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O meu pai, como a maioria dos pais, irmãos mais velhos, e alguns avós, foi combater.
As crianças e as mulheres, os velhos e os doentes, ficaram em casa, aguentando-se o
melhor que podem.
À noite, da minha janela, consigo ver o rasto branco do fogo no céu e o brilho laranja
dos morteiros. E faço de conta que estou a ver estrelas cadentes e meteoros. As ruas da
nossa cidade estão pejadas de tijolos, pó, e vidros partidos. Não temos querosene para
nos aquecermos. No Inverno passado, dormimos vestidos na cozinha, junto de uma
placa de metal a fazer de fogão, que o meu pai montou antes de ir embora.
Já gastámos a madeira toda. Se nada mudar até ao Inverno que vem, teremos de queimar
mobília e livros para nos aquecermos. A comida escasseia, obviamente. E a água.
Juntamos água da chuva em bacias e baldes, ou vamos a centros de distribuição e
trazemos água para casa. Algumas pessoas transportam contentores pesados em
carroças, outras fazem-no em carrinhos de mão. No Inverno, muitos usam trenós. Na
semana passada, a minha mãe e eu vimos uma senhora a transportar água numa cadeira
de rodas.
Muitas pessoas foram embora. Algumas, como a Marya, a amiga da minha mãe, ficam
porque não têm para onde ir. Outras, como a minha mãe, decidiram ficar, custe o que
custar. A minha mãe não suporta a ideia de o meu pai voltar e não encontrar ninguém.
Quer que fiquemos aqui à espera dele.
Pode não ser a primeira vez que acontece, mas é a primeira vez que me acontece, a
mim! Estou quase sempre zangada.
Costumo brincar com os meus amigos, debaixo da grande escadaria do nosso prédio. Às
vezes, jogamos cartas, fazemos jogos de palavras, lemos livros, desenhamos, falamos.
Ou imaginamo-nos a comer as coisas de que mais gostamos.
Outras vezes, não conseguimos ficar quietos e corremos pelos corredores, rindo e
fazendo barulho.
— Deve ser um filósofo — diz a minha mãe, baixinho, acenando na direcção dele.
A Marya não concorda com a minha mãe e eu também não. O Senhor O não está a
reflectir! Está apenas a ser desagradável. Os miúdos não gostam dele. Sempre que
encontram um saco de papel vazio, rebentam-no mesmo à porta dele. Parece uma
granada a explodir.
Depois rimo-nos e fugimos, imaginando o medo que ele deve sentir. Quando não está
connosco na fila para o camião da ajuda humanitária, o Senhor O está a tocar
violoncelo. É um violoncelo maravilhoso, um dos melhores. O meu pai, que adora
música e toca harmónica, contou-me o seguinte acerca do violoncelo do Senhor O:
— O tampo e o fundo do instrumento foram fabricadas com ácer alemão, e polidos com
um verniz especial feito em França. O braço do violoncelo é feito de mogno das
Honduras e a escala é de ébano do Ceilão. Quanto ao arco, foi talhado numa madeira
muito macia que existe no Brasil. A peça em marfim da ponta veio de África.
Cooperaram pessoas de todo o mundo para fazer o violoncelo do Senhor O — disse o
meu pai.
— Quando era jovem, o Senhor O viajou por todo o lado e tocou nas maiores salas do
mundo para centenas de pessoas. Era muito aplaudido.
Se o meu pai soubesse dos sacos de papel, ficava zangado. Mas o meu pai está longe, a
lutar nas montanhas. Levou consigo roupas quentes e a harmónica. Não se sabe quando
voltaremos a vê-lo!
O camião ficou destruído e algumas das pessoas ficaram gravemente feridas. Mesmo
que limpemos os destroços, não virá mais nenhum camião trazer-nos mantimentos:
somos um alvo demasiado fácil! Teremos de andar quilómetros para conseguir arranjar
alguma coisa e nada mais tornará os nossos dias diferentes uns dos outros.
— Não se darão ao trabalho de matar um velhote que toca violoncelo — a minha mãe
tranquilizou-a.
Mas eu não estou tão certa disso, porque a música do violoncelo faz-nos sentir menos
zangados e a coragem do violoncelista torna-nos menos medrosos. Se eles soubessem,
quereriam acabar com esta música, que nos alimenta tanto como o camião fazia.
A partir desse dia, o senhor O passou a tocar todos os dias na praça, às quatro horas em
ponto. Um dia, depois de ter começado a tocar, teve uma cãibra. Encostou o violoncelo
à cadeira e abanou a perna. Ouvimos uma descarga de granadas e vimos nuvens de
fumo preto. Quando este se dissipou, vimos que o músico não foi ferido. Mas tudo o
que restou do violoncelo foi madeira lascada e cordas emaranhadas. “O que irá
alimentar-nos agora?”, perguntei a mim própria.
Na manhã seguinte, peguei nos meus lápis de cor, que guardo numa caixa de charutos
vazia. A maioria está muito gasta, mas tenho muitas cores. Devagar, para não rasgar o
papel, desenhei o Senhor O, vestido de cerimónia, sentado numa cadeira a tocar
violoncelo. Depois desenhei flores coloridas a caírem sobre ele.
Mal acabei, fui ao apartamento do músico. Encostei o ouvido à porta: estava tudo
silencioso. Fiz deslizar o saco por debaixo da porta e desatei a correr.
Nessa mesma tarde, para surpresa de todos, o Senhor O saiu do apartamento todo
aperaltado. Viu-me à janela e inclinou a cabeça num cumprimento. Do bolso do casaco
tirou uma harmónica e começou a tocar, sentado na cadeira.
E todos os dias, a partir dessa data, às quatro horas da tarde, o Senhor O toca harmónica
na praça. As melodias são tristes, breves e doces, em tudo diferentes das músicas
grandiosas que ele tocava no violoncelo.