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Titulo:
Risco de Viver
(As sombras do anestesista)
Antes de começar é preciso dizer que sou cirurgião; cirurgião dentista de animais.
E que tenho total interesse neste assunto. Portanto, qualquer sensação de parcialidade
que eu possa passar aqui, acreditem, é real. Afinal, sem estas figuras, meu ganha-pão
não existiria e minha especialidade estaria relegada ainda aos porões e garagens da
medicina veterinária, cercado de boticões e alavancas de extração enferrujadas.
Não sei exatamente por que, mas quando esta pergunta é feita às vésperas de
uma cirurgia, quase sempre remete diretamente à imagem do anestesista. Ela nos faz
pensar neles. É como se a pessoa dissesse: “Doutor, o anestesista - esse alien - não vai
exaurir as últimas forças vitais de meu querido companheiro, vai?”.
Um episódio assim tem dois fatores importantes. Primeiro, nós cirurgiões, que logo
após a pergunta começamos a falar de anestesia, como se este fosse o único e
incondicional procedimento que coloca o paciente às portas do umbral dos animais (ou do
céu ou do Samsara, como queiram). Segundo, a angústia que o dono do animal arrasta
por dias e dias antes de anestesiar seu animal.
Então, o primeiro caso, ou seja, nós. Grande parte do tempo da primeira consulta
pré-cirúrgica é gasto com uma conversa truncada e carregada que enche a sala de um
clima pesado e denso de tensão. Quase sempre é assim. A morte paira nos ombros do
veterinário... prontinha para pular no colo do cliente. E que não se tente falar do
tratamento em si numa hora dessas, pois na cabeça abarrotada de histórias de morte
trans-operatórias das pessoas, jamais entraria algo de técnica ou orientação médica.
Olhando por este prisma, é mais fácil entender que todo o medo e a sombra que
entram nos consultórios antes de uma cirurgia foram criados por décadas de uma
anestesiologia precária a que a medicina veterinária estava sujeita. São vizinhos, tios,
amigos e vizinhos de tios de amigos que sempre têm uma fantástica história de morte
causada pela perigosa anestesia.
Explicar anestesia não é como casamento em que é mais sensato criar poucas
expectativas para que a mulher não se entusiasme demais e o tombo depois seja muito
grande... (ok! Desculpem amigas. Piadinha infame e sem graça!).
A anestesia moderna garante material de sobra para que se transmita muito mais
segurança que medo às pessoas. Ninguém quer, é claro, que se omita do proprietário que
o animal é um indivíduo e que, cada um deles, responde de forma diferente a qualquer
procedimento. Todas as possibilidades que envolvem qualquer tipo de tratamento devem
sim ser apresentadas.
Então, voltando àquela pergunta: “Doutor, ele não vai morrer, vai?”. Minha resposta
seria: “Estamos absolutamente preparados para dar ao seu companheiro conforto e
segurança necessários a este tipo de tratamento. Os exames dão ao nosso anestesista o
perfil de seu animal e nossos equipamentos nos ajudam a acompanhá-lo durante todo o
procedimento”.
Notem: em momento algum a palavra risco foi pronunciada, ainda que se tenha
falado dele nas entrelinhas. O que podemos e devemos reforçar é o que há de melhor e
mais seguro.
Espero não precisar falar muito mais. Eles são o ‘mal necessário’ dos cirurgiões.
(ok! outra brincadeirinha que vai me trazer problemas)... e graças a eles, hoje estamos
tranquilos para conversar sobre outras coisas, não sobre morte.