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Sessão: Opinião (ultima pagina)

Imagem: Seringa de bala.jpg

Titulo:

Risco de Viver
(As sombras do anestesista)

Linha fina: Se há uma especialidade da veterinária que evoluiu a olhos vistos é a


anestesiologia. No âmbito técnico isso é indiscutível. No âmbito humano, porém, há o que
ser discutido. Especialmente quando o anestesiologista se depara com o medo de
proprietário e de colegas. Será que os dogmas e os discursos da anestesiologia nutrem
esse medo histórico?

Antes de começar é preciso dizer que sou cirurgião; cirurgião dentista de animais.
E que tenho total interesse neste assunto. Portanto, qualquer sensação de parcialidade
que eu possa passar aqui, acreditem, é real. Afinal, sem estas figuras, meu ganha-pão
não existiria e minha especialidade estaria relegada ainda aos porões e garagens da
medicina veterinária, cercado de boticões e alavancas de extração enferrujadas.

E aí vem: “Doutor, ele não vai morrer, vai?”.

Não sei exatamente por que, mas quando esta pergunta é feita às vésperas de
uma cirurgia, quase sempre remete diretamente à imagem do anestesista. Ela nos faz
pensar neles. É como se a pessoa dissesse: “Doutor, o anestesista - esse alien - não vai
exaurir as últimas forças vitais de meu querido companheiro, vai?”.

Um episódio assim tem dois fatores importantes. Primeiro, nós cirurgiões, que logo
após a pergunta começamos a falar de anestesia, como se este fosse o único e
incondicional procedimento que coloca o paciente às portas do umbral dos animais (ou do
céu ou do Samsara, como queiram). Segundo, a angústia que o dono do animal arrasta
por dias e dias antes de anestesiar seu animal.

Então, o primeiro caso, ou seja, nós. Grande parte do tempo da primeira consulta
pré-cirúrgica é gasto com uma conversa truncada e carregada que enche a sala de um
clima pesado e denso de tensão. Quase sempre é assim. A morte paira nos ombros do
veterinário... prontinha para pular no colo do cliente. E que não se tente falar do
tratamento em si numa hora dessas, pois na cabeça abarrotada de histórias de morte
trans-operatórias das pessoas, jamais entraria algo de técnica ou orientação médica.

Enfim, diante desta situação, o que nós veterinários fazemos?

Bom, primeiro, apresentamos o anestesista à nossa ‘vítima’ que, só para melhorar


um pouquinho a situação e motivar nosso cliente apavorado, inicia uma extensa conversa
bem intencionada sobre os riscos de morte que envolvem a anestesia. Quase sempre sob
o olhar de aprovação do cirurgião. Bastante tranquilizador (!?). O discurso se prolonga por
longos minutos diante de uma pessoa atônita, que mais parece olhar através e não para o
médico. Mas enfim, é necessário.

Palavras apaziguadoras como entubação, acesso venoso, complicações,


regurgitação (ou vômito mesmo, que é mais claro), plaquetas, pressão, anemia,
compensação e descompensação, ... ufa! dão à conversa toda a empatia que a pessoa
fragilizada pelo horror precisa (!?). Há quem complete ainda com pitadas de
traqueostomia, ressucitação e o famigerado choque anafilático.

Sinceramente, alguém consegue imaginar momento mais aterrador? Quando se


pensa que ali, diante do médico, existe uma pessoa e não um adversário de hipotética
disputa judicial, tudo fica mais fácil.

Olhando por este prisma, é mais fácil entender que todo o medo e a sombra que
entram nos consultórios antes de uma cirurgia foram criados por décadas de uma
anestesiologia precária a que a medicina veterinária estava sujeita. São vizinhos, tios,
amigos e vizinhos de tios de amigos que sempre têm uma fantástica história de morte
causada pela perigosa anestesia.

O comportamento das pessoas é consequencia direta das reações que o


inconsciente delas provoca no momento em que é despertado por medo, excitação,
ansiedade, etc. E aquela é a conversa que serve de pá para aumentar a cova em que o
dono do animal está quase se deitando.

Sabendo disso, seria muito mais simples para o veterinário (anestesista ou


cirurgião) se ele simplesmente focasse sua conversa em coisas positivas. Lentamente, o
pensamento compulsivo de morte e de fracasso desvia sua direção para a grande
possibilidade de sucesso que cerca a anestesia moderna. Todos nós sabemos disso, mas
temos medo de falar.

Explicar anestesia não é como casamento em que é mais sensato criar poucas
expectativas para que a mulher não se entusiasme demais e o tombo depois seja muito
grande... (ok! Desculpem amigas. Piadinha infame e sem graça!).

A anestesia moderna garante material de sobra para que se transmita muito mais
segurança que medo às pessoas. Ninguém quer, é claro, que se omita do proprietário que
o animal é um indivíduo e que, cada um deles, responde de forma diferente a qualquer
procedimento. Todas as possibilidades que envolvem qualquer tipo de tratamento devem
sim ser apresentadas.

Então, voltando àquela pergunta: “Doutor, ele não vai morrer, vai?”. Minha resposta
seria: “Estamos absolutamente preparados para dar ao seu companheiro conforto e
segurança necessários a este tipo de tratamento. Os exames dão ao nosso anestesista o
perfil de seu animal e nossos equipamentos nos ajudam a acompanhá-lo durante todo o
procedimento”.
Notem: em momento algum a palavra risco foi pronunciada, ainda que se tenha
falado dele nas entrelinhas. O que podemos e devemos reforçar é o que há de melhor e
mais seguro.

Ops! Sem querer, toquei em um ‘detalhe’ importante: o anestesista. Este é o


melhor argumento. Quando foi que a medicina veterinária dispunha de profissionais
especializados em anestesiologia? Gente com pós-graduação e que só atua com
anestesias.

Espero não precisar falar muito mais. Eles são o ‘mal necessário’ dos cirurgiões.
(ok! outra brincadeirinha que vai me trazer problemas)... e graças a eles, hoje estamos
tranquilos para conversar sobre outras coisas, não sobre morte.

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