigues, seriam os dois
estudantes micaelenses, Gaspar Frutuoso e Gaspar Gonçalves, companheiros de casa e de
estudo naquele meio universitário, cuja amizade se manteve depois na Ribeira Grande, onde
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ambos viveram e este último foi médico afamado ( ).
É certo também que a acção se desenrola em parte nesta ilha de S. Miguel onde vive
Tomariza, a amada de Filomesto, e onde residem figuras conhecidas do autor, dos seus
tempos de rapaz, cujos nomes cita, mascarando-os através de anagramas. Tais são Duarte
Borges, que foi homem de grande proeminência não só aqui, como provedor da Fazenda e
Armadas, mas também em Lisboa, onde desempenhou as funções de tesoureiro-mor do Reino;
Manuel e André Botelho Cabral, a quem no capítulo IV do Livro IV se refere largamente;
Francisco Lobo, que foi escrivão em Ponta Delgada; os irmãos Manuel da Costa, João d’Arruda
e Bartolomeu Favela, filhos de Manuel do Porto e Beatriz da Costa, igualmente mencionados
naquele livro, etc.
E se, de facto, Frutuoso pretendeu retratar-se num dos dois heróis, qual deles o
personifica? Filomesto ou Filidor? Rodrigo Rodrigues procurou identificá-lo com o primeiro que
é, indiscutivelmente, a figura dominante da novela. Note-se, porém, que Filidor aparece sempre
como o poeta a quem o autor atribui a maior parte dos versos contidos na obra.
Esse nome, Filidor, que, conforme se esclarece no livro, significa “filho da dor”, pretenderá
fazer alusão ao nascimento de Frutuoso, que, como acentua Rodrigo Rodrigues, poderia ter
sucedido em condições tais, que nunca lhe consentiram falar da sua origem ou família? Com
efeito, sobre tal matéria o cronista remeteu-se ao mais absoluto silêncio, não só ocultando os
nomes dos seus progenitores, mas também fazendo propositada omissão da genealogia da
família, a que, segundo as invesgações do mesmo biógrafo, deve ter pertencido (15).
Se, porventura Frutuoso quis retratar-se em qualquer daquelas figuras, a obra está de tal
forma bem conduzida no campo da ficção, que é muito difícil extrair da análise dela quaisquer
dados biográficos satisfatórios.
Parece-nos não ser possível ir mais longe do que conjecturar que apenas alguns passos ou
reminiscências da juventude do autor se contêm na “História de Dois Amigos”.
Deixa-se, pois, o assunto aberto a um estudo crítico mais penetrante e concludente.
Porque da leitura conscienciosa e atenta que fizemos da novela, só nos ficou a impressão
de que o cronista, utilizando alguns factos de que foi testemunha, ou possivelmente passados
com a sua pessoa, urdiu uma trama aventurosa e sentimental muito ao sabor da época que lhe
serviu de pretexto para deixar comprovada na obra que quis legar aos vindouros a veia poética
que informava a sua personalidade de escritor e com certeza prezava em alto grau.
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Palavras Prévias XI
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Para o sr. Nuno Álvares Pereira, funcionário da mesma Biblioteca, cuja colaboração na
leitura e cópia do manuscrito original me foi deveras valiosa, vai também uma palavra de muito
reconhecimento.
À Junta Geral de Ponta Delgada, que tão compreensivamente tornou possível esta edição
das “Saudades da Terra”, e à Direcção do Instituto Cultural da mesma cidade, que escolheu o
meu nome para a dirigir, renovo os meus agradecimentos pela oportunidade que me deram de
participar na tarefa, sobremaneira honrosa, que ao nosso distrito incumbe de revelar na sua
versão original a obra conhecida do mais ilustre dos cronistas açorianos.
Há anos tentámos, num breve apontamento, através do Livro I das Saudades da Terra, uma
sondagem das influências literárias recebidas por Frutuoso.
Rodrigo Rodrigues, o insigne investigador e genealogista micaelense, a cuja memória não
foi ainda prestada a devida justiça, foi o primeiro que aludiu a algumas dessas fontes culturais,
no excelente Prefácio do Livro III, que, publicado em 1922, é um monumento de saber seguro.
Mais tarde, a propósito do Livro I, Monteiro Arruda, a quem igualmente muito deve a
historiografia açoriana juntou mais algumas achegas no plano das influências, entre as quais a
de Bernardim, que é por demais manifesta nos primeiros capítulos do referido Livro.
Verificamos, pois, que o inventário do que poderíamos designar por clima cultural do
historiógrafo já está feito pelos dois ilustres estudiosos, que trataram o assunto dum modo
global, abrangendo vários ramos, desde a História e a Geografia, até à Filosofia e à Poesia. O
primeiro destes aspectos foi agora completado pelo Dr. João Bernardo de Oliveira Rodrigues,
no seu não menos importante Prefácio inserto a propósito do Livro VI, recentemente vindo a
lume, o qual, trazendo uma nova contribuição para o estudo da personalidade do Cronista,
elaborou um notável estudo sobre as relações do pensamento deste com o Filipismo então
vigente.
Ao tempo em que foram publicados os dois primeiros livros referidos, eram ainda
incompletas as notícias sobre o Livro V, que ficaria ainda inédito durante muitos anos, mas
estas já deixavam prever que a edição integral da mencionada obra nos traria um
conhecimento mais perfeito dos aspectos relacionados propriamente com a sua actividade
literária e poética. Foi esta a faceta que aqui procurámos desenvolver.
Começaremos, no nosso estudo, por referir esta asserção de Rodrigo Rodrigues, que
resume a personalidade do seu biografado:
“Frutuoso representa plenamente o tipo do humanista da Renascença, enciclopédico
quinhentista, literato, artista e músico, observador atento dos fenómenos naturais...” (16).
Segundo os informes do mesmo estudioso, o nosso historiógrafo ter-se-ia fixado
definitivamente em S. Miguel em 1565, já num período de plena maturidade mental,
enriquecida com o magnífico apetrechamento livresco conseguido no ambiente universitário
salmantino, que representava um dos mais altos expoentes da intelectualidade europeia e
aumentada com a sua longa experiência de caminheiro durante dezassete anos e com a
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reflexão própria do seu múnus sacerdotal ( ). Com tão longa preparação de tão vasta
sementeira, só seria de esperar uma colheita de frutos bem sazonados.
No plano literário, o período de permanência em Salamanca, que deverá ter decorrido entre
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os anos de 1548-49, 1543-56 e 1557-58 ( ), proporcionou-lhe o contacto com o movimento
quinhentista, largamente documentado na História dos Dois Amigos, que constitui o Livro V, de
que nos ocuparemos a seguir.
Foi essa ambiência cultural a que exerceu influência das mais importantes e duradouras na
formação de Frutuoso, familiarizado, entre os clássicos, com Cícero, Virgílio, Horácio, Plutarco
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e Tácito ( ). Sob o aspecto filosófico, como bom discípulo do Escolasticismo, que certamente
deveria ter constituído matéria obrigatória do programa, para quem quisesse graduar-se em
Teologia, denunciava as suas preferências por Aristóteles, em relação a Platão. Aliás, a
simpatia e o trato espiritual que sempre lhe mereceram os Padres da Companhia de Jesus,
mesmo após o seu regresso definitivo a S. Miguel, facultar-lhe-iam o aprofundamento da
dialéctica de S. Tomás, tanto mais de supor, quanto é verdade admitir-se a hipótese do seu
doutoramento na Universdade de Évora, de fundação jesuítica (20).
Há, aliás, no Capítulo I, um passo que nos leva a admitir essa raiz tomística bem
pronunciada, a estruturar o seu conceito de determinismo. Revestindo a capa duma influência
estilística de Bernardim, que é a mais premente em toda a sua obra ficcionista, apresenta,
todavia, uma mensagem diversa, como vamos verificar, pela análise de passagens dos dois
autores postos em cotejo: No I Capítulo do Livro das Saudades, insere-se esta ausência de
motivação concreta e definida da saída da personagem de casa de seus pais:
Qual fosse então a causa daquela minha levada, era eu ainda pequena — não na soube.
Agora, não lhe ponho outra, senão que já então parece havia de ser o que depois foi.
Em Bernardim, há um fatalismo que não ultrapassa as fronteiras do seu caso pessoal, ante
a presença avassaladora de forças egotistas. Como sempre na sua obra, o eu arrogante
sobreleva tudo o mais ante o seu império:
Já então parece havia de ser o que depois foi.
O determinismo de Frutuoso assume uma forma generalizada, dentro duma concepção
filosófica que mergulha as suas raízes na doutrina cristã. Determinismo hesitante, porque se
não abstrai do livre arbítrio, na medida em que o pecado ou a infracção à norma que pauta
uma ética são imputados à própria responsabilidade do prevaricador. (A conciliação destes
dois extremos tem-se constituído em pábulo perene para a argúcia de pensadores, como o
nosso Antero). À maneira de S. Tomás, onde parece que Frutuoso tenha ido beber a asserção,
a presciência de Deus exerce-se num campo de visão diverso do do homem: ou, por outras
palavras, o presente de Deus contrapõe-se à bipartição de presente e futuro à escala humana.
Dir-se-ia, pois, que na linguagem divina não há pré-visão, porque tudo é presente. É deste
modo que, transposto em termos de dimensão humana, se harmoniza o conhecimento prévio
da conduta dos mortais com a responsabilidade que lhes incumbe.
“...que causa fosse então daquele meu desterro, era eu ainda pequena, não a soube; mas
depois vim a saber uma, que foi a desobediência do homem, a qual já eternalmente estava
precisa na mente divina, que é omnisciente, a quem tudo está presente, sem por isso obrigar,
forçar ou necessitar a pecar, se ele não quisera, pois que pondo-o na mão de seu conselho lhe
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deu livre arbítrio para escolher o que quisesse” ( ).
A explicação de Frutuoso, sem alcançar a subtileza da argumentação do Mestre do
Tomismo, não parece deixar, no entanto, de acusar o magistério escolástico. Por outro lado,
neste pendor moral que, como mais largamente iremos documentando, constitui uma tónica do
autor, mesmo através da obra de pura ficção, põe-se à evidência o carácter meramente
externo do ascendente bernardiniano.
Ainda sobre o conhecimento dos filósofos da Antiguidade, Frutuoso alude a Platão e
Teofrasto, este último, como Aristóteles, mais enraizado na formação cultural do nosso
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historiógrafo, segundo o testemunho de Monteiro Arruda ( ). Quanto ao seu platonismo, duvida
este estudioso de que ele seja “de puro quilate”. A citação, feita pelo cronista quinhentista, dos
estudos do filósofo neoplatónico Marsílio Ficino talvez possa induzir à hipótese de que o
conhecimento do autor dos Diálogos não seria sempre de primeira mão, dada a voga que o
citado filósofo florentino conseguiu entre certos poetas quinhentistas, como Camões, que
acusa bem vincada essa influência em alguns passos da sua lírica. Frutuoso foi ainda
contemporâneo de D. João III e quase testemunha da morte dum filho do monarca, cujas
exéquias foram celebradas em Espanha ao tempo em que ele, ainda então estudante, se
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encontrava em Salamanca com o seu inseparável companheiro, Gaspar Gonçalves (1554) ( ).
O facto, ao que parece, impressionou os poetas e intelectuais do tempo, a avaliar por um
poema que o nosso cronista lhe dedica, inserto na novela, e por uma elegia de Sá de Miranda,
alusiva ao mesmo acontecimento. Para além da emoção circunscrita ao facto e à personagem,
seríamos levados a perguntar se tanto um como outro, numa discreta manifestação patriótica,
não veriam abrir-se a primeira brecha na segurança da nacionalidade, ante o desaparecimento
dum herdeiro que a garantisse. Isto numa altura em que estava ainda ausente a pressão
filipina, a qual mais tarde, relativamente ao nosso cronista, aconselharia um volta-face, que no
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fundo só ocultava uma atitude de prudente resignação perante os acontecimentos políticos ( ).
Frutuoso viveu, pois, em plena florescência do Quinhentismo e da Novelística. Em 1520,
surgia a primeira obra publicada no género: o Clarimundo, de Barros; em 1547, a primeira
versão castelhana do Palmeirim e em 1554 a edição de Ferrara da Menina e Moça, seguida da
de Évora, três anos mais tarde; em 1558, a Diana, de Jorge de Montemor. Tomando o ano de
...............................................
ninguém, com grande vigia,
...............................................
dizer tanto chegaria
como tu, Crisfal, dormindo (31).
No poema de Frutuoso, o que, ainda a propósito do Crisfal, se contém que possa relacionar-
se com o aspecto biográfico, não daria matéria para reavivar a questão da autoria da Écloga,
ainda mesmo quando a tese posta por Delfim Guimarães não estivesse completamente
postergada, por falta de argumentação convincente.
O passo do referido poema-frutuosiano reza assim:
A diferença entre os dois tu — Crisfal e Ribeiro — como entre o “pastor” e o seu “parceiro”,
parece levar a supor uma destrinça de individualidades. Perguntaríamos, todavia, por que se
salienta Bernardim apenas na prosa, quando é certo que Frutuoso lhe conhecia igualmente as
Éclogas, ao ponto de as imitar.
Há, no referido poema, um pormenor biográfico que parece indicar a naturalidade do herói:
Alter do Chão (33). Quando, porém, subsistisse qualquer dúvida sobre a dualidade de autorias,
em relação às Éclogas de Bernardim e à de Cristóvão Falcão, existe outro pormenor biográfico
que alude à morte do Poeta, possivelmente no mar:
Por indícios mais seguros, sabemos que foi diverso o fim de vida de Bernardim, ocorrido em
1552, quando já se encontrava internado como louco no Hospital de Todos os Santos. Estamos
certos de que o testemunho do nosso cronista poderá constituir-se em documento fidedigno,
dado o culto que votava aos dois bucólicos quinhentistas. No entanto, ao contrário destes, em
cujas obras não há nenhum sinal de erudição que dilua a densidade do surto lírico obsessivo,
em Frutuoso a sua cultura clássica insinua uma presença nem sempre discreta e comedida,
todas as vezes que uma oportunidade favorece a sua incursão. No plano da mitologia,
manifesta-se logo no começo da Novela, a propósito do pasmo admirativo dos pastores ante a
destreza do cavaleiro Filomesto:
“ou (sois) algum famoso piedoso, ou aquele Ganimedes, servo aprazível a Júpiter pera seu
serviço, pela sua águia arrebatado do alto monte Ida...” (35).
Acrescenta-se, um pouco mais adiante, esta interrogação:
36
“E se sois Marte, deus das guerras ou filho de Belona...” ( ).
Noutro passo, lançando mão do simbolismo mitológico, eram Filomena e Eco que
respondiam aos chamamentos dos companheiros de Filomesto, que se perdera destes (37).
O conhecimento dos heróis homéricos insinua-se nesta comparação:
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“a qual (loba) ele matou, como se fora um Heitor ou Aquiles” ( ).
Da mesma maneira, numa écloga inserta na Novela do Livro V, o corpo de Crisfal, morto no
mar, por ordem da Parca (Átropos) é recebido por um cortejo de deidades pagãs, entre as
quais figuram Vénus, Cupido, Apolo, Tétis, Vénus e ainda Neptuno e as Ninfas. Frutuoso mais
de uma vez usa a simbologia, tão do gosto dos clássicos, alusiva à transição da idade de ouro
para a de ferro, a traduzir a diferença entre um período áureo e outro de declínio da
humanidade. É conhecidíssimo aquele passo d’Os Lusíadas, contido no episódio do Velho do
Restelo, que expressa imagem idêntica:
O nosso cronista, logo no I Capítulo do Livro I das Saudades da Terra, imaginando uma
longa alegoria da Verdade que, como é natural, não se subtrai à formação moral e religiosa do
autor, nos transes dramáticos dessa transição entre as duas Idades, pinta-nos a transformação
do Tempo, pai da mesma Verdade, despojado do ouro e pedraria, roubado pela guerra dos
piratas, vestido de ferro e armado, para se defender dos inimigos que o assediavam. Se a
imagem apraz ao gosto dos clássicos, como dissemos, não deixa de expressar uma ideia
comum ao paganismo, mas, por outro lado, traz ressaibos do metaforismo bíblico, que tão bem
soube expressar, em imagens, como a do Sião e Babilónia, o tema dum Salmo que inspirou
uma das mais transcendentes composições camonianas. Neste se esabelece o cotejo das
tristezas e males do presente com as alegrias e o esplendor dum passado edénico. No tom
fortemente moralista de Frutuoso, a Verdade, nesse período recuado, não se vira coagida a
utilizar os disfarces para se insinuar nos povoados.
Numa elegia (que só o é no nome, se tomarmos como padrão a contextura da elegia
camoniana) há elementos bucólicos que nos infundem a ideia duma Idade de Ouro, própria da
ambiência da écloga vergiliana:
A demonstrar uma perfeita actualização nos novos moldes renascentistas, a poesia inserta
na Novela do Livro V volve-se num estendal dos vários géneros e metros que utilizou, desde a
écloga ao soneto, à elegia e, ainda à oitava rima, em que compõe as estrofes incluídas no
40
capítulo XVIII ( ), recitadas pela personagem que, no sonho de Filidor, chorava sentada sobre
um penedo à borda do rio.
Ainda a abonar a sua cultura clássica, poderíamos vê-la patenteada num soneto laudatório
que lhe mereceu o estilo de Garcilasso. O poema enquadra-se numa pequena narrativa, em
que o poeta castelhano, com o disfarce de pastor — Nemoroso — “se lavava e enganava”, à
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maneira de Narciso, apaixonado pela ninfa Camila ( ). Aqui, a mitologia e a filologia dão-se as
42
mãos nos nomes próprios ( ), a juntar à lista doutros de diferentes proveniências e formação.
—*—
43
Já atrás aludimos aos dois heróis da Novela: Filomesto e Filidor ( ). Numa obra cujo autor
deixou à História elementos sobre a sua vida cheios de lacunas, muito em especial aquelas
que dizem respeito à sua experiência amorosa (se a teve), a efabulação da Novela aguça a
cobiça dos investigadores, para procurarem nesta indícios dum disfarce autobiográfico, a
exemplo do que fez Teófilo na sua exegese da Menina e Moça. É evidente que Bernardim,
legando à tradição dados mais abundantes sobre a sua experiência sentimental, favorece
maiores aproximações e coincidências com os factos e as personagens da sua Novela. O
processo, no entanto, tem seus perigos e inconvenientes, porque, no esforço de se conseguir a
almejada pista do real, não se tomam muitas vezes em linha de conta as surtidas da
imaginação que, inerentes à essência da própria ficção artística, sob pena de esta se negar, se
sobrepõem ao que à primeira vista se afigure como simples disfarce da verdade, sob as
roupagens convencionais do género.
O jorgense Dr. João Teixeira Soares, baseando-se apenas nos títulos dos capítulos do Livro
V — à data, nada mais era possível conhecer desta obra — lançou a conjectura de que existe
uma biografia disfarçada no referido livro que agora se dá à estampa. Para ele, como para
Rodrigo Rodrigues, Filomesto seria, porventura, Frutuoso, e Filidor o seu inseparável
companheiro, desde os tempos de Salamanca. Confirmando-se esse fundamento
autobiográfico, para o segundo dos citados investigadores há anagramas contidos nos nomes
das personagens, como Narfendo (Fernando), Natónio (António), Ricatena (Caterina), Gurioma
(Guiomar), Guardarima (Margarida), os quais, segundo o erudito estudioso, “devem representar
pessoas com quem se passaram porventura episódios emocionantes da juventude acidentada
do autor” (44), certo como é que a ficção não raro se constitui em transfiguração da realidade.
Se não possuímos dados para refutar tal hipótese, a verdade também é que são muito parcos
os elementos que nos possam levar a admiti-la como muito provável. Os anagramas
constituíam um processo usual, comum, de designar os heróis do género novelesco como do
bucólico, sem que se implicasse necessariamente nesse facto qualquer motivação fundada na
realidade biográfica. Teria sido a História dos Dois Amigos realmente vivida? É que a sua
estrutura se apresenta tão fragmentária na sua efabulação episódica, interpolada de tantas
composições poéticas, que nos parece faltar-lhe um certo calor humano, para a apresentar
como documento. Aliás, o pendor moral e reflexivo que avulta, numa boa parte da sua obra,
para além das influências literárias, parece denunciar uma constituição temperamental duma
rigidez pouco propensa a lances amorosos que possam servir de motivo de transposição
poético-novelesca. Para nós, o Livro V tem um valor meramente formal, que se insinua mais
como estendal duma cultura do que espelho duma alma torturada. Essa propensão para o
45
estudo e meditação, que, segundo o Padre António Cordeiro ( ), revelou desde muito jovem,
parece indicar que o sacerdócio, mais do que uma romântica resolução resultante de qualquer
desgosto sentimental, foi abraçado como um apelo ou vocação. Não se define, na História dos
Dois Amigos, nada que assinale a claridade meridiana duma confissão autobiográfica, nos
moldes duma écloga, como o Crisfal.
Ditoso destino foi este dos portugueses, ao contarem a primazia em dois géneros — o
novelesco e o pastoral — que, originariamente separados, haviam de fundir-se numa obra,
46
como a Menina e Moça. Deve-se a Cervantes ( ) talvez o primeiro brado de justiça que se
ergue a confirmar esta verdade: o Amadis “el primero de Cavallerias”; a Diana “primero en
semejantes”. O pastoralismo, alternando ou imiscuindo-se com a novela, veio dulcificar ainda
mais, com o lirismo da natureza, o lirismo amoroso, que era já herança da matéria da Bretanha
e obteve a máxima pujança no Amadis. Era uma pausa, digamos, posta na agitação febril das
aventuras cavalheirescas que enxameavam no género. O Palmeirim surge como um dos
máximos representantes da riqueza episódica exclusivamente novelesca. Menendez Pelayo, a
respeito dos livros que compõem esta literatura cavalheiresca, que se prolongou por dois
séculos, terminando no XVI, surpreende, entre outros defeitos, o de “serem horrivelmente
47
enfadonhos”, com as repetições, as inverosimilhanças e o “tosco da estrutura” ( ). E foi,
todavia, esta literatura que constituiu o repasto da curiosidade livresca de Quinhentos, até ao
golpe de misericórdia aplicado por Cervantes. Incluímos entre elas o Palmeirim e o Clarimundo,
a segunda das quais subordina o seu recheio episódico ao panegírico do monarca, com um
fundo épico bem patente nas profecias de Fanimor, que tomam como assunto a História do
reino lusitano até ao reinado de D. Manuel. O próprio título o evidencia: Crónica do Imperador
Clarimundo, donde os reis de Portugal descendem. Há nesta uma intenção similar da da
Eneida, ao filiar o povo romano na ascendência troiana, integrada naquele conceito de que as
razões justificativas duma nacionalidade encontram um esteio tanto mais forte quanto mais
recuadas forem as fronteiras das suas origens, ainda quando estas mergulhem na lenda ou na
imaginação. Ao mesmo tempo, segundo confissão do próprio autor, há um exercício de estilo
que prepara a elaboração de matéria de maior fôlego contida na sua historiografia.
A Diana situa-se no outro extremo da escala, concedendo a primazia ao bucolismo, com um
verdadeiro sentimento da natureza. Há atitudes de espírito que se volvem em lugar comum do
lirismo pastoril, tais como o encantamento da existência livre e da contemplação do mundo
exterior, quebrado pelas violências do amor. Estes mesmos aspectos que vêm expressos na
Diana — que talhou o figurino de muitas obras congéneres — surgem igualmente nas éclogas
de Bernardim, onde se fazem sentir os estragos do amor na paisagem, de que fazem parte
elementos animados, como os cordeiros, “bradando sem pascer, as ovelhas perdidas,
48
entrezilhadas” ou ainda os “fracos, desmaiados mastins” ( ). Na Diana, como na obra de
Bernardim, há uma comunhão da natureza com o homem, na expressão dolorosa da paixão.
A predominância do pastoralismo da Diana não exclui a existência de episódios
cavalheirescos que lhe estão entremeados: combates de cavaleiros, em que se medem rasgos
de heroísmo, em manifesta desproporção de forças e de número.
O que teria determinado essa fusão dos dois géneros? O cavalheirismo do herói, misto de
amoroso, legado pela herança de proveniência bretã, encontra uma afinidade com as formas
do nosso lirismo que remonta ao período dos trovadores. O português, na expressão de Lope
49
de Vega ( ), é aquele que “llora de puro amor”. Não necessita dum estímulo externo ou dum
motivo definido. É um efeito sem causa que tempera essa tónica romântica, saudosista, que é
inerente à nossa indiossincrasia. Os dois géneros que se fundem encerram duas expressões
convencionais desse pendor lírico que ostenta a figura do nosso amoroso que enverga os dois
travestis: a cota de malha do cavaleiro andante, ávido de lustre e de glória, que alterna com a
samarra dos velhos pastores legados pela tradição da Antiguidade Greco-latina ou
nacionalizados pelos nossos quinhentistas, quando não vêm impregnados do ressaibo do
húmus dum solo bem português, pintados nas figuras profundamente castiças dos autos
vicentinos. A natureza e o homem enlaçam-se em solicitações mútuas, no mesmo sentimento
telúrico que inspira as várias expressões da afectividade humana.
Não se pode dizer que tudo se passe assim na Novela do nosso Frutuoso. A natureza nele
parece isolar-se daquele que a habita. Talvez mesmo não seja exacto dizer-se que aqui se
pronuncia um sentimento da natureza. Quando, num passo da História dos Dois Amigos, fala a
rocha a Filidor, pressente-se mais uma ficção mítica, ligada ao convencional da influência
literária. O cavaleiro tende a transformar-se em pastor, especialmente quando o desengano de
amor o impele a um refúgio do mundo e à busca da solidão. Assim acontece na Menina e Moça
e assim sucede em Frutuoso. A metamorfose, quando não busca essa finalidade, integra-se
naquele gosto do disfarce, que é comum às aventuras cavalheirescas. A incógnita e o mistério
que a rodeia parecem dar maior volume e grandeza aos feitos praticados. No Palmeirim, o
herói oculta-se sob o epíteto de Cavaleiro da Fortuna. Mas há outros, como o “Cavaleiro das
Armas Negras”. No Amadis, é Beltenebros (aqui a cor etimológica da própria designação ajuda
à capa do mistério), sem falar nos outros nomes, como Donzel do Mar, Cavaleiro da Penha
Pobre, e Cavaleiro da Verde Espada. Quanto a Clarimundo, preenche três individualidades em
Belifonte, Cavaleiro das Lágrimas Tristes e Cavaleiro Descuidado. Esse mesmo romanesco
contaminou os românticos, como Herculano: no Eurico, é o Presbítero de Carteia, oculto sob as
armas que justificam o epíteto de Cavaleiro Negro que, igualmente desconhecido nas suas
hostes, pratica prodígios e abre enormes clareiras entre as hordas dos inimigos, os quais
tremem de terror, quando a sua aproximação se assinala. Não nos lembra a presença desse
aspecto na Novela de Bernardim, como na de Frutuoso, a despeito da outra espécie de
disfarce que notámos sob a modalidade pastoral.
Se as façanhas cavalheirescas fatigam pela super-abundância, segundo a opinião de
Menendez Pelayo, não é menos certo que o lirismo, mesmo o bucólico, tende, na expressão de
50
Ricardo Jorge, “à monotonia, ao enervamento, à efeminação” ( ). Eis a tónica do género que,
perdendo a simplicidade e a espontaneidade do calor humano, inerente ao carácter repetitivo
da emoção, ganha todavia em variedade, quando um tanto artificializado pelas surtidas da
razão, na construção duma dialéctica sui generis, que se compraz nos jogos de inteligência,
definidos no precisar dos conceitos ou no formular das antíteses.
Na Diana, como nas obras de Bernardim, o trocadilho ao serviço do paradoxo logra uma
profundidade evidente no próprio conteúdo, tão diverso do simples jogo do barroquismo
seiscentista:
É uma verdade que se humaniza na própria experiência interior. Aqui também a morte, que
aparecia como remédio dos males, é postergada, para que a violência destes persista.
Para Afonso Lopes Vieira, a poesia perdura, mesmo após o envelhecimento da técnica e da
52
expressão verbal ( ). Poderia alguém objectar com a pergunta sobre se a poesia pode alhear-
se dessa expressão que a contém. Diríamos que, sendo os dois aspectos inseparáveis no acto
criador, no entanto, ultrapassada a época e, com esta, a vaga dos estilos e tudo o que lhe está
inerente, a mesma poesia passa a autonomizar-se, evolando-se como um perfume cuja
fragrância o tempo não conseguiu dissipar. O que passa é a convenção, esse aparato exterior
que, no momento da criação, se torna indissolúvel da essência que ele molda ou da substância
da qual o decurso do tempo demonstra que ele é simples acidente.
—*—
Segundo o parecer de João Bernardo Rodrigues, o Livro V de Frutuoso teria precedido o VI,
ao contrário do que pensa João de Simas, que o situava no fim de todo o Códice Manuscrito
53
( ). E, conforme crê aquele ilustre estudioso, se a História dos Dois Amigos não figura no
manuscrito da Biblioteca da Ajuda, foi apenas porque o copista não manifestou interesse em
copiá-lo. Apenas o apógrafo pertencente aos Duques de Cadaval insere os primeiros nove
54
capítulos da Novela ( ). Aliás, já no Livro I das Saudades, a mencionada História dos Dois
Amigos parece anunciada pela Verdade e pela Fama neste passo: “Aqui vi uns sonhados
álamos, com muitos versos escritos e, posto que nunca mais os tornei a ver, me deixaram tanto
em que cuidar, que sempre cuido neles, porque conheci muito bem cavaleiros que os versos
neles escreveram, e vi-lhes passar muitas mágoas no tempo em que no povoado passava as
minhas; e ainda que eu diga ver isto sonhado, todavia obras acordadas foram que estes
cavaleiros fizeram e escreveram, não em altos álamos que esta terra nunca criou nem cria,
mas em altíssimos pensamentos que neles houve nela nascidos” (55).
Não há dúvida de que a inspiração para o Livro V já se encontra contida nos capítulos
iniciais do Livro I, no qual figuram já as duas personagens abstractas da Fama e da Verdade,
que se impregnam dum tom elegíaco artificial que já deixa trair, em certos modismos de estilo,
o ascendente de Bernardim. A mensagem é, todavia, diversa, porque, como já atrás dissemos,
ao intimismo contemplativo dum, que encontra uma determinante temperamental, se contrapõe
a motivação moral ou filosófica do outro.
Ainda sobre o mencionado Livro I, há outros pontos de contacto com Bernardim, que não os
de simples expressão: os motivos escolhidos, a concepção da natureza animizada e solitária, e
a tónica da tristeza que, quando não assume uma forma racional explícita, é um mero artifício
literário. Veja-se este exemplo:
“E, se desejo viver, é para ser mais triste e já agora os contentamentos me seriam maiores
mágoas, ainda que, se para isto me aproveitassem, os não enjeitaria” (56).
Há paralelismos de temas como de atitudes e até de formas de expressão, que denunciam
o decalque por demais evidente.
Bernardim: “Neste monte mais alto de todos (que eu vim buscar pela soidade diferente dos
outros que nele achei), passava eu a minha vida como podia ora em me ir pelos fundos vales
que o cingem derredor, ora em me pôr, do mais alto dele, a olhar a terra como ia acabar ao
57
mar e depois o mar como se estendia após ela, para acabar onde o ninguém visse” ( ).
Frutuoso: “Nesta solitária serra, onde por acerto ou desastre me trouxe um dia o meu
cuidado (a qual escolhi por couto de meu longo homízio pela soledade que nela achei,
conforme à que comigo vinha) vivo de poucos dias a esta parte, porque logo, quando fugi dos
58
povoados, não foi este o primeiro lugar para onde vim...” ( ).
No conteúdo dos parêntesis que encerram os passos dos dois autores postos em cotejo, é
ainda mais flagrante a paráfrase. Há paradoxos que mostram bem vincada a inspiração
bernardiniana, até mesmo no paralelismo da expressão:
Bernardim: “Mas depois que eu vi tantas coisas trocadas por outras e o prazer feito mágoa
maior — a tanta paixão vim, que mais me pesava do bem que tive que do mal que tinha” (59).
Frutuoso: “...vive a minha tristeza aqui tão contente, nesta minha soledade, que já me
contento mais do mal que tenho que do bem que tive, sendo o bem passado cousa que muitas
horas me apresenta grande contentamento no pesar que ainda hoje me dá sua lembrança...”
(60).
No Livro V, logo no começo, surge igualmente o culto do paradoxo, que mostra o modelo
61
sempre presente na paráfrase: “Foi sua desaventura ou ventura tamanha” ( ), que lembra
aquele célebre passo da novela ribeiresca:
“Gran desaventura foi a que me fez ser triste ou a que, pela ventura, me fez ser leda” (62).
Também aqui se exalta a dor como inerente aos homens que ali viviam:
63
“nela nasceu a dor que assi fez tristes alguns deles” ( ).
No começo da História dos Dois Amigos, a exploração do paradoxo torna-se monótona pela
repetição:
“tudo foram desaventuras, que por bem aventuradas foram julgadas daqueles que as
64
passaram” ( ).
Avulta ainda o mesmo gosto dos contrastes e das antíteses, contidos neste exemplo:
“me podeis vós agradecer e em a não agradecendo ainda não fareis sem razão alguma,
pois todo vos é devido”.
Na mesma esteira de Bernardim, que não logra, todavia, como já acentuámos, a limpidez do
pensamento deste, há expressões rebuscadas que, no modo rebarbativo com que se
formulam, tornam difícil a sua inteligibilidade, excedendo em muito os jogos conceptistas do
século seguinte. A Fama, que pede à Verdade para contar a história, após a fala desta,
responde-lhe deste modo:
“que estoutra vontade, que eu tenho de ouvir essa história, não é para agradecer, senão
para satisfazer com fazerdes o que peço pera assim vos ficar em muito maior dívida do que
devo com me agradecerdes a vontade, que só pretende o meu proveito e gosto” (65).
Há sentimentos altruístas que se filiam num princípio egocêntrico. Doemo-nos dos males
alheios porque nos lembramos dos nossos próprios. À volta desta verdade, existe um fluido de
simpatia humana que tem igual validade nos padecimentos físicos, como nas dores morais. E
será tanto mais natural numa constituição psíquica, como a de Bernardim, em quem o eu se
hipertrofia, ao ponto de constituir o centro exclusivo da sua mundividência, acrescida das
implicações próprias de quem possui uma tão rica experiência interior, para a elaborar em
matéria de arte. O comprazimento na dor, que se converteria em estafado lugar comum na
dialéctica amorosa quinhentista, se não lograra, no caso presente, uma ressonância pessoal
que supera a simples moda literária, torna mais complexa a mensagem contida neste passo
das Saudades:
“Ali vi então, na piedade que houve d’outrem, tamanha a devera ter de mim, se não fora tão
demasiadamente mais amiga da minha dor do que parece que foi de mim quem me é a causa
66
dela” ( ).
Frutuoso, expressando ideia semelhante, infunde-lhe, porém, um tom sentencioso, visível
na forma generalizada que ele assume, a marcar a presença dum pendor reflexivo e
abstractizante que se não deixa soçobrar nestas vagas emotivas, à maneira duma tela que trai
a cópia do original:
“que a minha tristeza grande me ensina doer-me do mal alheio e quem do mal de outrem se
dói do seu próprio se torna de novo a lembrar” (67).
A própria Verdade, figura abstracta e incolor, quando considerada no plano emotivo, mesmo
para além da filosofia, produto da observação, que em certos momentos ela possa conter,
reveste-se de roupagens que acusam a importação do figurino alheio, através duma plangência
que quase soa a falso:
“por já não arrecear a morte, que me não quer levar, por mais dores nem mágoas que eu no
68
mundo veja” ( ).
No referido Livro I do nosso cronista, o começo do III capítulo denuncia igual inspiração do
capítulo II do Livro das Saudades, com a descrição do espectáculo da natureza ao romper da
manhã, a que não faltou o canto das aves (apenas se não fez referência ao rouxinol de
Bernardim), como elemento melódico a coroar a festa para os sentidos, extasiados por essa
sinfonia de luz e de cor. A acentuar essa nota de pessimismo, repetem-se os mesmos efeitos
psíquicos, obtidos pela presença dos contrários na natureza:
Bernardim: “Donde o que fazia alegre a todas as coisas, a mim só teve causa de fazer triste”
69
( ).
Frutuoso: “...pus-me a cuidar muito queda quão grande era o meu mal, pois me não deixava
ouvir aquelas alegrias daqueles passarinhos, senão para mas converter em seus pesares” (70).
O exemplo da natureza como símbolo moral também mostra o decalque manifesto: em
Bernardim, o penedo “anojando” a água, que queria “seguir o seu caminho”, significa as
contrariedades que também afloram nas coisas “que não têm entendimento”. Em Frutuoso, a
pedra que demora a chegar à água, mas depressa chega ao fundo, lembra o triste pensamento
71
da Verdade que, “ainda que com mais detença, chega à tristeza profunda” ( ).
Diga-se de passagem que, no nosso cronista, a formulação do pensamento pela imagem
não é nem tão sugestiva nem tão clara como a do seu ídolo. A propósito destas expressões de
pessimismo, já Rodrigo Rodrigues notou muito lucidamente, sobre o seu biografado:
“Era talvez um optimista, raramente desanimado ou queixoso; no entanto, os primeiros oito
capítulos do Livro I são de tristeza, onde a Verdade desiludida monologa com frases amargas
acerca da gente do seu tempo e sua conterrânea...” (72).
A observação de tal contraste leva-nos mais uma vez a admitir que, posto de parte um
pendor temperamental à maneira de Bernardim, que não ultrapassa a sua vivência emotiva de
lírico, as raízes dessa tristeza, quando se não explicam por mero figurino literário, podem
encontrar-se na formação duma filosofia moral, fundada na lição trazida pela experiência
advinda do contacto com o mundo. Os anagramas Torme Nhervoga (73), que figuram no citado
Livro I, como irmãos da Verdade, dos quais ela mostra profunda saudade, parecem acusar tal
origem. Dentro desse mesmo tom se explica a citação de Heráclito, cujas lágrimas eram
movidas pela contemplação do espectáculo dos homens, dignos de “muito dó e sentimento
(...), assim pelos males e trabalhos que sofrem, como pelos males e pecados que fazem” (74).
Sempre, pois, o fundo do moralista, que, acentuando uma tónica espiritual do autor, define ao
mesmo tempo uma nota de unidade, que se sobrepõe a outros aspectos porventura mais
fragmentários e superficiais da sua obra de ficção.
É ainda a voz do doutrinador que constrói essa visão pessimista da existência, que não
deixa de acusar a posição de determinado sector do pensamento cristão, muito embora este
não encontre uma unanimidade de concordância, especialmente nos nossos dias. Frutuoso,
descontados o processo mais simplista do conceito, como as profundas dissemelhanças e, até,
oposições dentro do plano doutrinário, poderia considerar-se um precursor de Schopenhauer,
ao conceber a dor como inerente ao mundo e aos homens.
“Não há bem, nem alegre coisa já que dure. Desaparecem os contentamentos da vida,
como ligeiros raios e, ainda que tragam consigo uma súbita mostra de clara luz, logo ficam
trevas. Todos os contentamentos têm os seus descontos de tristeza” (75).
São estas as palavras de Filidor, para consolar Filomesto da perda de Gurioma. A
concepção formulada invoca, entre outros argumentos, os de ordem filológica, como o nome de
Abel, que significa choro; e, até os de ordem biológica: “os meninos, nascendo, logo vêm
chorando”. Tratar-se-á, pois de uma tristeza ancestral, que incumbe aceitar com resignação. A
dor e o sofrimento dos bons integram-se dentro da exegese cristã, naquele conceito de que
Deus faz sofrer aqueles que mais ama, para depois os compensar na bem-aventurança. Estas
consolações de Filidor bem podiam inserir-se nas páginas daqueles místicos doutrinadores da
cepa de Frei Tomé de Jesus. É o religioso que fala, sob o disfarce da figura da novela,
absolutamente descaracterizada no género, porque se entronca no pendor moral do autor.
IV — A POESIA
Frutuoso:
Do tu rabel preciado Bernardim:
que era sin su semejante?
Do tu alegre semblante, Qu’e do teu rabil prezado,
tu seso tam libertado? teu cajado e teu surrão?
Dolo tienes trastornado Tudo te vejo mudado;
sin gasajo, i sin plazer, tinhas um cuidado então,
82 83
que alegre solias ser ( ). tens agora outro cuidado ( ).
A despeito da correcção do verso, que mostra, da parte do autor, um manejo mais perfeito
do redondilho do que de qualquer outro metro, a própria écloga parece um passo quase metido
a martelo, inteiramente desarticulado da acção da Novela, o que vem mais uma vez confirmar
que muitas das composições de Frutuoso existiriam muito antes da factura da mesma Novela,
aguardando a sua inserção nessa pretensa unidade. Há nela um desgosto de amor que tanto
se pode aplicar a um herói da história como a qualquer outro. Como ingredientes da convenção
bucólica, na tessitura das personagens e no contexto da própria composição, surgem a
mudança de semblante do pastor, os cuidados de amor, o confidente e o subsequente diálogo:
Como resultado lógico, há o definhamento do gado:
Também a morte aparece como refúgio dos males, que se contagiam à natureza,
subjectivada à maneira do Poeta das Saudades:
A Poesia XXVI
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Rodrigo:
Que pueden vencer amores,
pues Dios nos puso en poder
el querer i no querer,
86
de que nos hizo sñores; ( ).
Juan pastor:
la no manda la razon,
aunque essa es la verdad,
mas manda la voluntad,
que nos puso en subjecion;
de aqui nasce mi passion,
de mi voluntad querer
87
dexarse de amor vencer ( ).
Neste cantar, falho de inspiração, como tantos outros poemas, consentâneamente com a
sua extensão enorme, estão ausentes a espontaneidade e o chiste da redondilha camoniana
composta sobre um tema semelhante:
A Poesia XXVII
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
O pendor conceituoso do autor manifesta-se igualmente nos rifões, que abundam na obra.
Atente-se nesta cadeia contínua deles, contida no Capítulo 18.º.
“Quem trabalha descansa; quem ama serve; quem porfia mata caça; quem fala ouve; e
quem busca as mais das vezes acha” (92).
No capítulo 29.º, inclui-se uma alegria atribuída ao Cavaleiro da Rocha, que andava
empenhado em libertar uma donzela duma rocha perigosa. Expressando um conceito um
pouco tíbio, denuncia um cunho acentuadamente moral e lembra, na crítica generalizada, a
mesma ressonância mirandina; talvez mais superficial do que a obra do solitário do Minho,
conquanto ganhe um pouco na limpidez da ideia. Na referida composição, alude-se às
consequências deletérias do interesse:
Já citámos atrás outros passos da mesma elegia que, na imprecisão dum género que a
classifique, revela em parte o teor duma carta mirandina e, por outra, o duma écloga virgiliana.
Frutuoso repete-se nas sugestões, a denotarem pobreza de imaginação: os versos dos
poetas que ele homenageia encontram-se, por via de regra, num padrão (ou qualquer outro
objecto), num denso arvoredo e servem de pretexto para ele escrever os seus.
Na expressão da natureza, abunda aquela adjectivação que se converteu em lugar comum
da lírica renascentista: “claras águas”, “frescas águas”, “verdes ervas”, “turvas lágrimas”. São
exemplos que surgem a cada passo na obra camoniana, onde, como na de Bernardim, é
A Poesia XXVIII
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
igualmente frequente o tema das lágrimas que se juntam às águas da ribeira ou do rio,
engrossando o seu caudal.
Como amostra dos brincos de talento formal, que anda muito arredio duma verdadeira
96
mensagem, há, no mesmo Livro V, uma poesia em Eco ( ). O género era muito cultivado por
autores da época, incluindo o nosso Mestre Gil, que não se mostrava muito atreito a novidades
trazidas por importação, que, no caso presente, remontava à Antiguidade, com Ovídio. No
poema de Frutuoso, o conjunto de sílabas que forma o Eco envolve geralmente a resposta a
uma pergunta formulada no verso que a antecede. Nem sempre, porém, tal acontece. Nestes
que transcrevemos, verifica-se a primeira hipótese, de modo a formar-se uma cadeia sugerida
pela resposta de Eco:
No Cancioneiro de Resende, está incluído o célebre pleito do Cuidar e Suspirar, que tem
tanto de espectacular quanto de frívolo. Frutuoso, naquele pendor para o conceituoso já por
nós assinalado, doutrinando também sobre o amor, se fosse chamado ao pleito, quando não
arregimentasse abertamente na falange dos que defendem o suspirar, ao menos colocar-se-ia
em oposição aos que optam pelo cuidado... calando e não suspirando. Eis o seu argumento:
Há um poema escrito em oitava rima, algo extenso, como a maioria dos outros e repassado
dum tom elegíaco, talvez um tanto convencional. Nele se estabelece um cotejo entre a alma do
poeta e a natureza, cotejo por vezes difuso; em cada estrofe desenvolve-se a comparação,
cujo segundo elemento, constituído pela tristeza ou mágoa do poeta, forma, nos dois últimos
versos, o remate, geralmente para estabelecer o contraste entre a sua própria situação e o
exemplo aduzido. Eis a amostra com uma estrofe:
A Poesia XXIX
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
—*—
O despeito do mais que havia para dizer, é tempo de pôr ponto final ao nosso arrazoado.
Em remate da nossa análise, seríamos levados a concluir que o Frutuoso poeta foi menos
tocado pelos favores das Musas, sem lograr com elas o convívio conseguido por um eleito,
como Bernardim, pessoalíssimo na expressão duma experiência humana muito fecunda.
Quanto ao autor açoriano da História dos Dois Amigos, resta-lhe o maior merecimento de,
analogamente ao que fez nos panegíricos dos maiores poetas do seu tempo, ter contemplado
as mesmas Musas que lhe acenavam do alto da sua indiferença. E, através dos olhos de
Filidor, fazia seu assento “naquela alta e graciosa rocha, onde se esconderam e encerraram”.
J. de Almeida Pavão
A Poesia XXX
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Fotocópia da página n.º 444 do manuscrito original das Saudades da Terra, em que se dá
começo ao Livro Quinto
CAPÍTULO PRIMEIRO
COMO A FAMA PEDIU À VERDADE QUE LHE CONTASSE A HISTÓRIA DOS DOIS
AMIGOS DA ILHA DE SÃO MIGUEL E A VERDADE SE OFERECEU A CONTAR-LHA
Havendo eu contado à Fama as coisas desta ilha de São Miguel, fui mais dizendo no dia
seguinte:
“Ouvido tendes, Senhora, como as coisas desta ilha foram já tão prósperas, que outra tão
boa podia o Sol aquentar com seus fermosos raios, mas não melhor. Como também muitos
estrangeiros afirmam, esta é a melhor e maior de outras sete, que estão pera o ponente mui
perto, que por todas fazem nove, de que eu não entendo bem os nomes, porque os que elas
têm não me parecem certos. Alguns (como já disse) lhes chamaram dos Açores pela razão
dita, e não sei se, errando a letra, houveram de dizer amores, pelos que nelas em outros
tempos passaram, e principalmente onde a força dos tristes amadores se ajuntou toda. Eu não
lhe chamo outro, senão a ilha do meu desterro, pelo que nela tenho, porque cada um diz da
feira como lhe vai nela. Chame-lhe cada um como quiser, que (como dizem) o nome, nem o
hábito, não faz o monge, ainda que muitas vezes os nomes das coisas não se põem sem
mistério; assi como acontecem outras muitas, cheias de secretos, que se não vêm a descobrir
senão muito ao longe”.
“O secreto (me disse ela) destes dois amigos e seus amores desejo de ouvir de vós,
Senhora, como já vos disse, e a mercê, que até agora me tendes feita, me faz mais ousadia
pera pedir estoutra”.
Ao que eu respondi: “As coisas desses dois amigos estimo eu como próprias, porque o
amigo é outro eu. Mas quem, contando tais tristezas e amores tão sem ventura, poderá
temperar as lágrimas que não chore um mar delas? Mandais-me, Senhora, renovar uma dor de
mortal mágua. A história de muitos, esforçados e valerosos cavaleiros, que nela houve, contei
com bom esforço, pelo que o seu contentamento me dava, sendo tudo alegrias que os homens
99
por tais estimam, ainda que o não sejam, mas... ( ) em outras mores águas, não sei como as
conte. Não lhe chamo eu a isto contos, senão descontos, pois não há coisa destas que os não
tenha; e, senão sejam-me testimunhas quase todos ou todos os estados desta vida, que, com
os descontos que cada um deles tem, jamais vi ninguém contente daquele em que por sorte
vive. E não há erva criada que, se aproveita pera algum bem, não tenha parte pera algum mal,
se nós soubéssemos bem conhecer o que em cada uma se encerra. Por isso há em toda parte,
como tereis visto, montes e vales, terras lavradias e outras de muitas pedras, sãos e enfermos,
bons e maus, contentes e descontentes, pera se descontarem umas coisas por outras e em
tudo quanto há na vida haver descontos. E, ainda que nesta terra são os homens na condição
Alexandres, e de maravilha se acham cainhos, nem tristes, nela, pela abundância e festas com
que se criaram, com que são liberais nas obras, discretos na prática, grandes na vontade,
alegres na conversação, amigos de seus amigos, e ainda de seus inimigos, prudentes e
virtuosos, nobres e sabedores, e as mulheres quase todas, comummente, são delgadas e
discretas, fermosas e graciosas, perfeitas e honradas, religiosas e devotas, honestas e
virtuosas. E aqui se criam tão delgados engenhos, que não têm enveja de outra terra, senão
em dar deles grandes mostras, porque nunca dela se mudam, sendo nisto como vinho, que, se
não se trasfega, logo se faz vinagre, e já que por seu pouco poder e não serem sofredores de
trabalho, ou por estarem longe de mestres, sendo de felicíssimos engenhos, infelicemente
aprendem. Com tudo isto, houve também outros com faltas, como em toda parte se acham, e,
ainda que viveram aqui alegres, alguns tristes houve; e muitos, que dela saíram, vi eu depois
muito grandes e tristes, posto que nela fossem julgados por pequenos e contentes, porque o
queria assi a tristeza deles. Estes são os que eu dizia que escreveram as letras nos álemos,
que eu sonhei que via nesta serra, como já vos disse, Senhora, que tudo eram sinais de seus
Capítulo Primeiro 3
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
altos pensamentos. Foi sua desaventura, ou ventura tamanha, que os alongou tão longe, uns
desta vida e outros desta terra, que parece que nunca nela nasceram, ainda que nela nasceu a
dor, que assi fez tristes alguns deles. E outros a foram lá buscar em outras partes pera a vir
passar nesta, e depois no mundo todo, porque em qualquer lugar da terra, onde estão, os têm
eles as suas máguas, como a mim neste género desterro me tem a minha”.
Não pude eu ter as lágrimas, dizendo isto, porque a lembrança da dor destes cavaleiros
espertou meu choro; e, vendo-me ela chorar, chorou também comigo, tornando-me a pedir
muitas vezes que lhe contasse o que sabia deles, porque nunca coisa desejara tanto saber,
como esta, tanto por ouvir falar deles tantas vezes, como por me ver, falando neles, chorar
tanto d’alma, que já via não poder ser coisa esta história de que as suas penas negras não
tivessem companhia e fossem companheiras.
Eu lhe disse: “Pera que me mandais, Senhora, que vos conte tristezas que não têm conto?
Tudo foram desaventuras, que por bem aventuradas foram julgadas daqueles que as
passaram, e eu não as posso contar sem grande dó do pouco que eles de si tiveram, que a
minha tristeza grande me ensina doer-me do mal alheio, e quem do mal de outrem se dói, do
seu próprio se torna de novo a lembrar. Grande perigo é ao médico enfermo de enfermidade
aguda, ou de mortal doença, estudar ou tratar remédios pera outro enfermo, como ele, pois não
pode... (100), pronóstico... (100), ou lhe acrescente seu mal com o alheio, ou, por ventura, lhe
adivinhe a sua morte própria com a estranha, e, ainda que depois lhe não venha, como ele o
está vendo, todavia o põem a risco de desmaiar ou de perder cedo a vida. A todos estes
perigos me hei-de aventurar, e a outros mores, de ser taxada e repreendida, se vos contar a
desaventura destes cavaleiros, como, Senhora, pedis, porque nunca vi doença de tristeza que
não fosse aguda, e nenhuma se acha que seja bota nem grosseira, e as línguas dos homens
são mais agudas pera repreender que estes amores. Mas três coisas me fazem inclinar a
vosso rogo: a primeira, o muito que já vos devo; a segunda, por já não arrecear a morte, que
me não quer levar, por mais dores, nem máguas que eu no mundo veja, e a terceira, pelo gosto
que eu terei de vos contar esta história, que é de amigos, ainda que, contando-vo-la, o meu
mal cresça. Nem quero, Senhora, que m’a agradeçais por isto, antes vos agradeço eu a
vontade que mostrais de ouvir o que eu estou sentindo”.
“A que pera vos servir tenho (me respondeu ela) me podeis vós agradecer, e, em a não
agradecerdes, ainda não fareis sem razão alguma, pois todo vos é devido; que estoutra
vontade, que eu tenho de ouvir essa história, não é pera agradecer, senão pera satisfazer com
fazerdes o que peço, pera assi vos ficar em muito maior dívida da que devo com me
agradecerdes a vontade, que só pretende o meu proveito e gosto”.
“Pois, pelo que eu devo (lhe disse eu) de contar esta história, por ser de pessoas tanto
amigas minhas, não é muito agradecer-vos pedirdes-me vós que a conte. Mas bem vejo,
Senhora, que me detenho já muito, sem a contar logo; daí a culpa ao meu mal, que me traz
nestas voltas e rodeios, como à vela, primeiro que isto conte, e me faz sossobrar em grande
pego de marulhos e arreceios, antes que venha a tomar o porto, donde há-de partir esta conta
do mal alheio, que também é meu próprio, pois é de meus amigos tanto amigos”.
Capítulo Primeiro 4
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
CAPÍTULO SEGUNDO
Nos tempos passados, logo quando esta ilha se descobriu, depois de estendidas as novas
pelo mundo de como se descobrira e da muita fertilidade, frescura e bons ares dela, vieram
(como tenho dito), pera a povoar, de muitas partes homens nobres e fidalgos de várias
qualidades e cavaleiros de muita conta, e não degradados, como alguns, ou envejosos, ou
pouco curiosos, ou praguentos e maliciosos querem dizer contra a verdade sabida; porque, se
alguns no princípio, ou depois, vieram de baixa condição e sorte, sempre foram conhecidos por
tais e não se fez deles a nobre povoação da terra, pois só serviram aos nobres como criados
mandados e não como senhores servidos.
E é esta ilha uma lagoa tão pequena, que nenhum dos de baixa progénie que a ela vieram,
querendo-se fazer ou apregoar por fidalgos ou maiores do que são ou foram seus avós, se
quiserem muito brazonar das armas e, nadando, bracejar nela, não dêem logo com os
cotovelos em terra e, tomando pé, lhe não apareça a cabeça e rosto em cima da água, por
onde seja descoberto, visto e conhecido. Em terra, como esta, onde sabem também muitos
inventar faltas a bons e nobres manifestos e sabidos, não se pode crer que se dêem nela
fidalguias, nem nobrezas postiças a maus, vis e baixos conhecidos, dos quais se não fez a
povoação da terra pera eles mandarem nela, senão pera servirem. Abasta que, se alguns vãos
e baixos aqui em algum tempo queriam pretender grandes fidalguias, como eram conhecidos
por quem eram, quanto mais procuravam ser subidos, tanto mais eram de todo logo
escarnecidos e abatidos.
Os primeiros que a povoaram foram pessoas de muita qualidade, entre os quais vieram
alguns fidalgos e grandes homens, como homiziados por feitos de homens honrados, que em
sua pátria fizeram, e outros, como envergonhados, não de culpas que tivessem, senão das que
tiveram seus senhores, em cuja casa eles eram fidalgos e cavaleiros (porque o que a lei não
proíbe a vergonha o defende). E outros também, por não terem tantos bens do mundo pera em
suas terras viverem como quem eram, vieram povoar as alheias, dissimulando quem foram,
disfarçando-se alguns a seu modo (como já tenho dito), antre os quais veio um mui prudente
barão, amigo de ciências e grandezas, como, por alguns anos que viveu nesta ilha, deu
suficientes mostras de quem era. O qual, vivendo aqui casado com uma nobre e virtuosa
mulher, filha de virtuosos e nobres, houve dela um filho que os imitou bem nas virtudes, e,
porque sua mãe, indo um dia em romaria, o ouviu chorar no ventre algumas vezes, nascendo
ele, um grande sábio (como pronóstico do que havia de ser) lhe pôs nome Filomesto, composto
de grego e latim, que quer dizer amador triste; e bem se viu neste triste princípio quão
tristemente havia ele de viver toda a vida triste, porque o edifício, que há-de ser muito alto, logo
no começo lhe vemos os alicerces mui profundos.
Criou-o sua mãe com mimos e seu pai com doctrina, e, entendendo que os filhos desta
terra, com o viço que ele tinha, se tornavam viciosos, logo de pequeno o mandou a terras
estranhas. E prouvesse a Deus que o mesmo usassem aqui todos os pais com seus filhos, pois
temos clara experiência que, criados em terra estranha, lhe ficam naturais e honrados, e nesta
se tornam estranhos e abatidos.
Foi Filomesto encomendado a um honrado mercador, que naquele tempo aqui arribou com
contrários ventos e tempestades, pera que lá, em outra parte, fosse aprender as ciências e
bons costumes, que nesta terra se não ensinavam, por entenderem todos aqui mais em roças
de bravos matos (que já vedes, Senhora, quantos haveria naquele tempo em toda esta ilha,
pois ainda agora são tão cerrados e medonhos em algumas partes longe dos povoados) e em
Capítulo Segundo 5
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
agricultura dos campos e em criações de gados, que em letras, nem livros, que nela não havia.
E pera também o tirar da conversação de outros moços, filhos da terra, a que não lembra o que
adiante devem ser e é razão que sejam, senão o que ao presente são e querem ser, gastando
o tempo em jogos e passatempos, que no mesmo tempo brevemente se acabam, sem ficar
deles mais fruto, nem proveito, que o tardio arrependimento de tempo tão perdido e mal
gastado.
Partido Filomesto, filho deste alto homem (como depois se soube pelas suas obras, que
deram sempre testimunho de quem ele era) em companhia daquele mercador estrangeiro, a
que ia de seu pai e mãe encarregado com grandes dádivas e promessas, e bem provido do
necessário pera o estudo e pera seu caminho, postpondo pai e mãe e filho as saudades
naturais do corpo aos artificiais proveitos da alma, (como depois vieram dele novas certas)
passada sua viagem mui comprida, foram ter a um promontório, que estava ainda muito longe
da terra pera onde eles navegavam, vendo-o primeiro de muitas léguas, sem entenderem o
desastre que nele lhes estava guardado. E conhecendo o mercador e marinheiros (por serem
cursados naquela viagem) que ainda lhes restava longa costa pera andar antes de chegar à
terra e porto mais perto de suas casas, determinaram fazer aguada e tomar refresco na terra
alheia, antes que à sua chegassem.
Chegando-se perto dela, saíram todos em um pequeno barco que dentro, no navio, traziam,
e, saltando no areal de uma enseada, que ali a terra com duas pontas fazia, começaram uns a
apanhar marisco, outros a ajuntar lenha do mato, que junto à costa estava; e, ferindo fogo,
fizeram seu comer do que acharam na terra e do que no navio levavam. Depois de haver
comido com muito prazer de todos, como viam o tempo sereno, que não põem tempo em fazer
de si mudança, se deitaram a dormir, estendidos pelo feno, de que aquela rocha estava
coberta.
Filomesto, não podendo dormir como os outros, ou por sua pouca idade ou pelo que havia
de acontecer dele (como, Senhora, vos contarei adiante), foi-se por antre o mato após os
passarinhos, que sobre os ramos das árvores cantavam, ora parando-se a ouvi-los, ora tirando-
lhes as pedras, cuidando tomar algum; correndo, de quando em quando, após eles, se alongou
tanto do porto donde saiu, que, quando quis tornar, não soube atinar a que parte lhe ficava.
Parecendo-lhe que ia bem, se ia mais alongando, que a pressa que ele levava por chegar à
companhia que deixara, essa o alongava mais dela.
Acordando depois o mercador e mareantes e não o achando, chamaram por ele, cuidando
que estivesse perto, encoberto antre algumas ervas ou árvores que ao redor deles estavam;
mas, como viram que não respondia, adivinhando-lhe o coração o que era, apelidaram toda a
mais companhia, e, por diversas partes, cada um a grandes vozes, começaram a bradar por
Filomesto. A Filomena de uma parte e o Eco só da outra por ele respondiam, que ele não os
ouvia pera lhe dar a reposta (sic) desejada.
Estando todos nesta agonia triste, começou-se a levantar um grande vento e, com ele, o
mar, com uma tormenta tão furiosa, que o navio viera dar à costa, se logo com muita pressa
lhe não valeram com se recolherem a ele no barco que a terra os trouxera, despregando só um
pequeno seio de uma vela, com intenção de tornarem a ancorar no mesmo lugar, tanto que
abrandasse aquela fúria do tempo, a qual afirmavam os pilotos não duraria muito pelos sinais
que viam e razões que davam. Mas como os ventos e as ondas são sem razão, as coisas do
mar de maravilha acontecem da maneira que se cuidam, e, por mais que os pilotos presumam
de as entender, poucas vezes acertam. Ao menos, desta vez, se enganaram estes pilotos com
os tempos fortes e enganosos, porque duraram tanto, que nunca mais lhe deram lugar pera
poderem tornar a buscar ali o que com tanta pena deixavam, temendo muito todos que alguma
besta fera matasse a Filomesto, chamando-se o mercador falso a si mesmo e mal cumpridor da
promessa que a seu pai fizera, chorando com muita dor sua morte, tão temida em terra tão
solitária e erma de todo humano emparo, e tão povoada de brutas alimárias e salvagens,
porque eles lha tinham por mui certa no lugar onde o deixavam.
Mas quem estava destinado pera passar muitas mortes não era razão, ou não permitia seu
fado, que com só uma delas pusesse fim a tantas.
Capítulo Segundo 6
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
CAPÍTULO TERCEIRO
Livre Filomesto daquela tormenta que pelo mar levaram seus companheiros, a veio passar
aquela noite muito maior na terra, que, como era ali estrangeiro e menino de tenra idade, e a
sombra do arvoredo e da noite fizessem aquele mato mais cerrado e medonho do que ele era,
já vedes, Senhora, quão bom gasalhado teria, pois não tinha ali quem lho fizesse. Mas tanto
vos digo que andou e bradou pelos companheiros tão alongados, que foi ter muito longe do
lugar onde desembarcara, e de cansado e desconfiado já de acertar o caminho, se assentou
ao pé de uma árvore, de que primeiro colheu um ramo, que ali lhe tivesse companhia.
Não se tardou muito que, estando ele sem saber o que faria, viu vir por antre o mato uma
loba, sem conhecer ele mais dela outra coisa senão que era alguma besta fera, e, por não ter
tempo pera fugir, tomou na mão uma pedra pera, com ela e com o bordão que tinha feito, se
defender; e, com o abalo que ele fez do medo que houvera e de assi se prover pera sua
defensão, o sentiu a loba, que já perto dele estava, pondo os olhos nele. E, como era de
grande coração, ainda que pequenino e de poucos anos, fez um tiro com a pedra, e foi tal sua
ventura, que lhe fez uma ferida sobre os olhos, de que corria muito sangue que lhos cegava,
que nada podia ver, e com o seu bordão feriu tantas vezes a loba a seu salvo, que a acabou de
matar de todo.
Depois de haver feito isto (que pera sua idade era mais do que se pudera esperar e menos
do que se podia cuidar, sabendo quem ele era e donde descendia), esteve cuidando o que
101
faria ( ).
Tendo cuidado, se subiu sobre a árvore, pera em cima dela esperar a manhã mais seguro
do que, té então, estivera, escarmentado já do perigo que passara, não dormindo no alto onde
estava, mas dando louvores a Deus que de tal perigo o livrara. Assi esteve o restante da noite,
até ver a manhã, que lhe mostrou aquelas serras, que lhe pareceram mais bem assombradas
do que de noite julgou.
Acabando de decer da árvore pera buscar sua companhia, ouviu ao longe ladrar cães e
brados de pessoas que por ali andavam; e, com isso, acabou de sentir nada o que dantes
sentira, parecendo-lhe que, ou eram seus companheiros, ou gente que lhe mostraria o
caminho, por estrangeira que fosse.
Pondo o rosto, então, pera aquela parte, donde os brados ouvia, viu por antre o mato vir uns
rafeiros grandes, seguindo um grande lobo que longe deles vinha, e, arremetendo com o seu
bordão a ele, se houve de tal maneira na peleja, que o fez dormir pera sempre junto da loba,
sua companheira. E como os rafeiros vinham bravos, arremeteram a Filomesto, que, todavia,
temendo-se quando os vira, não estava descuidado de se guardar deles e, recebendo-os com
o seu bordão, se defendia tão bem, que os pastores, que logo após os cãis chegaram, se
maravilharam de o ver tão bem esgrimir e defender-se dos cãis, de cuja fúria sabiam eles que
muitos lobos se não puderam já algumas, ou muitas vezes, livrar. Acudindo, então, os
pastores, apartaram os cãis, que logo arremeteram aos lobos mortos, que junto jaziam, o que
todo vendo, os mesmos pastores, como pessoas que viam algum milagre ou encantamento,
não sabiam que dizer, ficando mudos e confusos.
Mas, por fim, um pastor, maioral de todos eles, com uma voz retumbada, começou com
muita cortesia a falar a Filomesto, a grenha descoberta e os geolhos no chão com todos os
seus companheiros, dizendo:
Capítulo Terceiro 7
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
“Se, donzel fermoso, sois algum deus, que andais por este mato em favor nosso e defensão
de nossos gados, como pareceis nesses lobos, inimigos deles, que diante de vós tendes
mortos, ou sois guarda deputada aos mastins do campo, ou algum fauno piedoso, ou aquele
Ganimedes, servo aprazível a Júpiter pera seu serviço, pela sua águia arrebatado do alto
monte Ida, e por isso ainda agora vos agradam as montanhas pastoris e folgais de andar nelas,
deixai-vos esconjurar por quem fostes, e dizei quem agora sois a estes pobres pastores, que
tanto favoreceis, pera que vos saibam dar a devida honra e oferta que a vossa divindade se
deve. E se sois pessoa humana, dizei-nos a ventura que por aqui vos trouxe, pois tão boa foi
pera nós a de vossa vista. E se sois Marte, deus das guerras, ou filho de Belona (pois tão bem
sabeis esgrimir), dai perdão a nossa inocência e brutalidade de nossos rafeiros, que não
perseguíamos a vós, senão a esses lobos, perseguidores de nossos gados, que vós matastes”.
Filomesto, que de tenra idade aprendera cortesia, tirando seu chapéu da cabeça e
humilhando seu corpo, respondendo a isto, disse:
“Deixai, bons pastores, de dar a honra (que só a Deus imortal e alto se deve) a mim, que
sou criatura mortal, baixa e subjecta a muitas faltas e misérias, como é esta, em que agora me
vejo, em terras estranhas nesta serra, em cuja costa ontem desembarquei com uns
companheiros, de quem, por meninice de andar perseguindo passarinhos, me apartei, sem
saber tornar a eles. Mas já que vos acho a vós, peço que me queirais guiar até a costa do mar,
que não deve ser mui longe, pera cobrar os companheiros perdidos, os quais não serão
ingratos a este bem que me fizerdes”.
Alevantando-se, então, os pastores e abraçando-o, com palavras de alegria, olhando pera
ele como pera coisa divina, o foram guiando e acompanhando até o lugar donde dos
companheiros se apartara. E não os achando, nem vendo o navio em que viera, caíram na
conta do que podia ser de sua partida, pela tormenta desfeita que desfizera sua companhia.
Levando, então (102), consigo a Filomesto ali perto, onde tinham seu gado, o recolheram em
sua malhada, consolando-o cada um de sua perda. E, ainda que com palavras rústicas,
concluíam todos que tudo quanto há neste mundo, além de ser desterro, ou é triste
apartamento ou saudade.
Capítulo Terceiro 8
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
CAPÍTULO QUARTO
O maioral do fato aconselhava aquela noite a Filomesto que quisesse consentir ser levado e
apresentado ao senhor daquela terra e do gado que eles ali apascentavam, do qual receberia
grande honra e gasalhado. Consintiu (sic) Filomesto nisso, porque um estrangeiro, e só, a tudo
obedece em terra alheia; e, com seu consentimento, ordenaram os pastores sua ida pera o dia
seguinte em que na cidade se fazia uma grande e solene festa, querendo lá levar o que sem
ela estava.
E ao outro dia, logo em amanhecendo, deixando alguns por guarda do gado, pondo os dois
lobos, que Filomesto matara, sobre duas bestas de seu serviço e a Filomesto, que de fina grã
estava vestido, como do mar saíra, sobre um branco palafrém do serviço do maioral, pondo-lhe
por sela umas peles pretas de cordeiros, ia sobre cordeiros o cordeiro Filomesto, parecendo
mais coisa do Céu que da Terra. E, passando muitas serras e malhadas de pastores, se
ajuntavam com estes outros de cada uma, por acompanhar a Filomesto, espantados do que
dele os primeiros lhe contavam.
Já passava de horas de vésperas quando chegaram à cidade, e, começando a entrar por
ela, se puseram nesta ordem: Iam alguns pastores diante com as bestas que levavam sobre si
os lobos atravessados mortos, com as bocas abertas com umas estacas antre os queixos, com
que pareciam mais feroces, e logo detrás ia Filomesto, como tenho dito, em seu palafrém
branco, assentado na sela dos cordeiros o cordeiro, rodeado de muitos pastores, vestidos de
seus gabões girados, todos com seus cajados altos. E, começando a entrar pelas ruas, acudia
grande multidão de gente às portas e janelas, e pelas praças, pera ver aquela novidade nunca
vista; e, passando adiante, os iam seguindo, até que chegaram a uma grande praça, defronte
dos paços de Narfendo (que assi se chamava o senhor daquela terra), o qual estava encostado
em um cochim de carmezim, que em cima de um dorsel do mesmo estava sobre o peitoril de
umas baixas varandas, vendo os jogos e danças que, passando por ali, diante dele, se
representavam.
Acabara, então, de passar uma dança de fermosas donzelas, quando os pastores chegaram
com seu fermoso donzel. Pareceu isto a Narfendo e a todo o povo a mais estranha e notável
invenção de toda aquela festa, como, na verdade, o era.
E ajuntando-se muita gente ao redor dos pastores naquela grande praça, começou o
maioral deles (que, ainda que de rústico ofício, era de bom entendimento) a falar com
Narfendo, em alta voz e com a devida cortesia, desta maneira:
“Benigno e alto senhor, a quem, por vossa real condição, vossos vassalos servem mais com
livre amor de filhos que com servil temor de súbditos ou escravos, porque em vós sempre
sentiram todos obras de bom pai e senhor. Nós, os pobres e baixos pastores, lá nas serras,
onde andamos, não estamos tão longe deste conhecimento e amor, que vos não desejamos
servir com ele, como os maiores e mais privados de vossa casa. Um caso estranho nos
aconteceu, de que todos pasmamos: porque, vigiando anteontem (sic) de dia vosso gado, uma
loba nos desinquietava, e correndo com os cãis depós ela, a deixamos ir, por ser já quase
noite, tornando-nos a recolher pela melhor guarda dele; foi ter esta loba onde este donzel
estava, perdido naquela serra, a qual ele matou, como se fora um Hector ou Aquiles. E sendo,
já de madrugada, acometido o gado desse lobo, o perseguimos também, até o vermos diante
de nós ser morto às trochadas pelo mesmo donzel, que nos pareceu guarda enviada do Céu
pera defender nosso gado. E como os pescadores do mar e dos rios vos trazem e apresentam
Capítulo Quarto 9
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
os peixes reais, e os moradores da terra fazem o mesmo dos que saem à costa, por vos serem
direitamente devidos, a vós pertencia que trouxéssemos também esta caça real deste donzel,
não do mar, nem da terra, mas do Céu, donde parece vindo, que naquela grande serra antre
nossos pastos achamos, defendendo nossos gados com sua fortaleza e valentia e espantando
a nós com isso e muito mais com sua fermosura. Aqui vos oferecemos este real presente e os
lobos, por esta ave de altanaria mortos, pera que deis vosso favor e emparo (sic) a quem lhes
deu a morte a eles e a vosso gado vida, e a nós quietação e seguro de seus contínuos
sobressaltos”.
O grande contentamento que Narfendo e todo povo recebeu não se pode contar, nem
encarecer com palavras. E, pondo os olhos ora na lindeza de Filomesto, ora na ferocidade dos
animais mortos, ora no bom pastor, que por tão gentil maneira o caso representava, mandou
Narfendo que subissem onde ele estava. E, entrando em um pátio dos paços e subindo por
uma espaçosa escada de mui polido mármore, se apresentaram nas varandas diante dele, o
qual recebeu este pastoril presente nos braços, com mostras e palavras de tenro e verdadeiro
amor, que teve com Filomesto, de quem soube por extenso as particularidades de sua viagem
e a perda de seus companheiros, que ele com grande tormenta, que sobreviera, tinha por
perdidos, pera ele vir a ser ganhado em sua presença, onde, então, se achava.
Pelo que, dando Narfendo grandes dons aos pastores, que, contentes, se tornaram pera os
pastos de seus gados, o recolheu em sua casa e mandou ensinar e adestrar nas ciências e
armas como filho, nas quais tanto aproveitou Filomesto em poucos anos, que os mais sábios
nas ciências daquela cidade lhe davam obediência e os mais destros nas armas lhe
reconheciam avantagem e o temiam, pelo que veio por sua mão a querê-lo armar cavaleiro
pera o mais honrar.
E aparelhado pera este auto solene todo o necessário, conforme a seu poder e riqueza e ao
grande amor que a Filomesto tinha, o levou uma véspera de festa, já de noite, todo vestido de
branco, em sinal de inocência e limpeza, que tal ofício requeria, com muitas tochas acesas,
acompanhado de muitos e principais cavaleiros e de todo povo, de seus paços até a igreja
principal daquela cidade, onde foi ter a vigília antre os nóveis cavaleiros costumada.
E, segundo o antigo costume daquela terra, entrando na igreja, lhe lavaram a cabeça, como
que dali por diante havia de ter mais apurado siso, e, deitado em um leito limpo e brando, logo
o mudaram a outro, áspero e sem limpeza, pera conhecer que dos mimos e regalos da
mocidade se passava à idade e estado em que se haviam de sofrer desgostos e trabalhos, os
quais ele havia de ter, dali por diante, por seu leito e descanso. E alevantado deste segundo
leito, foi armado de armas brancas, e, posto em pé, as velou aquela noite com todos os
cavaleiros, de que foi também velado, encomendando a Deus todos seus feitos e sucessos,
pedindo-lhe que o fizesse idóneo pera aquela ordem de Cavalaria em que entrava, porque só
Deus tem poder sobre todas as coisas e, principalmente, nos feitos das armas, que em sua
mão está dar vida ou morte e fazer de fraco forte e de forte fraco, e faz pobre e rico, fere e
sara, humilha e alevanta. Esta oração fez Filomesto com os geolhos em terra, e todo o mais
tempo da noite esteve em pé, rogando todos os cavaleiros a Deus por ele, como homem que
entrava no caminho da morte.
Em amanhecendo, ouviu missa, continuando em sua petição pera que o Senhor
endereçasse seus feitos a seu santo serviço.
Acabada a missa, chegou-se a ele Narfendo, que neste solene auto era seu padrinho,
armado em umas ricas armas, e lhe perguntou se queria receber a ordem de Cavalaria;
respondeu que si, ainda que indigno dela. Tornou-lhe a perguntar Narfendo se a manteria
como se devia manter; tornou a responder Filomesto que a todo seu poder o faria. Então, lhe
calçou Narfendo as esporas e lhe cingiu a espada, fazendo-lhe jurar três coisas na cruz dela: a
primeira que não arrecearia morrer por seu Deus e por sua lei; a segunda, por seu senhor
natural; a terceira, por sua pátria.
E, havendo Filomesto jurado isto, lhe arrancou Narfendo a espada, que lhe cingira, e com
103
ela nua lhe deu de pancha ( ) uma porrada na cabeça sobre o elmo, com que a tinha ornada
e armada, mostrando-lhe que, com o livre arbítrio do cavaleiro cristão, que Deus deixou e pôs
na mão de cada um homem, que é homem e accepta qualquer cargo, quanto mais este, deve
subjectar seu juízo à razão, pera sofrer todo trabalho de sua livre vontade, e fazer juízo de si
mesmo, sem esperar ajuda nem juízo doutrem, que o force e governe. E depois lhe deu com a
mão uma pescoçada, por que lhe lembrasse as três coisas que tinha jurado, como antigamente
Capítulo Quarto 10
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Capítulo Quarto 11
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
CAPÍTULO QUINTO
Cada dia mais iam em crescimento as obras e grandezas de Filomesto, pela fama das quais
de muitas partes era chamado pera estranhas e dificultosas aventuras, crendo que nenhum
outro poderia a elas dar venturoso fim, senão ele. E, por isso, mais que por ser tão privado de
Narfendo, senhor de toda aquela terra, era estimado de muitos e muito amado de muitas,
principalmente de uma senhora, herdeira e sucessora de um rico castelo, chamado Ricatena. A
qual fez com sua mãe, viúva, que mandasse à corte de Narfendo uma dama, sua fiel
messageira (sic), que o chamasse, pera se desenganar com ele e lhe descobrir seu amor e
desejo que tinha de ser sua mulher e consorte.
E aconteceu, assi, que, estando uma noite grande número de cavaleiros e damas nos paços
de Narfendo, em um festejado serão, entrou pelas portas do paço na sala, onde todos
estavam, esta dama, em trajo desconhecido, com um luzente escudo de aço embraçado e,
pendurada de um tiracolo cheio de fina pedraria, uma rica espada. Fazendo primeiro grande
reverência a Narfendo e a todos os mais que ali estavam, disse:
“Senhor, pois tendes a propriedade da pedra de cevar e do súccino, que ajuntais e attraheis
(sic) a vós todo o fortíssimo aço e pérolas dos animosos cavaleiros que em vossa corte tendes,
fazei mercê a esta fraca donzela de a socorrerdes em uma grande pressa e aventura, ou
desaventura, em que se vê, que, pois trago armas ofensivas e defensivas, contra a natural
condição das mulheres inermes, não deve ser pequeno o perigo em que me vejo, nem o
negócio que pretendo. E, ainda que a cada um dos valerosos cavaleiros, que presentes vejo,
sobeje esforço pera qualquer aventura, só a Filomesto peço pera esta, que pera ele está
guardada; e há tanto perigo na tardança, que, se logo não parte comigo, da aventura, pera que
o chamo, se seguirá uma desaventura grande”.
Concedeu Narfendo e acceptou-o Filomesto.
E, partindo-se logo com aquela dama, ele, armado em seu cavalo, com seu escudeiro, que
o seguia, e seguiam ambos, que em cima de um palafrém, diante deles, a gram pressa
caminhava. E andando pelo escuro, sem saber por onde iam, perto já da manhã foram ter junto
de um castelo, que não viam, senão quando se viram à porta dele. Onde lhe disse a dama que
se apeasse, e, abrindo as portas com uma chave que secretamente levava, entraram dentro,
em um grande pátio. E ficando o escudeiro com o cavalo pelas rédeas, subiu a dama com
Filomesto, por uma espaçosa escada de pedra, a umas altas varandas e, dizendo a Filomesto
que a esperasse ali, que logo lhe traria recado do que havia de fazer, entrou em uma grande
sala e, depois, em uma câmara, e não tardou muito que não tornasse a sair fora, e o levou à
porta da câmara, que aberta estava, dizendo: “Aqui, dentro desta câmara, está a aventura,
pera que, senhor, sois chamado; podeis entrar nela, que eu vos fico guardando esta porta”.
Entrou Filomesto, cuidando que ia cometer alguns feros gigantes, e achou-se rodeado de
uma honrada dona e de duas donzelas, que o vieram receber à porta e, fazendo-lhe grande
cortesia, o levaram até uma cadeira, que estava sobre um tapete, dizendo-lhe: “Assente-se,
senhor, e, assentado, nos ouvirá nossas querelas”.
Assentado ele e elas, começou aquela grave dona falar-lhe desta maneira:
“Quem tem filhos, senhor cavaleiro, tem cuidados, e muito mais acrescentados lhe são aos
pais com as filhas, por serem cheios de mil receios e temores, principalmente quando as filhas
são tais, que filham os corações de quem as gerou com as boas partes, de que Deus e a
natureza as dotaram, pelo que andam sempre imaginando, sem poder descansar, pelo estado
e descanso em que as desejam poor em sua duvidosa vida e deixar depois de sua morte certa.
Capítulo Quinto 12
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
E, se isto acontece aos pais, muito mais cuidosa e solícita deve ser a mãi delas, sem o abrigo
de seu pai, que parece que as pedras se alevantam contra a tal orfindade (sic), se não têm
algum seguro tutor e defensor. Dias há que faleceu o senhor deste castelo, meu marido, de
que me ficaram estas duas filhas, que diante vós vedes. Esta mais velha tem enjeitado o
mundo e quer fazer vida santa, renunciando todo o direito que tem de sua herança nesta mais
moça, que não quer, nem deseja casar senão convosco, do primeiro dia que vos viu pequeno
entrar na corte de Narfendo (onde ela, então, estava), com o triunfo dos lobos e pastores; e
quanto mais foi crescendo a fama de vosso nome, tanto, mais lhe cresceu a ela este desejo, e,
vendo eu e sua irmã quanta razão tinha pera isso, não somente não lho defendemos, mais
sempre lhe persuadimos que só vós éreis digno dela e que só em vós se empregava bem seu
desejo, porque, além de vossas extremadas partes, merecedoras de grandes coisas, teríamos
com vossa pessoa seguro emparo de nossa vida e honra. Consultamos, pera saber vossa
vontade, mandar-vos chamar com aquela fingida donzela em guerra e revolta, por esperar de
vossa condição que nos poreis em toda paz e sossego”.
Estava a estas palavras Ricatena (que assi se chamava sua filha mais moça) com uma cor
no rosto vergonhosa, com que acrescentava tanto em sua fermosura, que (segundo dizia meu
pai, que isto contava) abastava pera enternecer um duro peito de diamante; mas não pôde,
com tudo isso, abrandar o de Filomesto, que naquele tempo ainda não provara os golpes das
armas de Cupido. Era de seu natural castíssimo e dotado de um vergonhoso e honesto pejo, e
com ambas estas condições, que o acompanhavam, respondeu à venerável dona, dizendo:
“Mercês são estas, senhora, que se me desejam fazer nesta casa, muito maiores que meus
merecimentos e muito mais altas que meus desejos, as quais eu sempre terei na memória pera
as servir com todo meu poder e forças, mas, quanto ao casar, que dizeis, não estou agora
determinado fazê-lo aqui, nem em outra parte. Se Deus em algum tempo o ordenar, não lhe
sairei da vontade, pois Ele é senhor da minha. E, se outra coisa não quereis mais de mim, vos
peço licença pera me tornar, com a obrigação que sempre terei de servir vossas coisas”.
E, dizendo isto, se alevantou e despediu com muita cortesia, deixando a dona e suas filhas,
de vergonhosas, mudas, sem lhe saberem responder palavra alguma. E, descendo ao páteo,
se subiu a cavalo e saiu do castelo com seu escudeiro, indo por outro caminho, desviado do
que à vinda trouxera, onde o deixarei agora por vos contar, senhora, o que aconteceu neste
caso.
Capítulo Quinto 13
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
CAPÍTULO SEXTO
Quando Filomesto saiu da corte com a dama armada, estavam nela dois guerreiros, irmãos
de um fortíssimo cavaleiro, senhor de um castelo, não mui longe do outro da honrada viúva. E
como estes sabiam que seu irmão amava muito a Ricatena e desejava casar com ela, e posto
que, não no trajo disfarçado, mas na voz natural conheceram ser aquela donzela do castelo de
Ricatena, suspeitaram logo o que poderia ser. Porque ao arreceoso, de pequenas sombras e
leves ocasiões, lhe nascem grandes suspeitas. Assi como o suspeitaram no pensamento, assi
o confirmaram logo em seu juízo.
E, saindo-se do serão em que estavam, se puseram a cavalo e, a grande pressa, foram ter
ao castelo de seu irmão, e, fazendo-o sabedor do caso, se partiram todos três, armados com
seus escudeiros. E, por fazerem mais presto esta jornada, caminharam por um atalho até
verem o castelo de Ricatena, e, sendo junto dele, viram sair pela porta a donzela armada, que
fora chamar a Filomesto, a qual tomaram e prenderam enviando-a presa sobre um palafrém
com dois dos seus escudeiros pera o seu castelo, ficando eles ali determinados de combater o
castelo da viúva e matar a Filomesto, que eles suspeitavam estar dentro, e tomar-lhe a
Ricatena por força de armas.
Não teria Filomesto caminhado duas léguas, quando a horas de terça viu junto do caminho
uma fresca fonte, cercada de arvoredo, e, por descansar um pouco do trabalho da noite, se
desceu ali, tomando refeição do que seu escudeiro levava. E estando comendo, viu vir pelo
caminho contra a mesma fonte, onde estava, a dama que tenho dito, já desarmada e presa,
com os dois escudeiros; a qual, chegando perto e conhecendo a Filomesto, começou a bradar:
“Ah! senhor cavaleiro, castigador dos maus e emparo dos fracos, acudi a esta donzela, que por
vossa causa levam presa”. E dizendo-lhe seu escudeiro: “Senhor, esta é a donzela com que
esta noite viemos”, se alevantou Filomesto com a espada na mão, ameaçando os escudeiros,
que logo soltassem aquela donzela.
Não puderam eles fazer outra coisa e, deixando-a livre, ela lhe contou como, saído ele do
castelo sem ela o ver, por acertar de dormir, quando, acordando, soube de sua partida, saíra
depós ele pera lhe pedir que houvesse compaixão de suas desconsoladas senhoras. E saindo,
a prenderam três cavaleiros, chamando-lhe falsa e urdidora de maldades, e a mandavam levar
presa pera dela tomarem vingança em seu castelo, como eles diziam que ela merecia, mas
que Deus a trouxera às mãos de quem a livrara, por ela ser inocente. E ameaçando Filomesto
aos escudeiros, soube deles como, sendo aquela donzela conhecida na voz pelos irmãos de
seu senhor, que queria muito a Ricatena, se saíram da casa de Narfendo com muita pressa e,
chamando a seu irmão, haviam ido a combater o castelo da viuúva, cuidando de o achar
dentro, com intenção de o matarem e tomarem por força a Ricatena, e, por irem por um atalho,
o desencontraram no caminho.
Ouvindo isto, Filomesto, sem mais detença, cavalgou em seu cavalo e a donzela no
palafrém. Levando os dois escudeiros diante, se foi a mais andar pera onde os três cavaleiros
o buscavam.
Chegando ao castelo, os achou já dentro, no pátio, com grande pressa, pera pôr fogo às
portas de uma torre, onde a viúva com suas filhas e criadas estava recolhida porque os mais
servidores do castelo, como com sua entrada acudiram ao pátio, os tinham já presos e
fechados em uma casa dele.
Entrando Filomesto pela porta do castelo e vendo os três irmãos com tão furiosa
determinação de querer entrar na torre, lhes disse: “Contra mim, a quem buscais, convertei,
Capítulo Sexto 14
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
senhores cavaleiros, vossa ira e armas, e não contra umas fracas e delicadas mulheres, que
não têm culpa alguma, nem vos ofenderam; nem eu vos ofendi neste caso, nem em outro. E,
se cuidais que vos fiz ofensa em vir a este castelo, em mim executai vosso furor, que presente
me tendes”.
E, dizendo isto, arremeteu a eles, que já o vinham buscar com suas espadas nuas; e do
primeiro golpe, que deu no irmão mais velho, o derribou sem sentido em terra. E virando seus
golpes sobre os outros, em mui pouco espaço os acabou de render, muito mal feridos. E,
vendo-se tais, lhe pediram a vida, a qual eles lhes outorgou, com condição que se haviam de ir
entregar a seu senhor Narfendo, pera que lhes desse a repreensão e castigo que por tal
atrevimento mereciam; e eles assi o prometeram e juraram. Isto fez Filomesto por assegurar
pera o diante aquele castelo e os senhores dele daqueles contrários.
E fazendo soltar os presos, se partiram os três cavaleiros com seus escudeiros pera seu
castelo, donde, depois de curados, se foram apresentar a Narfendo, dando-lhe conta do que
passava e pedindo-lhe misericórdia e perdão do que fizeram, pois eram erros por amores. Ao
que Narfendo respondeu, dizendo: “As vontades alheias melhor se granjeiam com serviços
amorosos que com palavras ásperas e força de armas, e, pois tomastes tal meio pera
abrandardes a vontade de Ricatena, vos mando que daqui em diante a sirvais e defendais, e
isto vos seja castigo”. E beijando-lhe todos os três a mão por tanta benignidade e tal conselho,
se partiram pera seu castelo.
E nunca mais ofenderam a Ricatena, nem coisa sua, antes em tudo a serviam. Mas nunca
bastaram seus serviços pera lhe inclinar a vontade a amá-los, por ter seu amor posto em
Filomesto, que também se não inclinava a ela; e por mais que ela, saindo da torre depois da
vitória, com sua mãi e irmã lhe rogassem que quisesse descansar ali um pouco do trabalho que
por respeito delas passara, o não puderam acabar com ele.
E não quis senão passar adiante, seguindo suas aventuras, que não foram poucas as que
em diversos caminhos lhe aconteceram, das quais não contarei senão as que mais pretendo,
que são as mais tristes, por não vos ser importuna. E uma delas, senhora, é esta que agora
direi.
Capítulo Sexto 15
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
CAPÍTULO SÉTIMO
Ia uma tarde Filomesto atravessando uma comprida e fragosa serra e, assomando seu
escudeiro, que diante dele caminhava, no alto dela, descobriu dali com sua vista como outro
mundo e outra terra, baixa, empolada, toda com pequenos e espessos montes cobertos de
altos arvoredos, e, tornando a descer por aqueles crespos e arrugados vales, viu perto de si,
por antre as árvores, estar uma quadrilha de ladrões e salteadores roubando, com grande
rumor que faziam, uma grande recovagem de um rico mercador que por ali, então, passava. E
entendendo o que era e querendo tornar atrás buscar a seu senhor, que não via, foi impedido
com a pressa dos ladrões que o seguiram, vendo-o tornar pera donde vinha, ficando outros,
com o mercador e recoveiros presos, descarregando as azémelas (sic) e desenvolvendo os
fardos, assoalhando tudo por buscar dinheiro ou algumas jóias e peças ricas. E com tanta
pressa seguiram o escudeiro fugitivo, que o alcançaram e prenderam; e, começando (sic) de o
despir e buscar se levava alguma moeda (porque no deserto, onde ela se não bate, costuma
semelhante gente dar bateria no que a leva; e ainda muitas vezes acontece o mesmo nos
povoados, onde os ladrões são vistos e conhecidos, quanto mais nos ermos devassos,
aparelhados pera toda maneira de maus acometimentos, onde não são achados, nem
sentidos).
Neste tempo chegando Filomesto à tresposta do monte e vendo a companhia que a seu
escudeiro se fazia, quis pagar o gasalhado àquela gente perdida, como ela merecia, pelo que,
descendo com grande fúria a espora fita em seu cavalo, os ladrões, que o sentiram, deixando
seu escudeiro, arremeteram a ele com suas lanças e dardos, cercando-o de todas as partes; e
não somente estes, mas os outros, que com a recovagem ficaram, acudiram todos ao assalto
tão travado antre todos, que foi bem necessário a Filomesto valer-se nele de todo seu valor e
ânimo pera não ficar ali roubado e sepultado.
Mas como quando se ajunta o rústico povo aldeão com suas mal polidas e pior luzentes
armas a buscar a besta fera, que o mal visto pastor lhes afirmou que era lobo, e chegados ao
lugar onde lhes foi dito que estava, saindo dentre a mata, não lobo, mas um ferocíssimo leão,
bramando e saltando antre a vil gente, quebra com grande ímpeto e despedaça lanças e
bestas, abre e desgarra os corpos e faz voar as almas com grande crueza e ligeireza, e o que,
então, melhor foge dele se tem por mais valente e esforçado, achando-se salteados do que
não cuidavam, assi esta canalha de salteadores maus, cuidando que tinham na serra lobo com
ver somente o escudeiro, achando-se depois com o bravo leão, que fazia estrago deles e suas
armas; ainda que alguns o fariam, mais eram e por mais valentes se tinham os que se
encomendavam à ligeireza de seus pés e se acolhiam.
E, matando ali o cavalo a Filomesto com as feridas das lanças, dardos e setas, que mui
bastas lhe atiravam, depois de se ver a pé e seu cavalo caído e morto, se alevantou com
dobrada fúria e, jogando com maravilhosa destreza, de sua espada os feria e fazia derredor de
si larga praça, derribando, como raio, aqueles em que mais resistência achava.
Dizia meu pai (contando isto) que assi como o destro e acordado arrais, depois de perdido o
barco com a contrária tormenta, se lançava ao mar com maior ânimo e em cima das ondas,
bracejando a todas as partes, se esforçava salvar a vida, e a importuna braveza delas lhe
dobrava o esforço pera nadar mais depressa, assi Filomesto, perdido seu cavalo, com maior
ligeireza e coração invencível corria e acudia a todas partes, bracejando com sua espada
contra a impetuosa fúria das lançadas e tiros de seus contrários, e com mais facilidade os
alcançava e atropelava que se a cavalo estivera.
Capítulo Sétimo 16
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
E como o arrais, depois de muito bracejar e nadar, saindo à costa em salvo, se assenta
sobre algum penedo descansando, olhando pera o mar já lançado e com suas ondas mansas e
quietas, assi se assentou Filomesto sobre seu cavalo morto, depois de muito bracejar e
manear das armas, olhando como tinha abatida e lançada por terra a bravura de seus inimigos,
mais amainada e quieta que a mesma terra, onde todos mortos e estendidos jaziam. E parece
que foi permissão divina que lhe matassem o cavalo, pera que ele a pé os pudesse melhor
seguir e alcançar e matar, quando por antre o espesso arvoredo fugiam, por onde o cavalo
passar não podia.
Acabado este negócio, se foi soltar seu escudeiro, que preso estava, e ambos foram adiante
pela estrada, juncada toda de ricas peças de panos, sedas e outras coisas dos fardos, que
desenvoltos tinha aquela má relé, que parecia aquele caminho, ali, lugar de gente impedida,
onde tinha abertos e postos ao ar seus fardos e coisas que neles vinham, em maneira que
estava tudo solto, senão os donos, que estavam presos. E, soltando aos recoveiros e ao
mercador e a seus criados, lhe foram dadas as graças de todos pelo bom socorro que lhes
dera e liberdades em que os pusera.
E tornando a recolher tudo e a dobrar suas roupas, e a refazer e carregar seus fardos,
cavalgando Filomesto no palafrém de seu escudeiro, começaram a caminhar juntos algumas
jornadas, com muito gosto e contentamento, contando o mercador como vinha de uma rica e
franca feira, onde fora fazer emprego de muito dinheiro, e que toda aquela fazenda era de seu
pai e de um seu irmão mais velho e sua, que moravam na cidade pera onde caminhavam.
Nesta conta e noutros contos passaram seu caminho até chegarem à cidade pera onde iam.
Constrangeu o mercador com rogos a Filomesto que acceptasse a pousada em casa de seu
pai, onde foi com grande gasalhado recolhido e servido, contando o filho a seu pai como por
ele fora livre da morte e de ser roubado de quanto trazia.
Recolhido Filomesto a uma rica e bem adereçada câmara, que pera repousar e descansar
lhe foi dada, estando com ele o venerável mercador antigo e seu filho mais moço, chegou o
mais velho de fora, donde andava passeando na cidade, com o alvoroço das novas que lá lhe
deram da vinda de seu irmão, e fazendo-lhe amoroso recebimento, assi a ele como ao novo
hóspede, e ajudando-o todos três a desarmar, como Filomesto tirou o elmo da cabeça e o filho
do mercador mais velho lhe viu o rosto e ouviu sua voz, conhecendo-o, se lhe lançou aos pés,
chorando com muito prazer, dizendo: “Oh! meu senhor Filomesto, não sei se é sonho ver-vos
agora, ou se vos vejo dormindo, ou se, esperto, me engano. Não conheceis vosso amigo
Avinnezeno, que de casa de vosso pai vos trouxe menino? Que com insofrível mágoa vos perdi
dormindo e com tão sobeja alegria vos acho agora, não sei se velando! Que ainda agora tenho
sobressalto de ser esta vossa vista sonhada”!
Beijando-lhe os pés, lhos banhava e se derretia com a súbita alegria, todo em alegres
lágrimas, que nisso são iguais o muito contentamento e a grande tristeza, porque ambas estas
coisas igualmente choram. E acordando Filomesto como de sonho, conheceu seu amigo, com
que saíra de casa de seu pai, e alevantando-o nos braços, o teve assi abraçado grande
espaço, chorando.
O pai e o irmão, ouvindo que era este Filomesto perdido (como seu filho muitas vezes lhe
contara), quase desatinados de prazer se abraçaram com ele e apelidaram toda a casa, que
andava revolta com o alvoroço de tal hóspede, envoltas as lágrimas de todos em
contentamento e o prazer em choro, que parecia casa de doidos. Tanto endoidece uma grande
alegria, que não há coração, por mais grande que seja, que não fique pequeno pera a recolher
toda junta.
Dizendo o honrado velho: “Hoje, senhor cavaleiro, ressuscitou meu filho, que por vossa
perda andava morto, e me nasceu outro, que sois vós no amor que vos tenho, e se alegrou
minha casa, e cobrei quanto tinha. Grande ventura foi esta minha, pois vos perdeu um filho
meu vivo e vos achou outro meu filho morto, que, se vós o não livráreis da morte, ele a tinha
muito certa antre aqueles ladrões na serra; e é pouco quanto tenho pera servir mercê tão
grande”. Filomesto dizia: “Toda a boa ventura é minha em prestar pera vos servir, e sobeja-me
galardão em vos conhecer a vós e aos vossos, e achar agora vosso filho, meu fiel
companheiro”.
Estas e outras práticas de muito amor passaram todos, contando-lhe o trabalho que tiveram
em o buscar muitas vezes no lugar onde se perdera e em outras partes muitas, sem achar dele
Capítulo Sétimo 17
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
novas; mas que tudo Deus ordenava pera maior bem e gosto. Então, souberam de Filomesto
onde fora ter, e como ali viera, onde foi agasalhado por alguns dias, segundo seu alto
merecimento e como o muito amor e conversação lhe devia a ele, e a seu pai, que, de
princípio, ali o enviara. E sendo divulgados seus feitos em armas por toda aquela cidade e
comarca, era tido em grande veneração de todos e visitado e conversado dos melhores da
terra, que achavam em sua conversação ainda mores coisas do que sua fama apregoava. Que,
onde ela é verdadeira, muito mais há na pessoa do que soa.
Capítulo Sétimo 18
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
CAPÍTULO OITAVO
DAS NOVAS QUE TEVE FILOMESTO DO FALECIMENTO DE SEU PAI, COM QUE SE
TORNOU A SUA TERRA VER SUA MÃE E SEUS AMIGOS. E DA OCASIÃO QUE TEVE
PARA SER CONHECIDO E AMADO DE FILIDOR E DE OUTROS CAVALEIROS
Não passaram muitos dias depois deste recebimento alegre, que esta casa, envolta em
alegrias, não se revolvesse em pesares, que mal pecado nunca se viu mal que não viesse
muito depressa, nem bem e contentamento que muito durasse.
Era esta cidade, onde isto aconteceu, situada junto da costa do mar, e a seu porto foi ter um
navio desta ilha que levava um maço de cartas àquele rico mercador, onde também ia uma
pera Filomesto, que em sua terra não sabiam ser perdido.
Abrindo-as e lendo-as, em todas elas iam as tristes novas do falecimento do pai de
Filomesto e como sua mãi o mandava chamar pera com ele se consolar em tanto desemparo
(sic). Eis tornado o contentamento pesar e a alegria tristeza e toda esta casa alagada de
lágrimas tristes, que tão pouco havia que fora cheia das alegres.
Encerrando-se, então, Filomesto em sua câmara, foi visitado daquele prudente e antigo
mercador, onde estava acompanhado de seus filhos, e, além de outras práticas que com ele
teve, o começou consolar desta maneira:
“Assi como sois esforçado nas armas, senhor cavaleiro, bem sei que não vos faltará
também esforço nos nojos; e quem Deus dotou de tanto ânimo e valor nas aventuras, claro
está que nas desaventuras não se enxergará nele fraqueza, nem covardia, pois a mor vitória
de todas é saber homem vencer em si seus males e ganhar com suas perdas. Entendido tenho
que, pois sabeis vencer salteadores e ladrões no mato, também vencereis no povoado os
sobressaltos que costuma dar a morte roubadora dos contentamentos desta vida; nem os que
vão diante de nós se poderão livrar dela, nem nós, que cá ficamos pera sempre, viveremos
sem passar pelo fio de sua espada. Comparada é a geração dos homens às folhas das
árvores: da maneira que os ventos do outono fazem cair umas e outras cria a árvore no tempo
de inverno, e, por um contínuo teor, as primeiras caem e as novas crescem, assi dos homens,
morrendo uns, nascem outros, que ficam no chuvoso inverno dos trabalhos. Como nenhum
pode morrer sem que primeiro haja vivido, assi ninguém viver pode sem que depois haja de
morrer. A esta certa miséria está subjecta nossa humana vida. Sentenciou Deus que todos
acabemos com a morte; uns agora, outros depois; a sentença está dada, mal se pode revogar;
nem com seus amigos, os Apóstolos, nem com sua própria Mãi, nem consigo quis o Senhor
nela dispensar. E se alguns estão guardados com vida, como Enoch e Elias, não é pera não
terem fim, porque, enfim, hão-de acabar essa vida. E aos amigos de Deus, como era vosso pai
(senhor cavaleiro), a morte temporal lhes é gloriosa porta por onde entram pera a vida eterna.
E isto só basta pera muita consolação dos vivos. Nem os que vão diante pera sempre haviam
de viver, nem os que cá ficamos pera sempre havemos de durar. Chegou-lhes sua hora;
chegará também o nosso dia, que não tardará mil anos, nem muitos dias. Vosso pai era velho,
como eu, que tenho boa experiência, que é esta idade de velhice uma doença importuna e
morte trabalhosa de cada dia, de que a morte, quando vem, será descanso certo, e, por isso,
os mesmos velhos a desejam e pedem muitas vezes por se verem livres da miséria presente
que padecem. Quem mais vive, senhor cavaleiro, mais vê, e pois não há pera ver na terra
senão tristezas e desgostos, de que foi toda semeada, e, como juncada deles sempre está
coberta, o que mais viver mais novidades desta fruta colherá, descobrirá, pisará e verá nela”.
Calando-se aqui o venerável e antigo velho, por não poder mais com choro ir adiante,
parecendo que chorava mais o fim próprio, que esperava, que à morte alheia, porque os
trabalhos e perigos duvidosos muito mais atormentam que os certos ou já passados, sentia,
Capítulo Oitavo 19
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
juntamente, o apartamento de seu hóspede tão amado e o temor da morte, que esperava (que
quem os males alheios chora dos seus próprios se está lembrando no choro, e muito mais os
velhos, que, naturalmente, estão em vésperas deste amargoso trago e desta funesta festa).
E tornando a cobrar alento, depois de pouco espaço, prosseguindo em suas razões, dizia:
“Não dá Deus, bom médico, estes tão amargosos bocados, senão a compleições e
estômagos fortes, que os podem bem cozer e digerir; por isso não queirais, senhor, com sobejo
sentimento nesta grave perda mostrar que pareça Deus mal acertado médico nesta cura, com
que está aguando a saúde com a infermidade, a vida com a morte e as alegrias com tristezas;
e não queirais rebentar o estômago, que Deus muito certo sabe que pode sofrer a purga que
ele receptou. Se se perdeu o incerto desejo de mais o poder ver e conversar na terra por
acabar seus dias, não se acabam as certas esperanças de o poder ver na outra vida, onde
todos os seus bons parentes, como ele era, podem gozar com ele da mesma vida e glória, sem
nenhum receio, nem sobressalto de a perder. E pouco é sofrer a pena de nos apartarmos cá na
Terra pera o muito gozo que teremos, quando lá no Céu nos ajuntarmos. Chovam aqui
desgostos e trabalhos a cântaros, muito embora que, quanto maiores forem, nos adivinham
mores gostos e descansos, porque, depois de grande tormenta, vem mor bonança, e a
lembrança de os ter passados será uma honrosa glória”.
Calando-se o bom velho, começou seu filho Avinnezeno consolar a Filomesto com lágrimas
copiosas e com breves palavras, dizendo: “Eu perdi, amado senhor, em vosso bom pai um
grande amigo, mas, porque sei que a perda minha com sua morte é ganho seu, me componho
melhor com ela. Quando em terra ficastes, escusastes ver a tormenta que no mar passamos;
assi, posto em terra, vosso pai livre está dos trabalhos, que nós, vivos, passaremos; mais se
deve ter inveja de sua gloriosa morte e de seu descanso que sentimento de sua partida
saudosa. Tudo são saudades nesta vida, que forçadamente se hão-de passar até que ela
acabe. Façamos, pois, desta forçada necessidade virtude voluntária, conformando-nos com a
vontade de Deus, que assi o ordena. Resta somente sermos cá à sua alma fiéis amigos, que
ele era tal, que, assi o fizera, se nós outros leváramos a dianteira”.
Calando-se Avinnezeno, respondeu Filomesto; falando com uns suspiros tristes e arrazados
de lágrimas seus olhos, estas palavras disse: “Bem sei, amigos meus e senhores, que mortal
nasceu meu pai e mortais somos, e, como filho de mortal que sou, sinto a sua morte; mas
muito me consola ouvir-vos, que, morto, ele vive. Vossas graves e amorosas palavras não são
pequeno alívio a este vosso amigo; se perdi um pai que me amava, louvo a Nosso Senhor, que
em vós me ficam pais e amigos, com que me consolo”.
Com estas e outras palavras de muito amor, que antre si tiveram, passaram aqueles dias
até chegar o das devidas exéquias, que muito solenes se fizeram.
Não tardou muito tempo naquela terra que Filomesto não ordenasse sua vinda pera esta e,
preparando as coisas necessárias para o mar, se veio no primeiro navio que achou, com cuja
vista e chegada recebeu sua honrada e virtuosa mãi mui grande alegria, envolta, porém, na
obscura tristeza e saudosa lembrança de seu marido defunto. O que a presença de tal filho
trazia de alegre festa, aguava a memória de seu pai, morto com saudade triste. Não há, enfim,
garfo de prazer na vida que, quando se corta, ou antes ou depois de colhido, com alguma dor
ou tristeza enxertado não seja; e, se ainda prendesse e viesse a dar algum fruto de
conhecimento da vaidade das coisas da terra e pompa dela, não seria desaproveitada de todo
a tal enxertia. Mas, no melhor tempo se seca tudo e, descuidadamente, torna a pascer nas
verdes ervas e deleitoso pasto a pobre ovelha, que pouco antes estava atónita, espantada e
triste de ver ir balando, ou, muda, calando pera o açougue sua companheira do mesmo
rebanho nos fortes braços do cruel carniceiro.
Foi visitado Filomesto de muitos seus amigos, que tinha de sua tenra idade, com que nesta
ilha se criara. E antre outros, que quiseram cumprir este amor da pátria e criação primeira, foi o
nobre e grave cavaleiro Segurtedabor (104), muito privado, depois, dos reis, por sua grande
virtude, que com ele mais estreitamente conversara, o qual, sabendo da vinda de Filomesto e
as grandes coisas que em reinos estranhos havia feito, querendo-o ir visitar e dar-lhe o
parabém de sua vinda, veio ter com ele o nóvel cavaleiro Filidor, que assi se chamava, porque,
ficando sua mãi às portas da morte, quase pera partir pera a outra vida, depois do parto dele,
levando-o nos braços uma moura de casa, chamada Fátima, pera casa da ama, que ao peito o
criava, indo com ele pela rua, saiu uma dona honrada à janela e, por ser amiga de sua mãi,
perguntou à escrava, dizendo: “Fátima, é esse o filho de tua senhora”? A moura com um íntimo
Capítulo Oitavo 20
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
suspiro, como a quem doía muito a perigosa doença da mãi, que do parto daquele menino se
lhe causara, respondeu, dizendo: “Ah! xenora, Filidor”, como se dissera “não é filho de minha
alegre senhora, senão filho de sua dor, pois do parto ficou tão doente, que está expirando”. E
por isto que disse a moura, como pronóstico do que dele havia de ser, ficou a este cavaleiro o
nome de Filidor.
O qual, chegando a casa de seu grande amigo Segurtedabor, quando estava pera ir ver a
Filomesto, lhe contou Segurtedabor ao que ia e, levando-o consigo, lhe foi contando pelo
caminho as proezas e heróicos feitos em armas que de Filomesto se diziam, com que o foi
tanto namorando, que também quis ser seu companheiro em tão boa romaria.
E, chegando onde estava, se abraçaram os amigos com muito amor e brandura; e, tratando
de suas coisas passadas, e de outras que depois passaram, pelas práticas que ali todos
tiveram e delicadas razões que tocaram, e do rosto de Filomesto, cheio de uma tão boa
sombra, que parecia que pelos olhos, como por vidraças, lhe estava resplandecendo o interior
de seu peito, lhe ficou Filidor tão afeiçoado, que dali por diante não podia viver sem ele. E, da
conversação que ambos depois tiveram, conheceu Filomesto o que Filidor merecia. Pelo qual
foi travada de tal maneira uma liga de amor antre ambos, que no mundo se não pode achar
outra sua igual, e antre todas as gentes desta terra, e fora dela, já não eram chamados senão
os dois amigos, como se outros não houvera.
A fama grande de Filomesto, e o seu bom nome, convidou a muitos cavaleiros, que dantes
o não conheciam, a desejar conversá-lo. E assi o fizeram por alongado tempo, com puro amor
e conversação mui estreita. Antre os quais, foram dois irmãos, chamados Lhantebolemo (105),
que depois foi à Índia de Portugal, e Antredobelo (106), que foi à de Castela, e os três irmãos
107 108 109
Constadalemo ( ), e Costidano ( ), que correu muito mundo, e Avalor ( ), mais moço. E
110 111 112
outros três irmãos Daumodario ( ), Constadamelo ( ), que fez vida santa, e Bertalembo ( ),
mais moço. O cavaleiro Mauro e Gucinalero, seu irmão. E outros dois irmãos, Sofano e
Descandurele. Os cavaleiros Samerio e Variao, irmãos, Lhantebolemo e Gurenizeno, também
113
irmãos, Silcofrasbono ( ), Sancenio, Gosmindo, Natonio e Laudasor. E os dois irmãos Aenio e
Sisfranco, que acresceram a estes, como depois contarei.
Todos estes e outros conversaram alguns anos com Filomesto e se ajuntavam com ele
muitas vezes em sua quinã, perto da cidade, e ali, em um espaçoso campo, ordenavam seus
jogos e tinham exercício das armas, em que se fizeram mui destros, e aproveitaram muitos,
tanto que depois, espalhados pelo mundo, cada um, onde lhe coube a sorte, fez grandes
coisas e foi muito nomeado.
Capítulo Oitavo 21
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
CAPÍTULO NONO
COMO FILOMESTO, INDO A CAÇAR EM UMA SERRA, FOI TER AOS PAÇOS DO PAI DE
TOMARIZA E, VENDO-A, SE NAMOROU DELA, E DO MODO QUE INTENTOU PERA LHE
FALAR E DESCOBRIR SEU AMOR
Passando a vida Filomesto com esta tão amiga e honesta companhia, livre tratando com
livres, livremente, sem arreceio do cativeiro em que depois se viu, se foi um dia à caça.
E, andando em uma grande serra, acertou de ver um porco do monte e, seguindo-o, correu
tanto no alcance dele, que perdeu os companheiros de vista, e tanto se alongou deles, que
veio ter a um espesso bosque, junto do qual, perdendo o rasto do porco, viu uns fermosos
paços, que, assi como davam grande graça ao mesmo bosque, assi também a recebiam dele
não pequena.
E, andando ao redor deles, espantado do que nunca nesta terra vira, nem cuidava ver, por
dantes não ter ouvido que tais paços houvesse, alevantando os olhos pera umas ricas
varandas deles, viu nelas uma fermosa donzela, filha do senhor daqueles paços e de muitas
terras ao redor, que Tomariza se chamava, a qual naquele instante estendia os olhos por
aquele verde bosque, bem descuidada de por ali poder ver alguém, nem ser vista de pessoa
humana. Era Tomariza de tanta virtude e gravidade, junto com sua extrema fermosura, que, em
pondo Filomesto os olhos nela, como se os pusera fixos ao claro e resplandecente Sol, ficou
cego e preso de seus amores. Ia pera caçar o porco montês e ficou feito caça naquele mato.
Não conhecia dantes a Tomariza, nem a tinha visto, mas vendo desta vez sua honestidade,
como ele era honesto, afeiçoou-se e entregou-se de todo ao que lhe era tão semelhante e
conforme, porque, assi como ao vão e doido prende o bom parecer e vaidade da fermosura,
assi ao sisudo e prudente cativa a virtude e honestidade, a qual tem esta natural condição, que,
onde quer que está, se enxerga e resplandece e responde no rosto do que a tem, sem que
ninguém lho pergunte.
Esteve um pouco transportado e, tornando a si, começou a chorar tantas lágrimas, sem ele
se entender nem saber o que fazia, que em breve espaço achou todo seu peito banhado delas.
Dizia meu pai (contando isto) que, como amor se prantava novamente no peito de Filomesto,
quis ser regado com lágrimas não cuidadas, nem costumadas dele, como nova pranta que ao
prantar se rega, porque (ainda que sem fruto algum) havia de crescer e durar muitos anos
regada de choros infinitos e criada neles.
Dizem que viu isto Tomariza das varandas, onde estava, e, receosa do que suspeitou que,
por a haver visto, chorava aquele cavaleiro, se recolheu muito depressa, sem, por então, ser
mais dele vista; mas, como seu sol se encobriu, enxugando suas lágrimas o melhor que pôde,
rodeando os paços, foi ter à porta deles, à qual batendo mansamente, lhe foi aberta por um
page, a que perguntou cuja era aquela casa, e, informando-se largamente de tudo quanto
desejava, mandou por ele um recado ao senhor dela, pedindo-lhe houvesse por bem agasalhar
ali aquela noite um homem que andava perdido naquele mato.
Foi logo bem recolhido e servido, e muito melhor hospedado, do pai e dois irmãos de
Tomariza, Aénio (114) e Sisfranco (115), que lhe ficaram estranhamente afeiçoados, depois que
deles foi conhecido e conversado aquela noite; porque a fama, e mostras do bom e forte, lhe
faz própria pátria toda terra e a casa alheia sua. Não dormiu Filomesto toda aquela noite e,
vindo a manhã, se despediu do pai de Tomariza, mas não dela.
E foi crescendo este amor tanto, fazendo ele tantas coisas em armas por seu serviço, que
dali em diante era tido por homem de dobrado esforço e valentia. Ordenava muitos jogos de
canas, muitas justas e torneios, a seu modo, só por ver a Tomariza, sem ninguém saber de seu
Capítulo Nono 22
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
amor, senão somente seus amigos Filidor e Natónio. E, não a podendo ver, nem menos falar-
lhe, tratou com um bom homem, peneireiro, que o quisesse levar por seu criado àquele mato,
pera ver se a pé podia alcançar melhor o que a cavalo tanto lhe fugia. E, dando disto conta a
Filidor e a Natónio, se foi com eles um dia vestir a casa do novo amo; tomou por arnês umas
peneiras sobre seus ombros e cobriu por capacete um rebuço. Estava vendo isto Filidor só
consigo, cuidando quão convenientes armas eram aquelas a Filomesto pera tal encontro;
porque o amor, só ao Criador devido e dado às criaturas cá, no mundo, tudo julgou, como
aquele ofício, subjecto a vidade e ser tudo vento.
Saindo da cidade, assi armado Flomesto destas novas e não acostumadas armas, e (ainda
que leves) mui pesadas, detrás de seu novo amo, o foram seguindo, dissimuladamente, Filidor
e Natónio até fora da cidade. E, como Natónio era sempre alegre, quis usar de suas zombarias
em tempo de tristezas alheias e, vendo Filomesto no campo, caminhando aquele trajo,
chamando por ele em voz alta, lhe disse: “Ah! senhor peneireiro, dizei-nos donde é o vento?” E,
virando os olhos, Filomesto respondeu, dizendo: “Da serra vem pera onde com ele contrário
navego”; e, tornando a virar o rosto, se foi seu caminho. Onde lhe aconteceram muitas coisas
dignas de contar, se aquele seu ofício dele fora digno.
Somente direi duas delas. E a primeira foi que, chegando àquela serra, passando de
caminho por casa de um rico cavaleiro, visto, foi chamado pera lhe comprarem peneiras.
Mandava a senhora de casa, de dentro, às criadas que lhas levassem, e, tornando a mandar
as que lhe levavam, a cada uma punha tacha, ou de muito bastas ou de muito ralas, e as
enjeitava todas, até que, não lhe contentando alguma, saiu em pessoa a escolher nelas e,
tomando uma peneira na mão, lhe disse Filomesto: “Não pode, senhora, deixar de ser
extremada em tudo, pois, com quantas peneiras lhe enviei, em todas pôs extremos”. E a
honrada e virtuosa dona, olhando pera ele, e tornando a virar o rosto, se recolheu pera casa
mui depressa, como se dissera: “Diabo deve ser isto e não peneireiro”.
Foi-se dali Filomesto e, passando por uma casa onde convidaram a seu amo, que, estando
lá comendo, por não poder menos fazer, também convidavam o criado, e, escusando-o seu
amo, que não estava pera comer com grande dor de dentes que tinha, atentaram umas
mulheres de casa ali por ele e, vendo-lhe somente os seus fermosos olhos, suspeitaram ser
mulher e amiga do peneireiro, que consigo encoberta trazia, o que entendendo Filomesto,
abaixando o rebuço, de uma parte lhes mostrou na face sua barba, com que restituiu a honra a
seu amo, que estava já quase perdida. Assi são os temerários juízos deste mundo enganoso e
mentiroso: acolá o tinham por feio diabo embuçado, e aqui o julgam por fermosa donzela
encoberta, sem ser mulher, nem demónio; mas é verdade que o mesmo demónio, pera
condenação de muitos, estas semelhantes aparências urde e tece, e sem nenhuma ordem,
nem figura, as ordena e faz suspeitar e crer.
Passando adiante por aquela serra, Filomesto sendo já perto da casa do pai de Tomariza,
ficando-se ali antre umas árvores escondido, mandou o criado a seu amo que fosse diante e
que, se não achasse em casa o pai e irmãos de Tomariza (como ele tinha crido por suas
inteligências e avisos), lhe viesse ali dar recado, pera ver se podia ir falar com quem o fazia
triste.
Dizia meu pai que não era outra intenção a de Filomesto nesta ida, senão ser ouvido de
Tomariza naqueles hábitos vis, em que ia, de que o monte não tem suspeita alguma; porque
também não cria, de quem a tenha; e saber dela se queria casar com ele, pera com sua
vontade a pedir a seu pai por perpétua companheira, como ele a merecia ter, pois seu amor
era tão alto, que o trazia ali em traje de tão baixo ofício, e tão extremado, que lhe fazia fazer
um tal extremo, nunca naquela terra visto, nem ouvido.
Mas quem não tem ventura no principal também lhe vem a faltar no acessório; e assi
aconteceu desta vez, que, achando o peneireiro discreto o pai e irmãos de Tomariza em casa
(por impedir certo negócio sua ida, que determinada tinham pera fora), dissimulando com eles,
lhes disse que, vindo de outra parte, fizera por ali seu caminho, e sendo agasalhado e
convidado, por ser pessoa deles conhecida, fez nisto alguma detença; com que Filomesto,
onde estava, como açor preso com as piós e cobertos os olhos com o caparão, sem poder ver
a caça que tomar esperava, cada breve momento se lhe fazia um comprido ano, suspeitando
ser verdade que quem tardava arrecadava, e (como acontece muitas vezes não serem
verdadeiros estes provérbios) achou-se enganado e salteado, porque, a cabo de grande
Capítulo Nono 23
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
espaço chegando seu amo a ele, lhe contou como achara a casa de Tomariza cheia do senhor
e da mais família dela.
A dor que Filomesto recebeu com esta nova, por não ser coisa nova de crer, fica velha pera
eu a escusar de contar agora; ali começou muitos choros, dizendo grandes máguas, que por
todo o caminho foi prosseguindo, até chegar a sua pousada pobre e triste o novo peneireiro,
não por não poder vender as peneiras, que levava às costas, mas por não ver, ao menos por
antre peneiras, o seu contentamento e tesouro, que naquela serra com tanta mágua sua e dor
deixava.
Este e tantos desatinos fez este atinado amador e enternecido por este ingrato e duro amor,
sem jamais o abrandar nem torcer, que, trocado de ledo, que dantes era, em triste, duvidosos
os cavaleiros, seus amigos, deste seu mal, sem dele o poderem saber, suspeitosos todavia do
que podia ser, um deles, que se atreveu a perguntar-lhe porque andava triste, parece que, do
que com ele passou, fez esta égloga, que daquele tempo ficou escrita em língua estranha, pera
denotar e declarar seu estranho e extremado amor.
Capítulo Nono 24
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
CAPÍTULO DÉCIMO
Capítulo Décimo 25
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Rodrigo
Capítulo Décimo 26
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Capítulo Décimo 27
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Capítulo Décimo 28
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Juan pastor
A la fè hermano Rodrigo
mi mal bien lo se sentir,
mas no lo puedo dizir,
que no traigo a mi comigo,
otro me trahe consigo;
y tambien trahe el plazer,
del que alegre solia ser.
Va me tu buscar la muerte,
si me quieres dar remedio,
que yo no siento mejor medio,
cõ que sane mal tan fuerte;
es tal la mi triste suerte,
que antes de mi muerte ver,
nunqua sano pienso ser.
Capítulo Décimo 29
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Capítulo Décimo 30
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Ia no curo de riquezas,
ni se me da por hazienda,
tanto quiero esta contienda,
que me aplazen sus tristezas;
mis manjares son cruezas,
y con ellas quiero ser
tributário a mi querer.
Rodrigo
Juan pastor
Capítulo Décimo 31
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Rodrigo
Juan pastor
Rodrigo
Capítulo Décimo 32
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Juan pastor
Ya no manda la razon,
aunque essa es la verdad,
mas manda la voluntad,
que nos puso en subjecion;
de aqui nasce mi passion,
de mi voluntad querer
dexarse de amor vencer.
La razon es subjectada
con todos nuestros sentidos,
para ser todos regidos
por la voluntad dañada;
ya razon es olvidada,
voluntad tiene el poder
para hazer y deshazer.
Rodrigo
Juan pastor
Capítulo Décimo 33
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Si al principio no podemos
desasirnos deste lazo,
despues com muy poco plazo
mas enlazados nos vemos;
y ya quando conoscemos,
que nos vamos a perder,
no es possible bolver.
Rodrigo
Capítulo Décimo 34
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Juan pastor
Rodrigo
Capítulo Décimo 35
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Juan pastor
Mi ganado y mi cabana,
con lo que dentro allaràs,
para ti lo tomaràs
que yo no bivo hasta mañana,
y si passo esta semana,
soy bien cierto, que ha de ser
para mas mal padecer.
Rodrigo
Capítulo Décimo 36
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Juan pastor
Rodrigo
Cancion de Rodrigo
Capítulo Décimo 37
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
CAPÍTULO UNDÉCIMO
DE UMA TRISTE INVENÇÃO, COM QUE SAIU FILOMESTO EM UM DIA DE FESTA, SEM
COM ELA PODER ABRANDAR TOMARIZA, PELO QUE SE FOI FORA DE SUA TERRA COM
AÉNIO, E, SABENDO-O FILIDOR, SEU AMIGO, OS FOI BUSCAR
Não se pode encarecer quão grande era a tristeza que havia nos corações de todos os
cavaleiros, amigos de Filomesto, por ver a sua mágua sem remédio; e, se fora caso de armas,
desejo e ânimo tinham todos de conquistar o mundo todo, arriscando suas vidas a qualquer
género de triste e dura morte, por dar a seu amigo alegre e doce vida. Mas um peito duro e
forte não se pode domar com armas duras, nem vencer com nenhuns exércitos invencíveis.
Trabalhavam todos por aliviar sua dor e desviar seus penosos pensamentos, com festas e
invenções alegres, que ordenavam; antre as quais, acabaram também com ele que quisesse
trazer a sua em uma solene festa, que esperavam, pondo e assinando pera aquele, que com
melhor invenção saísse, ricas peças.
E chegado o assinado dia, não vos contarei, Senhora, as ricas e notáveis invenções, nem
as muitas e grandes festas que fizeram, mui alegres, pois não pretendo, nem quero, nem
posso, ainda que quisesse, contar alegrias. Só uma chorosa invenção, com que Filomesto por
fim de todas as dos outros saiu, vos direi de boa vontade, por ser triste.
Trazia diante muitos cavaleiros vestidos de dó, com suas tochas nas mãos acesas, e, logo
mais atrás, quatro reis de armas a cavalo, também de dó vestidos, tão comprido, que com as
pontas dele iam varrendo as ruas, com suas massas de prata nas mãos, encostadas aos
ombros; após estes, vinha um escudeiro, a pé, vestido de dó, que trazia o cavalo de Filomesto
pelas rédeas, também de dó encobertado todo, e, um pouco afastados, iam dez homens
graves, com seus rostos e cavalos de dó cobertos, cinco de cada banda, e no meio vinha um
grande cavaleiro, com um preto pendão com as armas de Filomesto pintadas, que era um
pelicano, que com o bico rasgava o peito e banhava o corpo todo em sangue (por amor do qual
em algumas partes se chamava o Cavaleiro do Pelicano), o qual se levava pelo chão,
arrastando com grande cerimónia, de quando em quando. Atrás destes vinham umas andas,
cobertas de veludo preto, que traziam duas grandes e pretas mulas, cobertas da mesma cor
que elas tinham, cobertos os rostos do mesmo, com os pagens, que em cima levavam pera as
reger e guiar; e detrás das andas ia muita gente, de cavalo, toda de dó vestida, sem lhe
aparecerem rostos, nem mãos.
Assi saiu Filomesto de sua casa, dentro nas andas, como já defunto, e, andando com esta
ordem pelas principais ruas da cidade, se tangiam diante muitos clarins e trombetas, com tão
grande estrondo e sentido som de tristeza, que parecia que falecia todo mundo. E levava umas
letras góticas nas andas, que diziam:
Com isto se recolheu, depois de dadas algumas voltas pela cidade, a qual ficou com esta
lúgubre invenção tão triste, como se já viram morto a Filomesto e enterrado, porque, como
todos o amavam muito, assim o choravam e pranteavam pelas ruas, como se deles fora de
todo para sempre despedido e já defunto.
Capítulo Undécimo 38
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Viu com seus olhos isto Tomariza, que na cidade àquela festa estava, pera ver as festas, e
não fez nela mais impressão que tornar-se triste. Foi isto mais julgado por natural que por
voluntário, porque, ainda que muitas vezes não queira, a mesma nossa natureza naturalmente
se entristece quando vê coisas tristes.
Dizia meu pai que, sem dúvida, algum amor tinha Tomariza a Filomesto, mas sua
honestidade natural era tanta, que de todo lho encobria.
Alguns amigos entenderam a verdade desta invenção, e o que significava, e por quem se
fizera e inventara. Outros, do povo (como em semelhantes coisas costumam), davam diversos
pareceres e sentenças. Mas, coitado de quem padece o mal, que de tantos juízos é mal
julgado e condenado, sem de nenhum ser escusado, nem absolto; e, se alguns o escusam,
nem por isso deixa o paciente de sentir e padecer sua pena. Padece quem padece, perde
quem perde, e pena quem pena, por mais que de palanque julgue quem quer que julga e fale
quem fala.
Entrou aquela noite o cavaleiro Aénio, irmão de Tomariza, em casa de Filomesto, já com
alguma suspeita do rumor de todo o povo, e, esconjurando a Filomesto que lhe dissesse a
causa de sua tristeza, pois ele sem a saber a sentia igualmente com ele, prometendo-lhe fazer
nisso todo o possível e mais além do que pudesse, pera lhe buscar algum remédio. Conhecia
muito bem Filomesto a magnífica condição e fiel amor que Aénio lhe tinha, e, confiado nisso,
lhe declarou, com muitas lágrimas, quanto amava a sua irmã Tomariza e o desejo que tinha de
não ser nenhuma outra senhora do seu coração, nem sua companheira, senão ela. Agradeceu-
lhe Aénio muito este pensamento, repreendendo-o, porém, por lhe não ter descoberto logo de
princípio seu desejo, e prometeu fazer nisso o que ele bem veria, pois era o que mais ganhava
em ter um tal parente nele.
Se bem o prometeu Aénio com palavras, melhores obras teve: falou primeiro com seu irmão
Cisfranco, e, depois, ambos com seu pai e mãi, em os quais não achou contradição, antes
vontade grande, porque, como conheciam o muito que Filomesto valia e merecia, eles se
tinham por bem andantes e ditosos em lhe contentar a ele coisa sua. Mas, arreceando a mãi,
que melhor conhecia a condição de Tomariza, que ela criara, disse: “Prouvesse a Deus que
essa crua quisesse”.
Finalmente, nem pai, nem mãi, nem irmãos, nem parentes puderam persuadir a Tomariza
que casasse com Filomesto. Não faltaram promessas do pai, nem mimos da mãi, nem rogos,
nem ameças dos irmãos, nem vivas razões de seus parentes; mas faltou a vontade de
Tomariza, sem vontade e sem piedade alguma.
Dizia meu pai que fora isto juízo de Deus, que, pelo mesmo caso por que é perguntado,
responde, e pelo teor da culpa, com que é ofendido, castiga. E assim castigava em Filomesto,
com a crueza da dura Tomariza, a que ele no castelo, em outro tempo, com a amorosa
Ricatena usara. Ninguém faz mal, que ou tarde ou cedo o não pague, e não pode faltar, nem
mentir, a sentença do Senhor, que disse que quem quer que com ferro mata, com ferro morre.
O duro coração de ferro de Tomariza cortou pelo forte aço, com que Filomesto feriu e
enjeitou a Ricatena. Oh! formosa Ricatena, se lá, onde estás, souberas a vingança que te dão
agora do teu tão amado Filomesto, quão satisfeita ficaras de o ver estar ferido, sem ferro, sem
pau e sem pedra; mas, todavia, duvido que quisesse este seu mal teu brando amor, casto e
puro, com que tanto o amavas, que ainda agora julgo que mais te sofrerias e te comporias
melhor com tua mágua, que com sua perda.
Trocadas são as coisas da Terra; errados vejo os empregos do mundo: amamos a quem
nos desama e não queremos ver a quem nos deseja; desta maneira, morremos de amores do
mundo, que tão mal nos trata, e enjeitamos, desamoráveis, a Deus, que tanto nos ama. Que
insânia é esta, oh! miseráveis cidadãos deste mundo? Que troca é esta tão desigual? O filho
de Deus pelo de Zebedeu; o Criador pela criatura; o descanso pelo trabalho; o Céu pela Terra;
o Paraíso pelo Inferno, a Deus pelo demónio. Não sabeis que sois cidadãos nobres da cidade
alta do Céu? Porque vos prezais cá mais de vilãos baixos de aldeia? Se a Terra vos trata com
tanta diversidade de males, com frio, calma, fome, pobreza, com outras importunas
necessidades e com inumeráveis misérias, imensos trabalhos e contínuos desgostos, como
julgais que vos ama? E a amais, desamando-vos? E se os Anjos vos desejam, porque os não
buscais? Se o Céu vos espera, porque tanto tardais? Se o Senhor vos chama, porque não vos
apressais? Se a glória é vosso descanso, porque não a desejais? Se a Terra é vosso trabalho,
Capítulo Undécimo 39
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
porque não vos desterrais? Se o mundo vos enjeita, porque tanto o buscais? Se o demónio é
vosso algoz, porque dele não fugis? Se o Inferno é vossa pena, porque não o evitais? E se
Deus tanto vos ama, e Ele só é vosso amor, porque a Ele só não amais? Ó homens sem
cabeça! Ó cidadãos sem lealdade! Ó servos sem serviços! Ó filhos sem obediência! Ó
ameaçados sem temor! Ó repreendidos sem emenda! Ó castigados sem melhoria! Ó
obstinados sem vergonha! Ó doidice sem conhecimento! Ó conhecimento sem entender-se! Ó
corações sem amor! Fugi, fugi à ira de Deus, que estais entesourando pera o dia da vingança;
enjeitai a Terra, que vos persegue tanto, e só a Deus amai, que tanto vos ama; fugi das coisas
do mundo, pois são todas pera vós morte, e acolhei-vos a Deus, que é a vossa mesma vida; a
montes estão os trabalhos neste mundo, e amontoados achareis em Deus vossos descansos;
aborrecei já o mundo, que é para vós um cruel Nero, e amai a Deus, que vos trata como quem
Ele é, que é todo manso amor e doce brandura. Fazei experiência na cabeça alheia e vede
Filomesto quão galardoado é por seus serviços, quão bem pago por seus merecimentos, e
quão amado por seu amor, com que amava a Tomariza, parenta, na condição, deste mundo
fementido e desagradecido, que tal pago, como ela, dá a quem quer que mais o serve.
Muitas lamentações compôs Filomesto, e chorou, estando solitário junto de uma grande
ribeira, onde algumas vezes se recolhia, por fugir dos amigos, das festas e das alegrias.
Porque (como dizem) o dia da alegria, ao que é triste, de muito mor dor o veste. E algumas
delas vi eu impressas, no tempo passado, com estes meus olhos tristes, as quais notou e
ajuntou um seu grande amigo, e alguns querem dizer que era Filidor; mas, pelo longo tempo,
que tudo gasta e consume, já não há escritura delas, nem lembrança; e, depois que Filomesto
as compôs e chorou muito suas máguas com extremado sentimento, se desterrou desta terra.
Aénio, que o viu embarcar, se embarcou com ele. E o mesmo fizera Filidor, se disso acertara
ter notícia ou suspeita alguma. Mas Filomesto lho quis encobrir, por ele, só, sentir sua dor, sem
seu amigo; buscando-o depois Filidor, sem o achar nos povoados, nem no ermo, tendo novas
do seu desterro, o foi seguindo. E, daquele tempo, ficou desta partida destes amigos um
saudoso cantar, que assi dizia.
Capítulo Undécimo 40
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
CAPÍTULO DUODÉCIMO
Em um bosque de arvoredos,
junto de um campo de flores,
vi uma caça de amores,
vi de amores seus segredos;
os ventos estavam quedos,
mas o caçador, caçando,
vai ferido e vai voando.
Capítulo Duodécimo 41
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Capítulo Duodécimo 42
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Capítulo Duodécimo 43
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
116
Cinco librés (sic) ( ) se soltaram,
pera que o ajudassem,
e, antes que à garça chegassem
a seu gavião mataram;
os seus o despedaçaram,
garça ser ele cuidando;
vai ferido e vai voando.
Capítulo Duodécimo 44
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Capítulo Duodécimo 45
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Capítulo Duodécimo 46
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Partidos Filomesto e Aénio desta terra, como sua tenção não era buscar outra, somente
fugir desta, depois de navegarem muitos dias, na primeira que acharam (ainda que não era
porto de mar), com suas armas e cavalos e com seus escudeiros saíram um dia.
E caminhando junto de uma grande serrania por um ermo, lhe anoiteceu nele, não deixando
de prosseguir seu caminho pela escura e tormentosa noite, sem saber para onde caminhavam.
E, sendo já de madrugada, ouviram cantar muitas rãs, que em uma grande alagoa estavam,
com tanto e tão confuso arruído, que parecia vir correndo e arrebentando toda aquela grande
serra sobre eles, e, de quando em quando, ouviam uns gemidos mui sentidos, que de mulher
queixosa lhe pareciam. Andando, então, pera aquela parte, onde aqueles ais sentiam, foram
dar em aquele lago, cheio de infinitas rãs, que com seus importunos brados (como as cataratas
do grande Nilo) ensurdeciam a todos os que por ali perto passavam.
Maravilhado Aénio daquele novo cantar, que nunca ouvira, lhe declarou Filomesto os
pequenos corpos e curtas gargantas, que (como grilos) tão grandes e horrendas vozes
formavam, como em pequeno assovio se forma, com o assopro de pequeno menino, grande
grito.
Os gritos e gemidos da humana voz pareciam vir do meio daquele lago, lá do centro dele, e,
querendo entrar ambos pela água a ver quem fazia aqueles querelosos queixumes, não pôde
Aénio passar avante, impedido pelo grande cardume das rãs, que, ao derredor, a salto se
moviam com tão apressurado e furioso ímpeto, que não havia quem tal encontro esperasse,
senão Filomesto, ficando Aénio, com assás trabalho, esgrimindo a todas as partes na seca
terra contra este exército. Rompia por ele n’alagoa Filomesto, com grande ligeireza, ferindo
muito à pressa o seu cavalo, até que, quase cansado, chegou a um outeiro, que no meio do
lago estava, onde achou uma fermosa donzela, liada (como fardo) com muitas cordas, dando
aqueles ais e gemidos, que cá de fora ouvira. E, tomando-a por uma daquelas cordas, levando-
a na mão dependurada, deu volta a seu cavalo, que com grande dificuldade pôde romper pelo
ligeiro círculo daquelas rãs, que de travès o feriam. E como acabou de se por fora do lago,
onde Aénio e os dois escudeiros esgrimindo estavam, com os ventos se recolheram as rãs
todas a ele, sem mais cantar, nem ferir, ficando todos em uma segura paz e sossego.
Como na tormentosa e escura noite, quando furioso relâmpago, com seu horrendo estrondo
e espantoso trovão, parece que rompe os céus e abre as fortes torres e que tudo vai assolando
quanto acha diante, e, depois que amanhece, a clara luz mostra aos viventes que nenhum
dano deixou feito, senão só o seu espanto e medo, e como o que está sonhando que vai
caindo por grandes riscos e rochas, despedaçando nos saltos delas seus membros, que,
acordando, acha inteiros e descansados em seu leito, assi, passada a fúria do raio das rãs e
seu estrondo e peleja, ficou inteiro tudo quanto elas feriram e espantaram, e, como acordando
do grave sono e sonho, ficaram descansados os membros destes cavaleiros e escudeiros, sem
perigo algum dos saltos e golpes das rãs, que como caídos por rocha sonhavam. Assi são
todos os encantamentos, que, por fim, não são senão como espantos e sonhos.
Era já quase manhã quando Filomesto acabou de sair do lago com a donzela e, vendo-se
em tranquilidade, amansada já a tormenta passada, mandou a seu escudeiro que logo
desatasse aquela donzela daquelas prisões e laços, em que (como em rede) estava liada, o
que querendo fazer o escudeiro, não pôde acabar, e, ajudando-o o escudeiro de Aénio, sem
também poder desfazer os laços, provaram com suas espadas a cortá-los. E vendo Aénio que
nem com isso cortavam as cordas, descendo-se de seu cavalo, provou com sua espada a
querer fazer o que os escudeiros não podiam; mas, por mais que nisso trabalhou, nada fez,
porque a sua espada, como bota, não cortava, o que entendendo Filomesto ser encantamento,
apeando-se, com a sua facilmente cortou todas as ataduras.
Havia dado Narfendo a Filomesto, quando na sua corte andava, porque o amava muito,
duas ricas espadas, a que nenhum encantamento empecia, uma das quais ele trazia consigo e
outra lhe trazia sempre o seu fiel escudeiro, até depois de vindo a esta terra, onde também
pelo grande amor, que a Filidor tinha, lhe deu uma delas, pera ficarem iguais nas armas os que
no amor o eram. E por isso pôde só Filomesto entrar no lago das rãs e livrar e desatar a
donzela, à qual, querendo ele perguntar a causa de sua prisão e seus gemidos, foi atalhada
sua pergunta por seu escudeiro, que, com alta voz bradando, disse: “Subi, senhores, em
vossos cavalos sem detença, que assoma gente armada, perto, sobre aquele outeiro; não vos
tomem descuidados a pé alguns imigos”.
Cavalgando logo os dois cavaleiros, se puseram em som de defender-se e a cavalo esperar
a seus contrairos. Mas a donzela os assegurou deste sobressalto, que tiveram, com sua fraca
e cansada voz, dizendo: “Não são contrairos os que vêem, senhores cavaleiros, mas é meu
esposo, acompanhado de seus e meus parentes, que ontem foram daqui, já alta noite, sem me
poder livrar desta prisão onde vós me achastes, e agora tornam tão cedo a buscar, com tanto
cuidado e pressa, a que ontem tão tarde, com tanta dor e pena, aqui deixaram”.
Acabadas estas palavras, acabou de chegar a ela seu esposo, que diante de todos vinha,
como a quem mais que a ninguém doía a sua dor e perda. E, antes que ele falasse, lhe disse
ela: “Agradecei, senhor esposo, a estes senhores cavaleiros, ao menos com palavras, o bem
que me fizeram em me livrar esta noite da dura prisão, onde vós ontem me vistes sem remédio,
já que não há obras bastantes, nem nós somos poderosos, pera servir uma mercê tão grande”.
Descendo-se então o esposo de seu cavalo, queria beijar os pés a Filomesto e a Aénio, o
que eles não consentindo, se apearam também dos seus e o abraçaram; e o mesmo fizeram a
toda aquela nobre e agradecida companhia.
Depois de suas devidas cortesias, tomando o esposo nas ancas sua esposa e, começando
a caminhar, foi contando pelo caminho a Filomesto e a Aénio, por ser deles perguntado, aquele
caso, assi dizendo:
“Anda nesta terra, senhores, uma maga, que muito desejou casar comigo, e, por eu ser
homem do campo e de aldeia, nunca me pareceu bem casar com mulher de corte, nem um
vilão com fidalga, nem o rústico com mulher mui sábia, como também nem o muito velho com a
menina e moça, nem com velha mancebo, pelo que me ensinam os meus bois, que nunca
pude, na lavoura que faço, fazer andar a igual passo o novilho indómito com o boi velho, já
ensinado ao arado, que nunca jamais ambos tiveram igual parelha. Por esta experiência que
do campo tenho, aprendi como poderei viver quieto em casa, onde dois animais, diversos em
condição ou em idade ou qualidade, mal se poderão ajuntar em um mesmo jugo, pois no
campo dois desta sorte nunca pude ver bem regidos, nem irmanados. Não quis ter contenda
com maga sábia, sendo rústico, nem com mulher velha, sendo mancebo, já que Deus quis me
não chamassem a mim Gonçalo, conforme ao antigo adágio. Esta maga, que digo, vendo-me
desposar ontem com minha esposa, a levou logo pelos ares, diante de todo povo, e a pôs na
alagoa, donde vós, senhores, a livrastes. Logo vim com toda esta boa companhia armada, por
ver se podia fazer o que vós fizestes, e, por choverem sobre nós as rãs como grandes pedras,
com tanto ímpeto e multidão, que pareciam outra furiosa e intolerável praga de Faraó no
Egipto, não podendo todos nada, por poderem mais umas fracas e palreiras rãs que a gente
rústica, de palavras curtas, nos fomos, desconfiados, esta noite pera casa, sem remédio, e com
a mesma desconfiança tornamos, mais acompanhados com a gente de todo o povo, esta
manhã, que tão alegre vimos, com vos ver, pois juntamente vi minha esposa livre”.
Nestas palavras e noutras de agradecimento chegaram ao lugar, onde todos foram bem
agasalhados com festas de toda a aldeia, pelo contentamento do aldeão esposo.
Mas a roda, que anda, também desanda, e mal pecado mais presto sabe decer para subir.
Estava este esposo contente, e durou pouco seu contentamento, como em todos os
contentamentos e festas acontece, que presto acabam. A esposa vinha tão enferma do frio que
passara aquela noite na alagoa e o medo que houvera, que, vindo já quase sem espírito,
acabou de expirar ao outro dia. Se a aldeia sabia dantes festejar, também depois soube chorar.
Desgostosos deste sucesso, os dois cavaleiros, depois de haverem consolado com boas
palavras o triste esposo, despedindo-se dele, foram adiante caminhando. Não eram muito
alongados do lugar donde partiram, quando, diante de si, por antre um arvoredo, viram sair,
atravessando o caminho, uma mulher de muita idade, com um arco nas mãos e uma aljaba de
setas na cinta; e pondo-se com o rosto pera eles, estando queda, lhe disse: “Lembre-vos,
cavaleiros, o agravo que me fizestes no lago das rãs e o fim triste que, depois, na aldeia vistes
e o que, agora, no caminho vedes; pois vedes mulher com estas armas de Cupido, e em algum
tempo (e não tardará muitos anos) vereis e entendereis se me sei vingar de quem me ofende”.
E acabando de dizer isto, acabando de atravessar o caminho, foi desaparecendo por antre as
bastas árvores e fruteiras, que, ao longo dele, prantadas estavam.
Filomesto e Aénio bem entenderam que aquela devia ser a maga velha, que queria casar
com o lavrador mancebo; e, sobre as palavras que lhe ela disse, foram gastando outras muitas,
dando cada um nisso diversos pareceres e sentenças, não atinando o que lhe podia acontecer
andando o tempo, tendo somente algumas suspeitas duvidosas de alguma certa vingança, que
a maga quereria tomar deles. Mas, como se passaram alguns anos sem logo a provarem,
reprovaram os ditos das velhas, que, às vezes, com a experiência que têm, com que as notam,
vêm a ser verdades cedo experimentadas e tarde cridas.
Mas deixemos ir agora estes dois cavaleiros seu caminho, com suas dúvidas, pera vos
contar, Senhora, a certa e não duvidosa partida de Filidor desta terra em busca deles.
Depois de partido Filomesto desta ilha, sendo buscado por Filidor em todos os povoados e
ermos dela, e não o achando (como já disse), se desterrou também daqui após ele, seguindo o
seu desterro, que nem nisto (como alguns amigos o não fazem, nem costumam fazer a seus
amigos) quis deixar de ser seu fiel amigo e companheiro.
Muitas aventuras acabou Filidor nesta viagem, além de, por bom conselho e esforço,
escapar de ser roubado de piratas no grande oceano; que, se todas houvera de contar, vós,
Senhora, cansareis de ouvir e eu muito mais de dizer tantas. Por isso, deixando os seus feitos
em armas, direi só alguns, saudosos, que passou, indo buscar seu amigo, assi antes que o
achasse, como depois de o ter achado.
Tanto que foi desembarcado em terra, começou a caminhar por um ermo, com tenção de
rodear o mundo todo até que achasse o seu Filomesto tão amado, sem cuja companhia não
sabia viver e, ainda que vivo andasse, nada gostava de tal vida. E como muitas vezes acontece
haver azo pera achar cada um seu semelhante, o avarento o partido em que ganha e o
dinheiro que deseja, o sensual a sensual, e o justo o virtuoso, e o igual seu igual, e o triste
outro triste, andando Filidor, assi, tão saudoso, foi achar neste caminho uma extremada
saudade, porque, caminhando por aquele solitário ermo, ainda que povoado de muito e alto
arvoredo e regado de algumas frescas ribeiras, não cuidando que n’algum tempo fosse aquele
lugar habitado, chegou junto daquelas árvores, antre uma ribeira e um ribeiro, ver uns antigos
paços arruinados, uns portais caídos, umas empenas alevantadas, que a hera, dantes frondosa
e já por longo tempo seca, ainda sustentava em pé com seus densos e secos abraços, uns
grossos peares e umas altas colunas como com ordenados e iguais espaços e compassados
intervalos, aberto o talo da cova (?) chamada estria, quase naturalmente estriadas e muito mais
abertas, sumidas e gastadas dos dentes do longo tempo, que a artificiosa mão, com o dente do
agudo picão ou da aprainante escoda, as havia cavado (119), uns madeiramentos carcomidos e
umas paredes derrubadas, uns soberbos edifícios e uma humilde casaria, uma coisa, que
grande fora, e a mesma coisa, que já nem pequena era, porque o tempo, comedor e vorador
das coisas, e a invejosa antiguidade tudo ia devastando, e com os dentes da idade, pouco a
pouco, com lenta e vagarosa morte, tinha tudo gastado e consumido. Ficaram só umas
sombras do que fora, sem ter ser, uns paços de fidalgos e senhores grandes feitos choupanas
de uns pobres e baixos pastorzinhos, que por aquele mato andavam apascentando seu
pobrezinho gado.
Era, enfim, aquele um campo onde Tróia fora, onde foi e se passou em outro tempo muita
desaventura. Porque, como Filidor daqueles pastores soube, eram os paços que foram de
Lamentor, nos quais faleceram sua Bileza, e onde se criou a fermosa Aónia, que tanta dor deu
ao triste Birmarder, e a fermosíssima Arima, por quem Avalor se perdia. Ali estava a ponte já
quebrada, sob cuja sombra, inteira, ele cobrou este nome. Ali estava o ribeiro pequeno, pera
onde a tristeza corria e a grande e fermosa ribeira, donde tanto mal lhe vinha; mas nem a
ribeira, nem o ribeiro tiveram tantas águas que pudessem apagar o amoroso fogo, em que
(como Leandro) se viu todo arder o coitadinho de Birmarder, sem alegria.
Junto de uns arcos quebrados, e antre uns teatros e colunas meias caídas, estava em pé
uma sala inteira, em que Lamentor, viúvo, muitas vezes pensativo, passeava, em cujas
paredes fez pintar Bimarder a sua história, e deixando ali fechado o livro das tristes Saudades,
em que, com letras romanas, escreveu com sua própria mão suas peregrinas máguas. Depois
da morte de Lamentor, debuxou ali Bimarder também as suas, que ambas ficaram imperfeitas,
sem se acabarem, porque, ainda que todas as saudades tenham princípio, nenhumas se
podem achar no mundo que tenham fim, pera até nisto o ter mais saudoso e triste.
Entrando nesta sala Filidor com aqueles pastores, que tudo lhe mostravam e declaravam,
além do que daquelas letras entendia, renovando-se-lhe a saudade que de Filomesto tinha,
quis chorar aquela que ali via, por achar, não como avarento (que não era), algum tesouro em
arruinados e antigos muros, mas, como saudoso, saudades tão estranhas, estranho em terra
alheia. E doendo-se de Bimarder, como de Filomesto se doía, escreveu abaixo daquela
saudosa história, que na sala estava pintada e no livro escrita, sem ter fim (como já disse),
estes saudosos versos, ao modo dos antigos:
És príncipe de tristezas,
seguem-te todos os tristes;
e nos meus olhos sentistes
que não há mores riquezas
que as que em Bimarder vistes.
E, se alguém vos perguntar
que vistes em Bimarder,
dizei que vistes correr
sempre contin’o pezar,
sem nunca verdes prazer.
Secam-se os contentamentos,
que eram hera de verdura;
tudo se torna tristura;
fica só com pensamentos
o que espera na ventura.
Hera é todo o passado,
hera é o que há-de vir,
por todo o tempo fugir;
se o presente é levantado,
todo, enfim, vem a cair.
Os ouvidos em te ouvindo
dão novas ao coração,
e de prazer ou paixão
as lágrimas vêm subindo
aos olhos, que canos são.
Se as lágrimas fossem águas,
que se sofressem beber,
bom remédio és, Bimarder,
na terra, com tuas máguas,
onde fontes não houver.
Começaste brandamente,
brando vais em começando,
e vais cada vez mais brando,
como a mais alta corrente
que mais branda vai nadando.
Se acabaras de correr,
já tristezas não houvera,
toda a tristeza correra,
não houvera que temer,
ninguém tristezas temera.
Havendo escrito isto Filidor, ficou tão saudoso daquelas saudades, que assi vira, que não se
atrevendo estar mais ali, por com tanta tristeza vista não acabar a vida, se foi subindo por uma
alta serra a buscar as outras saudades que buscava, e, passando no cume dela por um
deleitoso bosque, bem povoado de muito e alto arvoredo, com muitas fruteiras de diversas
pomages, por antre aquelas bravias e domésticas árvores, com ribeiras, fontes e rios, que da
alta serra, por antre ele, corriam com tanta suavidade e doçura, que não havia quem daquele
lugar o apartasse. Entrando nele por um alto bardo, como muro, com que o achou cercado, o
viu por dentro rodeado de grandes cavas, ao redor cobertas de diversas árvores de espinho,
antre si tecidas, que lhe serviam de contramuro. E, andando, vendo o grave e desacostumado
artifício da ordem de suas prantas, com tão aprazível novidade, quisera ali envelhecer, se lhe
fora dado; ou se pudera acabar consigo de não buscar pelo mundo todo o seu Filomesto, com
ficar naquele canto dele, solitário, se contentara.
Tanto namora a boa arte liberal, ou coisa engenhosa de outrem, a quem tem livre engenho
nela, que, por montes e vales e por longas terras e caminhos, se buscariam os engenhosos e
mestres da mesma arte engenhosa uns a outros, pera se ver e comunicar, conversando-se, se
lhe fôsse possível, toda a vida e mais além, se pudessem. O que não é assi nos que têm artes
lucrativas, que sós querem estar na terra, sem companhia de outros artífices, porque somente
pretendem ajuntar tudo pera si e ganhar seu interesse; em os quais é certo o que deles se diz:
“Que homem de teu ofício é teu inimigo”.
A qual arte, em seus autores e mestres desta vil condição, não chamo eu arte liberal e livre,
senão miserável, cainha e cativa, que, por isso, se chama mecânica, de meco, que quer dizer
adúltero, ou porque adulterou da fidelidade e degenerou da nobreza e generosidade da
fidalguia dos engenhos livres e liberais, ou por toda se fundar em ganho e interesse, ou moeda,
como este vocábulo meco, ou meca, em outra língua estranha dizem que significa; a qual
moeda com a cubiça dos homens, mais que com a necessidade mui urgente, se inventou e
usou no mundo, enjeitando a permutação e troca de frutos e mercadorias, que no princípio se
costumava e usava, e pudera ainda agora costumar e usar até o fim dele.
Porque, quem vai buscar a longes terras o que não há na sua, bem pode levar por longos
mares e caminhos, ainda que seja com trabalho, o que não há nas outras, onde quer ter seu
comércio pera trocar uma por outra e não a comprar por dinheiro inventado, que é um adúltero
preço de menos valor da coisa, pois é infrutífero e estéril, sem naturalmente poder dar de si
fruto, como dão os outros frutos. Mas não serão tanto de culpar os homens por isto, já que
anda inventando modos a preguiçosa e ronceira e, às vezes, engenhosa natureza humana,
pera fazer facilmente por arte o que, sem ela, não faria sem trabalho, e por fazer também
verdadeiro o que se costuma dizer, que cobre ganha cobre e não ossos de homens.
E achando Filidor umas letras em um grosso tronco de um antigo e alto cedro, que diziam
ser aquele bosque de Boscão, como conheceu o senhor dele, de que já tinha notícia, e ouvira,
por onde andara, a fama de sua graciosa e grave eloquência, novamente promulgada (como
bosque de nova pomagem) por Boscan, com novos e sotis modos, tresladada da fértil e
engenhosa Itália e prantada em nossas terras e em Espanha introduzida, louvada de poucos
sábios, porque poucos a entendiam, mas tachada de muitos néscios (de que há infinita
sementeira em qualquer parte), de cujo grosseiro estâmago não era conveniente manjar este,
que tão dedicado era, desejou ser seu escravo, ou, ao menos, fiel servente, se pudera. E,
depois de ter notado e visto muitas coisas, que lhe bem pareceram, não lhe pareceu mal
escrever no pé daquele tronco estes breves sonetos em louvor daquele bosque e do prantador
dele:
E querendo acabar de o ver todo, achou no cabo dele uma fresca fonte, em que Garcilasso,
disfarçado no pastor Nemoroso, como Narciso, se lavara e enganava, tornado doido pela ninfa
Camila. E escreveu também nas pedras daquela fonte este soneto, que assi dizia:
O cuidado que Filidor tinha de buscar seu amigo, ora lhe dava mais gosto nas saudades
que no caminho achava, ora de todo lho tirava, por não se poder deter a gozá-las; por isso, de
passada, lhe ia somente levando a salva.
Saído daquele rico e saudoso bosque, em que alguns querem dizer que viu e conversou as
Musas todas (como depois o ouviram a seu fiel escudeiro, que o contava), foi passando por
muitos outeiros e vales até chegar à vista de uma populosa cidade, que, não muito longe da
costa do mar, ao longo de um fértil e fermoso rio estava situada. E, caminhando pera ela
quando a maior força da calma se deixava cair sobre todos, encontrou em um vale sombrio um
robusto e fero cavaleiro, que diante si trazia seu escudeiro, com uma fermosa donzela atada
sobre seu palafrém, que, com os ais e gritos tão sentidos que vinha dando, moveu a Filidor
querer saber dela o porque assi vinha presa, chorando. Ao que ela satisfez de boa vontade,
esperando ser livre por ele, dizendo: “Este cruel e desumano, que aqui vem, senhor cavaleiro,
forçadamente me tomou agora a meu pai e mãi e irmãos, junto de uma fonte, onde, saídos hoje
daquela cidade, estávamos passando a sesta, bem descuidados que tanta desaventura nos
acontecesse, nem tal força nos fosse assi feita sem temor, nem vergonha, como em solitário
ermo, em caminho de tanta gente cursado, tão perto de uma cidade, onde toda justiça reside”.
Ouvindo isto Filidor, e entendendo que às abas da mor justiça e vara, não temendo o açoute
dela, tem mor atrevimento o injusto, e, ao pé da forca, vendo prender e justiçar a outros, sem
nenhum receio, usa o desavergonhado ladrão de muito mais soltura, disse ao cavaleiro, que
atrás vinha: “Ah! senhor cavaleiro, quando recebestes a ordem de cavalaria, não prometestes
forçar as donzelas, senão defendê-las”. Respondendo o cavaleiro com fúria desnodada: “Quem
sois vós, que quereis dar conselho a quem vo-lo não pede”?
Arremeteu a Filidor enrestando a lança nele, que sem a sua estava, por lha levar seu
escudeiro; mas com tanta ligeireza, arrancando sua espada, lha desviou com um revés, que
lha deitou fora das mãos, feita em pedaços, e voltando sobre ele, que já também fazia o
mesmo, fizeram ambos um cru e bem travado torneio, que durou pouco, pelo muito esforço
com que Filidor costumava castigar sempre os malfeitores e as sem razões, que via, sendo
principalmente feitas contra fracos; o qual, depois de receber um grande golpe em seu escudo
do cavaleiro contrairo, lhe tirou outro em retorno tão furioso, que deu com ele, mal ferido, em
terra, e, decido de seu cavalo, fingia que lhe queria cortar a cabeça, mas o cavaleiro caído,
com grande choro, lhe pediu mercê da vida, a qual Filidor lhe concedeu, dizendo que lha
deixava pera com ela chorar seus pecados e, principalmente, aquele que contra aquela
donzela cometera, em assi forçadamente a levar presa.
E deixando o cavaleiro, se foi pera a donzela, à qual ele, por sua mão desatando-a, disse:
“Parece-me, senhora, que mais preso ia aquele cavaleiro solto de vós que vós presa dele, mas,
pois já estais livre, perdoai-lhe a ofensa”.
Guardarima (que assi se chamava a donzela), com uma cor que ao rosto lhe veio,
acrescentando sua muita fermosura, sem responder com palavras, abaixou a cabeça, como
feita de pejo muda, agradecendo com este sinal o que com a voz não podia e concedendo o
que lhe mandava. E andando pouco caminho, encontraram com uns seus pages, e, logo mais
adiante, com o pai e mãi, e três irmãos dela, de pouca idade, que vinham gritando, seguindo o
cavaleiro que a levava.
E tornando-se todos alegres, quando a viram solta, rendendo por isso as graças a Filidor,
deram volta pera a cidade, onde, com muitos rogos e agradecidas palavras, lhe queriam beijar
os pés, o que ele não consentiu; e assi o levaram, como forçado, a sua pousada, que era mui
rica, porque era um nobre e rico cavaleiro o pai de Guardarima, e não menos esforçado,
quando a idade o favorecia. Onde se deteve alguns dias, em que foi de todos os de casa bem
agasalhado e servido, enquanto andou pela cidade inquirindo alguma notícia e novas de
Filomesto (como em todas as partes fazia), sem as poder achar.
Ali entendeu de Guardarima que não lhe pesara de casar com ele, e de seu pai e mãi e
irmãos, e de todos os seus, que lha desejavam dar por mulher. Mas Filidor, que trazia o
pensamento fora disso, se despediu o melhor que pôde, a cabo de alguns dias. E casou depois
Guardarima, ricamente, com um valeroso e rico cavaleiro, muito à sua vontade, como por seu
bom parecer e sua muita virtude merecia.
Dizia meu pai que contava e afirmava depois o seu escudeiro, de Filidor, pelo que a seu
senhor ouvira, que, se ele neste mundo houvera de casar, não casara com outra senão com a
virtuosa Guardarima, mas que não lhe ousara descobrir este seu amoroso propósito, por não
estar de todo ainda determinado nele, até não fazer primeiro tantas coisas em armas, que ela
tevesse por maior bem (do que então tinha), ser amada dele. E, por assi se calar, se casou ela,
pelo longo discurso do tempo, tendo pera si que ele a não amava; donde depois Filidor se veio
a contentar mais do seu nome triste, que por sorte lhe coubera em toda a vida.
Daqui dizia também meu pai que este amor, pois era tão bom, não o devera Filidor encobrir
por tempo tão comprido, porque o bem não se há-de dilatar a fazer, por não ter depois algum
estorvo. O mal si, porque, às vezes, no meio tempo que se espera efeituar, se muda a vontade,
pera depois se não fazer, como podemos dizer dos pecados que esperamos, sem nos
determinar pera os pôr em obra, e não os façamos, como vem à tentação ou vil desejo,
resistindo-lhe varonilmente, pois no meio tempo se pode mudar o mau propósito, vencer o
imigo e escapar do perigo. Mas a virtude, claramente conhecida por tal, devemos fazer logo no
mesmo ponto que a cuidamos, sem tardança, por que depois não venha de través alguma
tentação, ou impedimento forjado de nosso imigo, que nos aparte dela.
Despedido Filidor de Guardarima e de seu pai e mãi, e dos mais de casa (como tenho dito),
com grandes saudades e lágrimas de ambas as partes, se foi seu caminho, continuando a
tenção que levava de não descansar, sem achar o seu tão amado amigo Filomesto.
COMO FILIDOR, POR UMA AVENTURA, FOI TER AO REGNO DE NARFENDO, ONDE
FOI DELE BEM RECEBIDO E FESTEJADO, POR AMOR DE FILOMESTO
Antre muitos e grandes trabalhos dá Deus, às vezes, alguns descansos não cuidados, nem
esperados, pera que, tomando alguma respiração, se esforce quem os passa pera passar os
que lhe restam, até alcançar o fim do bem que pretende, dando-lhe o Supremo Juiz algum
interlocutório repouso, antes da final sentença que o solícito requerente procura, como dá
também lunáticos intervalos ao mentecapto, em que fica em seu siso, e como termos que faz
quem está em agonia de morte, depois dos quais torna a ficar como são por algum breve
espaço, em que a pressura da mente ordena melhor o que dantes lhe esquecia das coisas que
à sua alma e salvação relevam, até chegar o último termo da morte, que é final descanso da
vida triste.
E como ao sequioso e cansado caminhante nas ásperas montanhas e fragoso caminho
depara Deus alguma clara e fresca fonte, onde cobra alento para melhor caminhar pera sua
doce pátria, assi deparou Deus a Filidor, romeiro cansado de rodear o Mundo, buscando a seu
amigo Filomesto, em meio de seus muitos trabalhos um lugar de breve descanso, onde
descansasse alguns poucos dias, pera depois tornar logo com mais gosto a seu gostoso
trabalho, como agora direi.
Depois que Filomesto se partiu da corte de el-rei Narfendo, chamado (como, Senhora, vos
contei) pera a aventura ou desaventura de Ricatena, por tardar muito tempo sem tornar mais à
mesma corte, donde partira, o bom rei Narfendo, seu íntimo amigo, não podendo sofrer sua
longa absência, arreceando e temendo algum seu perigo (porque quem ama tudo teme),
mandou pelo mundo em busca dele os mais extremados cavaleiros de seu regno, de dois em
dois e três em três, pera dele lhe trazerem novas, ou, se o vissem em algum perigo, o
ajudarem ou acompanharem em sua tornada, que ele esperava, de que nada estava
desconfiado, pois o criara de minino e amava como pai, sabendo que também Filomesto lhe
tinha amor de filho.
Os quais cavaleiros, andando muitos caminhos e rodeando longas terras, quase todos se
tornaram tristes ao lugar donde partiram, por não trazerem novas alegres, que seu senhor
desejava. Dois dos quais, partindo de uma cidade, onde deixavam seus escudeiros comprando
mantimentos pera sua jornada, os iam esperando com vagaroso passeio, e vindo os
escudeiros, seguindo muito atrás a seus senhores, encontraram um robusto cavaleiro, que
queria entrar na cidade donde eles saíam, pelo qual passando sobre seus palafréns, o
saudaram com a cortesia devida, que aprendida tinham com tão bons senhores e em tal corte,
como era a de Narfendo. Mas, caminhando adiante e encontrando com seu escudeiro (como é
costume de caminhantes), vendo-se iguais com igual, escudeiros com escudeiro, começaram a
zombar dele, e de palavra em palavra vieram a palavras, de palavras a mãos e obras, de
zombaria a peleja, da peleja a grandes gritos que o escudeiro, maltratado dos dois, dava; a que
acudindo o senhor, que diante ia, os hospedou tão mal, vingando a seu criado, que lhes foi
forçado, sendo espancados, espancar e açoitar seus palafréns para fugir com mais pressa pera
seus senhores, que nada disto sabiam, senão quando ouviram seus queixumes, com que
tornaram logo atrás, buscando a quem os ofendera.
Neste meio tempo, que os dois escudeiros foram pera seus amos e quem os ofendeu se foi
com o seu pera a cidade que buscava, acertou Filidor, atravessando uma floresta, meter-se
naquele mesmo caminho e tomar a via que os dois cavaleiros levavam, os quais, vendo-o de
longe, cuidando ser ele o seu contrairo, enrestando as lanças nele, que descuidado de tal caso
ia, errando um o encontro, com a fúria que levava, o outro o encontrou com a sua, que fez
pedaços, sem o mover mais que a ira, com que, arrancando sua espada, cortou a lança do
esta lembrança, que agora ouvi de vós, senhores, com que tão alterado tenho o coração, que
não vos sei agradecer tão boas novas, que, espero em Deus, serão bésporas (121) de o poder
achar cedo. E, pois (como dizeis), estamos no regno do vosso alto rei Narfendo, de que o meu
Filomesto me contava mil grandezas, folgarei, se vos apraz, de o ir ver e servir em vossa
companhia, porque poderá ser que alguns dos cavaleiros, por quem ele (segundo me
dissestes) mandou buscar a Filomesto, o tenham achado, e estará já descansado em sua
corte, onde o acharemos e veremos”.
Ouvindo-lhe isto, os dois cavaleiros se deitaram a seus pés, dizendo: “Esta mercê, que,
senhor cavaleiro, nos ofereceis, vos queríamos nós pedir, antes de a concederdes, mas, pois a
fazeis antes de pedida, em maior obrigação nos pondes pera vos acompanhar e servir como
criados”.
Apeando-se, então, Filidor, se abraçaram, dizendo ele: “Senhores, serão meus e amigos os
amigos de Filomesto, meu senhor e amigo, e eu serei seu escravo, como dele o era, sem
deixar de o ser na vida toda”. Com estas e outras palavras de cortesia, que antre si passaram,
se tornaram pôr a cavalo.
E todos três, esquecendo-se os dois da vingança da injúria de seus criados, com esta nova
de alegria (que, quando quer que se alcança, faz esquecer muitos nojos passados),
prosseguiram seu caminho pera a corte de el-rei Narfendo, onde dali a poucos dias chegaram.
E, porque mandaram depressa um de seus escudeiros diante dar a seu rei esta nova, foi
Filidor recebido com grande aparato e honra, como coisa de Filomesto, tão amado do rei e
povo todo naquele regno, onde foi aposentado no paço e descansou alguns dias, conversando
e praticando com el-rei, com muita festa, nas coisas e proezas de Filomesto, que um a outro
contavam.
E depois de Filidor ajudar a Narfendo em uma guerra que trazia com um seu contrairo, de
que saiu com vitória, despedindo-se dele, seguiu seu caminho pelo mundo, buscando a
Filomesto, prometendo a el-rei que ele o faria vir diante de Sua Alteza, se o achasse, com que
o deixou algum tanto consolado na grande tristeza que lhe ficava, pela lembrança da absência
de Filomesto, e por tão apressurada e saudosa partida de um hóspede tanto seu amigo, que já
por amor dele amava, porque (como dizem) quem ama Beltrão, ama seu cão, e quem tem
desenganado amor a alguém, também, desenganadamente, ama a quem desta maneira lho
ama.
Quem trabalha, descansa; quem ama, serve; quem porfia, mata caça; quem fala, ouve e
quem bem busca, as mais das vezes acha.
Assi, andou Filidor muitos caminhos, caminhou por muitas terras, rodeou muitos reinos,
correu muitas cidades, navegou por inchadas ondas, chegou a muitos portos, prometeu e
cumpriu muitas romagens, sem poder ter novas do seu Filomesto desejado, até que chegando
uma tarde ao longo do rio Tormes, perto de uns altos álemos, que junto de sua ribeira estavam,
apeando-se de seu cavalo e dando-o a seu escudeiro, se deitou, já de mui cansado, à sombra
deles, e, ou de muito enfadado dos longos e importunos caminhos, sem poder achar a
Filomesto, que buscava, ou da lembrança dele e de sua saudade, chorou ali tantas lágrimas,
que, com elas, adormeceu pouco tempo, que não podia ser muito, pois as fantasmas e
desconsertados sonhos, como de doente de tristeza, o não deixavam ter comprido repouso.
E, acordando, se viu ainda muito mais banhado em águas das lágrimas, que dormindo e
sonhando chorara. E não tardou muito que não visse, por antre o arvoredo, ir um homem, com
passo grave, junto das águas do rio, com o grande frio do inverno coalhadas, o qual,
assentando-se em um penedo, que à borda do rio estava, junto com as águas dele, feitas
pedra, olhando, calado, primeiro um pouco pera elas, como quem considerava e contemplava
em sua dureza, começou a chorar desta maneira:
Mui pronto esteve Filidor, como pessoa triste e amigo de tristezas, ouvindo estas máguas
tristes, indo pouco a pouco na voz e no propósito das palavras conhecendo ser aquele que as
dizia o seu tão buscado companheiro, tão amado amigo e tão desejado Filomesto. Mas, como
nas suas derradeiras palavras acabou de se afirmar não ser outro, como faminto leão, de
muitos dias atrás em que não achou a caça que buscava nos montes e vales, que rodeados
tinha, estando já cansado de tanto buscar, deitado à sombra de alguma árvore ou escondido
em alguma espessa moita, acertando ver perto de si a presa, que sua boa fortuna lhe deparou
diante, não se pôde refrear, sem de um salto ser com ela, apertando-a com suas unhas e
braços, pera gozar à sua vontade do que tanto desejava. Assi dantre os álemos e árvores,
onde estava Filidor, cansado de tantos rodeios que pelo mato bravo do Mundo tinha dado,
vendo ante si, quando menos cuidava, nem esperava, o seu amado Filomesto, caça dele tão
buscada, não se pôde ter que com grande ligeireza não saísse e aferrasse dele, como leão
bravo (porque mais bravuras faz o amor verdadeiro onde se aposenta), e, abraçando-o com
seus braços, o apertava tanto, parecendo-lhe que ainda lhe havia de fugir dantre as mãos, que,
sem se poder revolver, Filomesto não sabia o que fizesse, dizendo-lhe Filidor: “Ainda não
acabo de crer, senhor Filomesto, que sois este”.
E assi estiveram um grande pedaço abraçados e mudos, sem poder mais dizer. A cabo do
qual, acordando ambos como de um grave sono, disseram tantas máguas, contaram tantas
saudades e choraram tantas lágrimas sobre aquelas duras águas daquele coalhado rio, que se
começou pouco a pouco a derreter com a quentura delas, movido deste tenro e brando amor
destes dois amigos.
Dali se foram pera a pousada de Filomesto, onde acharam Aénio, que em sua companhia
estava, e ali tornaram a fazer todos três outra muda liga de mudos abraços e outra comprida
conta de saudosas palavras.
E contando depois Filidor a Filomesto como fora ter à corte de Narfendo e a muita honra
que lhe fizeram, e grande saudade, que dele tinha aquele seu antigo amigo, determinou
Filomesto de o ir ver muito cedo, pois lhe não faltou outra igual saudade.
Desta maneira passaram alguns dias, que naquele reino estranho se detiveram, até que
assentaram antre si de tornarem todos três a esta terra e provar outra vez a ventura se se
podia abrandar a dura Tomariza. E pera melhor se poder fazer isto, ordenaram que viesse
diante seu irmão Aénio, pera preparar esta dureza, o que ele logo fez, pelo muito que a
Filomesto queria.
Partido Aénio, lhe aconteceram no caminho muitas aventuras alegres, que, por serem tais,
as não conto, pois são estranhas de minha condição e alheias do intento que levo. E, acabadas
elas, veio ter aqui, a esta ilha, onde o deixarei, por contar o que aconteceu àqueles dois firmes
amigos que, sem ele, lá ficaram em terra firme.
Estando Filomesto e Filidor já deliberados pera partir pera esta terra, depois da partida de
Aénio, aconteceu naquela, onde eles estavam e outros do reino de Lusitânia, ouvirem uma
nova certa do falecimento de seu príncipe, que era mancebo galhardo e novamente casado
com uma grande princesa. Mas todos estes principados e contentamentos apartou em breve
espaço a morte amargosa. E foi-lhe necessário ficarem ali, por estarem aos ofícios deste
príncipe, que seus súbditos fiéis, ainda que em estranhos reinos, sumptuosamente lhe
ordenavam e com muito maior sumptuosidade se fizeram pera a soberba e grave eça, do qual,
sendo rogado de muitos, fez Filidor estes sonetos, que assi diziam:
CAPÍTULO VIGÉSIMO
Depois de passada esta dor e mágua, e outras muitas, que cada dia e quase cada hora se
oferecem nesta vida triste, tão cheia de semelhantes encontros e misérias, até antre grandes
reis e senhores e quando menos se cuidam e esperam, se partiram os dois amigos daquela
cidade, caminhando com algum alívio de esperança pera esta sua pátria, cuidando que já
estaria enfadada e cansada Tomariza de usar com Filomesto tantas cruezas.
E passando por um ermo, que antre umas serras estava, viram uma fermosa e bem lavrada
torre diante de si, e, chegando a ela, souberam de uns honrados escudeiros, que os vieram
receber ao caminho, que se chamava a torre de Mirabel, do nome da senhora dela, que os
mandava chamar, como costumava fazer a todos os cavaleiros andantes que por ali passavam,
pera lhe pedir que a quisessem desafrontar de um gigante, seu vizinho, que ali perto morava,
em outra torre sua, que do nome do mesmo gigante se chamava a torre de Grimaldo, o qual
gigante, assi chamado, porfiava, não só por força de armas, mas com encantamentos, e
principalmente com um dragão encantado, fazer-lhe dano em todos aqueles campos e prender
todos os cavaleiros, que contra ele iam em favor de Mirabel. E chegando à torre, souberam o
mesmo da mesma Mirabel, que com muitas lágrimas lhe pediu que a quisessem socorrer
naquela afronta, o que eles prometeram fazer de boa vontade.
E por estar perto a torre de Grimaldo, sem mais detença, começaram a caminhar pera lá. E,
sendo à vista dela, indo cada um por sua parte, buscando por aquele campo o dragão
encantado (porque assi iam avisados de Mirabel e de seus escudeiros que não fossem ambos
juntos, porque em maior companhia de cavaleiros usava ele maiores crueldades e, quando
achava cada um por si, somente o prendia com os dentes, até que o gigante vinha de sua torre
e o levava preso a ela, onde tinha já grande número deles, presos desta maneira, e, quando
iam dois ou mais juntos provar esta aventura, eram logo feitos pedaços pelo fero dragão), e
acertou assi, que, olhando a todas as partes, Filidor viu ir o dragão com grande fúria e a boca
tão aberta direito contra Filomesto, que cuidou que o enguliria de um só bocado, e não
podendo sofrer a morte de seu amigo, que ele tinha por certa, se lhe não acudisse, correu à
espora fita e a lança em punho, com tanta ligeireza, que, antes de chegar a Filomesto, o
encontrou pelo lado, e nisto chegou também o mesmo Filomesto, fazendo-lhe outro tanto pela
boca com a sua; e, quebradas ambas as lanças nele sem lhe fazer dano, arrancando suas
espadas, o feriram de tal maneira, por terem virtude contra todo encantamento, que não
aproveitou ao gigante o do seu dragão, porque, feito postas, se tornou em pó, voando pelos
ares, como fumo.
O que vendo o gigante Grimaldo de uma janela de sua torre, onde estava, se deceu muito
depressa, armado de suas armas, e cavalgando em um poderoso cavalo, se veio com a lança
baixa, em sinal de paz, buscar os dois cavaleiros amigos. E, chegando a eles, se apeou, e
deitando a lança e espada no chão e alevantando o seu elmo, começou a dizer estas palavras:
“Esforçados e invencíveis cavaleiros, a quem estava prometido acabar esta aventura, vossa
vinda seja tão ditosa pera mim, como foi pouca dita pera aquele dragão, que matastes. Sabei,
senhores, o meu caso, que contar vos quero, e depois fazei de mim o que quiserdes, que pera
isso me venho entregar, de paz, em vossas mãos guerreiras. Eu amo muito de coração a
fermosa Mirabel, que cá vos fez agora vir. Este amor me fez buscar modos pera ganhar o seu,
o qual não podendo alcançar, ainda que por força de armas (quando os serviços não
bastaram), por muitas vezes com Mirabel intentei provar minha ventura, sem nada me
aproveitar. Quis experimentar que tal a teria por modo de ardil e encantamento, em que contra
minha natural condição me meteu minha mãi, que era maga, a qual, antes que falecesse, me
Capítulo Vigésimo 70
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
deixou este dragão encantado, que matastes, pera que com medo dele alcançasse algum
remédio, dizendo-me mais que o não teria até a vinda dos dois amigos a esta terra, e quando
por eles fosse morto o dragão vivo, tornaria a viver minha esperança morta. O que vendo eu
agora acabado com a vossa vinda, vos peço, se em algum tempo provastes ou provou algum
de vós os golpes de Cupido, que hajais dó dos meus, com que Mirabel me fere, e me sejais
valedores diante de seu acatamento, pois não quero a vida, nem quanto tenho e espero ter,
senão pera a servir com tudo”.
Vendo isto os dois amigos, se apearam de seus cavalos e, abraçando-o com muito amor, se
foram com ele à sua torre, onde soltou logo grande número de cavaleiros, que ele, por sua
pessoa, andando rodeando toda aquela comarca e com ajuda do dragão, presos tinha.
E cavalgando todos, se foram juntos com o gigante Grimaldo à torre de Mirabel, a qual, com
alegria de ver seu inimigo vencido, sem lhe vir ao pensamento de ser dele em algum tempo
venerada, os esteve esperando em uma grande e rica sala, onde, chegados, se pôs Grimaldo
de geolhos diante dela, tendo Filomesto de uma parte e Filidor da outra, e todos os mais
cavaleiros prostrados ao redor deles, pedindo misericórdia a Mirabel pera aquele bom cavaleiro
Grimaldo, dizendo Filomesto (que, como ferido de semelhante mal, havia dele mor dó): “Já
que, senhora Mirabel, fizemos vosso mandado, folgai de fazer agora o que vos pedimos e
querei aceitar por marido a vosso vizinho Grimaldo, que tanto vos ama; pagai-lhe com vosso
amor o seu, que não tem outra paga”. O mesmo lhe rogaram seus escudeiros todos e criados
de casa, dizendo Grimaldo: “Não vos lembrem, senhora, as forças e perdas, que vos fiz, em
vossa família e fazenda, que a força, que o vosso amor me fez, me fazia fazer essas; eis-me
aqui aparelhado pera com minhas forças, fazenda, honra e vida restaurar todas”.
Finalmente, tanto trabalharam todos e, principalmente, Filomesto e Filidor, a quem Mirabel
tinha mais respeito, que, concedendo o que lhe pediam, com grande alegria de todos foi
recebida com Grimaldo. E acabaram-se as guerras civis antre dois vizinhos tão chegados. E
muitas semelhantes se acabariam no mundo, se nele houvesse muitos Filomestos e Filidores.
Ali se estiveram os dois amigos com aqueles cavaleiros, por rogos de Grimaldo e Mirabel,
alguns dias, e, por fim, despedidos deles com amorosos oferecimentos, se foram seu caminho.
Capítulo Vigésimo 71
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
Algum tempo caminharam estes dois amigos, sem lhe acontecer coisa notável, ainda que
muitas outras lhe aconteciam, como foi esta, que agora direi.
Determinados ambos fazer uma comprida romaria, antes que pera esta terra partissem,
mandaram seus escudeiros com suas armas e cavalos, pera que os esperassem em um porto
de mar, onde esperavam achar embarcação certa.
E foram-se eles sós, vestidos como peregrinos, cumprir o que prometeram, onde,
adoecendo ambos, ou com o trabalho do caminho, ou com a aspereza com que se tratavam,
foram ter a uma nobre vila, chamada Safra, buscando ali cavalgaduras. E feito partido com o
dono delas, por conselho de seu sogro, ou mulher e parentes, lhe tornou a faltar com elas, o
que, vendo eles, se foram dali a meia légua a uma aldeia, que se chamava Puebla, pera buscar
outras em que fossem.
E, estando ali repousando a sesta em uma estalagem, veio uma dona chamá-los, que
quisessem ir a uma casa, que perto estava, falar a umas mulheres que os chamavam.
Maravilhados eles, quem poderiam ser as pessoas que em terra alheia os conhecessem, foi lá
Filidor primeiro, por não estar tão enfermo, e, chegando a uma porta, saíram por ela duas
mulheres a ele, rogando-lhe com muitas lágrimas que não quisesse ele, nem seu companheiro,
fazer mal no caminho a Vasques, oferecendo-lhe uma delas uma mão cheia de dinheiro, e a
outra um grande presente de coisas de comer, que ele não quis aceitar; e não as entendendo
Filidor, lhe perguntou: “Que Vasques é esse, senhoras, que me dizeis?” Respondeu uma: “É
meu marido, que vos tinha prometido as cavalgaduras, e, como lhe é forçado ir este caminho,
eu e esta minha irmã, arreceando que o vinheis esperar pera vos vingardes dele, que, por lhe
dizerem todos que podíeis ser e parecíeis homens de mau título, vos não ousou levar e negou
sua palavra; e nós nos vimos rogar que lhe queirais perdoar suas faltas”.
Ouvindo isto, Filidor alevantou as mãos ao Céu, dando graças a Deus que o chegara a
tempo de ser tido por ladrão e salteador de caminhos, e consolou e esforçou aquelas medrosas
mulheres, assegurando-lhe a vida e honra de seu marido; e dando estas novas a Filomesto, as
veio ele também esforçar e consolar, com muitas lágrimas e palavras.
Não é muito serem mal julgados os estrangeiros em terras alheias de quem os não
conhece, pois na sua própria pátria não podem muitas vezes escapar de juízos temerários e de
línguas de maldizentes.
Ouvindo isto nesta terra um nobre cavaleiro castelhano, grande amigo de Filidor, que, sendo
tomado dos piratas franceses ao longo destas ilhas, o foram deitar na ilha do Faial e resgatar
por um cesto de laranjas, e zombando Filidor, que isto sabia e ouvira, com ele, dizendo, “os
franceses vos conhecem a vós, castelhanos, quão pouco valeis, pois vos venderam por um
cesto de laranjas”, — lhe respondeu o castelhano: Amigo, em Safra os conoscen a vós mejor,
pues alla os tuvieron por ladron i salteador de caminos”.
Acabada sua romaria, foram ter com seus escudeiros e cavalos, que esperando os
estavam.
E naquela cidade adoeceu Filomesto de uma tão grave enfermidade, que muitas vezes foi
chorado de Filidor, como morto; mas sendo já quase convalescido, foi chamado Filidor pera
uma aventura, pelo que forçadamente se apartaram, então determinados ambos que cada um
caminhasse pera esta terra, onde depois se viram, como adiante direi.
Mas contarei primeiro só uma grande aventura, que lhe aconteceu, a Filomesto, nesta
jornada, antre outras muitas que calarei, por guardar brevidade em tão compridas máguas,
chorando Filidor quase no mesmo tempo as do grande pastor Crisfal, junto do álemo, em que a
curiosa Ninfa as escreveu quando ele as dizia, como depois contarei.
Nunca ninguém deixe passar ocasião alguma de fazer o bem que pode, porque, como Deus
não permite nenhum mal sem castigo, assi não deixa nenhum bem sem galardão, ou tarde ou
cedo. Da semente que cada um semeia, dessa mesma recolhe. Encontram-se os bens e os
males em casos não cuidados, e, logo quando se faz o mal, sai abrolhando a justiça de Deus e
o castigo dele; e, pelo contrairo, fazendo-se o bem, logo se enxerta nele o devido galardão, e,
juntamente andando a igual passo a par, ambos vão crescendo.
Lá traz Deus uns rodeios tão compridos e armados de longe, pera chegarem seus juízos a
seu tempo devido, por seus passos contados, que, estando o mau próspero e mais seguro,
subitamente lhe dá o mate aos pés de seu regnado, e quando menos o espera.
Quem fez obra virtuosa lhe vem nascendo à porta, da parte do divino favor e ajuda, o
prémio e paga dela, melhor do que o ele sabe buscar, nem desejar com seu saber humano.
Também quem faz benefício ao digno, parece que, quando o dá, o recebe, pois faz alicerce e
fundamento, sobre que arma edifício de merecimentos diante de Deus e dos homens, que, se
não é logo, ao longe vem a pagar e servir com grande abundância as mercês, que, de perto,
receberam. Como aconteceu a Narfendo, que criou e favoreceu a Filomesto, menino e moço,
como a cegonha cria o filho no ninho, e depois, sendo velho, veio a ser dele favorecido, como
agora, senhora, irei contando.
Partido Filidor, que por agora deixarei em seu caminho, e convalescido, depois, Filomesto,
se partiu também pera o regno de Narfendo, seu antigo amigo, desejando de o ver, antes que
pera esta terra viesse; e, atravessando, em uma fresca manhã, uma serra mui alta, que lhe fez
lembrar a outra, em que nesta ilha vira a primeira vez a Tomariza, transportado com esta
lembrança em amorosos pensamentos, e acabando de decer com eles, ao pé dela viu vir
contra si seis cavaleiros, que chegando a ele, lhe perguntaram quem era e pera onde ia e
donde vinha. Ao que cortêsmente respondendo, disse: — “Não sei, senhores cavaleiros, donde
venho, nem pera onde vou, nem quem sou agora, nem quem soía ser em outro tempo, tal me
tem tornado o meu cuidado; mas, se podeis escusar saberdes o meu nome, agradecer-vos-ei
muito a ver-me por escusado dessa vossa pergunta.”
Ouvindo esta resposta os cavaleiros, cuidando que os desestimava, se indignaram, dizendo
um deles: “Não andamos, cavaleiro, por esta terra pera usar cortesias, nem ouvi-las, nem o
vosso cuidado poderá escusar nosso descuido em nosso ofício; dizei-nos, logo, quem sois,
sem mais prolongas”. Ao que disse Filomesto: — “Força parece isso, com que me quereis fazer
perder o meu direito, que eu sempre até aqui soube sustentar antre outras mores forças.”
“Agora o vereis” — disseram eles, arremetendo pera ele, juntamente com estas palavras e
com as armas, que Filomesto recebeu como mestre velho neste ofício, havendo-se de tal
maneira com seus contrairos, que prestes os fez ser de contrairo parecer, com que se puseram
em fugida, uns por montes, outros por vales, como faz a manada das fracas ovelhas, quando
antre si vê o lobo que as espalha.
E alcançando um, cujo cavalo não era tão ligeiro como o desejo de quem ia nele, se virou
pera Filomesto, pedindo perdão de seu erro; do qual soube que ele e seus companheiros eram
corredores do campo do exército de um rei, que com grande poder ia sobre Narfendo, e como
e onde daí a quatro dias estava antre eles limitado o prazo pera dar a batalha. Se nalgum
tempo Filomesto, antre seus contínuos pesares, teve contentamento, foi ouvindo isto, por
chegar em conjunção de poder fazer algum serviço a quem o criara.
E, deixando o cavaleiro, se foi caminhando pera aquele campo, de que era informado, onde,
chegando uma noite antes do quarto dia aprazado, se deteve em um outeiro, do qual, vindo a
manhã, viu os dois exércitos a ponto de guerra com grandes gritas e som de tambores, clarins
e trombetas, que não só animavam os soldados e cavalos dos dois contrairos reis imigos mas
também o cavalo e coração do amigo de Narfendo, com o qual orgulho, descendo do outeiro,
se foi pôr no meio daqueles dois temerosos exércitos.
E vendo a grande avantagem do contrairo, assi em número de gente, como em armas,
estando perto deles, em alta voz lhe disse: “Ó rei imigo de Narfendo, que queres com tirania
passar os limites de teu regno e tomar o alheio, não cuides que está a justiça em maior cópia
de gente e mais forças, que eu só te mostrarei o contrairo; manda contra mim dez, vinte ou
mais cavaleiros, dos mais escolhidos de teu soberbo exército, e verás como no vencimento
deles aparece tua sem justiça e se abate tua soberba."
Estas e outras palavras dizia Filomesto, bizarro batalhador antre aquelas batalhas, ouvindo
de ambas as partes, pondo a uma ousadia e a outra espanto, quando ao exército de Narfendo
trouxeram os seus corredores do campo um dos seis que de Filomesto fugiram, do qual
souberam os duros golpes daquele cavaleiro do pelicano, que esta divisa trazia por timbre nas
armas Filomesto, depois que se namorou de Tomariza, por rasgar seus peitos e coração por
amor dela, o qual, por amor de Narfendo, os estava também então oferecendo à morte. De que
houve grande rumor e diferentes opiniões naquelas companhas, dizendo uns que podia ser
Filidor, amigo de Filomesto, o que pouco havia os ajudara já contra seu contrairo em outra
guerra; outros suspeitavam se seria o mesmo Filomesto; e, com qualquer destas coisas que
fosse, se alvoraçavam e animavam.
Mas, se estes cobravam esforço, o exército contrairo o perdia, vendo-se desonrar e afrontar
de um só cavaleiro, de cuja valentia davam também testimunho os corredores do campo, que
dele escaparam vencidos.
Mas, não sofrendo o rei afrontado mais afrontas, mandou sair a ele quatro cavaleiros mais
afamados e abalizados de todo seu exército, que lhe prometeram trazer-lho logo preso, se assi
puderam cumprir por obra sua promessa, que faltou, faltando a eles a vida, que passou pela
ponta da lança e fio da espada de Filomesto. O que vendo Narfendo, disse aos seus: “Já que
Deus nos favorece, e, por ventura, é aquele cavaleiro Santiago, ou anjo do Céu, enviado em
nossa ajuda, aproveitemo-nos da ocasião e do tempo, pois não o é de esperar mais um só
momento”. E, mandando logo abalar seus esquadrões contra os de seus imigos, com que já
Filomesto só andava travado às lançadas, fazendo neles grande estrago, se travaram aquelas
gentes guerreiras de tal maneira, que, não podendo sofrer o novo esforço que os de Narfendo
cobraram com a suspeita de ser Filidor ou Filomesto, ou algum guerreiro sobrenatural, que
Deus lhe mandava, e principalmente os duros golpes que dava e grandes proezas que
Filomesto, desconhecido na dianteira, como bravo leão fazia, viraram as costas e se puseram
em fugida, com que perderam o campo e fazenda, e quase todos a vida, senão alguns poucos,
a que a obscura noite no alcance foi piedosa madrinha.
Acabado este feito, recolhendo-se Narfendo com sua gente, por mais que mandou buscar o
cavaleiro do pelicano, o não puderam achar em toda aquela noite, por se ele apartar do
exército, a qual passaram aqueles cavaleiros, e toda a infantaria, com festas, tangeres e
cantares e grandes fogueiras, antre as quais se abrasavam com os ferventes desejos de saber
quem seria o cavaleiro do pelicano, que, só, lhe dera tal socorro, a que todos atribuíam a vitória
daquele dia, dando diversos pareceres de quem poderia ser, estando em tudo escuros, como a
mesma noite, até chegar a manhã do claro dia, que aclarou suas dúvidas e alumiou seus
entendimentos, cumprindo seus desejos.
Toda aquela noite, por mandado de Narfendo, com lanternas, tochas, fachas e luminárias se
andou buscando por todo o campo o cavaleiro do pelicano pera lhe darem as devidas graças
do benefício recebido e o agasalharem e honrarem, como merecia, mas nunca puderam dar
com ele; até que pouco antes de amanhecer os descobridores do campo e atalaias o foram
achar mui longe, pera contra aquela parte onde os imigos fugiram, que ele foi perseguido,
fazendo neles grande dano, por ver se podia prender seu rei, o qual não achando, se esteve
toda aquela noite vigiando o campo, pera atalhar a alguma volta ou salto que os contrairos
dessem.
Andando passeando, lhe veio ao pensamento ir-se, sem se dar a conhecer com Narfendo,
por arrecear ser dele ali impedido; e, pelo contrairo, cuidava o muito que lhe devia e não ser
bem negar-lhe aquele gosto, que ele teria com sua vista, lembrando-lhe a criação e amor com
que sempre dele fora tratado, com o que se determinou de lhe falar despedindo-se cedo dele,
pera poder melhor prosseguir a jornada começada de vir ver a esta ilha a sua Tomariza, que
tanto amava.
Andando nestes vários pensamentos, sendo já quase manhã o viram as atalaias e
descobridores do campo, e chegando a ele com muita pressa e cortesia, descendo-se de seus
cavalos, se prostaram diante, pedindo-lhe que, pois Deus o mandara ou do Céu ou da Terra,
pera por seu meio lhe dar aquela vitória tão grande, houvesse por bem não negar sua vista ao
rei, a quem dera tal socorro; ao que ele, respondendo que era contente, pois era o que mais
ganhava em ir ver a face de tão bom senhor como era el-rei Narfendo, se foi em sua
companhia, que cada vez ia mais crescendo, porque se ajuntavam aos corredores do campo
os cavaleiros e soldados que o andavam saqueando, os quais, esquecidos de seu próprio
interesse, tinham por maior riqueza a vista daquele cavaleiro, a quem todos a uma voz iam
louvando, fazendo-lhe os capitães do exército grandes cortesias.
E, assi, com muitos tangeres de tambores, trombetas, sacabuchas e charamelas, e com
infinitos cantares e folias do povo em seu louvor, o foram acompanhando até onde estava el-rei
Narfendo, que, saindo de sua tenda grande espaço, o veio receber ao caminho com muita
alegria e cortesia, o qual vendo o cavaleiro do pelicano, se apeou de seu cavalo, e o mesmo
fez logo el-rei; e, alevantando a viseira, se pôs de geolhos pera lhe beijar a mão, mas
conhecendo Narfendo que era o seu Filomesto tão buscado e desejado, que ele, de pequeno,
em sua corte criara, arremeteu com os braços sobre seu pescoço e, como fora de si, em voz
alta disse: "Ó Deus, este é o meu Filomesto”? E assi estiveram ambos mudos grande espaço.
Mas como o que perde um sentido de vista ou ouvido, cobra no outro dobrada melhoria, a
mudeza dos dois amigos fez falar melhor a todo aquele exército, execitando-se (sic) todos em
dar com grandes vozes e gritos louvores a Deus por tal ventura, celebrando o nome de
Filomesto, que enchia todos aqueles campos e vales, onde também o Eco fazia seu ofício.
Tanta gente carregou sobre aquela parte por ver este cavaleiro, que quase o houveram de
afogar a ele e a el-rei juntamente, se não foram os homens da guarda, que, pondo-lhe as
pontas das alabardas diante, com grande trabalho os apartaram.
Tornados Narfendo e Filomesto a seu acordo, com amorosas palavras, acompanhadas de
infinitas lágrimas de tenro amor, se foram pera sua tenda, dizendo el-rei que de boa vontade
folgara de ser vencido naquela guerra pelo ver, quanto mais tendo a vitória que ele lhe dera, e
que já então, pois o alcançara ver, morreria contente.
E assi contentes se estiveram no campo três dias, recolhendo dele todos os despojos,
armas e riquezas dos imigos, que foram muitas, no fim dos quais se tornaram pera a corte, não
querendo Narfendo seguir o alcance dos contrairos, nem tomar-lhe seu regno, como então
pudera fazer, tendo por maior regno e interesse a vista e companhia do seu desejado
Filomesto, com que conversou e se alegrou algum tempo, fazendo todo o povo grandes festas,
mais por ter tal hóspede que por ter tal vitória.
Passados alguns dias, estando em um serão Filomesto só com Narfendo (como os prazeres
duram pouco), lhe declarou Filomesto seus amores e seu intento, e como a força deles o
forçava partir-se, a vê-los nesta terra, por fugir também naquela, onde estava, das esperanças
mal tomadas, com que ainda o importunava e perseverava a malditosa Ricatena, o que chegou
a Narfendo a par de morte, dizendo sobre isso mui sentidas máguas, cheias de estranhíssimas
saudades.
Mas não podendo acabar com Filomesto que ali ficasse e conhecendo as mortais e
incuráveis feridas de Cupido, houve de consentir em sua ida, com prometimento da tornada,
pera que lhe pediu Filomesto que o deixasse ir sem o saber o povo, pois estava certo que
impediria seu caminho.
E praticando ambos o modo que nisso teriam, assentaram antre si um dia, em o qual foram
caçar a uma montanha, onde havia muitos cervos e porcos monteses. Sendo lá, com grande
companhia de fidalgos e monteiros, apartou-se Filomesto e seu escudeiro com Narfendo,
embrenhando-se, e, sós, se despediram com amorosos abraços e suspiros, acompanhados de
tristíssimas lágrimas, com esperanças e promessas de se tornarem a ver muito cedo.
Partindo-se tão cedo Filomesto, porque a pressa que o amor de sua amiga, ou imiga,
Tomariza lhe dava não lhe consentia fazer muita detença com amigos, pela qual razão,
alcançando assi pesadamente licença de Narfendo, que muito o amava, se despediu naquela
soidosa montanha dele, com infinitas lágrimas de ambos e saudosas saudades, mais
estranhas que jamais até ali teveram, como que adivinhavam ser aquela a sua última
despedida e que não se haviam de tornar mais a ver, como, de feito, nunca mais se viram,
porque os cuidados dos amores de Filomesto e a morte de Narfendo, que depois sucedeu,
apartaram estes dois tão grandes amigos pera sempre.
Tornou-se Narfendo, cheio de mágua e dissimulação, pera casa e, ainda que vinham os
seus, alegres, com porcos e veados e muita caça, acompanhava-os a tristeza de não poder
achar a Filomesto aquele dia, e muito maior foi quando nos seguintes o não acharam, com que
o prazer de sua vista se tornou tristeza, que é o fim e remate que têm todos os contentamentos
desta vida triste.
Dizia meu pai, contando isto, que, se desta maneira se não despedira Filomesto, nunca o
povo consentira em sua partida, porque, como naquele regno se elegia o rei por votos, que
davam no mais digno, e não por herança, estava entendido e certo ser eleito Filomesto por
morte de Narfendo (que dali a poucos dias com saudade dele sucedeu) e, assi, impedido pera
nunca poder vir ver a sua Tomariza nesta terra, sendo feito rei naquela. Mas onde está natural
e verdadeiro amor, e não fingido, é como a natureza, que com pouco se contenta e tudo
despreza.
Passando Filomesto muitos trabalhos no caminho por terra de imigos, e por causa de sua
doença, que se renovou depois de despedido de Narfendo, chegou primeiro a esta ilha, e, pelo
contrairo, a saúde de Filidor lhe foi causa de mais detença, por ser ocupado em muitas
aventuras, que não ouso contar por terem ventura.
Só sabei, senhora, que, caminhando ele um dia pelo reino de Lusitânia antre as serras de
Sintra e as de Ribatejo, foi ter, antre um arvoredo, junto de uma ribeira, onde a água dela de
alto lugar caía e, querendo descansar um pouco do trabalho do caminho, pondo os olhos em
um alto álemo, que ali estava, viu nele escrito o choro do grande pastor Crisfal, que a curiosa
ninfa escrevera, enquanto ele em outro tempo passado naquele lugar chorara.
E com a grande mágua que sentiu de ver um fiel amador tão mal ditoso, chorando também
com ele ao pé do mesmo álemo, na medida dos que ali achou, escreveu estes versos.
És outro Siracusano,
Que Arquimedes é chamado,
Que fez com saber humano
Um novo mundo acabado
Cos (sic) cursos de todo ano;
Vendo o que de amor disseste,
Vendo quanto amor louvaste
Verão todos que acabaste
E, de novo, amor fezeste,
Que nada feito achaste.
Se o dinheiro é servidor
E o saber senhor perfeito,
Não é bem servo e senhor
Estar ambos num sujeito,
Sem dar lugar o menor.
Fugiu de ti a riqueza,
Deussete bem a paixão, (sic)
Deu lugar ouro vilão
A teu saber e tristeza,
Que de mais quilates são.
Se Alexandre te alcançara,
Os teus doces versos lera,
Creio que o reino deixara,
Que ser Alexandre, que era,
Mais ser Crisfal desejara.
Tanto da terra te alçaste
Com teu sonho tão profundo.
Que sem ficar teu segundo,
Pera quão grande ficaste,
Pequeno ficou o mundo.
Apartando-se Filidor daquele lugar saudoso, andando muitos caminhos por estranhos
reinos, indo um dia por antre um bravo e espesso mato, caminhando por uma vereda, sem
saber por onde caminhava, por ter perdido o caminho, ouviu um estrondo de armas e, após
isso, uns brados de um escudeiro, que vinha chorando, o qual, como viu a Filidor, de longe lhe
disse: — “Acudi, senhor cavaleiro, ao melhor cavaleiro que há nesta terra, que estão matando
uns tredores”.
Ouvindo isto, Filidor, dando depressa de esporas ao cavalo, foi ter a um gracioso campo,
ornado com uma fresca fonte, que o regava, onde viu estar sete furiosos cavaleiros pelejando
contra um, que animosamente se defendia deles, e vendo esta disparidade, se chegou mais
perto a eles, dizendo: — “Ah! senhores cavaleiros, pelo que deveis à ordem de Cavalaria, que
recebestes, vos peço que possa mais em vós a vossa cortesia que a vossa fúria e deixeis este
cavaleiro, que, pelo esforço com que de tantos se defende, merece ser socorrido e não
ofendido”.
Os sete cavaleiros, como envergonhados desta cortês reprensãm, corridos dela, correram
todos juntos com dobrada fúria contra Filidor, que não estava descuidado de tal encontro, e,
assi, os recebeu com melhor ânimo do com que eles receberam seu conselho, de tal maneira
que ele e o outro, que dantes pelejava contra eles, vendo-se favorecido, em pouco espaço
deram fim àquela contenda tão estranha, deixando uns dos contrairos mortos e outros mal
feridos.
E sem querer Filidor mais saber quem era gente de tão vil ânimo e baixo espírito, ele e o
outro, alimpando e embainhando suas espadas, se puseram ambos em caminho, praticando e
dando um as graças do bom socorro e o outro louvores do bom esforço, namorado cada um
das razões do ouTro e da postura, lhe foi contando o cavaleiro como aqueles vencidos, que
moravam ali perto, em outra cidade, mandando-o chamar a sua casa, dizendo e fingindo ser
pera os ajudar em uma aventura, acometendo-o no caminho, por enveja que dele tinham de
haver vencido a alguns deles em uns torneios que, poucos dias havia, foram feitos na corte
(porque ela emagrece com os bens alheios), ficaram eles sem ventura, e ele ficara sem vida
antre aqueles tredores, se lhe ele não valera.
Nestas e outras coisas praticando, chegando à vista de uma grande e populosa cidade,
rogou e importunou aquele cavaleiro a Filidor que quisesse aceitar ser seu hóspede aquela
noite, pois fôra seu Emparo e socorro aquele dia. Não lhe podendo resistir, Filidor o foi
acompanhando.
Chegados à casa, onde morava, descavalgando à porta, vieram muitos criados e pagens
recebê-los. E, dentro no páteo, depois de entrados nele muitas donas e donzelas, antre as
quais vinha a senhora delas e mulher de seu senhor a recebê-lo; ele, tomando-a pela mão,
disse: — “Se, senhora, me desejais a vida, como sempre desejastes, agradecei a este senhor
cavaleiro a que me deu este dia com me livrar de meuS contrairos”.
Vindo aquela senhora pera se lançar aos pés de Filidor, rendendo por aquela mercê as
devidas graças, se afastou Filidor um pouco pera trás, tirando o elmo por cortesia. E, como o
cavaleiro o conheceu, como sem juÍzo se foi a ele, com os braços abertos, dependurando-se
em seus ombros de tal maneira, sem poder falar palavra que, ficando transportado, o julgaram
por morto toda aquela grande companhia.
açoitado, pera que quebre e amanse nele a fúria e braveza, que tem de natureza, lhe dá a
beijar a palmatória ou açoites, com que o tem castigado, assi pera nos amansar, nosso bom
Deus não só nos castiga com doenças e perdas grandes, como é esta vossa, nem só quer que
soframos os trabalhos, que nos dá como açoites, mas quer também que os beijemos e
abracemos com reverência e paciência, como coisa de que recebemos grandes bens e
proveitos nesta vida, que vivemos, e havemos de receber grandes prémios na outra que
esperamos; e, por isso, não nos é dito que com nosso trabalho, senão em nossa paciência,
que nele tivermos, beijando-o e abraçando-o, querendo-o e aceitando-o com amor, de boa
vontade ganharemos nossas almas”.
Estas e outras razões lhe dizia; mas não abastavam razões de Filidor pera consolar a
Natónio, casado e descasado, já, em terra alheia, porque a mal soldada e fresca chaga
naturalmente recusa deixar-se tocar, e, quando às vezes é tocada com grosseira mão e
pesada, causa e renova maior dor a quem a tem. Mas algum tanto se confortou e sossegou
com as prudentes e amigas palavras de seu amigo.
Como o bacio de estanho que está a música ancila tangendo, virando-o ao redor com os
dedos, com que lhe faz fazer um saudoso e triste som, tocando-o e pondo-lhe uma mão em
cima, ensurdece, assi nossa escrava Natureza musica, e, sentida com o voltar da Fortuna,
pondo-lhe alguém a mão de alguma consolação discreta, logo ensurdece e seca, conhecendo
a razão, sem poder muitas vezes usar dela. O silêncio, que mais sente nestes casos, é às
vezes (mas não sempre) são conselho e mais discreto, e melhor fala. Ele diga as tristezas e
desconsolações desta casa e do senhor dela.
Consertado Filidor, dali a poucos dias, com Natónio de tornarem a esta ilha ver o seu
Filomesto, deixando-o, entretanto, aviando as coisas de sua família, em que tinha detença,
seguiu o caminho que levava, pera cumprir o que com Filomesto de sua tornada consertara.
Com o qual propósito caminhando, foi ter um dia antre uns soberbos outeiros, povoados de
grandes paços e castelos de altas torres e rica casaria, antre um alto e espesso arvoredo, que
lhe pareceu a mais rica e bem assombrada povoação que nunca vira, ainda que muitas tinha
visto, e ali, em meio daqueles sumptuosos edifícios e antre aquelas saudosas árvores, achou
em um alto padrão, escrito com letras de ouro, o nome daquele grande poeta lusitano, Luís de
Camões, que com grande artifício e doçura em nossos tempos ajuntou suavemente o Ganges
com o Tejo.
E porque, a seu juízo, lhe pareceu em ritma coroa e flor de quantos poetas floresceram,
sem ser segundo a Dante, nem Petrarca, nem Oriosto (sic), escreveu em seu louvor no pé
daquele padrão este soneto:
Partido dali Filidor, depois de ter acabadas muitas aventuras, por vários casos e sucessos,
veio ter a esta ilha, onde já achou Aénio e Filomesto, e o viúvo Natónio.
E todos quatro trabalharam muito pera que casasse Filomesto com Tomariza; mas nunca o
puderam acabar com ela, o que vendo o triste de Filomesto (porque esquivança aparta amor,
como as boas obras o conservam), mudou sua vontade, pondo-a toda em a fermosíssima
Gurioma, que, naquele tempo, nesta terra menina e moça em beleza e virtude e em tudo mais
que todas florescia.
Aénio também pôs sua afeição em a fermosa e virtuosa Naciomena.
E tendo cada um deles grandes esperanças de casar com a sua querida, no melhor tempo
lhe faltou a ventura, falecendo primeiro Naciomena, e, logo depois dela, a poucos dias, a grave
Gurioma, de que ficaram tão tristes os dois cavaleiros, que não se achou jamais consolação
pera eles.
Então, acabaram de entender o que em estranhos reinos lhe havia pronosticado a maga,
que, em trajos de Vénus e com o arco e setas de Cupido, lhe dissera estas palavras: “Lembrai-
vos, cavaleiros, do agravo que no lago das rãs me fizestes, e o fim triste que, depois, na aldeia
vistes, e o que agora no caminho vedes, pois vedes mulher com estas armas de Cupido e em
algum tempo, e não tardarão muitos anos, vereis e entendereis se me sei vingar de quem me
ofende”.
Viram claramente que queria dizer a maga que seriam feridos de amor destas que tão
prestes faleceram, como brevemente faleceu a esposa, que eles a seu esposo d’antre as rãs
livraram.
De Filomesto vos sei dizer, senhora, que amava Gurioma tão secretamente, que ninguém o
entendia, senão seus íntimos amigos, e principalmente Filidor, com quem ele tudo comunicava.
E o dia que ela faleceu, por dissimular seu amor, já ora vedes com quanta dor e mágua foi a
seu enterramento, acompanhando-a com o mais povo à sua triste sepultura, e o que mais é
pera maguar, ele era um dos que ajudavam levar a tumba em que a levavam. E, acabando de
a enterrar, se foi buscar uma grande ribeira, que ao longo de sua rica quinta corria, junto da
qual já outra vez, ou vezes, havia chorado as cruezas que Tomariza com ele usara, pera com
tristíssimas palavras de novo chorar a estranha mágua e saudade, em que pela morte de sua
tão querida Gurioma ficava, enchendo de compridos e altos gemidos aqueles fundos vales.
Indo assi Filomesto com sua grave dor, dando íntimos soluços de alma (que bem tinha
causa de os dar, sem ter repouso), ia ao longo daquela grande ribeira, por debaixo de uns
soutos, cobertos de espesso e sombrio arvoredo, assombrado de sua alegre vida, que tão
prestes se acabou com a sombra da arrebatada e intempestiva morte da sua Gurioma.
Com incomportável sentimento enchia tanto todos aqueles côncavos vales de seus
queixumes já tardios e de suas vãs querelas, sem esperança do remédio que era findo, sem
jamais o poder cobrar nesta vida, que, espantados os solitários Faunos e animais silvestres
com o tristíssimo tom de seu choro, alevantavam as cabeças dantre as moutas, como
pasmados e atónitos da rouca voz e pranto que fazia, dando uns ais mui altos e uns gemidos
mui sentidos, com a lembrança de sua tão crescida perda e de sua esperança já perdida.
E respondendo-lhe a ninfa Eco com os mesmos ais e gemidos (que, como ferida do mesmo
mal, sentia mais que todos a sua dor estranha), lhe começou a falar, ele bradando já fora de si,
sem tino, e ela a responder-lhe no mesmo desatinado tom desta maneira:
Ouvia Filidor estas perguntas e respostas, notando como o Eco, no fim dos primeiros
versos, respondendo a Filomesto, lhe dizia, como consolando-o em sua agonia: — “Nada
andas, vendo a quem amas que é mortal, não podia viver pera sempre, tu irás prestes, e sem
tardar mil anos”.
E muito calado, ia atentando por Filomesto, que, andando adiante um pouco espaço, até
chegar junto das claras águas, com que a ribeira por antre aquelas frescas árvores corria,
assentando-se sobre umas verdes ervas, começou a lamentar com turvas lágrimas suas secas
e já de todo findas esperanças desta sorte.
Perdi a desaventura,
achando outro amor tão doce,
mas minha triste ventura
não quis consentir que fosse
o meu bem de muita dura.
Porque estando já contente,
sendo bem aventurado,
tudo em breve foi mudado,
que abastou um mal presente
turvar todo o bem passado.
Foram-vos acompanhando,
amor meu, muitos senhores;
os curas iam cantando,
mas eu, sem cura, com dores,
curava meu mal, calando.
E esta cura me dobrava
a dor que n’alma trazia,
que, porque calando me ia,
o mal de dentro lavrava,
de fora não parecia.
E se alguém me reprendera
porque ou por quem gemia,
encobrira-me e dissera
que, pelo que outrem fazia,
também o mesmo fizera.
Antre o povo assi presente
encobrira este sinal,
que por vos ver bem mortal,
vos chorava toda a gente,
mas eu chorava mor mal.
Às gentes is acabando,
e a mim só is vivendo,
e os que vos vão enterrando,
pera vir meu mal crescendo,
vos iam meu bem prantando.
Secou-se a eles seu rio
e seu choro teve fim,
mas não foi meu choro assim,
que este grão mar, por que guio,
mar sem fim é pera mim.
Em rica tapeçaria
e em delicadas pinturas,
onde mágua se escrevia,
vi já chorar mil figuras
choro que não fenecia.
Durando tanto o chorar,
enquanto o pano durava,
cada figura mostrava
lágrimas em seu lugar,
com que sem chorar, chorava.
Filidor, que não se descuidava de seu amigo Filomesto, como o viu ir pela ribeira acima,
com tanta razão tão maguado, como escondendo-se de seus amigos e avorrecido de si
mesmo, foi logo na sua reçaga, e, encoberto, esteve ouvindo quantos queixumes ele às águas
fazia da sua esperança morta, sem lhe ficar remédio, nem conforto; e, pelo consolar ou desviar
que não fizesse de si com a sobeja dor algum desatino, acabada a lamentação que ouvistes,
antes de o ver alevantar donde estava, se foi assentar junto dele, com muitas lágrimas,
dizendo:
“Bem sei, senhor Filomesto, que sabeis que o vosso nome quer dizer amador triste, e pois
assi vos caiu por sorte o nome, não vos queirais agora tanto desconsolar da obra dele, que
venhais ser amador doudo. Não há bem, nem alegre coisa já que dure. Desaparecem os
contentamentos da vida, como ligeiros raios e, ainda que tragam consigo uma súbita mostra de
clara luz, logo ficam trevas. Todos os contentamentos têm seus descontos de tristezas; e,
senão, seja-me testemunha o pavão, contente com sua alegre roda, cheia de tantos e tão
fermosos olhos, pois, só com dois vendo seus feios e tristes pés, a desfaz tão prestes. Já nos
não deviam espantar tristezas, pois tanto tempo há que se costumam, porque, logo quando o
mundo foi criado, Eva, nossa mãi, as começou no seu choroso nome, e as começam também
ter todos os mortais na voz com que em meninos, nascendo, logo vêm chorando; até o terceiro
homem nascido nele se chamou Choro, que isto quer dizer Abel. E as coisas que nos vêm por
tão longa e antiga herança, e tidas por tão confirmado título de nossos antigos pais e
avoengos, não devíamos nós querer tirá-las de sua posse, com sofrermos os nojos e tristezas,
como estranhos, pois eles nos são tão próprios e naturais; e prescreveu já a posse, que em
nós e em nossos antepassados tem tomada, desde o princípio do mundo até o cabo dele, em
que quase já estamos. Se pudéramos (como o leão faz ao filho morto) ressuscitar a Gurioma,
enchêramos estes ares de inumeráveis brados e gemidos; mas, pois isto não nos é possível,
nem o merecemos, por quem somos, devíamo-nos de conformar com a vontade divina, pois os
trabalhos, que de sua mão nos vêm, são mercês não pequenas, se as soubermos conhecer e
entender por tais, pondo à parte a afeição que a nós e a nossas coisas temos. Não podemos
mais fazer por um amigo do que faríamos por nós mesmos, e pois o Filho de Deus não quis,
nem tomou pera si mais do mundo que trabalhos, tristeza e choro, claro está que tem por maior
seu amigo aquele a quem os dá nesta vida mais crescidos, porque como Ele nos criou pera
outra, que é perpétua e sem sobressalto de desgostos, não nos quer tão pouco Deus, que é
todo Amor, que nos queira dar o descanso e contentamento nesta; antes, porque pera os seus
amigos guarda toda a principal paga pera lá, no Céu, que é doce pátria dos que vivem, lhe quer
dar cá todo o trabalho e desconsolação, na terra dos mortos, enquanto são caminhantes nela;
e o que quiser descanso no caminho da bemaventurança parece que o não achará lá na outra
vida, que pretende, pois o mesmo Deus só trabalhos quis antre os homens e não há-de dar a
seus amigos mais do que pera si tomou na Terra. Façamos logo, senhor Filomesto, força a nós
mesmos em aceitar com paciência o que vem da mão de sua misericórdia, pois não está nossa
salvação nos trabalhos e desgostos que sofremos, senão na paciência que temos no
sofrimento deles. Por pouco tempo o havemos, como o Eco vos dizia, e pouco durarão todos
nossos desgostos e tristezas, pois pouco durará a nossa curta vida, em que os padecemos. Já
acabaram os seus os que diante de nós foram; pouco espaço nos levam os dianteiros, e tanto
mais breve do que nós cuidamos, que, quando já o vimos a acabar de cuidar, se pode chamar
descuido, porque tardamos tanto em querer ter este cuidado, tão esquecido da morte, que a
todos há-de levar e leva, dando-nos a nós mesmos vãs esperanças de prolongada vida, sendo
ela tão encurtada e breve, que, quando bem consideramos no cabo dela, vemos os nossos
antepassados ter passado e acabado com a morte e nós à sua porta, como águas, que vão
nadando sobre a face da terra, somos. Umas correm diante, outras vão detrás, e todas sempre
vão correndo; e pois, como palhas e juncos, que elas levam, vendo os nossos ir diante,
sabemos que ficamos no remanso deste mundo, pera não deixar de ir pela água abaixo ao mar
da morte, quando vier a enchente de nossos anos. Se uma enchente levou os primeiros, e nos
há-de levar também a nós, derradeiros, outra, bem será que deitemos âncora nos trabalhos
que são pesados, sofrendo-os, por amor de quem os dá, com paciência grande, e os tomemos
por lastro proveitoso, pera não sossobrar, indo leves, boiantes e alegres na tormenta, que no
dia da morte, ou do juízo, nos está esperando. E, pois somos condenados os filhos dos
homens à morte, trabalhos e desgostos, pelo pecado de nossos primeiros pais neste desterro e
vale de lágrimas, em que desde o princípio lançados fomos, e há-se de cumprir ao pé da letra,
quer queiramos, quer não, esta sentença dada; não é muito (já que Deus o deixou em nossa
mão e liberdade) que façamos virtude voluntária da necessidade forçada.”
Alevantando-se nisto Filomesto, sem responder nada, senão com ais e gemidos, se foi dali
como mudo, indo-o seguindo Filidor até onde Gurioma estava sepultada, perto daquela grande
ribeira; e, debruçando-se ali Filomesto, teve grande espaço aquentando com seu fervente peito
o frio mármore e regando suas húmidas lágrimas a seca terra, que a cobria.
E, entretanto, estava Filidor também com as suas, escrevendo um epitáfio na sepultura de
Gurioma, que assi dizia:
Alevantando-se dali, se foram ambos pera uma sua quinta, que na serra estava, onde fazia
Filomesto vida solitária, como enjeitando já o mundo que o enjeitava. E Filidor, ali perto,
escolheu vida pastoril, andando no campo, junto daquela ribeira, pastorando umas poucas
ovelhas, tendo por melhor guardar o gado que outros cuidados mundanos de mais trabalho.
Neste tempo veio ter a esta ilha um cavaleiro estrangeiro, que se chamava o Cavaleiro da
Rocha, por livrar uma fermosa donzela de uma perigosa rocha, onde em grande perigo estava
posta, e casar depois com ela.
Este, como era tão bom poeta como cavaleiro e tão cortesão como esforçado, ouvindo a
fama da poesia de Filidor, e como fugindo dos povoados andava no deserto, guardando gado
no tempo, que com o segundo terremoto, que tenho contado, se cobriu grande parte desta
terra com cinza, que o fogo, com que arrebentou a terra, fez subir ao ar mui alto e depois
chovia e tornava a cair dele sobre a mesma terra, que com ela ficava branca, como fica aquela
onde a neve cai, ainda que de cor mais parda, lhe escreveu estes versos, a que chamou
elegia, chorando neles algumas sem razões e desatinos desta maneira:
SONETO
CAPÍTULO TRIGÉSIMO
Vendo Filidor estes versos, quase determinava de não responder a eles, por ter já em
semelhantes coisas largado de todo o barco e redes; mas, por não parecer descortês a tanta
cortesia, nem ingrato ao amor que o cavaleiro da Rocha lhe mostrava, e pera o avisar também
que mais o não desinquietasse, pois já não curava das musas, lhe respondeu, só por esta vez,
estes humildes versos,
Acabando Filidor de se despedir de Calíope, dizem que viu chegar a ela no ar as outras oito
musas, e, com ela no meio, as viu tornar todas nove a fazer assento naquela alta e graciosa
rocha, onde se esconderam e encerraram, pelo que lhe perguntou uma dúvida que tinha
acerca do cavaleiro da Rocha.
E entendeu delas a reposta, como claramente se pode ver neste soneto.
Despedido Filidor por esta maneira, assi da musa Calíope, como das mais musas e do
cavaleiro da Rocha, como também neste tempo havia sucedido o falecimento de Natónio, seu
grande amigo, se foi ter com Filomesto, e (como em um romance antigo, que por fim de suas
coisas logo direi), despedidos ambos estes dois tristes amigos desta terra, enfadados do
mundo e de suas saudades, dela se foram pera muito longe, onde ninguém deles pôde mais
saber parte, nem novas, nem recado.
Quem bem considerar no discurso dos feitos destes dois amigos e o grande amor de
Filomesto, tão mal galardoado de Tomariza e tão pouco ditoso com Gurioma, posto que não
entenda juízos de Deus, entenderá tudo ser feito pera exemplo nosso: que ninguém, enquanto
vive, se pode chamar bem afortunado, senão quando os casos da Fortuna nele não têm poder,
que é depois da morte.
Parece que o nome de Filomesto era pronóstico verdadeiro de todolos seus acontecimentos
tristes.
Diziam seus amigos desta sua despedida muitas coisas, e que lá, onde quer que a terra os
tinha, dera Deus a Filomesto uma boa ventura, com que ainda fora alegre; mas certo é, e
contínua experiência temos (e ainda mal, muitas vezes, porque o não queremos acabar de
entender, posto que muitas mais o provamos), não ser, nem haver nenhuma boa ventura no
mundo que pouco ou muito, tarde ou cedo, não venha ser aguada com alguma parte de
tristura.
Outros contavam que, depois da morte de Gurioma, tanta mágua e saudade tiveram,
havendo já passadas outras muitas, que determinaram de não empregar no mundo o que da
triste vida lhe ficava, pelo que se foram ambos fazer outra vida de penitência lá nas bravas
serras dos altos montes de Arménia, onde nunca fossem vistos homens tão sem ventura.
Querem dizer alguns, e com alguma razão, que foram eles buscar aquele lugar, onde,
escapando, tomou porto a Arca de Noé no tempo do grande dilúvio, pera ver se poderiam nele
achar dela alguma távoa, em que pudessem escapar e sair a nado das grandes e importunas
tormentas de tristezas e máguas, em que muitas vezes se viram quase afogar no mar deste
mundo e desta vida.
Mas cuido eu que quem se perde em alto pego de desinquietas ondas, onde não vê a
imóvel e quieta terra dos olhos (como eles se perderam e sossobraram em tristezas altas, sem
ver nenhum descanso firme), no meio do mar ou no ventre de algum peixe faz a sua triste casa
e morada pera sempre. E já que alguma sua ventura os trouxesse apegados em algum pedaço
de távoa de esperança, seria pera mor desaventura dos coitadinhos, no tempestuoso e
tormentoso mar deste mundo, o seu nadar, nadar, e vir por fim morrer à praia, sem prazer, sem
remédio e sem ventura, cheios de tristíssimas saudades da esperança de algum descanso ou
contentamento, que nunca tiveram, e quanto procuraram e desejaram ter, até morrer sem ele.
E este é, senhora, o romance, que da história do sem ventura Filomesto se cantava naquele
antigo e triste tempo, cheio de tantas máguas e saudades.
obra do encantador;
pôs-se em vossas mãos Grimaldo,
gigante d’alto grandor,
casai-lo com Mirabel,
sendo d’antes ofensor.
E qualquer de vós foi tido
por ladrão salteador,
mas os vossos sobressaltos
são de amoroso teor.
Indo depois ver Narfendo,
o fizestes vencedor
de um rei seu inimigo,
mais poderoso senhor,
mas mais quer ele só ver-vos,
que ver-se triunfador;
presto se acaba seu gozo,
pois o deixais no melhor.
Tornais outra vez tentar,
se tem amor outra cor,
se vos ama Tomariza,
de deixou já seu rancor.
Vendo que não vos amava,
amais outra dor maior,
a fermosa Gurioma,
que, morta, vos dá mor dor;
dentro na tumba a levastes,
por ser dissimulador
da gram mágua que passáveis,
sendo seu sepultador.
Fugindo d’antre a gente,
por chorar com mais rigor
vossa mágua tão crescida,
que não pode ser maior,
encontrastes no caminho
o Eco respondedor;
depois, falais com as águas
do ribeiro corredor;
chorando lágrimas tristes,
vos ouvia Filidor;
querendo-vos consolar
não quereis consolador;
ides mudo à sepultura,
onde se poos seu louvor.
Desterrai-vos desta terra,
Lá vos sigue Filidor,
fazer outra vida santa,
com que louveis ao Senhor;
dizem lá terdes ventura,
se aguada com mal não for,
porque quem nasceu sem ela,
e dela merecedor,
pouco lhe vale merecê-la,
se não acha seu favor;
vem assi ser abatido
o que é digno de louvor,
e vai alcançar o prémio
o baixo vil sem primor;
e pois já não tem valia
o que tem todo valor
e vemos ser enxalçado
o indigno inferior;
mais vale onça de ventura
que quintal de sabedor.
De Cupido vos queixastes,
que vos foi cru e tredor.
Tanto sempre lamentastes,
que sois outro Lamentor.
Esta paga dá o Mundo
a qualquer seu servidor;
Tudo enfim são saudades
deste mundo enganador.
Quem contará vossas máguas,
amigo de Filidor?
Vossas coisas, Filomesto,
quem as contará com dor?
Acabada a triste história destes dois amigos desta ilha de São Miguel, com amigas palavras
e húmidas lágrimas, cheias de saudades do que deles contei, e às vezes com silêncio,
considerando a miséria da vida humana e vaidade de seus pensamentos, honras e gostos, que
tão tristes fins deixam, enfastiadas da mesma vida, nos chegamos à grande ribeira, em cujas
margens, colhendo dos agros agriões e aprazíveis rabaças, por serem ervas nascidas e
criadas nas águas (como em lágrimas são envoltas todas as coisas do Mundo), as comemos
ali, bebendo das águas em que elas se criaram, auguando-as (sic) também com as dos nossos
olhos tristes.
E, assi, tristemente, nos recolhemos à triste e escura cova, com tristíssimas palavras
passando a noite quase toda até que, amanhecendo, tornadas ao longo da mesma ribeira,
como os dias atrás passados fazíamos, me pediu a Fama que, antes de passar adiante, a ver
as outras Ilhas de Baixo, lhe desse alguma notícia delas, para melhor as saber ver e notar o
que nelas havia, o que eu de boa vontade brevemente fiz, desta maneira dizendo.
APÊNDICES
LIVRO QUINTO DAS SAUDADES DA TERRA
Apêndices
SAUDADES DA TERRA Livro Quinto
PRIMEIRO
Rodrigo
Juan pastor
Ya no curo de riquezas,
ni se me dá por hacienda,
tanto quiero esta contienda,
que me aplacen sus tristezas;
mis manjares son crudezas,
y con ellas quiero ser
tributario a mi querer.
Rodrigo
Juan Pastor
Rodrigo
Juan Pastor
Rodrigo
Juan Pastor
Ya no manda la razón,
aunque ésa es la verdad,
mas manda la voluntad,
que nos puso en sujeción;
de aquí nace mi pasión,
de mi voluntad querer
dejarse de amor vencer.
La razón es sujetada
con todos nuestros sentidos.
para ser todos regidos
por la voluntad dañada;
ya razón es olvidada,
voluntad tiene el poder
para hacer y deshacer.
Rodrigo
Juan Pastor
Si al princípio no podemos
desasirnos de este lazo,
después con muy poco plazo
más enlazados nos vemos;
y ya cuando conocemos,
que nos vamos a perder,
no es posible volver.
Rodrigo
Juan Pastor
Rodrigo
Juan Pastor
Mi ganado y mi cabaña,
con lo que dentro hallarás,
para ti lo tomarás
que yo no vivo hasta mañana,
y si paso esta semana,
so bien cierto que ha de ser
para más mal padecer.
Rodrigo
Juan pastor
Rodrigo
Canción de Rodrigo
SEGUNDO
TERCEIRO
NOTAS
(1) “Archivo dos Açores”, vol. I, pág. 428 e “Bibliotheca Açoreana”, vol. I, pág. 149.
(2) O Dr. Ernesto do Canto publicou este soneto no “Archivo dos Açores”, vol. I, pág. 430, e apôs-lhe a seguinte nota,
respeitante aos últimos quatro versos: “Para melhor inteligência, veja-se: Ordenações de D. Affonso V, L.º 1.º, tit.
63.º, pág. 361 e 362 do tomo I”. Também o publicou na “Bibliotheca Açoreana”, vol. I, pág. 430. Em 1896, Joaquim
de Araújo havia-o publicado em Pádua, conforme se lê na “Notícia bibliográfica das Saudades da Terra”, Livro III,
ed. de 1922, pág. CXCV.
A propósito deste soneto, diz João de Simas que “constitui uma nota bem curiosa por se tratar de uma das
raríssimas homenagens dos contemporâneos ao cantor do “Peito Ilustre Lusitano” e acrescenta que foi bem injusto
Aquilino Ribeiro quando no seu trabalho sobre Camões não citou Frutuoso “entre os mais do que escassos
admiradores contemporâneos do épico”, com a agravante de que conhecia o soneto, pois fora reproduzido por
Teófilo Braga em livro por ele consultado e citado. (Vid. “Correio dos Açores”, 6 de Agosto de 1950).
(3) Já em 1922, João de Simas previa que este Livro V poderia fornecer qualquer esclarecimento sobre a
diferenciação entre Bernardim Ribeiro e Cristóvão Falcão, os quais naquela época se procurava confundir
literariamente. (Notícia bibliográfica das “Saudades da Terra”, Livro III, ed. de 1922, pág. CXXXIX).
(4) “Notícia biográfica do Dr. Gaspar Frutuoso”, no Livro III das “Saudades da Terra”, ed. de 1922, pág. XLV.
(5) Desconhece-se onde e quando Frutuoso se doutorou. O Padre António Cordeiro diz que o doutoramento se
realizou em Salamanca, mas nos arquivos respectivos nada consta acerca de ter sido ali conferido esse grau, bem
como o precedente de licenciado. O mesmo acontece em Coimbra, onde Ernesto do Canto estendeu, sem
resultado, as suas pesquisas. Segundo Rodrigo Rodrigues, resta a hipótese de se ter doutorado na Universidade
de Évora, de que só há registos de 1569 em diante.
(6) Vid. “A Margarita Animada”, de F. A. de Chaves e Melo, ed. de 1723, pág. 343, obra citada por Rodrigo Rodrigues
(Vid. Livro III das “Saudades da Terra”, ed. de 1922, pág. XXV).
Para melhor conhecimento da personalidade literária do Doutor Gaspar Frutuoso, recomenda-se a leitura dos
trabalhos de Rodrigo Rodrigues e João de Simas, publicados no Livro III das “Saudades da Terra”, ed. de 1922; do
cap.º VII do Prefácio do Livro I das “Saudades da Terra”, da autoria de M. M. Velho Arruda, e ainda dum breve
estudo sobre Cronistas Açorianos do Dr. Baptista de Lima no vol. I do “Boletim do Arquivo Distrital de Angra do
Heroísmo”.
7
( ) Apenas na edição do Livro II, dirigida pelo Dr. Damião Peres e publicada em 1925, se observam falhas importantes
e isto porque ela se fez com base no apógrafo da Biblioteca da Ajuda, que tem vários capítulos truncados.
(8) Somente no apógrafo da Biblioteca dos Duques de Cadaval em Muge se encontram trasladados os primeiros nove
capítulos.
(9) Vid. “Les Filigranes”, de Briquet.
(10) Vid. “Correio dos Açores”, Agosto de 1950.
(11) “Archivo dos Açores”, vol. IV, pág. 24.
(12) Notícia bibliográfica das “Saudades da Terra”, Livro III, ed. de 1922, pág. CXXXVIII.
(13) Vid. “Archivo dos Açores”, vol. I, 405.
(14) Vid. “Notícia biográfica do Dr. Gaspar Frutuoso“, Livro III, ed. de 1922, pág. XXII.
(15) Vid. “Notícia biográfica do Dr. Gaspar Frutuoso”, Livro III, ed. de 1922, pág. LXI e LXII.
(16) Cfr. Prefácio do Livro III das “Saudades da Terra”, ed. de 1922, págs. XI-XII.
(17) Cfr. Prefácio da ob. cit. pág. XXIX.
(18) Cfr. Prefácio da ob. cit. pág. XXIII.
(19) Cfr. Prefácio da ob. cit. pág. XLVII.
(20) Cfr. Prefácio do Livro III, pág. XXVIII.
(21) Cfr. Prefácio Gaspar Frutuoso — Livro I das “Saudades da Terra”, pág. 1.
(22) Cfr. Prefácio do Livro I das Saudades da Terra, pág. XXXV.
(23) Cfr. Rodrigo Rodrigues - Prefácio do Livro III, pág. XIV.
(24) Cfr., a propósito, João Bernardo Rodrigues - Prefácio do Livro VI.
(25) Cfr. Prefácio do Livro III das Saudades da Terra, pág. XLI.
(26) Cfr. ibidem.
(27) Cfr. Teixeira Rego, in História de Portugal, edição de Barcelos, Terceira Época, Quarta Parte - Cap. III.
(28) Cfr. Monteiro Arruda, Prefácio do Livro I das Saudades da Terra, pág. XIV.
(29) Cfr. Gaspar Frutuoso, Livro V, pág. 119.
(30) Cfr. Gaspar Frutuoso, Livro V, pág. 130.
(31) Cfr. Gaspar Frutuoso, Livro V, Cap. 23, pág. 130.
(32) Cfr. Gaspar Frutuoso, Livro V, Cap. 23, pág. 130.
(33) Cfr. ibidem, pág. 134.
(34) Cfr. ibidem.
(35) Cfr. Gaspar Frutuoso, Livro V, Cap. 23, pág. 15.