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“Ao faminto pertence o pão que se estraga em tua casa”

BASÍLIO MAGNO, UM PROFETA PARA O NOSSO TEMPO


José Carlos de Souza
Cenas de um trágico cotidiano
Sempre me impressionaram as palavras do poema “O Bicho”, de Manoel Bandeira, pela
descrição dolorosamente realista de uma cena que, com freqüência indesejável, se repete
em nossos dias:
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava, nem cheirava
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Episódios como esse são comuns nas grandes cidades, porém, a fome está
espalhada em todas as partes do globo terrestre. Estima-se que mais de 2/3 da humanidade
sofram de fome endêmica. Com efeito, 60% da população mundial consome menos do que
2200 calorias diárias, bem aquém da quantia considerada adequada (2700 calorias) Além
disso, essa alimentação é paupérrima em termos de vitaminas e proteínas. O resultado não
pode ser coberto com expressões que não passam de eufemismo, tais como subnutrição,
subalimentação, etc... Trata-se mesmo é de fome! Além do aspecto crônico e estrutural, a
fome, muitas vezes, assume um caráter agudo e trágico como conseqüência de catástrofes
naturais. Contudo, também nesse caso, o seu efeito devastador deriva-se mais da ação
humana do que do impacto das forças da natureza: guerras, políticas econômicas
irresponsáveis, ausência de solidariedade. Fotos de mães magérrimas com crianças
esqueléticas, em postos de ajuda humanitária da ONU, sempre aparecem no noticiário
internacional. Nesse exato momento, se prevê que a estiagem prolongada e a guerra civil
levarão 4 milhões de pessoas, no Sudão, a morrerem de fome e inanição. Nesse contexto,
devemos interrogar sobre o papel da Igreja e dos cristãos.
Aprendendo com a história da Igreja
Desafios dessa natureza têm recebido as mais diferentes respostas ao longo da
história cristã. Há, por exemplo, quem dissocie o compromisso evangélico dos grandes
dramas humanos, sustentando o mais completo espiritualismo. Outros, por sua vez, se
entregam a um intenso ativismo, embora nem sempre procurem correlacionar os seus
esforços para superar o sofrimento à sua profissão de fé. Constatamos, ainda, a existência
de cristãos e cristãs para os quais a busca de Deus encontra-se intimamente integrada à sua
luta para superar o problema da fome. Entre estes, é preciso destacar a presença de Basílio
que os seus contemporâneos, com justiça, cognominaram de Magno (= Grande).
Monge, pastor e bispo
Basílio (329-379) nasceu na próspera cidade de Cesaréia, capital da Capadócia,
Ásia Menor, na região hoje situada na Turquia Central. Descende de família nobre e
Basílio Magno, um profeta para o nosso tempo – José Carlos de Souza 2

abastada, cuja piedade cristã fora comprovada tanto nos tempos de perseguição (o seu avô
materno foi mártir) como nos tempos de paz, por muitos exemplos de vida santificada. O
próprio Basílio distingue-se como testemunha ocular do que significou, para o
cristianismo, a chamada virada constantiniana. O apoio do Estado romano não apenas
trouxe benefícios como representou novos perigos para a vida e a missão da Igreja. Mais
tarde, como bispo, Basílio não temerá enfrentar o poder constituído, quando o Imperador
Valente tentar impor o arianismo, controlar as igrejas e silenciar as suas lideranças
autônomas.
A sua sólida formação nos melhores centros culturais da época, Cesaréia,
Constantinopla e Atenas, que lhe teria assegurado sólida carreira secular como professor de
retórica, serviu-lhe, na condição de pregador e bispo, de instrumento para aprofundar e
divulgar a fé evangélica, razão pela qual sempre defendeu uma posição mais tolerante e
aberta com relação à cultura grega clássica: “Devemos imitar as abelhas: sugar o mel e
deixar o veneno”. De qualquer modo, ao ser “despertado de um sono profundo” e
converter-se em 356, recebeu o batismo, procurando, em seguida, conhecer a vida singela
dos monges no Egito, Síria e Palestina. De retorno à cidade, renunciou a seus bens,
distribuindo sua fortuna entre os pobres. Posteriormente, irá regulamentar a vida religiosa
através de suas Regras Monásticas, acentuando, sobretudo, a importância da dimensão
comunitária e diaconal. Tendo recebido a ordenação sacra, no ano de 364, dedica-se às
tarefas pastorais, revelando aguçada sensibilidade para a sorte dos empobrecidos e grande
firmeza teológica, qualidades que susterá quando assumir a cátedra episcopal em 370, após
a morte do Bispo Eusébio de Cesaréia. Serão 9 anos de profícuo ministério episcopal ao
longo dos quais se destacará como defensor da ortodoxia nicena. promotor da causa dos
pobres, divulgador do ideal monástico, grande liturgo, profeta e teólogo. As suas obras,
especialmente as suas homilias e correspondência, oferecem um rico retrato de sua época
tanto quanto evidenciam o seu zelo pastoral.
Sermões em Tempos de Fome e Seca1
Antes mesmo que Basílio fosse eleito bispo, a região da Capadócia viveu uma
conjuntura extremamente difícil. Um período prolongado de seca; uma política fiscal que, a
pretexto da defesa de fronteiras, extorquia os camponeses; uma aristocracia latifundiária
que se aproveitava das circunstâncias para expandir as suas propriedades; tornavam a vida
no campo praticamente impossível. A parca colheita acabava ficando em mãos de
atravessadores que especulavam com o preço dos produtos agrícolas, elevando o custo de
vida. Para não ver a família perecer de fome, os pais se viam obrigados a vender os filhos
como escravos. A situação não era muito melhor nos centros urbanos. Também sobre os
artesãos e trabalhadores independentes recaíam pesados impostos. Na base da pirâmide
social, estavam mendigos, leprosos e escravos. A bem da verdade, praticamente inexistiam,
do ponto de vista social, camadas intermediárias. Enfim, os donos do poder econômico,
proprietários de terra e usurários, desenvolveram um autêntico sistema de opressão que as
autoridades políticas, por fragilidade ou cumplicidade, não pretendiam coibir.

1
Sobre as questões sociais, destacam-se, em particular, quatro sermões de Basílio proferidos em
fins dos anos 360: Sobre o Salmo 15 (Contra os Usurários); Sobre os ricos, com base em Mt
19.16-26; Sobre a avareza (Lc 12.16-21); e Sobre os tempos de Fome e Seca (Am 3.8). Os
argumentos construídos a seguir têm por base esses textos que se encontram traduzidos para o
português, de forma integral ou selecionada, em diversas antologias. Diversas obras sobre Basílio
também foram utilizadas, entre as quais, ressaltamos: SIEPIERSKI, Paulo D. A “leitourgia”
libertadora de Basílio Magno. São Paulo: Paulus, 1995.
Basílio Magno, um profeta para o nosso tempo – José Carlos de Souza 3

O fermento novo do Evangelho não havia ainda despertado uma prática social
diferenciada, mas um cristianismo paganizado já acobertava a insensibilidade e a injustiça.
Basílio desmascara essa falsa espiritualidade: “Quanto mais abundante é a tua riqueza,
mais deficiente é a tua caridade (...) Conheço muitos que jejuam, oram, gemem, praticam
todas as obras piedosas que não prejudiquem seus bolsos e que, ao mesmo tempo, nada
dão aos infelizes”2 . Muitos, aliás, eram os que traficavam com fome do povo e
enriqueciam com a desgraça alheia. Basílio não os poupa: “Não imponhas maior preço às
coisas necessárias. Não suportes a carestia do trigo, sem abrires o celeiro (...) Fome por
causa do ouro é inadmissível, bem como a indigência de muitos causada por tua
abundância. Não te tornes um traficante das desgraças humanas...3. Com certeza, Basílio,
ao discorrer sobre o rico da parábola (Lc 12.16-21), descreve a aristocracia de seu tempo
em seu insaciável desejo de acumular: “Preferem arrebentar-se pela voracidade a dar as
sobras aos indigentes” (idem, p. 14). Nada lhes basta: “... saciedade não existe, não se
descobre fim da ambição” (idem, p. 17). Não apenas os celeiros dos ricos encontram-se
trancafiados, mas igualmente os seus corações. Eles se mostram incapazes de se colocar no
lugar do outro. Em face dessa realidade, o pregador se interroga: “Como hei de conseguir
pôr diante de teus olhos os sofrimentos dos pobres, (...) dos famintos?” (idem, p. 16, 21).
É bom assinalar que, ao expor a condição dos pobres, Basílio não faz conjecturas.
Como pastor, que rompeu com sua classe social, ele conhece muito bem as privações e a
dor dos pobres. É impressionante o retrato que faz da fome, considerada a maior das
calamidades humanas: “A fome é um mal lento, que prolonga a dor. É uma doença
crônica, encravada em sua toca, uma morte sempre presente e quer nunca chega.
Consome a umidade natural, esfria o calor, reduz o volume e esgota as forças pouco a
pouco...”4. Aqueles que podem remediar, pela partilha e solidariedade, esse mal e, mesmo
assim, se recusam a fazê-lo por simples ganância, devem ser condenados como homicidas.
Afinal, o pão que é retido, a roupa que embolora nos armários, o sapato que apodrece sem
uso, o dinheiro que é enterrado, nas mansões dos ricos pertencem aos necessitados.
A essa altura, se revela um aspecto essencial no pensamento de Basílio: a fome e a
pobreza são frutos da avareza e da cobiça dos ricos que se apropriaram indevidamente
daquilo que Deus destinou a todos. “É como alguém que, no teatro, se apoderasse do
espetáculo e quisesse excluir os que entrassem depois, pretendendo ser só seu aquilo que é
comum a todos que se apresentam, conforme lhes parece bem”5 Até os animais se
comportam de forma mais inteligente na medida em que usam o produto da terra em
comum. A apropriação privada e a ignorância quanto ao sentido social dos bens semeiam a
injustiça e a desigualdade. Retida a riqueza é prejudicial e inútil; ao circular, beneficia a
todas as pessoas. O ideal de uma sociedade fraterna, que supera a miséria, é possível: “Se
cada um tirasse para si o que lhe é necessário e entregasse ao indigente o que sobra,
ninguém seria rico, ninguém seria pobre” (ibidem).

2
Homilia VII, citada em SANTA ANA, Júlio de. A Igreja e o Desafio dos Pobres. Petrópolis:
Vozes/Tempo e Presença, 1980, p. 109.
3
Homilia sobre a palavra do Evangelho segundo Lucas “Destruirei meus celeiros e construirei
maiores” e sobre a avareza, In: Os Padres da Igreja e a Questão Social. Petrópolis, Vozes, 1986,
p. 15.
4
Homilia em tempo de fome e seca in LEURIDAN, Juan & MÚGICA, Guilhermo. Por que a Igreja
critica os ricos?. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 90.
5
In: Os Padres da Igreja e a Questão Social. Petrópolis, Vozes, 1986, p. 20.
Basílio Magno, um profeta para o nosso tempo – José Carlos de Souza 4

Basílio não ficou só no discurso. Eleito bispo, propôs mudanças legais, interviu em
favor dos pobres diante dos poderosos, liderou campanhas contra a fome, e até organizou
na periferia de Cesaréia uma nova cidade que o povo aprendeu a chamar de Basilíada, com
albergues para peregrinos, abrigo para pessoas idosas, sopa popular, hospital com ala
reservada às doenças contagiosas, igreja e alojamentos para os trabalhadores. Como se não
bastasse, estimulou outros bispos a fazerem o mesmo. Numa sociedade consumista, como a
nossa, assentada na cultura da acumulação a qualquer preço, cínica e insensível diante da
fome e da miséria, a atuação e as palavras de Basílio ecoam como um verdadeiro
chamamento profético à defesa da vida.

Texto publicado em Mosaico – Apoio Pastoral. São Bernardo do Campo: Faculdade de


Teologia da Igreja Metodista – Centro de Teologia e Filosofia da UMESP, Ano VI, no 8,
Maio /Junho de 1998, p. 12-13.

Bibliografia sobre Basílio


Boletim do CEPAMI. nº 07 (dez/95) - nº 09 (mar-abr/1996) e nº 10 (ago/1996).
COLA, Silvano. Operários da Primeira Hora. São Paulo: Cidade Nova, 1984, p. 39-44.
DREHER, Martin N. A Igreja no Império Romano. São Leopoldo: Sinodal, 1993, p. 79-89.
GOMES, Cirilo Folch. Antologia dos Santos Padres. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 233-244.
GUIMARÃES, Marcelo Rezende. Conversando com os Pais e Mães da Igreja. Petrópolis:
Vozes, 1994, p. 54-57.
HAMMAN, A. Os Padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 129-141.
_____. Para ler os Padres da Igreja. São Paulo: Paulus, 1995, p.113-118.
HINSON, E. G. & SIEPIERSKI, Paulo. Vozes do Cristianismo Primitivo. São Paulo: Temática
Publicações, s/d.
LEURIDAN, Juan & MÚGICA Guilhermo. Por que a Igreja critica os ricos? São Paulo:
Paulinas, 1982, p. 88-90, et passim.
MARA, Maria Grazia. Riqueza e Pobreza no Cristianismo Primitivo. São Paulo: Loyola,
1992, p. 55-58, 151-165.
MEULENBERG, Leonardo. “A Questão Social no Tempo da Igreja Antiga”. In: A Insurreição
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Os Padres da Igreja e a Questão Social. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 11-21
Pobreza e Riqueza. São Paulo: Cidade Nova, 1989, Cadernos Padres da Igreja vol. 1.
QUASTEN, J. Patrología. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, v. II, 1962, p. 213-47.
SANTA ANA, Júlio de. A Igreja e o Desafio dos Pobres. Petrópolis: Vozes/Tempo e
Presença, 1980, p. 99-115.
SIEPIERSKI, Paulo D. A “leitourgia” libertadora de Basílio Magno. São Paulo: Paulus,
1995.
Sobre o tema da fome
CNBB. Pão para quem tem fome. Campanha da Fraternidade (Texto Base), 1985.
IDÍGORAS, J. L. Vocabulário Teológico para a América Latina. São Paulo: Paulinas, 1983.

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