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Janeiro 2004
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Frío inverno
Caminhando num ponto intermeio
entre o azul eterno e claro
e o mar de névoa que inunda
as terras dos cigurros,
coa pele curtida polo nordés
e o coraçom embalsamado
num perfeito stand by.
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Literatura, pura vida
Adicar-se
a contar os dias que passam,
sem que ocorra nada digno de mençom.
Adicar-se
a esperar sem voltar-se tolo.
Resulta difícil
estudar literatura, arestora.
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O pesso do eu
Coa força dum cavalo moribundo
que tira dum carro no médio do deserto,
coa ilusom dum obreiro fordista,
coa impotência dum anciám lascivo,
co desejo dum insatisfeito,
coa impaciência dum recém,
assim, vagando coma umha fantasma
de ósos, carne e pensamento.
Desmaterializar-me,
afundir a minha voz num coro,
agochar no barulho o meu silêncio,
desaparecer estando aí, descansar,
abandoar a individualidade, ser qualquera,
ser nengúm num espaço sem tempo...
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Espelhos rotos
Eta bada arrazoi bat
biak aldekotzat ukaiteko:
hazi egiten bait dugu itsasoa gure malkoez
eta, halabar, haizea gure hasperenez...
J. Sarrionandia, "Irlandar herriaren aldekoak"
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Fevereiro 2004
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Noite de licor café
a noite-enorme
tudo dorme
menos teu nome
Paulo Leminski
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De volta de umha viagem iniciática
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Fantasma da velha toupa
Las cosas son como son. Hasta que dejan de
serlo.
Justo de la Cueva Alonso
Abriu-se o melom.
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Março 2004
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Hipóstase
Pode-se nom perceber nada na superfície, mas
nas profundezas o inferno está em chamas.
Y. B. Mangunwijaya
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Reflexons lutuosas
A pesadume:
Apagam-se as verbas.
Arestora nom significam rem
e pola contra nom é hora de calar.
A raiva:
Hoje morreram
coma todos o dias
os inocentes, os irmãos, nós...
A consciência:
A história:
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Erupçom abortada
Triste sino de gerações:
perdendo o medo de trepar
descobrimos o medo de amar.
U.Tavares "Vale de lágrimas"
Deconstruçom. Palavras-totem.
A vertigem, o ar sobe maino
desde os pulmons e...
Silêncio. Tempo-espaço.
A chuva, um paráguas de aço,
a mirada no solo...
O pulso freia,
e as veias protestam
porque lhes gostava sambar
ao som dos botes do coraçom.
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Idade de pedra
Sentei ao solpor
perante umha alfombra azulada
cheia de purpurina dourada,
e ali, na branca farinha fina,
dei em meditar
nas tecno-palavras,
na turbo-linguagem...
(Invoco a Maiakovski
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para que indique o caminho)
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Querido diário
Querido diário:
Hoje figem-me mais perguntas do que o normal. Sucede que os dias que
nom saio da casa os meus neurónios só recebem, numha atmosfera
carregada, oxigênio viciado pola ausência do ar entrópico, libertador. E
trabalham a um ritmo certo, suave, algo idiota, perdido. E comecei a pensar
nas raízes que mantenhem em pé esta árvore que chamo eu. E vim-nas
todas ensangüentadas, ilotizadas, morrinhentas, saudosas da calor e a
humidade da terra. Seguiam coma sempre. Dolorosas. Nom pode ser doutro
modo. Raivosas. Assim mo impuseram. Sei mui poucas cousas certas. Já
nom me resta nengum castelo para derrubar. Já só podo proteger-me das
inclemências deste tempo desalmado cum pequeno, insuficiente cartom. E
neva, e chove, e gela e o cartom quase sempre nom cumpre a sua funçom
totalmente. É o momento da imaginaçom, mas também o da ciência. Por
isso, às vezes reforço a acçom do cartom refugiando-me nas ruínas dalgum
velho castelo queimado. Sempre perto da saída, dalgumha antiga porta, da
dúvida permanente, nom vaia ser mal refugio e tenha que botar a correr,
nom vaia equivocar-me. E pinto poemas, e debuxo análises nesse cartom
no que me escudo, às vezes até penso que eu sou esse cartom, e às vezes
ele também o pensa e converte-se num espelho que me devolve a minha
imagem. Sempre procuro limpar bem os lentes para que a minha visom
nom esteia alterada pola poeira e a lixeira duns cristais. E hoje dei a pensar
em todo isto de novo. Coma sempre que nom saio da casa e nom me dá o
ar, e nom vejo nenés jogando num parque, nem ancians sentados,
acarinhados num seram qualquera. Coma sempre que esqueço por quê
pensei todo isto já algumha vez. Mas hoje foi, em parte, distinto. Hoje
umha anjo levou-me a contrária. Reprimi coma puidem o meu desejo
sexual, quando a vejo nom podo evitar pensar nesse cu incendiário, nessa
pele quente, nesses lábios carregados de prazer. Coma quase sempre que
penso nela. Mas hoje a minha anjo querida traia-me umha mala nova. O
meu destino, dizia, está escrito. Por isso precisamente deixara de crer em
deus, em todos os deuses havidos e por haver. Assim está escrito no cartom
co que me protejo desque me converti em pessoa. Nesse cartom que às
vezes é espelho e às vezes brújula. Nom podo perder a minha brújula. Eu
sou a minha brújula. Perdé-la é perder-me. Mas duvido. Sempre o faço,
continuamente. E penso: Quê passaria se ao cruzar a porta nom houvesse
nada? Se depois de subir à cuínha mais alta nom se vê a paisagem? Quê
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contariam os montanhistas que subiram ao Evereste? Quê passaria se vou à
habitaçom secreta e atopo o leito ausente? E o meu anjo, à que eu tanto
quero e desejo, escacha de riso coa minha dúvida. Normal, a religiom é fé
cega, e nom pode entender a luz da dúvida na escuridade permanente, esse
valor, essa imprescindibilidade. Os cegos nom podem compreender a
maldade da escuridade. E duvido: O quê passaria se o preço da dignidade
fosse a infelicidade? Mas se nom é imaginável umha sociedade livre
prenhada de escravos tampouco o é umha dignidade infeliz. O que me
preocupa, embora, nom é que seja imaginável, que nom o é, senom que
poida ser experimentável, real, vivível. A luz da dúvida guiou-me numha
viagem iniciática, todas o som em parte, à terra dos meus castelos, dos
meus medos, ao ermo, campo de batalha do eu, do super-eu, do
inconsciente, da infra-estrutura, da superestrutura, do eu adulto, do eu neno,
do eu padre, da sobre-determinaçom, da contradiçom principal, e das
secundárias... À terra queimada que constitui a minha pátria íntima. E
atopei um castelo tam só meio derrubado, tam só meio queimado. O
eslabom feble da cadeia. O castelo do amor. Tenho que deconstruí-lo. Nom
para estar mais seguro porque terei um lugar, umha fé, menos onde
resguardar-me... Talvez, só, talvez, para ser mais livre porque o amor que
este castelo apresenta está feito de renúncias e de grilhetes. Roubarei
dinamita e botarei abaixo esse castelo. Juro que nom voltarei a namorar-me
até que amar nom seja fazer, livre e respeituosamente, porque nesse caso
derramo amor por todos os lados, porque entom o amor é um outro nome
que utiliza a dignidade nalguns âmbitos. Libertar é, nesse caso, um acto de
amor. Mas nom creio que o amor seja isto último... Resulta inverosímil
neste puto mundo.
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Abril 2004
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Abril de 2004
Només es troba
qui es pregunta.
M. Garcia Grau, "Enmig les hores hem perdut no sabem
què"
A DÚVIDA
Pergunto-me
de que serve maldizer
aos rios
se nom tenho a coragem
de navegá-los.
O RAZOAMENTO
A INTENÇOM
Hei deixar
de maldizer circunstâncias
para construir
umha barquinha que cruze
os rios.
O FRACASSO?
(Baldeiro, ainda)
A DECEPÇOM?
(Possível, ainda)
A CERTEZA
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Maio 2004
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Sem rumo
amar es suicidarse
F.López de Artieda, "El Amor"
Assusta-me
o teu baile truncado.
Anoja-me
o teu baile truncado.
A nena indefesa,
essa que te habita
agocha-se nas longas travessias
insomnes
sem objecto e sem calma.
Dói-me
o teu baile truncado.
Acaba
com esse baile truncado.
Baila!
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sei-no, inexoravelmente,
nas antípodas da minha vida.
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Julho 2004
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Humidade
La sangre tiene dedos y abre túneles
debajo de la tierra
Pablo Neruda, "Maternidad"
Agita-se a veleta,
pintam as paredes de roupas
e de gemidos dumha cama habitada,
amamanta ao seu retonho
umha mai primeriça
namentres ardem os caminhos
que levam às antípodas
das suas mãos.
O ar fede a salitre
esnaquízam-se em mil cristais
todos os silêncios, suor coma rios,
aranhas de cinco patas
percorrem montanhas e vales
da sua pele tersa e suave
deixando trás delas umha capa de mel,
suor, sémen e saliva.
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Lousa
Morreu a lua nova
e apagou o sol de poente.
Encaramado a um suspiro,
asemade,
desde as alturas da sola de uns sapatos
observar
como caem os cascotes
no desfiladeiro do derrubo.
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Setembro 2004
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Spoon River à feira
In memoriam Edgar Lee Masters, autor de
Spoon River Anthology (1915)
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nom me deixa dormir-
e nada mais sou umha sombra
que lamenta nom poder
passear a língua e as mãos
por essas partes socialmente
reprováveis do seu corpo.
Podo, no entanto,
escrever o meu epitáfio:
"Eiquí jaze um que passava por aquí"
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Novembro 2004
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Demissom
Pido perdom.
PIDO PERDOM
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esta merda de poema,
só abraçá-la
tratando
de nom perder
o sentido de realidade.
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