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SARAMAGO, José, Memorial do Convento, Lisboa, Caminho, 1982.

É preciso deixar de fazer História de Portugal para se começar a fazer a história dos
portugueses. José Saramago, 1984
A história é acima de tudo uma arte, uma arte essencialmente literária. Georges Duby
O discurso ficcional não será, também ele, uma procura da verdade através da visão
mágica que a criação permite? Pelos caminhos da ciência e da arte, da razão e da
emoção, não pretende o homem chegar a um ponto comum — o da revelação do
mistério de existir? Teresa Cristina Cerdeira da Silva

O diálogo com a história


Diz Saramago, a respeito de Memorial do Convento: «O Memorial é uma reconstrução
histórica a partir da ficção literária, porque toda a narração está fundamentada no
passado para compreender o presente».
Trata-se, pois, de um texto que, na sua execução e propósitos, pretende organizar a
história por intermédio do ficcional. É um discurso que se pretende histórico e como tal
se constitui: narrar o passado com os olhos fitos no presente é o projecto político do
autor que o discurso realiza. Por isso, o diálogo dos tempos orienta a sua perspectiva
narrativa: a enunciação é muitas vezes profética em relação ao tempo do enunciado e o
passado é relido com a experiência vivida do presente.

Análise do título: Memorial do Convento


O título do romance remete para duas dimensões:
Uma dimensão temporal — o vocábulo ‘memorial’ significa escrito em que se relatam
factos memoráveis, o que implica necessariamente um movimento de recuo no tempo;
Uma dimensão espacial — referência a um espaço concreto, um convento.

Análise da contracapa de Memorial do Convento


Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez
a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que
tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vez.
(sublinhados nossos)
Esta sinopse aponta para as duas dimensões que estruturam o romance:
Uma dimensão literária, onde pontua o maravilhoso: ‘Era uma vez’; neste universo
mágico, evoluem personagens fictícias que representam um povo explorado, oprimido
sob o jugo da tirania do poder.
Uma dimensão histórica, baseada em factos e personagens verídicos: o rei D. João V, o
Convento de Mafra, o aeróstato do padre Bartolomeu de Gusmão, o músico Domenico
Scarlatti.

Estrutura da acção
Aconselha-se a numerar as sequências / capítulos para facilitar o manuseamento da obra

Em Memorial do Convento, a História é recriada pela interacção de personagens reais e


fictícias, podendo afirmar-se que existem três grandes linhas temáticas que estruturam a
acção do romance:
A construção do Convento de Mafra, consequência de uma promessa feita pelo rei D.
João V aos frades franciscanos para assegurar o nascimento de herdeiros para o trono;
este acontecimento estruturante é pretexto para o escritor denunciar os comportamentos
dos poderosos que provocam o sacrifício e a morte de muitos cidadãos obrigados a
participar de um projecto que lhes é alheio, mas de que são os autores materiais.
A construção da passarola voadora, símbolo do desejo ancestral do homem de voar, que
se converte na afirmação de que o esforço e a vontade humanos tudo conseguem
(vontades dos homens aprisionadas por Blimunda que constituem a energia que faz
subir a passarola).
O amor entre Baltasar (Sete Sóis) e Blimunda (Sete Luas), o par escolhido por
Saramago para representar o povo anónimo. A sua vida e o seu trabalho diário
representam também a história quotidiana de um país; o seu esforço e os poderes
mágicos de Blimunda ajudam o padre Bartolomeu de Gusmão a concretizar o seu
sonho.

Assim, podemos distinguir três partes, seguidas de um epílogo, na arquitectura do


romance
Capítulos I a VIII
Ida de D. João V à alcova da rainha para a engravidar e assim assegurar a sua sucessão
no trono
Ida ao local onde quer erigir o convento
Vitória dos franciscanos na guerra das influências

Capítulos IX a XVI (1713-1722)


Projecto da passarola voadora
Construção do convento, com Bartolomeu ausente do cap. X a XII
Primeiro voo da passarola (cap. XVI), sobrevoando o convento em construção

Capítulos XVII a XXIV (1723-1730)


Construção do convento com Baltasar entre os trabalhadores
Notícia da morte do padre Bartolomeu, anunciada pelo compositor, em 1724
Desaparecimento de Baltasar na passarola em 1730, com o convento inacabado

Capítulo XXV
Errância de Blimunda procurando Baltasar até o encontrar no auto-de-fé final

Centrado no anacronismo (visão profética do futuro em relação ao presente do


enunciado e passado visto à luz do presente), Memorial do Convento tem uma
arquitectura discursiva que subverte a monumentalidade do texto, pondo em confronto a
construção de um monumento, que serve o discurso do poder e a construção de uma
passarola, metáfora da liberdade que sobrevoa o monumento que está preso ao chão. Se
o convento é resultado da carne petrificada da gente do povo, já a passarola é-o da
recolha das vontades desse mesmo povo.
A literatura consegue, assim, preencher os silêncios da história: nesta só se fala do
monumento construído; naquela é a voz dos trabalhadores que se faz ouvir.

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