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O Motorista

18/11/2010. Ao sair do trabalho hoje, meus colegas e eu resolvemos parar e


tomar algumas cervejas. Conversamos, falamos bosta e discutimos as preocupações que
giravam em torno da questão do trabalho. Nada mais natural, já que nossas angustias e
alegrias giram em torno deste lugar em comum.

No momento em que resolvemos ir embora do bar pensei comigo se iria ou não


para o curso de cinema que faço a noite e acabei resolvendo ir para a casa e assistir um
filme. Relaxar.

Quando me direcionei ao ponto de ônibus vi duas amigas que estavam fazendo o


horário de almoço e parei para conversar um pouco. Após uns 10 minutos falei que teria
de ir, antes, porém, encaminhei-me ao banheiro já que a cerveja tinha dado seu efeito
diurético.

Ao fazer minhas necessidades andei por cerca de algumas poucas quadras até
alcançar o ponto. Chegando, esperei mais alguns minutos e resolvi ler o livro que estou
lendo, “Tudo que é sólido desmancha no ar” de Marshall Berman. Esplêndido livro!

Depois de ler alguns parágrafos percebi que o ônibus que pego estava se
aproximando. Parei a leitura e subi, disse “boa tarde” ao motorista e segui o corredor até
o cobrador. Estava com uma nota de 10 reais para pagar a passagem de 2,70 e o
cobrador me informou que não tinha troco, por isso fiquei na parte da frente do ônibus
para esperar o cobrador ter troco.

Voltando a ler meu livro notei que o motorista havia parado em local onde não
havia ponto de ônibus. Uma mulher de meia idade havia dado o sinal ao motorista
perguntado se o ônibus passava em “tal” lugar. O motorista falou que sim. Ela entrou no
ônibus, mas por algum motivo, talvez por não ter dinheiro naquele momento, desiste
dizendo que seu cartão estava descarregado. Quando o motorista começou a andar a
mulher bate na porta e pergunta se poderia seguir mais alguns poucos metros sem pagar,
o motorista, meio a contra gosto, diz que sim.

No momento em que a mulher entra no ônibus começa uma pequena discussão.


O motorista diz que não pode parar em locais que não possuem ponto de ônibus – nisso
paro minha leitura e começo a prestar atenção na conversa, já que estava ao lado,
pensando que se o motorista “engrossasse” com aquela senhora eu interviria. A mulher
diz que hoje estava meio atrapalhada e pediu desculpas.

Depois de alguns metros a mulher sai do ônibus e inesperadamente o motorista


começa a travar uma conversa comigo. Como se fosse uma espécie de justificativa sobre
suas falas anteriores o motorista conta de um “caso” que lhe ocorreu. Contou que certa
vez, quando abriu a porta em local não permitido pela SPTRANS, tomou uma multa de
360,00 reais, mas que só havia feito isso porque o passageiro era um rapaz que estava
com pinos nas pernas, ou seja, impossibilitado de caminhar com maior liberdade.

Comentamos então de como que as leis eram injustas. As leis não tinham, na
verdade, alma, eram ocas, “sem nem um pingo” de humanidade. O motorista falou que
bem que poderiam, pelo menos, saber o motivo pelo qual havia parado naquele local,
mas que nunca haviam perguntado. Fora que no momento do pagamento da multa o
atendente, sadicamente, lhe informou que poderia pagá-la em leves prestações. Neste
momento, quando o ônibus se aproximava de um ponto, entra uma moça esbravejando:
“Você não poderia ter parado ali atrás não?”. O motorista olha para mim e sorri.

Quando se aproximava de meu desembarque perguntei ao cobrador se havia o


troco e fui informado que não, me aproximei ainda mais do motorista e ele me contou
outra história.

Em outra ocasião, quando foi reclamar de alguma coisa que não havia
concordado em algum lugar, foi extremamente estúpido, ignorante e áspero com a
senhora que estava lhe atendendo. A mulher com a maior calma o tratou como se nada
lhe afetasse. Depois de um tempo, após refletir sobre o que tinha feito, o motorista
voltou e foi se desculpar com a mulher. Ao chegar lá pediu desculpas humildemente, e a
mulher lhe disse: “Sabe meu caro, eu costumo andar com duas sacolas. Uma com fundo
e outra sem. As coisas que me ocorrem e que quero levar para casa coloco dentro da
sacola com fundo, outras que não quero levar coloco na sem fundo. Quando você veio
aqui pela primeira vez coloquei tudo o que você havia me dito na sacola sem fundo, mas
hoje vou colocar tudo o que está me dizendo na sacola com fundo, porque quero levar
isso comigo”. O motorista me disse que essa lição ele guarda consigo até hoje.

Quando sai do ônibus, meio chocado meio sem reação, apertei a mão do
motorista e lhe desejei um bom fim de tarde. Caminhei e avistei o ônibus se afastando e
de relance vi o semblante sorridente do motorista. Talvez eu nunca mais o veja, talvez
eu nunca teria tido essa conversa se eu não parasse para tomar uma cerveja assim como
talvez não teria se eu me decidisse ir ao curso, parasse para conversar com minhas
amigas, ir ao banheiro, andar algumas poucas quadras...enfim, alguns pensariam que
isso é destino, outros que Deus teria me posto esse sujeito no meu caminho, mas prefiro
pensar que o acaso fez isso. Essa serie de desencontros que promovem o encontro que
nunca ocorreriam se nossos espíritos e corpos não estivessem completamente abertos
para recebê-los. Esta é uma experiência e uma lição que levarei para o resto de minha
vida.

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