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Textos | Reflexões sobre a Paz

Interior
Chagdud Tulku Rinpoche (1930-2002) pertencia à
última geração de mestres que herdaram os
tesouros dos ensinamentos e métodos Vajrayana.
Filho de Dawa Drolma, uma das mais célebres
mulheres lamas deste século, abade do secular
monastério de Chagdud Gonpa no Tibet, Rinpoche
viveu os primeiros vinte anos de exílio, depois da
invasão chinesa de 1959, na Índia e no Nepal. Lá
serviu à comunidade tibetana como lama, médico e
promotor das artes.

Em 1979, chegou aos Estados Unidos. Quatro anos


depois, Rinpoche criou a Chagdud Gonpa
Foundation, hoje com centros também no Canadá,
Suíça e Brasil, onde residia em Três Coroas (RS).

No nosso mundo estressante e corrido, cada um está procurando a paz interior.


Como podemos alcançá-la?

Uma resposta a essa pergunta realmente requer um ensaio inteiro. Mas


basicamente, eu diria que a paz não se deve a circunstâncias externas. Se não
temos paz interior, não é porque há algo errado com o mundo exterior. A paz
interior é um subproduto direto da própria mente da pessoa, não importa quais
condições externas possam existir. Todas as coisas dependem das motivações
internas da pessoa. A paz surge agora, na nossa realidade presente, como um
resultado direto de todas as ações que tenhamos tomado no passado e de
acordo com a nossa motivação interna. Se experimentamos a paz agora, é um
resultado de toda a bondade, bons trabalhos e ações compassivas que
realizamos anteriormente. E se agora nos falta paz interior, se agora estamos
tendo dificuldades, deve-se diretamente a termos sido difíceis antes. Isto é,
nossas intenções e ações impuras voltarão para nós como a falta de paz
interna.

Mas mesmo que tenhamos atrás de nós uma acumulação de comportamento


não-pacífico, não é impossível mudar isto. A própria mente tem uma
capacidade de mudança intrínseca a ela. O que quer que uma pessoa pense é o
que se traduz na realidade da pessoa. Portanto, se a pessoa deseja ter
condições cheias de paz, afortunadas, conducentes, a chave de tudo é um
coração puro, as aspirações altruístas da própria pessoa, sua motivação pura.
As suas ações e as ações dos outros podem não ser tão diferentes; a diferença
está no coração, na motivação pelo que você faz. E é isto que faz toda a
diferença no resultado de suas ações no mundo. Você deve ter a pureza do seu
próprio coração, a pureza de sua própria postura e das intenções em relação
aos outros e ao mundo que o rodeia. Essa é a causa-semente de toda a paz
interior.

Como trazemos a meditação para as nossas vidas diárias?

Podemos tomar como exemplos os Oitenta Grandes Mahasiddhas, ou seres


extraordinariamente realizados, que viveram no início da história do buddhismo
na Índia. Esses oitenta grandes seres não se tornaram grandes deixando todas
as coisas do para trás. Ao invés disso, eles trouxeram os princípios básicos da
prática espiritual – a pureza de coração e a presença da mente – às suas ações
no mundo comum.

Por exemplo, Tilopa, que foi um dos maiores praticantes da Índia, passou sua
vida fazendo óleo de semente de gergelim. Naquele tempo não havia nenhuma
tecnologia fantástica, nem prensas poderosas. A única maneira de fazer óleo de
semente de gergelim era triturar as sementes com a mão. Então, conforme
Tilopa triturava, dia e noite, ele cultivava dentro de si um coração cada vez
mais puro, e na sua mente cultivava atenção unidirecionada cada vez maior. Ele
não deixava sua mente pular como uma pulga. E foi por fazer essa prática
diária que ele atingiu sua grande realização.

Na história do buddhismo, e especialmente no Tibet, havia muitos chefes de


família, famílias, homens e mulheres que também praticaram a tradição de
incorporar, na vida diária, os princípios da atenção e da pureza de coração, de
maneira a atingir a iluminação.

Através dessa prática, dentro de suas famílias, dentro de suas ocupações, eles
tiveram a aptidão para superar as limitações da morte e realizar um estado que
é chamado “além da vida e da morte”, ou realização imutável.

Tudo que ela requer, embora soe simples, é que de um lado se nutra a pureza
de coração, ou motivação altruísta, e que se corrija e erradique a motivação
impura. E, por outro lado, que se permita que a mente descanse na sua própria
verdade, na sua própria natureza fundamental ou presença pura. E portanto, de
momento a momento na vida diária, há uma atenção constante tanto para a
pureza de coração quanto para o descanso na natureza pura da mente. É assim
que se pode incorporar o caminho espiritual na vida diária da pessoa.

Como podemos competir num mundo materialista, que algumas vezes é muito
mesquinho, e ainda sermos amáveis e compassivos com todas as pessoas?

Não quero falar apenas sobre princípios, então deixe-me contar uma história.
Na Índia havia um rei muito famoso, Indrabhuti, que era muito poderoso e
muito rico, como todos os reis. Ainda assim, mesmo com todas as suas
responsabilidades e impedimentos mundanos, ele teve aptidão para atingir a
iluminação. A razão era porque o seu propósito não era, de nenhum modo,
egoísta. Seu foco não era apenas o seu próprio melhoramento. Ao invés disso,
ele usou de todos os seus recursos, poder e influência de maneira a servir
constantemente às necessidades dos outros. Através disto, ele conseguiu
efetuar o mais nobre dos feitos, que é realizar verdadeiramente a ausência de
ego.

Portanto, para aqueles de nós, particularmente em nosso mundo, que temos


tanto coisa – poder pessoal, riqueza, status e responsabilidades –, é similar. Um
modo de praticar o caminho espiritual é desistir de tudo, deixar todos aqueles
que você conhece e ir sentar numa caverna. Mas essa não é a única maneira de
fazer isso. Os indivíduos podem, enquanto agem como zeladores de sua riqueza
e de sua influência, trabalhar pelo melhoramento dos outros e sempre criar
uma pureza cada vez maior no seu altruísmo, em seu serviço pelos outros,
usando quaisquer recursos que tenham.

Riqueza, poder, conhecimento, inteligência, educação – todas essas coisas são


ornamentos que são a prova verdadeira da bondade prévia de alguém.
Portanto, agora, tendo o fruto desta bondade prévia, a pessoa deve usá-los
com o objetivo de ajudar os outros. Então, isso age como um padrão que
causará muito benefício ao existir no mundo, tanto para si bem quanto para os
outros.

Eu perdi meu país. Vivi a vida de um refugiado. Como refugiado, recebi a


assistência de muitas pessoas generosas, deste país e de outros, que me
ajudaram e me deram abrigo. É muito beneficente agir deste modo, como
guardião para as outras pessoas e para seu melhoramento. Basicamente, em
seu trabalho no mundo, você deve ser honesto, deve cultivar a pureza de
intenção e de coração. E então, vagarosamente fazer, o que você faz. Vá
adiante e faça o que tem de fazer. O sucesso em ter atingido sua meta deve
estar baseado em não ter causado dano a ninguém. Se você sempre mantiver
em mente que não quer causar dano a ninguém, e que a sua verdadeira
aspiração a longo prazo é estar apto a beneficiar os outros, então o seu
trabalho no mundo será muito benéfico.

A meditação é possível no estilo de vida moderno de hoje?

A meditação é independente de qual século ou cultura você vive, seja ela antiga
ou moderna. O que importa na meditação é o processo de olhar
constantemente para trás e de se avaliar — avaliar e verificar sua própria
mente. Agora, o modo como normalmente operamos nossas vidas é o oposto,
tendemos a olhar para fora da janela. Olhamos para fora da janela e dizemos
“Ó, ele é uma pessoa boa” ou “Ela é uma pessoa boa” ou “Isso é bom” ou “Isso
é ruim”. Estamos sempre verificando, olhando e criando impressões do mundo
fora de nós.

A meditação, por outro lado, é usar a tela de sua mente como um espelho,
onde você olha de volta para você mesmo, ao invés de olhar para fora,
julgando os outros. Você olha para você. Se você usa um espelho, você pode
ver se o seu rosto está sujo e se o seu cabelo está uma bagunça, e então você
pode limpá-los e penteá-los. Com a meditação você olha, e onde quer que você
veja um mau pensamento ou uma má ação, então você realmente tenta mudar
isso dentro de si – como lavar o seu próprio rosto.

Mudar a mente não acontece de uma vez. Mas com constante atenção a ela,
lentamente, lentamente, a mente muda. É uma questão de repetição, de novo,
de novo e de novo, olhando para si e se corrigindo, corrigindo as motivações
impróprias, os sentimentos ásperos. E então, mais do que isto, você se olha e
tenta verdadeiramente acentuar e abraçar as qualidades positivas. Você cultiva
a bondade de sua própria parte. Você não julga todo o tempo que isso e aquilo
é bom ou ruim, mas verifica repetidamente a si mesmo.

Então, volta-se ao ponto mencionado numa pergunta anterior – é uma questão


de permitir que a sua mente relaxe em sua própria natureza verdadeira e de
criar as intenções adequadas dentro de si. Olhamos para dentro, corrigimos e
ajustamos. Deste modo, tudo é passível de mudança; é perfeitamente possível
mudar a mente. Antiga ou moderna, isto não é tão importante.

A meditação tem algo em comum com todas as religiões, tais como Católica,
Protestante, Judaica?

É bem fácil responder essa questão. Freqüentemente, dificuldades surgem no


caminho ao nomearmos ou conceitualizarmos algo. Por exemplo, pode haver
uma discussão entre um americano e um tibetano sobre qual é a mais brilhante
fonte de luz no céu. Um americano poderia dizer “Bem, certamente é o Sol,
você não pode achar uma fonte de luz melhor do que o Sol”, e o tibetano diria,
“Bem, não, o Sol não é a maior fonte de luz no céu, Nyima é a melhor fonte.”
Agora eles estão falando da mesma coisa, mas estão usando palavras
diferentes. Normalmente, são apenas as limitações nas palavras e nomes que
causam conflitos e diferenças entre as religiões, quando na verdade cada um
está falando sobre a mesma fonte perfeita de luz no céu. É simplesmente uma
questão de com qual tradição você sente uma conexão, que tradição invoca em
você a tendência à oração, à auto-correção e à pureza de coração.

Cada tradição tem uma mensagem; cada tradição propõe-se a lhe reerguer, a
reduzir o seu sofrimento e miséria, e a ajudar a experienciar mais felicidade na
sua condição humana, até mesmo a experiência de felicidade total.
Basicamente, se você tomar cada religião e examiná-la, nos seus princípios
mais básicos você descobrirá que elas recomendam ajudar os outros ao invés
de prejudicá-los. Esses são os princípios operantes básicos que você encontrará
em todas religiões. Eles são exemplificados pelos grandes líderes de cada
tradição. Seguindo seus exemplos, podemos criar dentro de nós mesmos a
grande harmonia que estes próprios mestres alcançaram. Isso significa reduzir
as nossas próprias faltas e aumentar ilimitadamente nosso amor e compaixão.

Toda mensagem espiritual é como um remédio. Nem todas as pessoas podem


ser curadas pelo mesmo médico ou pelo mesmo remédio, não importa o quão
grande o médico seja ou o quão fino seja o remédio. Devemos nos focar na
cura e tomar o que funcione para nós. Não dá certo pensar, “Bem, sou um
americano, tomarei apenas remédio americano”, ou “Sou japonês e irei tomar
apenas remédio japonês”. Uma pessoa deve buscar qualquer remédio, qualquer
médico, que cause a cura de verdade.

A cura significa obter ou revelar a sabedoria interna que é a verdade absoluta,


o estado puro sem princípio da verdadeira natureza de alguém. Significa revelar
a pureza da mente e a compaixão ilimitada da mente. Qualquer método que
verdadeiramente revele a verdade do seu próprio estado de ser, esse é o
remédio que você precisar tomar. A pessoa que lhe dá este método é o médico
ao qual você precisar ser fiel.

Se há um pequeno conselho que você poderia dar a qualquer pessoa hoje, qual
seria?

Eu diria que é cultivar a sua própria pureza de coração. Comece por reconhecer
o quão afortunado você é – todos nós somos. Nós temos corpos humanos
preciosos. Esses corpos são extraordinários, com os quais podemos nos
relacionar com nossas famílias, nossas comunidades, nossa sociedade. Temos
circunstâncias afortunadas; não estamos famintos, pobres ou indigentes.
Realmente, somos tremendamente afortunados. E se olharmos ao redor,
veremos que há outros que certamente não têm este tipo de fortuna, que não
têm estas condições auspiciosas em suas vidas ou que não levam os estilos de
vida que levamos. E uma vez que se reflita sobre isto, então você é impelido a
perguntar, “Como posso, então, ajudar aqueles não tão afortunados quanto eu?
O que posso fazer para que experimentem menos dificuldade, menos
sofrimento?”

Ao redor do mundo, há pessoas que sofrem continuamente pela guerra,


doença, fome, pobreza. Se você se puser no lugar delas, você entenderá como
é ter estes tipos de condições e então, naturalmente, a compaixão fluirá do seu
coração. Com esta compaixão, você põe seus pés no chão e percebe o quão
afortunado você é na sua própria vida.

Reconhecer a sua própria fortuna é o primeiro passo na paz interior, o primeiro


passo para cultivar o contentamento e a felicidade. Mais ainda, este
contentamento tem dentro de si as qualidades intrínsecas da grande mente, a
mente da iluminação. Através da realização da grande mente, pode-se
beneficiar verdadeiramente outros incontáveis seres. O grande erudito e santo
buddhista, Atisha, passou sua vida inteira estudando e meditando
diligentemente, e chegou à conclusão de que tudo que o Buddha ensinou recai
na mesma coisa, que é a bondade de coração. Esta é a essência do caminho
espiritual, da maturidade espiritual. Os métodos que você encontra dentro de
todas as tradições espirituais apontam e conduzem a mente ao realce da
pureza de coração.

Quando você cultiva a compaixão e a bondade amorosa, você cria uma no seu
coração uma jóia que realiza desejos. Você não pode comprar isso. Você não a
obterá no topo de uma alta montanha. Está apenas no seu próprio coração.

(Este livreto foi elaborado a partir de perguntas feitas a Chagdud Tulku


Rinpoche e traduzidas por Lama Tsering Everest durante Uma Tarde pela Paz
Interior, evento que teve lugar em Napa Valley, Califórnia, em Abril de 1990)

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