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E) Parang
E) Parang
O PARANGOLÉ 1
Foi sem dúvida em virtude de um olhar voltado para o futuro que, na 1 a Bienal de
São Paulo, em 1951, a peça Unidade Tripartida, do artista concretista suíço Max
Bill, causou grande impacto em alguns jóvens artistas brasileiros, principalmente
em São Paulo e no Rio de Janeiro. Como se sabe, os concretistas rejeitam
radicalmente todo ilusionismo e alusionismo. Chamam a sua arte de "concreta" e
não "abstrata" justamente porque, nas palavras de Theo Doesburg, "nada é mais
real do que uma linha, uma cor, uma superfície... Uma mulher, uma árvore, uma
vaca são concretas no estado natural, mas no estado de pintura são abstratos,
ilusórios, vagos, especulativos, ao passo que um plano é um plano, uma linha é
uma linha, nem mais nem menos"4. Contra o ilusionismo/alusionismo, não só a
pintura concreta mas toda pintura construtiva se desfizera, desde a primeira metade
do século, tanto da perspectiva quanto da cor natural. A superfície não almejava
mais que suas duas dimensões reais. O quadro, que já não se abria mais feito uma
janela para outras coisas, não pretendia representar mais nada. Ele simplesmente se
apresentava. Conservava, contudo, a forma de uma janela e o enquadramento ainda
evocava o espaço virtual5 da representação.
Pois bem, esses artistas, em particular Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape,
que privilegiavam a experimentação e a pesquisa da linguagem plástica --
características do construtivismo autêntico -- realizam pinturas que dispensam o
enquadramento e o espaço virtual que, com isso, se revelam como convenções
tradicionais, isto é, como preconceitos. O quadro não é necessário para que se dê a
pintura pura. Deve-se frisar que nenhum dos três abandona o quadro num gesto
contra a pintura mas, ao contrário, por radicalizar a exigência da imanência da
pintura. Ou seja, para eles, a pintura em si dispensa o enquadramento e o espaço da
representação. Hélio diz que o fim do quadro, "longe de ser a morte da pintura, é a
sua salvação, pois a morte mesmo seria a continuação do quadro como tal, e como
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Assim também, o Parangolé tem o efeito de "liberar a pintura dos seus antigos
liames". Mas a pintura do Parangolé já não é só -- nem principalmente -- pintura.
Trata-se de algo que, em determinado momento, Hélio descreveu através da
mesma expressão que empregava para conceituar os Bólides: "transobjeto". O
transobjeto é feito com as mais diversas técnicas, dos mais diversos materiais
(plásticos, panos, esteiras, telas, cordas etc.) que, no entanto, parecem se esquecer
do sentido de suas individualidades originais ao se refundirem na totalidade da
obra. Mais importante: o Parangolé não pode ser exposto como uma pintura
convencional. Ele deve ser não apenas visto mas tocado: e não apenas tocado mas
vestido. O corpo compõe com o Parangolé que veste uma unidade sempre nova. "O
ato de vestir a obra já implica uma transmutação expressivo-corporal do
espectador, característica primordial da dança, sua primeira condição". A dança de
quem veste o Parangolé não apenas o revela ao espectador que o não veste mas
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Em que sentido, então, pode-se afirmar que o Parangolé seja "antiarte"? É sem
dúvida correto assim caracterizá-lo precisamente nos dois sentidos em que
acabamos de chamá-lo de "antipintura". Em primeiro lugar, no sentido de que não
pertence a nenhuma das artes tradicionais. Em segundo lugar, no sentido de que
somente pode ser fruido enquanto compõe com o próprio fruidor um novo
transobjeto, o que não ocorre nas obras plásticas tradicionais. Nesses sentidos,
porém, a antiarte não passa de uma forma não-convencional de obra de arte.
Entretanto, a palavra "antiarte" pode ter um terceiro -- e mais forte -- sentido, em
que se relaciona com a expectativa do fim da arte ou do fim da obra de arte. Eu
mesmo já cedi à tentação de considerar o Parangolé como antiarte nesse terceiro
sentido. Penso, porém, que estava então enganado. Embora não se atualize
plenamente senão quando vestido por alguém que com ele dance, o Parangolé não
deixa de ser obra. Ele não consiste em roupa ou adereço, que sirva para agasalhar,
cobrir, expressar ou enfeitar quem o usa; nem em fantasia, que sirva para
disfarçar/expor seu usuário. O Parangolé não serve para nada; é quem o usa que
serve para revelá-lo. Em outras palavras, ele não é simplesmente mediatizado por
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quem o veste. Quem o veste pode senti-lo até como um brinquedo, um desafio ou
um trambolho, mas em momento algum se acostuma com ele ou se esquece de que
ele possui a distinção de uma identidade própria, caprichosa, irredutível. O
Parangolé não é confortável. Dança-se com ele, mas é ele quem guia a dança. Ele é
o anti-instrumento. Trata-se, portanto, de algo que, sem pertencer mais ao âmbito
da pintura, onde se originou, recusa-se a abandonar o âmbito da arte e se afirma
irredutivelmente como obra. Na década de sessenta, o poeta Ferreira Gullar, um
dos teóricos do movimento neoconcreto, propôs a Hélio "uma exposição para
destruir tudo, uma exposição com hora marcada, começando às 17 e terminando às
18 horas. A proposta era colocar um dispositivo explosivo dentro das obras. O
pessoal vê as obras, quando chegar às 18 horas a gente pede pra sair todo mundo
pois a exposição vai acabar, e detona a exposição... Hélio respondeu simplesmente:
`eu não vou destruir minhas obras'"14. Lembro-me da afirmação de Hegel de que "o
homem, na medida em que quer ser efetivo, tem que existir e, para isso, deve
limitar-se. Quem tem demasiado desprezo pelo finito não chega a efetividade
alguma, permanece no abstrato e consome-se a si próprio."15 Em meio ao turbilhão,
Hélio permanece artista e, no limite, reafirma a diferença entre obra e vida,
condição necessária do mundo.
1.Texto pronunciado em outubro de 1992 na Fundaciò Antoni Tàpies, em Barcelona, por ocasião da inauguração da
exposição de Hélio Oiticica naquela cidade, e reproduzido pela revista Kallías, do IVAM Centre de Valencia, no primeiro
semestre de 1993.
2.OITICICA, H. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p.79.
3.Salomão, W. “Homage”. In: Hélio Oiticica. Paris: Catalogue de la Gallerie Nationale du Jeu de Paume, 1992, p.242..
4.Cit. p. COCCHIARALE, F., e GEIGER, A. B. Abstracionismo Geométrico e Informa.,Rio de Janeiro: Funarte, 1987,
p.16.
5.Expressão de Ferreira GULLAR.
6.V. NUNES, B. Depoimento em Lygia Clark e Hélio Oiticica. Catálogo da Sala Especial do 9o Salão Nacional de Artes
Plásticas. Rio de Janeiro: Funarte, 1986.
7.MERLEAU-PONTY, M. L'Oeil et l'esprit. Paris: Gallimard, 1964, p.51.
8.OITICICA, H.. Op. cit., p.53.
9.Ibid. p.55.
10.Ibid. p.27.
11.Ibid. p.51.
12.Ibid.
13.Ibid. p.54.
14.GULLAR, F. Depoimento em Lygia Clark e Hélio Oiticica, Catálogo da Sala Especial do 9o Salão Nacional de Artes
Plásticas. Rio de Janeiro: Funarte, 1986.
15.HEGEL, G.W.F. “Enzyklopædie der philosophischen Wissenschaften” Bd. III. In: Werke in zwanzig Bänden,Bd.8.
Frankfurt: Suhrkamp, 1970, §92, Zusatz.
16.OITICICA, H.. Op. cit., p.72.