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MÁIQUEL (V.O.)
Antes da gente nascer, alguém, talvez
Deus, define direitinho como é que vai
foder a sua vida. Essa era a minha
teoria. Deus só pensa no homem na
largada, quando decide se a sua vida vai
ser boa ou ruim. Quando não tem tempo,
faz uma guerra, um furacão e mata uma
porrada de gente, sem ter que pensar em
nada.
MÁIQUEL (V.O.)
Mas em mim, ele pensou.
MÁIQUEL
No meu caso, foi uma aposta.
Cledir coloca uma touca de plástico na cabeça de Máiquel e
vira a cadeira de costas para o espelho.
CLEDIR
Eu não gosto que meus clientes olhem.
MÁIQUEL
Futebol.
CLEDIR
É chato perder. Quem perdeu?
MÁIQUEL
Eu.
CLOSE do rosto de Máiquel com a touca.
CLEDIR
Ai, meu Deus. Eu devia ter deixado menos
tempo. Mas, será que você vai gostar? De
repente, né... tá quase assim um
platino-blonde.
Vemos então Máiquel completamente louro, de frente para o
espelho do salão e com Cledir ao lado. Máiquel fica estático
olhando para sua imagem, Cledir começa a falar:
CLEDIR
Que que foi? Não gostou? Olha, se você
quiser eu posso pintar de novo.
MÁIQUEL (V.O.)
Sempre me achei um homem feio.
Nunca gostei de me olhar no espelho. Mas
naquele dia foi diferente. Tinha olhado
para aquele cara que não era eu. Um
louro, um estranho. Não era só o cabelo
que tinha ficado mais claro, tudo tinha
uma luz.
MÁIQUEL
(admirando-se no espelho)
O que você vai fazer hoje à noite?
MÁIQUEL (V.O.)
Eu queria levar Cledir para um motel e
foder a noite inteira.
SUEL
(Rindo)
Você está engraçado.
MÁIQUEL
Engraçado como, meu irmão?
SUEL
Engraçado como? Engraçado, porra. Tá
parecendo um gringo.
MÁIQUEL
(Sério, sempre procurando
perceber a reação de Cledir)
Qual é, tá achando que eu sou viado?
SUEL
(Bem-humorado, recuando)
Você me aparece aqui parecendo uma porra
de um gringo e não quer que eu ache
engraçado? Qual é o problema?
MÁIQUEL
O problema é que eu não sou viado nem
palhaço. Não gostei de ver você rindo de
mim quando eu entrei no bar, entendeu?
Esse é o problema.
SUEL
(Enfrentando Máiquel)
Aí, Máiquel, eu não chamei você de
viado, mas agora eu estou chamando. Pra
mim, homem que pinta o cabelinho
lourinho assim, que nem você, é muito é
viado mesmo.
Marcão se aproxima de Máiquel.
CLEDIR
Eu quero ir embora. A gente não ia
dançar?
MARCÃO
(Conciliador)
Máiquel, vem tomar uma cerveja com a
gente, cara.
Suel volta a beber calmamente a sua cerveja, ignorando
Máiquel. Máiquel, sentindo-se humilhado por Suel, vai com
Cledir e Marcão até o balcão onde estão Galego e Enoque.
MARCÃO
(Voz baixa)
Não se mete com esse cara não, deixa pra
lá.
MÁIQUEL
(Voltando-se para Suel,
abruptamente)
Você que é viado, Suel. Vamos ali fora
resolver essa merda que nem homem. Vem
cá, vem!
GONZAGA
(gritando)
Olha aqui! Vamos acabar com isso! Eu não
quero saber de briga aqui dentro do meu
bar!
MÁIQUEL
Hoje eu estou com a minha namorada. Mas
depois eu vou te procurar.
SUEL
Quando você quiser, lourinha.
Cledir e Marcão empurram Máiquel para fora do bar.
MÁIQUEL
Amanhã, meio-dia aqui.
MÁIQUEL
Apanha a tua arma, Suel.
SUEL
(Fanfarrão, para impressionar
Érica)
Pode atirar, lourinha.
MÁIQUEL (V.O.)
Eu queria fugir, mas não conseguia me
mexer. Na verdade nada disso teria
acontecido se o meu time não tivesse
perdido... se eu não tivesse pintado o
cabelo de louro... se eu não tivesse
feito aquela aposta com o Robinson.
INT. OFICINA DO MARCÃO - DIA
CLOSE de Máiquel. Ele, Robinson, Galego, Enoque e Marcão
estão na oficina, um lugar cheio de lataria e carros
depenados.
MÁIQUEL (V.O.)
Eu queria ser preso, julgado e
condenado. Queria que o Suel tivesse um
irmão pra me matar ali mesmo enquanto os
meus amigos discutiam o meu destino. O
meu dente doía.(pausa) Eu ia me
entregar.
GALEGO
Se entregar porra nenhuma!
ENOQUE
Porra nenhuma!
Enoque prepara uma carreira de cocaína.
MARCÃO
Eu falei pra você não se meter com o
Suel, eu falei!
GALEGO
Você tem que fugir logo, meu irmão.
ROBINSON
É, você pega esse carro que já está
contigo mesmo, vai pro interior de
Minas.
Galego aspira a droga.
MARCÃO
Não, o Maverick não que tem que devolver
amanhã! Vai fazer o seguinte, vai pra
mais longe. Vai pro Nordeste.
Enoque aspira a droga.
GALEGO
Caralho, Marcão! Tem neguinho que se
esconde ali em Niterói mesmo.
ENOQUE
Porque você não pinta o cabelo de preto
e fica aqui mesmo?
Reação de todos.
EXT. RUAS DO SUBÚRBIO/ CARRO DE MARCÃO - DIA
Máiquel dirige o carro velho de Marcão pelas ruas.
GONZAGA
Ei, Máiquel! Máiquel!!
Máiquel pára o carro um pouco mais adiante, tentando dizer
que está sem tempo. Gonzaga corre em sua direção excitado.
GONZAGA
(Para os policiais, orgulhoso)
Foi ele que matou o Suel.
Reação de Máiquel, virando o rosto. Os policiais aproximam-
se de Máiquel. Depois de olhar Máiquel algum tempo, um dos
policiais bate no ombro dele.
POLICIAL
Valeu, aí. Ajudou a tirar o lixo da rua.
ENOQUE
Quem enfartou aí, hein, bicho? Baixo
astral...
GALEGO
Baixo astral..
Todos protestam.
ENOQUE
Puta que pariu! Caralho!
Marcão ri.
JUMP CUT. Todos jogam sueca.
ROBINSON
Bati.
ROBINSON
O morto, Máiquel.
GALEGO
Conta aí pra gente como é que você
pipocou o cara.
MÁIQUEL
(Imitando Suel)
Pô, o cara veio meio assim, né. Fazendo
manha..
ENOQUE
(sem conseguir falar)
Eu, eu... eu...
MÁIQUEL
Fala Enoque! Fala rapaz!
Toca a campainha. Todos olham em direção à porta. Máiquel
volta da porta para o sofá.
MÁIQUEL
Não era ninguém.
GALEGO
Como não era ninguém?
MÁIQUEL
Ué, não era ninguém...
GAROTA
Mandou também dar os parabéns. Parabéns
pra você. Tchau.
MÁIQUEL
Quem é o Bil? Quem é o Bil? (pausa) Bil,
o papai vai sair agora pra comprar papa.
Comprar papa pro Bil.
CLEDIR
Oi.
MÁIQUEL
Oi.
CLEDIR
Você tá falado aqui no bairro, hein.
Máiquel ri envergonhado.
CLEDIR
Ih, o que aconteceu com aquele tênis?
MÁIQUEL
Ah, foi o Bil.
CLEDIR
Cachorro?
MÁIQUEL
Não, o porco.
CLEDIR
Porco? Você arranjou um porco? Que
engraçado. Cadê ele?
MÁIQUEL
Está ali no banheiro. É um
leitãozinho... pra comer. Pra que você
acha que eu ia ter um porco dentro de
casa?
Máiquel liga o aparelho de som. Toca uma música romântica.
Os dois se abraçam.
CLEDIR
Ah, não come não, porco é tão fofo.
Os dois se beijam dançando. Máiquel sente uma dor na boca.
CLEDIR
O que foi?
MÁIQUEL
Uma dor de dente.
Cledir beija a bochecha de Máiquel.
CLEDIR
Passou?
MÁIQUEL
Passou. Você gosta de carne de porco?
CLEDIR
Ah, lombinho é bom, né?
Os dois continuam dançando abraçados.
CLEDIR
Sabe que eu prefiro você assim,
lourinho? Ficou bom. Depois tem que
passar lá no salão pra fazer a raiz.
CLEDIR
Tô achando que você tem que procurar um
dentista, hein.
CARVALHO
Os seus dentes estão cariados, meu
filho, todos.
MÁIQUEL
Quanto custa arrancar esse que está
doendo?
CARVALHO
Mas eu posso tratar dos seus dentes.
Você é muito moço para usar dentadura...
MÁIQUEL
Eu não sei se eu tenho dinheiro pro
tratamento....
CARVALHO
Foi você que matou Suel, não foi? Diga,
foi? (pausa) Você não precisa pagar,
rapaz. Eu gostei de você, quer dizer, eu
gostei do que você fez com Suel, porque
aquele mulato tinha que morrer. Pra
falar a verdade eu não gosto de preto,
não gosto de mulato, eu sou racista
mesmo. Todo mundo é racista, esses
hipócritas não têm coragem de assumir.
Eu vou te dizer uma coisa:
Máiquel olha para Dr. Carvalho.
CARVALHO (cont.)
Você tem um problema, eu sou um dentista
e tenho um problema. A gente pode se
ajudar. Você me faz um favor e eu faço
um favor a você. Que tal? JUMP CUT
INSERT - PORTA RETRATO: Fotografia de Dr. Carvalho com a
mulher e a filha.
Máiquel à mesa de consulta, com Dr. Carvalho. Ele mostra o
porta-retrato.
CARVALHO (cont.)
Essa é minha filha, tem dezessete anos,
é uma criança. Foi estuprada. Eu não dei
parte à polícia... sabe como é, a
humilhação.
Ele olha para Máiquel.
CARVALHO (cont.)
Máiquel, quero que você mate o canalha
que fez mal à minha filha.
MÁIQUEL (V.O.)
Eu não achava nada boa a idéia de matar
outro cara. Meu dente doía pra caralho.
ÉRICA
Quinze.
Máiquel caminha em direção à porta, mas Érica fica à sua
frente impedindo-o de entrar.
ÉRICA
Se você não me deixar entrar, eu vou
ficar aqui, bem na sua porta e toda vez
que você sair eu vou dar um jeito de
entrar. A mãe do Suel me botou pra fora
de casa, eu não tenho pra onde ir não.
Agora você que vai ter que me sustentar,
vai ter que me dar casa, comida, roupa,
vai ter que me dar o tudo que eu
precisar. Para se livrar de mim vai ter
que me matar, que nem você matou o Suel.
Daqui eu não saio. Ponto final.
MÁIQUEL
(Falando consigo mesmo)
Porra, eu já tenho um porco morando
comigo.
MÁIQUEL
Pode ficar aí até a gente encontrar um
outro lugar. Pode dormir na cama que eu
durmo aqui no sofá.
CARVALHO
Bom, eu fiz o que eu prometi. Você tem
alguma novidade para mim?
MÁIQUEL (V.O.)
Sei onde ele trabalha, numa loja de
animal. Mora com a mãe, uma senhora
doente. Parece que ele cuida bem dela.
CARVALHO (V.O.)
Todo mundo tem mãe, meu filho. Até o
Nero, o imperador, tinha mãe.
ÉRICA
Por que você matou o Suel?
MÁIQUEL
(Levando um susto ao ver a
menina)
Sai daí.
ÉRICA
Eu não estou olhando.
MÁIQUEL
Sai daí e fecha a porta, Érica.
Érica fecha a porta. Máiquel urina. Ao sair do banheiro
Érica está parada do lado de fora.
ÉRICA
Por que você matou o Suel, hein? O Suel
não te fez nada.
MÁIQUEL
(Irritado)
Olha aqui, Érica, você pode ficar aqui
na minha casa, pode comer a minha
comida, pode usar a minha roupa, me
pedir dinheiro, brincar com o meu porco,
dormir na minha cama enquanto eu durmo
no sofá, agora não me enche o saco com
essa pergunta?
CAJU
(Manuseando as armas)
Esta es una AR-15, andou na moda muito
tiempo aqui no Rio, é bom pra fazer
firula. Ahora la municion es una foda de
achar. Uzi, o manejo desta es muito bom,
me gusta mucho esta metranca. Me gusta
mucho. 12 Pump pistol.
MÁIQUEL
Não, eu queria uma coisa mais leve, sei
lá, uma pistola. Um trinta e oito.
CAJU
Jo sei o que tu quieres, tu quieres una
cosa pequeña, que possas carregar
escondida no cinturon, que imponha
respeito, no es isto?
Caju tira uma arma de dentro de uma caixa.
CAJU (cont.)
Leva una quarenta e cinco, semi-
automática. Bateu, derruba. E munição
pra esta não falta. Segura.
Caju dá a arma para Máiquel.
CAJU
Segura.
Máiquel segura a arma.
CAJU
Está sentindo a força? Não es como
colocar una coroa na cabeça? Me diga.
Máiquel empunha a arma concentrado.
ÉRICA
Oi.
MÁIQUEL
Oi.
CLEDIR
Você não ia me apresentar a essa sua
amiga que está morando na sua casa?
MÁIQUEL
Ela não é amiga. É uma conhecida. Vou
tomar um banho.
CLEDIR
Espera, quero falar uma coisa importante
com você.
(vê o sangue na camisa de
Máiquel)
O que foi isso na sua camisa?
MÁIQUEL
Não foi nada. Me machuquei.
Máiquel sai em direção ao banheiro.
ÉRICA
Ele está com raiva de mim. Só que eu já
falei que eu não vou embora.
CLEDIR
Não notou nada de diferente? Olha bem.
(se exibindo para Máiquel)
Eu engordei três quilos. Dá pra ver?
CLEDIR
Adivinha? Estou grávida.
ÉRICA
Casamento assim, na igreja?
MÁIQUEL
Na igreja.
ÉRICA
De vestido de noiva? De véu e grinalda?
MÁIQUEL
Sei lá se tem véu e grinalda!
ÉRICA
Você está puto comigo ou está puto com
você mesmo porque vai se casar?
MÁIQUEL
Eu quero casar. Eu gosto da Cledir,
Érica. Fui eu que pedi ela em casamento.
Amanhã eu vou lá na casa da mãe dela pra
resolver tudo. Quero mudar, quero ser um
homem normal, quero ter uma família,
quero ter filho, quero ir à igreja no
domingo.
ÉRICA
Que coisa mais ridícula, Máiquel! E onde
é que você vai arranjar dinheiro para
cuidar da gente? Você está desempregado.
MARCÃO
Pra mim, só engravida mulher burra,
e mulher burra tem que pagar o pecado
sozinha. Larga lá criando o moleque.
GALEGO
Vai ver o filho nem é teu, porra. A
vadia sai dando por aí...
MÁIQUEL
Vadia não, hein! Vadia não.
MÁIQUEL
Cledir, eu queria falar com você.
CLEDIR
Minha mãe já vem, está se arrumando.
Olha, a gente só fala do casamento, não
precisa falar da gravidez, tá bem?
Máiquel concorda.
CLEDIR
Sua mão tá gelada..Você está nervoso?
MÁIQUEL
Cledir, eu andei pensando....
MÃE DE CLEDIR
Eu sei, você falou tanto que eu esqueci!
MÁIQUEL
(para Cledir)
Eu queria te contar...
CLEDIR
Viu como ela está feliz? Ela adorou
você.
MÁIQUEL
Eu preciso te contar uma coisa,
Cledir... eu... sei que esse momento é
especial pra você...
CLEDIR
Fala!
MÁIQUEL
Eu acho, Cledir, que ainda não está na
hora...
Ao mesmo tempo em que Máiquel fala, num dos cantos do
quadro, surge da cozinha, sem ser percebida pelos dois, a
mãe de Cledir que entra cambaleando na sala, carregando uma
bandeja cheia de copos. Tenta dizer alguma coisa.
CLEDIR
(gritando)
MÃEEEEEEE!
Cledir levanta correndo.
TIA ROSA
Que bom gosto que ele tem!
Detalhe da pulseira.
TODOS
Viva o Máiquel!! Viva!
Uma roda se forma em volta de Robinson, já bêbado:
ROBINSON
Vou falar um verso! Silêncio, silêncio.
A vida é um túnel ao ar livre.
MÁIQUEL
A gente vai pra Araruama. Alguém já foi?
MARCÃO
Não..
MÁIQUEL
Sem dinheiro...
Humberto aproxima-se e senta.
MÁIQUEL
Humberto! Esse aqui é o Marcão, esse
aqui é meu primo Robinson.
HUMBERTO
Está precisando de um trabalho?
Máiquel balança a cabeça positivamente.
HUMBERTO
(Confidenciando)
É por que o cara que estava trabalhando
comigo lá sumiu. Sumiu. Você gosta de
bicho?
MÁIQUEL
Gosto.
HUMBERTO
Então o emprego é seu.
MÁIQUEL (V.O.)
Cledir estava linda, a aliança no
dedo...
HUMBERTO
Muita merda, né? Esses bichos só sabem
cagar... Vai te acostumando, você vai
ter que limpar muita merda de neném.
Casamento é isso, merda de neném. E
merda de neném é que nem areia movediça:
você enfia o pé, quer sair mas a merda
não deixa.
MÁIQUEL
Nem todo casamento é igual, né, Seu
Humberto.
HUMBERTO
Todo casamento é igual, o que muda é a
merda. Tem merda porosa, merda
laqueada... A mulher só é boazinha até o
dia do casamento. Depois, viram umas
vacas gordas vingativas. Não perdoam o
fato de a gente ter casado com elas.
Dr. Carvalho entra na loja.
CARVALHO
(Para Humberto, falsamente
cortês)
O cidadão tem biscoito para cachorro?
HUMBERTO
Que marca?
CARVALHO
Qualquer uma... A mais cara.
Seu Humberto olha de forma hostil para Dr. Carvalho.
Enquanto Humberto procura, Dr. Carvalho trava um diálogo em
tom baixo com Máiquel.
CARVALHO
(Olhando em torno, com desdém)
Então é aqui que você trabalha, meu
filho? O que você ganha aqui dá para
sustentar a sua família? Você fez um
serviço tão bem feito, rapaz. Você tem
um futuro brilhante pela frente.
MÁIQUEL
Dr. Carvalho, vamos conversar lá fora?
Máiquel conduz Dr. Carvalho até calçada em frente à loja.
CARVALHO
Você foi embora sem que eu pudesse
demonstrar toda a minha gratidão, meu
filho. Há tão pouca gente em que se
possa confiar hoje em dia. (pausa) O que
é, arrependido? De ter virado um herói?
De ter alijado do convívio social um
monstro?
Dr. Carvalho retira um envelope pardo e grosso do bolso.
CARVALHO
Toma, isso é seu.
Máiquel pega o envelope.
CARVALHO
A gente se vê.
Humberto aproxima-se com dois pacotes de biscoito nas mãos.
HUMBERTO
Esse sujeito é seu amigo?
MÁIQUEL
É o meu dentista.
HUMBERTO
Cara escroto.
VEREADOR ZILMAR
Peraí, Carvalho. Você acha que essa
porra aí pode dar resultado?
SÍLVIO
O Soares tinha carro blindado, porta
blindada... você viu o que aconteceu com
ele? se fodeu.
VEREADOR ZILMAR
Eu estou falando, o cara encosta um
revólver na sua cabeça, aí o que
acontece? Você se caga todo. Aí abre
porta, cofre, abre o cacete...
SÍLVIO
Eu sei é que se o bandido quiser entrar
na sua casa ele entra, aí leva o seu
carro, leva seus dólares, leva o seu
ouro, o caralho!
CARVALHO
(olhando o monitor)
Só uma coisa que resolve. Olha aí: tá
chegando o nosso convidado.
Máiquel e Galego aparecem no monitor de Dr. Carvalho. Os
dois entram.
JUMP CUT
Dr. Carvalho, Sílvio, Zilmar, Máiquel, Galego, em volta de
uma mesa de vidro, continuam bebendo.
CARVALHO
Temos que ser realistas. A polícia é
incompetente, a polícia é corrupta, não
se pode esperar nada da polícia.
VEREADOR ZILMAR
Tá bom, Carvalho! Eu estou esperando
alguma coisa da polícia! Eu!
CARVALHO
Lembra daquele crioulo enfurecido dentro
daquele ônibus? A polícia toda contra um
menor abandonado. E você lembra o que
ele dizia, o garoto? Eu sou filho do
demônio!
CARVALHO
(Impaciente)
Filha, por favor, seu pai está
conversando negócios com os amigos aqui,
volte para o seu quarto.
MÁIQUEL
Como você sabe que porco não sente frio?
CLEDIR
Ah?
MÁIQUEL
Como você sabe que porco não sente frio?
CLEDIR
Pelo amor de Deus!
HUMBERTO
As mulheres só querem saber da gente pra
casar e ter filho, depois ficam o resto
da vida enchendo o saco da gente.
Engordando, engordando. Eu não sei o que
é pior: as que engordam, ou as que fazem
ginástica pra ficar magrinha.
(Pausa)
Eu tenho uma teoria: mulher faz
ginástica pra ficar magrinha pra ficar
gostosa pro amante. Se um dia você
descobrir que sua mulher tá fazendo
ginástica numa academia, pode ir
cobrindo de porrada que ela está te
corneando.
Máiquel ri.
HUMBERTO
Hoje é o dia do seu aniversário. Leva um
cachorrinho desses de presente pra você.
MÁIQUEL
(Acariciando o cachorrinho que
tem nas mãos)
Vou levar esse aqui. O nome dele é
Pivete. Dei nome pra todo mundo. Pivete
porque rouba a comida de todo mundo.
(pausa)
Pensando bem, vou levar depois, o Bil
pode não gostar...
INT. CASA DE CLEDIR/ SALA - NOITE
Cledir exibe uma barriga enorme. Estamos na sala da casa,
durante o jantar de aniversário de Máiquel.
CLEDIR
(para Tia Rosa)
Vamos servir o jantar? Estou morrendo de
fome.
TIA ROSA
Você apagou o fogo?
CLEDIR
Apaguei.
CLEDIR
(Para Máiquel)
Máiquel, eles não vêm mesmo. O neném
está com fome, amor.
MÁIQUEL
Porra, Cledir. Agora que está ficando
animado...
ROBINSON
Calma, calma... Olha, meu nome é
Robinson, este aqui é o meu amigo
Enoque.
CLEDIR
Tia Rosa, pode servir! Vamos sentar na
mesa, pessoal, vamos comer.
CORTA para a mesa de jantar, estão todos sentando. Cledir
aparece no fundo do plano trazendo da cozinha uma enorme
travessa com um porco assado. Todos aplaudem. Máiquel
finalmente vê o leitão e se dá conta do que aconteceu:
MÁIQUEL
Que isso, Cledir?
CLEDIR
Ué?
MÁIQUEL
Onde é que está o Bil?
Máiquel se levanta da mesa para procurar Bil.
MÁIQUEL
(gritando)
Sujava só o quintal e eu limpava o
quintal, eu limpava!
MÁIQUEL (V.O.)
Você não limpava porra nenhuma!
NENO
(No mesmo tom calmo)
Eu sei quem é você, Robinson. Estou
procurando o seu amigo, Máiquel. Mas
você serve.
ENOQUE
A gente estava vindo para cá, aí o Neno,
com aquele criolinho. Pereba. O Robinson
sacou tudo, cara. Falou: Enoque, fica
frio que é bote. Não deu outra. O cara
falou ó: a gente está na paz, indo pra
uma festa. Foda-se. O cara rodou o carro
e falou. Dançou, estou maquinado, pimba.
Dois tecos. Queimaram o Robinson! De
pertinho, do meu lado, cara. Eles
mandaram um recado pra você, Máiquel:
MÁIQUEL
Enoque, me dá um pouco dessa porra aí.
ENOQUE
(Surpreso)
Você quer?
Máiquel consome a droga. Todos o observam. Ele fica
impassível, não demonstra sentir o efeito da droga.
MÁIQUEL
Essa porra não faz efeito em mim não.
Máiquel cheira mais um pouco.
MÁIQUEL
Efeito nenhum.
Os três observam Máiquel sem saber o que dizer. Ele vai até
o banheiro e cheira um pouco mais, diante do espelho. Coloca
um CD no aparelho de som da oficina. Vai mais uma vez até o
espelho do banheiro e fica se observando com atenção.
MÁIQUEL
Enoque! Me dá essa merda.
Máiquel cheira novamente.
MÁIQUEL
Cadê? Me dá um papelote aí! Essa porra
não faz efeito em mim não.
Ele começa a fazer flexões no chão. Depois anda rapidamente
em direção à saída.
MÁIQUEL
Vou dar uma volta. Cambada de filhos da
puta!
MÁIQUEL
Enoque, me dá mais um. Me dá mais um.
Marcão observa impotente. Máiquel cheira mais algumas vezes.
Neno olha para Enoque, que está com o gorro impedindo seu
reconhecimento. Pausa. Todos olham para o Enoque. Tempo.
Enoque olha para os outros. Começa a tirar o gorro, mas é
impedido por Máiquel.
ENOQUE
(mostrando o rosto)
Aqui, ó.
Máiquel cobre de volta o rosto de Enoque, que atira. Máiquel
encara o colega:
MÁIQUEL
Porra, você matou a mulher, Enoque!
ENOQUE
Foi mal, errei, pô.
Enoque atira em Neno.
ÉRICA
O Bil era muito inteligente. Como será
que se mata um porco?
MÁIQUEL
Sei lá. Tomara que o Bil não tenha
sofrido.
ÉRICA
Eu também estou triste por causa do
Robinson. Mas o Bil fazia companhia pra
gente, né...
Érica abraça Máiquel, que chora.
ÉRICA
Ninguém vai matar você não, eu não vou
deixar...
CLEDIR
Isso é jeito de falar comigo? Eu só
assei aquele porco porque era seu
aniversário. Não sabia que você gostava
tanto dele. Eu sempre fiz tudo por você.
Não precisa me tratar como se eu fosse
um cachorro.
HUMBERTO
Então a senhora é muito bem tratada.
CLEDIR
Dá licença!
MÁIQUEL
(Saindo em direção ao carro)
Olha, eu tenho uma reunião, Humberto, tá
bom? Cledir, dá um tempo.
Máiquel vira-se e começa a andar.
CLEDIR
Dá um tempo? Pra sair com essas
vagabundas você tem tempo!? Máiquel!
ÉRICA
Kamikaze - kami quer dizer vento e kaze
quer dizer divino. Vento divino. O
furacão que acabou com a frota mongol
que ia invadir o Japão recebeu esse
nome, Kamikaze. O vento divino salvou o
Japão dos mongóis. E na guerra contra os
americanos os pilotos suicidas
japoneses.
MARCÃO
(Interrompendo)
Esse filme eu vi. Os kamikazes se
foderam, os japoneses se foderam e os
americanos ganharam a guerra. Máiquel,
pára de dar almanaque para essa menina.
MÁIQUEL
O pior é que ela agora está querendo
aprender inglês.
ÉRICA
How do you do? Where is the book? The
book is on the table.
Érica ri animada.
MARCÃO
(Gozador)
Você está aprendendo inglês pra quê,
menina? Tu mal fala português.
ÉRICA
Eu não falo português não? Pergunta uma
coisa pra mim.
MARCÃO
Perguntar o quê? Eu também não sei,
porra.
ÉRICA
Sei lá, me pergunta o sinônimo de
qualquer palavra.
MARCÃO
(Gozador)
Sinônimo? Que porra é essa?
ÉRICA
Eu vou te explicar. Por exemplo. Burro:
sinônimo, Marcão.
Galego entra no bar. Dirige-se para a mesa de Máiquel.
GALEGO
Aí, o cara vai viajar amanhã.
MÁIQUEL
Érica, vai tomar uma coca, vai.
ÉRICA
Que conversa é essa? Por que eu não
posso ouvir?
MARCÃO
Conversa de kamikaze.
MÁIQUEL
Vai.
ÉRICA
Ihhh...
ZÉ GALINHA
Isso, gosta de um poteco, ah? Aí, mané,
acho que essa brizola tá fazendo
efeito... tá me dando uma vontade de dar
uma cagada...(pausa) Isso aí: eu vou
cagar e você vai comer o meu cocô! Desde
criança eu tenho vontade de fazer alguém
comer o meu cocô, tá ligado? E vai ser
tu que vai comer o meu cocô
MÁIQUEL
Galego, encosta aí.
Galego pára o carro na beira da estrada.
MÁIQUEL
Quem teve a idéia de trazer esse cara,
hein, Marcão?
MARCÃO
O Enoque não podia vir...
ZÉ GALINHA
Cara não, amigo. Eu tenho nome.
MARCÃO
O apelido dele é Zé Galinha.
MÁIQUEL
Olha aqui, Zé Galinha. A gente não
trouxe ninguém aqui pra comer merda não.
Isso não se faz com ninguém.
ZÉ GALINHA
Amigo, se eu quiser que ele coma o meu
cocô ele vai comer o meu cocô, tá
ligado? E não é um otário que nem tu que
vai fazer ele não comer o meu cocô...
Máiquel atira na cabeça de Zé Galinha.
CONAN
Pô, valeu, hein...
Máiquel atira na cabeça de Conan.
MARLÊNIO (O.S.)
E larga é a porta, e espaçoso o caminho
que conduz à perdição. E muitos são os
que entram por ela, porque estreita é a
porta e apertado o caminho que leva à
vida e poucos há que a encontrem.
Acautelai-vos porém dos falsos profetas,
que vêm até vós, vestidos como ovelhas,
mas interiormente são lobos devoradores.
Érica chega à porta da Igreja, de onde ela consegue ver o
PASTOR MARLÊNIO, um homem de cerca de trinta anos, de óculos
de lentes grossas. Usa um terno escuro ensebado.
MARLÊNIO
Sejam bem-vindos ao Reino de Deus. A
porta pode ser estreita, mas o coração
de Jesus é muito grande, é tão grande,
tão hospitaleiro, que dentro dele cabem
o santo e o pecador, dentro dele cabe
eu, você, cabe o mundo todo.
Quem não se aproxima de Jesus, esse sim
deve temer! É porque está de mãos dadas
com o demônio. E Deus vê tudo, Deus sabe
de tudo e pune de maneira terrível os
crimes cometidos. Portanto pensem nisso,
meus irmãos. Fiquemos na paz de nosso
senhor e salvador Jesus Cristo.
TODOS
Aleluia!
SÍLVIO
É, um trabalho higiênico...
CARVALHO
Higiênico e patriótico. Por que é assim
é que se faz uma nação decente.
MÁIQUEL
Onde que é o banheiro?
CARVALHO
No final do corredor, filho, à esquerda.
GABRIELA
(insinuante)
O meu pai não vai gostar nada de saber
disso. Aliás, ele vai achar que foi de
propósito.
MÁIQUEL
Ele também não precisa ficar sabendo,
não é?
Gabriela se aproxima.
GABRIELA
Ele não precisa saber de nada que
acontece aqui.
Ela coloca a mão de Máiquel dentro de sua camiseta, fazendo-
o apertar seu seio.
MÁIQUEL
Eu preciso voltar para sala. Sabe onde é
o banheiro?
GABRIELA
Eu não sei se eu vou deixar você ir
embora.
MÁIQUEL
Não faz isso comigo não.
GABRIELA
Você não quer trepar comigo?
MÁIQUEL
Eu preciso voltar pra sala.
CARVALHO
Resume a história, Zilmar, resume.
Toca o telefone celular de Máiquel. Ele atende.
MÁIQUEL
Alô... anh?.. eu estou indo para aí.
(virando-se para os outros)
A minha filha nasceu.
VEREADOR ZILMAR
Bom, eu só não morri porque eu consegui
ir me arrastando até o portão, onde um
vizinho me encontrou fudidaço ali
deitado na calçada, tá?
SÍLVIO
E esse é o seu servicinho... Pedrão.
MÁIQUEL
Érica, vamos embora?
ÉRICA
Você já conhecia o pastor Marlênio?
MARLÊNIO
Prazer, Marlênio.
MÁIQUEL
(Interrompendo)
Érica, eu estou precisando conversar com
você.
MARLÊNIO
(para Érica)
Nós podemos ler a Bíblia amanhã, Érica,
não tem problema nenhum.
MÁIQUEL
Marlênio... esse pastor de merda está
enchendo tua cabeça de besteiras.
MÁIQUEL
O que você quer que eu faça? Quer que eu
corte um braço? Quer que eu corte a
minha perna esquerda? Quer que eu corte
o meu pau? Quer que eu corte o meu pau,
hein?
ÉRICA
Corta nada, você não faz nada por mim.
Enquanto falam, os dois se beijam, Érica negaceia, ora
rejeita ora aceita os beijos de Máiquel.
MÁIQUEL
Eu faço o que você quiser, qualquer
coisa.
Érica aceita a investida de Máiquel.
ÉRICA
Eu quero que a Cledir desapareça da
nossa vida.
CLEDIR
Aonde é que você disse que está morando?
ÉRICA
Na Igreja do Poderoso Coração de Jesus.
O Marlênio arranjou para mim.
(para Máiquel)
Você sabe onde é.
CLEDIR
Quem é Marlênio?
MÁIQUEL
O que você está fazendo lá, Érica?
CLEDIR
Não te interessa, o problema é dela.
Quem é o Marlênio?
ÉRICA
Isso mesmo, não te interessa.
CLEDIR
Quem é esse Marlênio?
ÉRICA
É o meu pastor. Eu limpo a igreja, lavo,
cozinho, preencho e carimbo as
carteirinhas...
MÁIQUEL
Que carteirinhas?
ÉRICA
A carteirinha dos fiéis.
CLEDIR
(Sempre irritada)
Deixa a Érica ir morar na igreja, fazer
o que bem entender, está mesmo na hora
dela sumir da nossa vida.
CLEDIR
Escuta aqui, eu não sou tonta não,
ouviu? Érica, não quero mais ver você.
Some da vida do meu homem, entendeu? Te
manda! Vai!
MÁIQUEL
Não, Cledir.
Máiquel se levanta e tenta andar em direção ao quarto.
CLEDIR
Está trepando sim! Está trepando com a
pirralha!! Como é que você faz isso
comigo?
MÁIQUEL
Érica, fecha a porta... Olha aí!
MÁIQUEL
Vou dar uma volta. Não consegui dormir
aqui não.
Máiquel sai. Érica pega um almanaque e começa a ler.
ÉRICA
(Com compaixão)
Ela está tão suja...
MÁIQUEL
Vamos botar ela num saco de lixo
grande..
ÉRICA
Você quer colocar a Cledir num saco de
lixo? Deixa ela nessa colcha mesmo, tão
bonitinha... Olha só o rosto dela, vê
como ela está infeliz? Toda suja...
ÉRICA
Até morta ela é bonita...O rosto dela é
mais bonito que o meu? (Pausa)
E o corpo dela, é mais bonito que o meu?
MÁIQUEL
Anda logo, Érica!
ÉRICA
Ela vai dormir na cama com a gente?
SANTANA
Você que é o Máiquel?
MÁIQUEL
Sou...
SANTANA
Delegado Santana, 45ª DP. Está de saída?
MÁIQUEL
Estou, tenho umas coisas pra resolver.
SANTANA
Esse carro é teu?
SANTANA
Como é que é? Sumiu?
MÁIQUEL
Sumiu.
CARVALHO
A proposta aqui é segurança para o
bairro. Quer dizer, para o comércio,
para os que têm grana, entendeu, meu
filho?
MÁIQUEL
É, o Santana me falou...
Dr. Carvalho faz um gesto dissimulado, para Máiquel não
prosseguir.
CARVALHO
O Santana não existe aqui. A dona Leonor
só cuida da fachada. Agora outra coisa:
você precisa usar um paletó, uma camisa
boa, se impor, meu filho.
GALEGO
(Gritando)
Todo mundo pro chão, cumpadre, pro
chão!! Bota a cara no chão, filho da
puta!
MÁIQUEL
Você conhece a empresa de transporte
Átila?
VERLI
Tô ligado, conheço, fica lá na Gamboa,
irmão.
Máiquel abaixa a arma.
MÁIQUEL (V.O.)
Até matar o primeiro cara a gente pensa
que existe essa história de aprender a
matar. Aprender a matar é como aprender
a morrer, um dia você morre e pronto.
Ninguém aprende a matar. Todo mundo
nasce sabendo. Se você tem um arma na
mão, é isso, você já sabe tudo.
Máiquel, Marcão e Érica sobre uma moto;
os três mais Enoque numa loja de carros.
Máiquel, Marcão, Galego e Enoque
executam uma vítima. A gangue caminhando
contra um muro azul; chegando ao Bar do
Gonzaga; tirando fotografias na oficina.
MÁIQUEL
Está desconfiada de quê? Érica, a tia da
Cledir que se foda, Érica! (Pausa) Como
é que ela pode estar desconfiada?
MARCÃO
Aí, meu irmão, você acha que eu ia
comprar uma telinha desse tamanho?
Quantos metros tem essa porra? Quantas
polegadas tem? Isso aqui é home-theater,
porra?
VEREADOR ZILMAR
Boa noite, senhoras e senhores, estamos
aqui reunidos para ouvir as palavras do
nosso Homem do Ano, eleito pelo Clube
Recreativo da Baixada, o doutor. Máiquel
Jorge!
Máiquel é aplaudido por todos no salão. Ele sobe ao palanque
para fazer seu discurso de agradecimento. Vereador Zilmar
entrega a estatueta de "Homem do Ano" para Máiquel, agora à
frente do microfone.
MÁIQUEL
(lendo o texto)
Esta homenagem me deixa profundamente
honrado. É dever de todos nós lutar sem
trégua para que as pessoas que querem
viver em paz, comerciantes,
trabalhadores, moradores, pais e mães de
família, passam ter a necessária
tranqüilidade e segurança.
Marcão chega apressadamente e senta-se na mesa de Galego,
Enoque e Érica.
ÉRICA
(para Marcão)
Ei, onde é que você estava?
MÁIQUEL
(ainda no microfone)
...se fiz alguma coisa por vocês, não
fiz mais do que a minha obrigação. E
prometo que não vou parar.
MÁIQUEL
Eu falei para você jogar isso fora,
Érica
ÉRICA
Não consigo. Outro dia eu ia jogar fora,
só que aí eu achei essa camiseta aqui,
olha.
(segurando a própria camisa)
Você não sabe inglês, você não sabe o
que isso significa.
A campainha da porta toca. Érica abre a porta. É Marlênio.
Ele entra. O telefone de Máiquel toca, ele atende.
MÁIQUEL
(Ao telefone)
Alô. Fala, Galego. Calma, rapaz. Fala
devagar. Espera aí, Galego.
(Para Érica, chamando-a)
Érica, Érica! Vem cá, vem! O que esse
cara está fazendo aqui dentro?
ÉRICA
Eu convidei para tomar um cafezinho.
Máiquel irrita-se com Érica.
MÁIQUEL
(desligando o celular)
Galego, eu já vou praí.
(para Érica)
Eu não gosto desse cara. O que ele está
fazendo aqui dentro?
ÉRICA
Coitado, Máiquel, a igreja está
precisando de dinheiro.
MÁIQUEL
E você vai dar dinheiro para esse merda
agora? É isso?
ÉRICA
Você não disse que está ganhando rios de
dinheiro, que era para eu pedir o que eu
quiser? Pois é, eu quero dar dinheiro
para a Igreja.
MÁIQUEL
Eu não acredito que vocês não vão dar
conta dessa porra sozinhos! Eu estou na
administração dessa porra, Galego! Não
estou mais na rua, onde é que estão os
caras?
GALEGO
Não sei, meu irmão.. O Enoque sumiu e o
Marcão não aparece tem dois dias. Aliás,
esse serviço é pra mais gente, hein.
O telefone toca. Máiquel atende.
MÁIQUEL
(ao telefone)
Puta merda! Mas você não é delegado,
caralho? Não resolve isso?
(pausa)
Ele sabe de tudo, mas não vai
contar nada.
(pausa)
Olha, faz uma coisa: arruma um jeito de
eu falar com ele. Falou?
Máiquel desliga o telefone e se senta.
MÁIQUEL
Marcão foi preso com um quilo de
cocaína, que porra é essa, Galego?
GUARDA
Cinco minutos, hein.
MARCÃO
Alguém me dedurou. Alguém está querendo
me foder, Máiquel.
MÁIQUEL
Quem?
MARCÃO
Eu sei lá. Algum invejoso. Eu venci.
Tenho carro do ano, ando bem vestido.
Tem gente aí que não suporta ver um
crioulo subir na vida, Máiquel.
MÁIQUEL
Que porra é essa? Um quilo de cocaína?
MARCÃO
Máiquel, não tem mais jeito. Arruma um
jeito de me tirar daqui. Fala com
Santana.
MÁIQUEL
Você não está entendendo, Santana. É
cheiro de merda, você deve ter pisado na
merda.
SANTANA
Quem foi então? Que corpo é aquele,
hein?
Reação de Santana, desconfiado.
MÁIQUEL
(Rindo)
Jesus sempre quer que a gente se
entregue.(pausa) Quer comer alguma
coisa?
ÉRICA (O.S.)
Leite com Nescau.
MARLÊNIO
É a fé que salva! Eu peço que todos se
levantem. Isso, vamos dar as mãos...e
agora de mãos dadas, eu quero uma oração
de fé, de fé, ao nosso senhor Jesus.
Todas as pessoas começam a rezar o Pai-nosso. Marlênio se
aproxima de Máiquel.
MÁIQUEL
(falando baixo, mas com
urgência)
A Érica não está passando bem. Pediu
para eu te buscar.
MÁIQUEL
(Calmo)
Padres não podem sair por aí contando o
que ouviu no confessionário, sabia?
MARLÊNIO
Eu não sou padre. Sou um pastor. A Érica
me garantiu que vocês iam se entregar
para a polícia. Dei dois dias a ela.
Máiquel esmurra Marlênio na boca. Marlênio bate com a cabeça
no vidro. Sua boca está sangrando.
MARLÊNIO
(Limpando o sangue da boca)
Se vocês confessarem tudo, se mostrarem
arrependimento pelo crime cometido,
vocês serão salvos do fogo do inferno.
Máiquel agarra a cabeça de pastor e a empurra violentamente
contra o painel do carro.
MARLÊNIO
(Falando com dificuldade)
Deus não nos destinou para o ódio e a
ira.
MÁIQUEL
Vou mandar acabar o toque de recolher
hoje mesmo. Pode avisar pra todo mundo.
GONZAGA
E o gramado do parque? Você bem que
podia mandar liberar o gramado do parque
para as crianças jogarem bola.
MÁIQUEL
Eu proibi criança de jogar no gramado do
parque?
GONZAGA
Proibiu. Alguém lhe disse que estavam
estragando o gramado do parque e você
proibiu.
MÁIQUEL
Não, não, não... Eu proibi marmanjo de
jogar bola. Criança pode, criança
criança, até 10, 12 anos. Sabe que eu
gosto de criança.
MÁIQUEL
Mandou matar o Marcão, Santana?
SANTANA
O que você queria que eu fizesse, cara?
MÁIQUEL
Eu estou no inferno há muito tempo,
Érica.
Toca a campainha, surpreendendo os dois. Máiquel abre a
porta até a metade e vê um homem. Eles se olham por alguns
instantes.
MÁIQUEL
Pois não?
MAX
(mostrando a insígnia)
Meu nome é Max. Sou investigador da
polícia. Posso entrar?
Máiquel se afasta da porta, permitindo a passagem de Max,
que entra na casa observando todo ambiente, vê Érica em pé
num canto. Os dois trocam olhares.
MÁIQUEL
Essa é Érica, minha irmã. Está um pouco
nervosa, né, Érica? com o
desaparecimento da minha irmã, ahnn, da
minha esposa. Sumiu, me abandonou.
MAX
É justamente sobre isso que eu gostaria
de falar com o senhor.
MÁIQUEL
Érica, deixa que eu falo com ele! Ué..?
MAX
Há quanto tempo sua mulher sumiu de
casa?
MÁIQUEL
Há um mês, mais ou menos.
MÁIQUEL
Posso ficar com ela?
MAX
Não.
ÉRICA
(Ato de contrição)
Senhor, ouve-me depressa, mereci ser
castigada, perdoai-me senhor, eu não
quero mais pecar. Senhor, ouve a minha
oração e chegue a ti o meu clamor. Não
escondas de mim teu rosto no dia da
minha angústia, inclina para mim os teus
ouvidos; no dia em que eu clamar, ouve-
me depressa. Senhor, ouve-me depressa,
mereci ser castigada, perdoai-me senhor,
eu não quero mais pecar.
MÁIQUEL
(cortando)
Foi sem querer, quando eu empurrei a
Cledir ela bateu a cabeça na parede...
SANTANA
Agora não adianta mais, você não vai ter
como explicar isso não.
SÍLVIO
A situação está uma merda. (Pausa) A
gente veio aqui te propor um esquema,
uma coisa boa para você.
MÁIQUEL
Olha, eu vou logo avisando: eu não vou
preso, e nem morto.
SÍLVIO
Ouve o nosso plano, porra! Você vai ser
preso de qualquer maneira então é melhor
que seja pelo Santana. Você depois de
algum tempo deixa de ser notícia, o fogo
se apaga, as pessoas esquecem. Lembra
aquele sujeito que matou pai, mãe,
irmão, avó, a família inteira? Agora,
ninguém mais se lembra dele. Daqui a
pouco aparece um estuprador de
garotinhas e toma o teu lugar na
manchete.
SANTANA
Vou arranjar umas testemunhas falsas, e
vou colocar no inquérito que tudo foi
uma sacanagem armada por um bandidinho
amiguinho seu. Ninguém vai provar porra
nenhuma contra você.
VEREADOR ZILMAR
Você inclusive vai ficar preso por pouco
tempo, porque o nosso advogado está
pedindo ao juiz o relaxamento da tua
prisão preventiva, entendeu?
MÁIQUEL
Eu não vou preso, não tem jeito, porra!
SANTANA
Máiquel, olha pra mim!
Quem matou a Cledir foi o
Marcão, O.K.? Está tudo bem, cara.
VEREADOR ZILMAR
Então você não quer ser preso, né? Tudo
bem.
(observando Máiquel)
Então acho que você vai ter que passar
uns tempos na casa do Carvalho, em
Angra.
ENOQUE
Porra, Angra?
MÁIQUEL
Angra. Estou armando tudo com o Santana.
Porra, vou dar um tempo, pegar uma cor.
Vai dar tudo certo.
GALEGO
Esse babaca vai livrar a cara com a tua
prisão e ainda vai virar herói. Vai
acabar com você como acabou com o
Marcão.
MÁIQUEL
Marcão, Marcão! O cara nunca precisou do
Marcão, Galego! Porra! De mim ele
precisa. A SESEPA dá muita grana para
esse cara. Porra, Galego, você nunca
gostou do Santana, meu irmão. Os caras
estão querendo me ajudar, vou pra
Angra...
GALEGO
Põe uma coisa na tua cabeça: A SESEPA se
fodeu, meu irmão, vai perder todos os
clientes, esse investigador, o Max, tem
cara de não gostar de grana! Vai pegar
você, o dentista, o Santana, vai por
mim, o lance é sair fora já!
MÁIQUEL
Eu estou recebendo carta para caralho de
nego que gosta de mim, meu irmão,
ninguém quer me ver preso.
GALEGO
Alguém importante mandou carta? Só carta
de zé povinho, vai por mim o lance são
os caras com a grana, e para esses você
é puro veneno.
Close de Máiquel.
JUMP CUT
Vemos no circuito interno de TV o carro de Máiquel indo
embora. Dr. Carvalho aparece então morto em sua poltrona,
com um tiro no peito.
MÁIQUEL (V.O.)
A vida é uma coisa engraçada, se você
deixar, ela vai sozinha, como um rio.
Mas você também pode botar um cabresto e
fazer da vida o seu cavalo. A gente faz
da vida o que quer. Cada um escolhe a
sua sina. Cavalo ou rio.