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O

Monstro
Por Ramon Bacelar

Todo conteúdo aqui publicado é de extrema


responsabilidade do autor.
Qualquer semelhança é mera coincidência.
O Monstro
Por Ramon Bacelar
Minha humilde homenagem ao cinema da Hammer
e o gótico sessentista ilaliano.

O
imenso candelabro celeste que era a lua cheia do fim de
dezembro costurava o caminho de mata fechada com agulhas e
fios de prata, emoldurando timidamente ângulos e formas de
uma carruagem barulhenta que a substância da noite teimava em
dissolver, fundindo-a a folhas, pedras, troncos e raízes em um
egoísta e misterioso senso de proteção e propriedade.

Na saída da mata fechada, desimpedida que estava dos


obstáculos naturais, a luminosidade ganhava brilho e volume,
colocando em nítido relevo fragilidades, putrefações e inseguranças
de uma estafada ponte secular que rangia sobre o peso da
carruagem como um órfão carente, e a dez metros da última seção,
espreitando o movimento com olhos de vidro empoeirado e
ouvidos de madeira bolorenta, ela, A Casa, aguardava: paciente,
segura, orgulhosamente firme: sustentada que estava pelos
alicerces da noite.

-Chegamos.- Rosnou o belga Delvaux ajeitando o chapéu


coco com a ponta de prata da bengala.

-Salvatore... Empresto quanto você quiser, não é preciso se


sujeitar a tamanha humilhação.

-O seu amigo além de bisbilhoteiro é intrometido, Sr.


Salvatore. Deveria tê-lo deixado no meio do caminho.
-Rossi, a decisão já está tomada. Preciso do dinheiro, você
já fez demais por mim. –A voz de Salvatore saiu como a soma das
ansiedades.

-Pois bem, Sr. Salvatore. Uma vez decidido, só lhe resta...

O olhar de Delvaux penetrou como agulhas em brasa;


Salvatore girou o pescoço à procura de Rossi.

-Até mais amigo e mais uma vez obrigado pela ajuda.

- Mais uma coisa Sr. Salvatore. – Interrompeu Delvaux - Não


esqueça, meia hora “pelo menos”, dentro da casa. - A impaciência
afogou as palavras e deu lugar a outro fluxo de auto-expressão -
Espero que o Sr. desfrute da hospitalidade e que sua aventura nos
traga um momentâneo, digamos... Alívio para o tédio monumental
de nossa monótona existência, assim como muitos frutos para seu
bolso vazio em cuja fundura nada reside além de meros...

-Cale-se demônio cínico, manipulador!!!-Explodiu Rossi.

Delvaux petrificou e emudeceu: a calma que não era calma.

-Sempre me considerei uma pessoa prática e objetiva Sr.


Rossi. Seu amigo precisa do dinheiro e eu...-Suspirou de cabeça
baixa-...bom, como pode notar, não sou um materialista nato, por
vezes necessito de um, digamos... “Conforto” que os meus bens e
dinheiro não preenchem.

Rossi não retorquiu.

-Boa sorte Sr. Salvatore.

A ponta da bengala estudou sua face com o comedimento


de uma cascavel.
***

- O tempo é muito relativo, não é mesmo Sr. Rossi? Na


verdade ele quase nunca opera a nosso favor e sempre nos
contraria.

Rossi desgrudou os olhos do relógio, mas não levantou a


cabeça.

-O Sr. comprou e colocou a vida do Salvatore em risco para


sua diversão seu crápula egoísta!

- Não me venha com asneiras, fantochezinho ignorante!


Quer dizer que você também, supostamente culto e escolado,
realmente acredita nessas lendas e superstições de um mutante
canibal habitando a casa?!

As palavras queimaram com a acidez de lava vulcânica.

- E c-como o Sr. explica o desaparecimento de seis crianças


em dois anos... Sem vestígios?

- Você acaba de responder a sua pergunta. O fato de


estarem desaparecidas não significa nada além disso. Além do mais
eram filhos de camponeses e pescadores cujas crendices e
superstições são um mero reflexo das condições de pobreza e
privações extremas.

Rossi, com um misto de medo e curiosidade, procurou


novas vias de acesso, sem perceber que girava em círculos como um
diabo cego vagando em um labirinto sem centro.

-Um temente a Deus jamais falaria assim, além do mais o Sr.


mesmo usou palavras como “hospitalidade” ,“anfitrião” e...
- AHAHAHAHAHAHAH!!! Ora, ora meu caro, não tire tudo
que eu falo ao pé da letra, você me parece pior que aqueles
camponeses! Na verdade o único anfitrião que ele encontrará será o
Sr. Folclore que ronda a casa... Se o medo deixar AHAHAHAHAH!!!

-O Sr. só se sente bem... pisando nos outros. – As palavras


despedaçaram pela pressão emocional: era como se a acidez verbal
de Delvaux corroesse os nervos de Rossi.

-Vocês com suas crendices, superstições e falsas certezas


diariamente cavam a própria sepultura, erigem os próprios
mausoléus disparando tiros nos próprios pés temendo o que não
vêem, buscando salvação nadando na própria lama que criaram e
ainda culpam os outros pela própria estupidez!!

Delvaux apontou a bengala para o silêncio e escuridão que


envolvia a casa como uma máscara de sombras:

-Está abandonada, silenciosa e vazia!

O turbilhão emocional não impediu Rossi.

- P-porque o Sr. não entra?

- Tão logo seu amigo saia... – Respondeu sem pestanejar


encarando Rossi-... Se o Sr quiser me acompanhar...

O sorriso aberto de Delvaux emprestou à sua face a


artificialidade de uma máscara de cera.

-Não vai responder covarde?

Rossi consultou o relógio, suspirou e se viu obrigado a


admitir que algumas observações de Delvaux faziam sentido.
Poderia ser um bastardo luciferino, mas não podia fugir dos fatos: a
falta de provas materiais, a vida simples e sofrida dos camponeses,
e agora a quietude da casa, a ausência de qualquer ruído... E o
mostrador do relógio: nove minutos, nove “lentos” minutos.

Sentiu calafrios explorando sua espinha como parasitas


gélidos à procura de um hospedeiro; súbitas contorções estomacais
seguidas de um repentino enrugamento facial, anunciaram uma
onda de calor que percorreu seu corpo delgado parindo suores
gélidos, refluxos violentos e tremedeiras convulsivas; agulhas de
ansiedade e impaciência o torturavam com a malícia e crueldade de
um diabo ardiloso: o vômito ácido jorrou da garganta como um
enxame de abelhas enlouquecidas.

***

Escorado no parapeito da ponte, Rossi alimentava um


cardume de piranhas com restos de pão enquanto se recobrava da
indisposição.

- A carruagem está cheirando a fezes de porco.

-Bastardo! Aconteceu alguma coisa com...

-Ou estou coberto de razão a respeito da casa imbecil!


Então?

-Então o quê?

-Não vai entrar comigo para “salvar” seu amigo?

Rossi não respondeu.

- Quer dizer que o seu medo é maior que sua amizade, e sua
fé, como nossas lâmpadas a gás, quando menos se espera...puufff.
Que pena.

-Me deixe em paz.


Rossi virou as costas e contemplou o umbral da casa
decrépita: pontos de luzes pulsantes decoravam a escuridão como
estrelas brilhantes em um céu aveludado, mas a névoa leitosa do
lago e seu ângulo de visão não lhe davam a certeza se eram
lâmpadas internas ou vaga-lumes furando a escuridão.

-Até mais meu caro, o dever me chama. – Bateu nas costas,


alcançou o umbral e sumiu na escuridão.

***

50...55...70...90 minutos, e os mesmos signos e sinais o


arremessaram novamente em uma espiral de mesmice, angústia e
previsibilidade: a mesma quietude e luminosidade, as mesmas
contorções e impaciências: era como se a entrada de Delvaux
adensasse a escuridão e intensificasse suas dúvidas e anseios.
Escorou no parapeito para liberar um violento refluxo, porém antes
da acidez tocar a língua, um estrondo de vidro estraçalhado vindo
da casa o obrigou a vomitar um berro de desespero:

-Salvatoreeee!!!!

-Socorro!! Socorro!!!

Envolta na luminosidade raquítica encobertada pela névoa,


uma forma humana à frente do umbral descia a colina
ziguezagueando como uma bússola cega, e acima da cobertura da
varanda, a janela estraçalhada expelia uivos animalescos que
penetraram em seus tímpanos como badalares infernais.

-Ele!!! Eleee!!!!

-Estou indo Salvatore!!!


Rossi disparou em direção ao amigo, mas antes de alcançar
a última seção da ponte percebeu que os gritos de socorro vinham
de Delvaux escorado no parapeito.

- Ele!!!

-O que aconteceu com o S-Salvat...

Rossi petrificou quando a proximidade revelou a realidade


de Delvaux: na altura da testa, uma manta de pele balançava como
uma cortina rubra de carne crua e sangue coagulado, encobertando
parcialmente uma órbita que pendia da cavidade ocular como um
pêndulo orgânico; jorros de sangue nas bochechas sugerindo
lacerações profundas se fundiam no pescoço com o vermelho vivo
dos nervos expostos; tentou falar, mas foi impedido quando
vislumbrou o couro cabeludo rasgado ao meio, como duas folhas
abertas de um livro de carne.

-Ele!!!!!

-Sim, sim o que aconteceu com o...

-Ele, ele que uiva e berra na casa, escute!! O monstro


mutante no porão me atacou!!! Me ajude...me...

-Estou indo pegar o Salvatore, espere...

-Não, não! Ele, ele tem... É horrível...e carnívoro!

Uma onda gélida envolveu Rossi como uma manta polar


perpétua.

-É...é...-Delvaux articulava as palavras com movimentos


convulsivos- É horrível!...Tem cabelos pretos, pele lisa... d-d-duas
pernas e uma BOCAAAAA!!!!- Em um último gesto de dor e
desespero Delvaux se joga da ponte, e nem o avançado reflexo dos
quatro olhos laterais de Rossi e oitos tentáculos pegajosos,
bastaram para salvar o pobre diabo da fúria carnívora das piranhas.

FIM
Final alternativo: O monstro é Salvatore.

RAMON BACELAR

Ramon Bacelar nasceu em Vitória da Conquiista, Bahia em


23 de abril de 1971. Aos dez anos ganhou da mãe os primeiros
livros da coleção Vaga Lume e não parou mais. Sua adolescência foi
dominada pelos livros da Agatha Christie e alguns anos mais tarde
sofreu um choque estético-existencial ao descobrir os livros da
Patricia Higsmith, A. E. Van Vogt , Philip K. Dick e os quadrinhos do
Neil Gaiman e Alan Moore. No final dos oitenta não queria saber de
estudar e nas muitas horas vagas estourava os tímpanos ouvindo
Metallica, Camisa de Vênus e Ramones. Não possui cães nem gatos
mas tem como bichinho de estimação um ghoul que mora atrás do
espelho. Hoje, com sardas nas costas e talvez um pouco mais sábio,
tem como passatempo cinema e séries de tv bolorentas, escrita,
leitura e se dedica ao adestramento de traças e ácaros, guardados a
sete chaves em tomos antigos do Lovecraft e Arthur Machen .

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