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Vida é o quê?

Peça teatral em ato único

Veronica Diaz
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O início e o final da peça se passam em dois apartamentos de prédios vizinhos (ou

de dois blocos do mesmo prédio), muito próximos um do outro, no 15o. andar. Um

deles tem um varal de roupas.

No meio da peça os personagens descem e ocupam uma área comum com restos

de material de construção, canos, etc., que pode ser no centro-proscênio do palco.

Palco escuro. Barulho de carros, burburinho da cidade no horário de rush. Som de

chave, o rapaz entra, acende a luz. Ele vem pra sua janela e então fica paralisado.

Rikardo (grita) NÃO!!! (corre pra janela )

Ilumina-se o beiral do apartamento em frente.. Uma mulher tenta se jogar. Ela está

quase caindo quando ouve o grito. Se descompõe um pouco, mas segue no intento.

Rikardo Não faz isso! Não faz isso, não agora. Não...é... por favor. São 15

andares... Eu tô pedindo, por favor!

Ela olha para ele.

Rikardo Não na minha frente, pelo menos. Eu... vamos... calma, é... você tá

sendo muito radical, é... 5 minutos, vamos combinar, me dá 5 minutos.

Eu conto no relógio (mostra o relógio de pulso), você não se joga nos

próximos 5 minutos. Eu te aviso, prometo, eu dou uma bandeirada,

assim (faz com o braço) e você vai. Que nem piloto de fórmula 1:

segura na mão de Deus e vai.

Ela ri, se desequilibra e quase cai.

Rikardo (grita) NÃO!!! (olhando o relógio) Eu ainda não dei a largada, você vai

ser desclassificada, garota.

Maurineide Garota, sou não.

Rikardo Nnnnão, claro que não, você é quase uma... uma... um piloto de
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corrida, só que sem capacete. Que pressa, hein? O frango mais veloz...

(para si) a galinha, no caso... Vamos... é... vamos o quê, meu Deus?

Eu tô em cima da hora (olha novamente o relógio) Bom, paciência...

vamos conversar. Você pode chegar um pouco mais pra trás? Pode?

(ela se aproxima) Ah, obrigada... Como é mesmo o seu nome?

Maurineide E te interessa por causa de quê?

Rikardo Bem, a rigor é só uma...

Maurineide Não falo com gente que eu não conheço.

Rikardo (rapidamente) Olha, a princípio eu também não. Mas em certos casos,

eu diria até que na maioria deles, não estou bem certo, a única maneira

de começar a conhecer alguém é fazer uma exceção a esta regra, isto

é, permitindo-se conversar com alguém que antes não conhecíamos.

Assim penso eu. Mas eu disse em certos casos, porque me parece que

também seja possível começar a conhecer alguém sem

necessariamente ter que falar com essa pessoa, falar, eu digo, com a

boca, a língua, o ar que sai dos pulmões, etc. É possível conhecer,

pelo menos inicialmente, por outros meios, outras linguagens...

Maurineide Tá que fala e fala, boca que mexe, é o quê? Eu, nada.

Rikardo Bom, é... essa já é uma outra questão, a compreensão. Hum...Vamos

por partes, como dizia Jack.

Maurineide Quem que é Jack?

Rikardo Uma coisa de cada vez.

Maurineide Namorada, é?

Rikardo (rapidamente) Ah, você está querendo conhecer o Jack. E sem falar

com ele, está vendo? Até porque seria impossível, o famoso estripador
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já foi. Mas está aí, obrigada, é uma comprovação do que eu estava

falando antes: é possível conhecer uma pessoa sem falar com ela, o

que significa que falar não é a única maneira de se começar a

conhecer.

Maurineide Ô louco. Ocê fala sempre é tanto assim? Demais, chega tô tonta.

Rikardo Pra falar a verdade, eu também. (respira fundo) Olha, não precisa me

dizer seu nome, mas será que você podia sair da marquise? Eu quero

dizer, pra lá, sair, pra dentro. Você falou que está meio tonta, melhor

não...

Ela atende, recua um pouco e senta no beiral da janela, mas para o lado de fora.

Rikardo Ótimo, eu fico mais tranquilo agora.

Maurineide É. A pessoa pra escutar ocê falar tudo isso tem é que sentar, senão

cansa.

Rikardo É que você só me deu 5 minutos.

Maurineide Eu, nada. Ocê que inventou isso, de brincar de carrinho. Cê é besta?

Rikardo Eu? Nnnão. É... como é mesmo o seu nome? É que, você não leva a

mal, não. Eu... eu vou ter que sair agora, é um compromisso

importante. Muito importante. O Seu Junqueira...

Maurineide O que é que tem?

Rikardo O Seu Junqueira é meu chefe. Ele... ele disse que era importante ir lá,

comparecer a esse evento. (olha o relógio novamente) Meia hora, meu

deus.

Maurineide Ih, ocê perdeu foi a loção do tempo.

Rikardo A loção?

Maurineide Ué, não era 5 minuto? Agora já é meia hora?


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Rikardo Eu posso ser contratado, entende?

Maurineide Melhor ocê ir.

Rikardo Ai, mas aguentar o Seu Junqueira...

Maurineide Melhor ocê ficar.

Rikardo Olha, eu vou ter que sair, mas não vou demorar muito. Ó, eu não quero

que você faça nenhuma besteira, hein?

Maurineide Faço o que eu quiser. Ocê não me manda.

Rikardo Mas você é sempre assim tão mal educada ou só quando está

querendo se matar e tem alguém atrapalhando? Aliás, me diz uma

coisa, ô, vizinha, só por curiosidade: você já tentou outras vezes?

Quantas vezes? E como é que foi? Foi bom pra você? Tinha sempre

um... um bobalhão ali por perto dificultando o acontecimento ou é a sua

primeira vez? Não, porque se é a primeira vez, eu fico um pouco

preocupado, vai que você consegue, eu fui a última pessoa que falou

com você, vão querer o meu depoimento, sabe como é. Mas se você já

tentou outras vezes, vou embora descansado porque se não conseguiu

das outras é porque nem isso...

Maurineide Para, para de falar, fecha essa boca que mexe! Inferno! (pausa)

Primeira vez.

Rikardo (olha o relógio, suspira, desiste) Desculpa, Seu Junqueira, desculpa.

Maurineide Vai logo! Anda, vai embora, foi não? Ôi, mas é

quéquéquéquéquéquéqué! Fala que fala, que entope as oreia da gente,

inferno de bicho falador, eita.

Rikardo (rindo, mais calmo) Olha ela, resolveu falar! Muito bem, cara vizinha,

sabe que eu concordo? Eu também gosto de silêncio, principalmente


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quando estou em casa. Mas, se não se ofende, convém lembrar que se

a senhora está aqui reclamando do meu falatório em vez de estar

espatifada lá embaixo sujando a área interna do edifício com o seu

sangue, seus músculos, ossos e tudo o mais, é justamente porque eu

desembestei a falar quando a vi pendurada aí nessa marquise. Que se

não fosse pelo meu falatório, a senhora teria descido 15 andares em

queda livre, chegando ao solo em apenas... só um instante... 3m por

andar... 45... 90... em 3 segundos, cara vizinha. Uma perda e tanto.

Toda uma vida – quantos anos?

Maurineide Eu?

Rikardo Tem alguém mais aqui querendo se jogar? Ainda bem. Só por hoje.

Maurineide Sou moça. Inda nem fiz 30.

Rikardo Tá muito bem. Ôps, quer dizer, tudo bem, tanto faz. Toda uma vida em

apenas 3 segundos. E mais, o seu corpinho chegaria com uma

velocidade aproximada de... 30m/s. Em resumo, a senhora – perdão, a

senhorita ia “atropelar” o chão com uma velocidade de uns 100km/h.

Poft! E o resto seria silêncio.

Pausa

Maurineide Ô, louco. Cê é besta? (olha da marquise para baixo. Pausa) Cê gosta

mesmo de brincar de carrinho, né?

Pausa

Rikardo Eu, né? Hum... Melhor do que o trabalho no escritório, seria, sem

dúvida. Se é que eu ainda tenho...

Maurineide Vai. Pode ir. Vou atropelar o chão mais não.

Rikardo Não dá mais tempo. (pausa) Pra falar a verdade, acho que eu não
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queria ir.

Maurineide Sei.

Rikardo Posso te fazer uma pergunta?

Maurineide Poder, pode. Tem boca, né?

Rikardo Por quê?

Maurineide É o quê?

Rikardo Porquê que você estava aí. Por quê? (pausa) O que foi que houve pra

você fazer isso? O que é que tem que acontecer pra alguém ter a

coragem de acabar com tudo desse jeito?

Maurineide Vai dizer c’ ocê nunca quis?

Rikardo Eu, não. Por quê, eu deveria?

Maurineide Uai, morando aqui.

Rikardo Como, assim? Aqui, no Rio? Em Copacabana? Então você acha que

todo o mundo que mora a dois quarteirões da praia mais linda do

mundo devia se jogar do 15o. andar? Tá louca.

Maurineide É nada. Tô falando é desse aperto que é aqui, dessa vida d´ocês, essa

vida que é louca, eu que não. Sei nada, vai ver que acostuma, que nem

gado, não costuma? Eu que não.

Rikardo Você veio de onde?

Pausa

Maurineide De longe. Do matão.

Rikardo Do interior, você diz? Da roça, não é? É, imagino, você deve estranhar

muito a vida na cidade, o barulho, as pessoas...

Maurineide Elevador. A pessoa na maior pressa fica um tempão esperando o

diacho da máquina em vez de descer de a pé. Fica só xingando e


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batendo a porta, e no que chega, a pessoa quase que quebra a

máquina, ô louco, isso é vida?

Rikardo Mas ô... (tenta lembrar seu nome) Bom, não é todo mundo! E não é

sempre que é assim.

Maurineide É. Ás vezes não tem elevador e as pessoa xinga e chuta é porque não

tem, porque tem que descer de a pé. Ô louco, só tem doido.

Rikardo O pior é subir. Mas o bom é quando é térreo, né? Na roça é assim,

tudo térreo, horizontal. Mas ô... (tenta lembrar seu nome) Deixa. Então,

você queria se jogar por causa do elevador?

Maurineide Cê é besta, eu, hein? Vê lá.

Rikardo Não, mas espera aí, então você não me respondeu. Todo dia chega

aqui um monte de gente do Norte, do Nordeste, do Sul, de fora do país

e... tudo bem, deve ter alguns que se jogam do 15o. andar – ou do 14o.,

ou do 20o., não vem ao caso.

Maurineide Até da ponte, teve um que se jogou.

Rikardo É, sempre tem. E isso pra falar só dos que escolhem a gravidade como

cúmplice, os que se jogam, quero dizer, porque as estatísticas...

existem muitos casos de asfixia por gás de cozinha, envenenamento...

Maurineide Bala sem ser perdida, gilete, atropelado, afogado, enforcado, degolado

que nem galinha, a cabecinha pendurada só pela pelinha do pescoço,

queimado vivo, choque elético, marrado - marra assim, bezunta com

mel, bota pro rato comer, trator - passa por cima, vira papel, bebida,

bebida, droga de cheirar, droga de fumar, droga de por na veia, droga

de cumer...er...um bocado de droga.

Rikardo (rindo) Nossa, mas você é uma especialista!


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Maurineide Adivinha onde que eu aprendi.

Rikardo Eu nunca tinha pensado essa multiplicidade de opções mórbidas. Você

parece ter pós-doutorado em técnicas de auto-eutanásia.

Maurineide Boca que mexe e mexe, fala nada, cê é besta. Mas aqui, ocê acha que

tem disso lá no matão?

Rikardo Ah, claro que tem, não vamos ser ingênuos. Bem, claro, as motivações

podem ser distintas, em uma comparação entre o meio rural e o meio

urbano, não sei, um sociólogo talvez pudesse....

Maurineide Ih, lá vem ocê com essa barulheira outra vez, que inferno! Onde que

desliga?

Rikardo Eu... desculpe. Ah... é que a discussão é muito interessante, eu fui...

Bem, mas o fato é que as pessoas bebem e se drogam e se matam

desde que o mundo é mundo. Esta não é a questão.

Maurineide Então bom.

Rikardo A questão é que você não me respondeu.

Maurineide Não?

Rikardo Não.

Maurineide Ói, cansei. (pausa) Ocê perguntou foi o quê?

Rikardo Eu perguntei porquê. Por que que você quis. (pausa) Aconteceu

alguma coisa, não foi?

Pausa

Maurineide Tá. Vou contar. (olha para os lados) Mas aqui não dá, não.

Rikardo É, muito longe… Você quer … Na minha ou na sua? Ôps, desculpe.

Maurineide É o quê?
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Rikardo Não, nada. (para si) Cada coisa que me passa...Âhn... Você quer vir

aqui pra minha casa?

Maurineide Isso lá é casa? Um ôvo. De codorna.

Rikardo (rindo) É um átomo. Menor que um átomo: um próton, um elétron.

Maurineide Vamo lá embaixo.

Rikardo Lá onde você ia se estatelar? (pausa) Ãhn... tá, tudo bem. Mas nada

de cortar caminho. Vamos por dentro, certo? Pelo elevador.

Maurineide É. Ou então de a pé. Tem pressa por causa de quê?

Rikardo É, não, agora não tenho mais pressa nenhuma. Você também não, né?

Hum...se não se importa, eu quero ver... Eu vou esperar você descer.

Pode ir, eu encontro você lá.

Ela sai, ele sai em seguida. Mudança de luz e ambiente: área comum no centro do

palco. Os dois se observam constrangidos.

Maurineide Ocê demorou.

Rikardo É, o elevador... (sorri. Fala junto com ela) Você parecia mais magra.

Maurineide (junto com ele) Achei que ocê era mais alto. (riem)

Rikardo Imaginei...quer dizer... Diferente lá de cima, né?

Maurineide É, chegou aqui achatou tudo.

Rikardo Pode ser que a mudança de ponto de vista ocasione uma deformação

espacial em um dos eixos, provavelmetne uma ilusão de óptica,

semelhante a... ah, desculpe, eu... (olha em volta, pega um caixote,

limpa, oferece para ela sentar) Bem, então?

Maurineide É o quê?

Rikardo Você ia me contar o motivo da sua... tentativa.

Maurineide Ah, foi. (pausa) Deixa eu ver (olha em volta) Isso. Ela tava sentada no
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trem. No trem, não, é metrô que chama. Daí apareceu ele.

Rikardo Ele, quem?

Maurineide Ãhn...Por aí, assim. É... cara feia.

Rikardo Eu?

Maurineide É, não, mais ou menos. Ele é que tinha... não, tinha, não, é que...

Rikardo Você parece perturbada, um pouco confusa, eu entendo. Acho que

relembrar pode ser... Olha, eu posso te ajudar...

Maurineide (sorri) Ele só tava era de cara feia.

Rikardo Mas do que é que você está falando?

Maurineide Você não perguntou? Tô contando. Hum... desconfiado. Armando o

bote, sabe? (pega outro caixote, coloca ao lado do anterior, senta) No

começo, eu nem. Tava mais gostando, andar de trem debaixo da terra,

fresquinho, e tal. Toda de nuvem, que eu tava ali, quase que cantando.

Depois foi que eu fui dar conta, que ele não parava era de olhar pra

ela. Então? Olha!

Rikardo Tô olhando, só pra você.

Maurineide Agora que é. (muda de lugar) Presta atenção, ocê é ele, agora eu é

ela. Mas ele olhando, meio que no encanto, tomado assim dum feitiço,

dum amor. Ih, ela nem. Mas daí logo eu fui ver que ele olhava muito

também era pro comparsa dele, atrás. Um tipinho assim, desses que

não respira confiança nenhuma.

Rikardo Inspira.

Maurineide Tô inspirando. Então.

Rikardo O tal tipo, não inspira confiança nenhuma.

Maurineide Pois então eu não vi? Que os dois tava mais era estudado pra roubar,
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só cercando.

Rikardo Ah, é?

Maurineide Vai, faz aí. (ele resiste, mas faz) Ôu, mas e o comparsa?

Rikardo Fiz o cara olhando pra ele, como é que eu vou fazer os dois se eu sou

um só?

Maurineide Uai, e eu não tô fazendo é duas?

Rikardo Ah, está? Eu não tinha entendido...

Maurineide Jesus crucificado, virge santíssima!...Ai, o seu Junqueira aqui... Ó, não

tem duas caixa? Eu não sento uma hora aqui, outra hora ali?

Rikardo Pois é, não sei porque é que você não para quieta num lugar só. Fica

tudo tão confuso!

Maurineide Ah! Eu é duas, tô sendo duas. Tô sendo eu e tô fazendo ela, por isso é

que tem que ter duas caixa.

Rikardo (rindo) Certo, agora entendi. Claro, dois corpos não ocupam o mesmo

lugar no espaço. Então quando você está lá...

Maurineide É eu.

Rikardo Sou eu

Maurineide Não, ocê é o moço. Lá é eu.

Rikardo Tá, tudo bem. Então, quando você está aqui...

Maurineide É ela. É que eu é ela.

Rikardo Escuta, eu já entendi que você não quer me dizer o seu nome...

Maurineide É Jéssica.

Rikardo É o quê?

Maurineide É Jéssica, que é o nome.

Rikardo O seu, você, ou o seu, ela?


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Maurineide É eu.

Rikardo Sou eu. Quer dizer, você. Jéssica. E ela?

Maurineide O que é que tem?

Rikardo Qual é o nome dela?

Maurineide Ah, é... Oneurília.

Rikardo Ah, sei. E você é “o” Jéssica.

Maurineide (rindo) É, não, é Jéssica. E ali (aponta para o 1o. caixote) é Neurília.

Rikardo Tá, tá bem. Vamos só recapitular, senta lá: (ambos vão refazendo) a

Jéssica estava no metrô com “O” Neurília, quando entrou um homem...

Maurineide Moço.

Rikardo Quando entrou um moço que ficou apaixonado pela Neurília. Mas esse

moço – este cara aqui – tinha um comparsa (desloca-se para mostrar)

Um ladrão, e...

Maurineide Os dois era ladrão. De carteira.

Rikardo Entendi. Bem, e daí?

Maurineide Aí o comparsa começa a falar umas coisa pra ele...

Rikardo O quê?

Maurineide É o quê?

Rikardo O que é que o comparsa fala pra ele?

Maurineide Ah, eu vou saber? Não deu pra ouvir, com o barulho do trem!

Rikardo Tá, tudo bem. E depois?

Maurineide Então o moço ficou foi uma agonia, e olhava pra lá, e pra ela, e depois

pra ele... Inté que o outro começou empurrar ele.

Rikardo Péra aí. Quem empurrou quem?

Maurineide Ai, meu santo cristo.


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Rikardo Ô, Jéssica, e eu não tenho nome, não?

Maurineide Uai, e eu que sei? Se nem ocê sabe.

Rikardo Eu digo, esses dois aqui em pé, no meio do corredor, o moço e o

comparsa, qual é o nome deles?

Maurineide Mania de nome, ocê. Queria ver, o tanto de gado, ocê tendo que

batizar cada um, e depois os bezerro, uns nascendo, outros

morrendo...Ocê fazendo essa confusão toda com um pinguinho de

gente... Ih...

Rikardo Tem nome ou não tem? Descomplica, Jéssica, pelo amor de deus.

Maurineide Tem. O moço tem, é Marlon. Tinha. Morreu. O outro, tem nome não.

Rikardo Como é que é? Morreu? Eu estou fazendo o papel de um defunto?

Maurineide Ni que eu tô contando ele ainda não morreu, não. Fica vivo aí. Então. O

de trás fica empurrando o Marlon...

Rikardo Por quê?

Maurineide Acho que era de apressar, pra eles pegar logo uma carteiras de algum,

ou então de roubar noutro lugar. Ou que ele viu foi que o Marlon tava

de muito namorado da Neurília, que não ia dar jeito deles sair dali

assim, normal. Faz lá.

Rikardo O quê? Empurrando?

Maurineide É.

Rikardo (representando) Tá bom assim?

Maurineide Tá.

Rikardo Tá, e depois?

Maurineide E aí...bom, aí foi que foi. Que a Neurília, tanto que o Marlon olhou pra

ela, que ela pegou e começou de olhar também, né? Um homão...


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Rikardo Moço, você disse.

Maurineide (encarando-o) Um homão de bonito que é. Quer dizer, era, foi. Ela foi

olhando e me cutucando, eu nem, inté que parece ela percebeu.

Rikardo O quê, percebeu o quê?

Maurineide Que conhecia ele de algum lugar.

Rikardo Então ele também percebeu que a conhecia!

Maurineide Ele já sabia, que toda vida sempre ele foi paixonado por ela!

Rikardo O...o ladrão? Eles se conheciam? Mas então ele desistiu do ...

Maurineide Então aí que foi que ele resolveu de tirar a bolsa dela.

Rikardo Verdade?

Maurineide Vai, faz!

Rikardo (pega o chapéu do colo dela) E agora? Ele foge, tenho que fugir!

(simula uma corridinha)

Maurineide (rindo) É, foi isso mesmo. Tava já era assim, saindo quase do vagão!

Só que aí...

Ambos paralisam como estão, ela está como hipnotizada

Rikardo Aí, o que aconteceu? Não me deixa no ar em pleno vôo, assim eu vou

cair. O que é que houve? Fala!

Maurineide (lentamente) Aí, nessa hora, eu parece que... eu podia... (pausa)

Rikardo O que é que você fez comigo, Jéssica?

Maurineide Eu gritei de todo mundo ouvir, inté na estação: “Marlon! É ocê, Marlon!

Mas ocê virou ladrão? Veio pro Rio pra virar ladrão?” E foi maior

confusão, a Neurília: “Mas é o Marlon? o nosso Marlon?” E o povo foi

em cima: “Ladrão, pega, pega, adevolve a bolsa, chama a polícia”, e a

polícia forçando a porta e baixando o pau, a sirene do trem e a gritaria,


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todo mundo: “é bala, abaixa, é nada, é 3 morto, é bomba”...

Rikardo (aproxima-se, tocando-a) O Marlon morreu?

Maurineide Depois. Ali foi é preso.

Rikardo E o comparsa?

Maurineide Nnada, conseguiu fugir.

Rikardo E aí?

Maurineide Eu mais Neurília é que a gente choramo uns 3 dia, que o Marlon

morava ali quase na cerca da gente. Com ela, os dois foram na escola,

de pequeno, de aprender a ler... que eu não, fiquei pra depois, mais

novinha, eu.

Rikardo Ah, Oneurília é sua irmã?

Maurineide Ué? E não? (pausa) Não fosse, podia de ter sido diferente.

Rikardo O quê, por exemplo?

Maurineide Tudo. Nada. É... só pensando.

Rikardo Bom, mas você está pulando uma parte. Ele acabou de ser preso.

Maurineide Coitado, penou o diabo aquático.

Rikardo (rindo) A quatro.

Maurineide Penou o diabo.

Rikardo Aqui na terra, né?

Maurineide Ou, mas vai ficar me corrigindo toda hora? Na cadeia. (pausa)

Ladrãozinho de merda, vai roubar bolsa de mulher, é o quê, é pra usar,

é?

Rikardo Calma, tá tudo bem.

Maurineide (avança para ele) Tudo bem, nada, tem vergonha, não?

Rikardo Puxa, desculpe.


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Maurineide (batendo nele) Toma, que é pra aprender, vagabundo...

Rikardo Ai, está machucando, para!

Maurineide (batendo) É pra machucar, mesmo, não é macho? Então fica

machucado, uai.

Rikardo Chega!

Maurineide (batendo) É chega, o quê. Cala a boca. Aqui cê não manda é nada, ô,

caipira. Cala essa boca.

Rikardo Mas, Jéssica...

Maurineide Mandei calar a boca! (dá-lhe um tapa, então se assusta e para de

repente representar) Virge santa, machucou?

Rikardo Nnnão, tudo bem. Não foi nada. Quer dizer... Mas e aí, o que é que

aconteceu?

Maurineide Ah, chega, vai.

Rikardo Ah, não, Jéssica, acaba de contar.

Maurineide Bom. Aí...Deixa ver.

Rikardo Na cadeia. O Marlon tá apanhando.

Maurineide Ah, é. Foi. Dia que deixaram a gente entrar, olhamo, olhamo. Quase

que nem era ele. Santo deus!

Rikardo Tô aqui. Me dá a mão. Bom que você está aqui. Não tenha medo, não.

A gente podia...

Maurineide Marlon, meu querido, amor da minha vida que eu não te esqueci. Des

´que ocê veio pra cá que eu não parei de pensar um dia só n´ocê. De

verdade que eu vim aqui pra cidade era ver se te achava, ô, meu deus.

Então ocê fala assim: (ela dá o texto para ele repetir) “Querida, minha

querida, é ocê? ”Mais emoção! “Que falta eu senti d’ocê esse tempo
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todo”

Rikardo Querida, minha querida, é ocê? Mais emoção. Que falta eu senti d’ocê

esse tempo todo. Tão sozinho...

Eles se aproximam. Depois se separam, constrangidos.

Rikardo Desculpe, Neurília. Ô, não, perdão, Jéssica.

Maurineide Maurineide.

Rikardo Como?

Maurineide Meu nome.

Rikardo Marineide? Não é Jéssica?

Maurineide É não. Que no cabelelero que a Neurília trabalhava ela era Jovana, e

pra mim foi Jéssica, que a dona lá achou bom, “Jéssica e Jovana, é pé

e mão”. (pausa) O nome seu, qual que é?

Rikardo Rikardo. Com K.

Maurineide Ué, e tem Ricardo sem ca? Deixa ver, ri-car... Ué, aí fica...como é que

fica? Não dá, fica rirdo...Ó, taí, bom nome, Rirdo. (ri) Êia, parece que o

nome fica rindo o tempo todo.

Rikardo Se você riu, então é bom.

Maurineide É, não. E não ri. Eu não rirdo, eu ri do ri...car.. rir dor car (rindo)

Rikardo (rindo) Riu, Marineide, você riu! Você riu do Rirdo.

Maurineide Ocê que riu, Rirdo. Riu car do, conheço o rio Pardo (gargalha, depois

fica séria) É Maurineide, que é meu nome. É Maurílio e mais Oneide.

Rikardo Seus pais? (ela concorda movendo a cabeça) E Oneurília é Oneide

com Maurílio.

Maurineide Adivinhou.

Rikardo Os seus pais ainda são vivos, estão lá?


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Maurineide (aponta para cima) Lá. Cascavel, foi, minha mãe picou. Veneno, não

´guentou nem dois dia. Tem tempo, já. Daí depois o pai, teve jeito, não.

Foi, foi, só murchando, que ela é que era a água dele. Tem pra mim

que ele quis. Que a pessoa morre é quando quer.

Rikardo E se o vizinho deixa, não é? (pausa) Jéssica, você não acabou de

contar.

Maurineide Ai, Marlon, meu amor, cansei... ô, tsssq, ai... Ô, seu Ricardo, cansei.

Rikardo Ah, o Marlon era seu...?

Maurineide Meu? É, quer dizer, não. Modo de falar.

Rikardo Você gostava dele, não é?

Pausa

Maurineide Não, eu não. A Neurília... (pausa) Sempre. Mas nunca, eu nunca.

Rikardo Ele sai da cadeia?

Maurineide Sai.

Rikardo Ele encontra... Quem ele encontra?

Maurineide Ai, cristo santo. Ele sai da cadeia... O Marlon, ele...deixa eu ver...ele

pega e telefona pra Neurília, eles marcam de se encontrar. Isso.

Rikardo Aonde?

Maurineide Ué. (pausa) Ah, sabe aquela praça que tem no Lido? Tem uns banco

lá, não tem? Então. Ela não queria que eu fosse, tava cheia de raiva de

mim.

Rikardo Mas ela não sabia que você...

Maurineide Nnnão! Mas era por causa que foi porque eu gritei que ele foi preso, e

depois, tudo o que fizeram nele, e tal. Tudo culpa minha, né?

Rikardo Não, claro que não.


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Maurineide Eu só falei o nome dele, nem pensei nada, na hora. (falando como a

irmã) “É, mas tinha que pensar, uai! Sai falando, falando, boca que

mexe, vê só no que dá, parece que não sabe o que que é polícia”.

(voltando a si) E isso que até foi sorte de chegar a maldita polícia, que

podiam de ter matado ele bem ali na hora, no trem, já debaixo da terra,

que ali ficava.

Rikardo Entendo.

Maurineide (como Oneurília) “Sorte, sorte! Sorte a tua d´eu não te partir a cara, que

a polícia fez muito pior, que ficou matando ele 3 dias seguido em vez

dum só. E tudo por causa de quê? Dessa boca, dessa língua comprida

que tu tem, sapa!”

Rikardo Sapa?

Maurineide É, mulher do sapo, ué.

Rikardo Ah, pensei outra coisa.

Maurineide Sapo, sapa, faz assim, ó (mostra a língua, faz como se fosse lambê-lo)

pega bicho, mosquito.

Rikardo (assusta-se, depois ri) Ai! É comprida, mesmo!

Maurineide Não é, nada! (pausa) Vou contar mais, não.

Pausa

Rikardo Não é comprida, não. Falei de brincadeira. (pausa) A praça do Lido é

aquela que é frequentada por muitas “moças de família”... e que tem

um relógio na esquina, não é?

Maurineide É.

Rikardo E o Marlon, ele veio de onde? Desse lado, do relógio?

Maurineide Não sei, eu não vi.


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Rikardo Como, não viu? Você não estava lá? Você deve ter visto alguma coisa!

O que é que aconteceu depois?

Maurineide Péra. Eu...num disse que ela tava com raiva? Não deixou.

Rikardo Mas depois ela te contou, alguém te contou. O que é que aconteceu?

Maurineide Ai, meu deus. Ela tava aqui, assim, esperando, olhando. Demorou.

Então foi dali, ele veio dali.

Rikardo Aqui?

Maurineide Mais pra cá, aí. Vem vindo. (ele vem) Tava contente, de longe dava pra

ver. Bonito, banhado, penteado.

Rikardo Obrigada, obrigada.

Maurineide (rindo) Convencido.

Rilardo Tá, mas e aí?

Maurineide Ela que viu primeiro. (faz a irmã, acena) “Marlon!” Ni que ouviu, ele abriu

os dois braço, abriu o sorriso do tamanho do mundo e... (para de

repente)

Rikardo (aproxima-se) E o quê? Não para assim, Jéssica! Ô, desculpe,

Maurineide. Mas não dá, na hora que eu tô começando...

Maurineide Pois foi nessa hora, bem aí, que a gente ouviu o tiro.

Rikardo Péra aí, você ouviu? Um tiro?

Maurineide Foi dois.

Rikardo Mas você estava lá?

Maurineide Ah, eu não ´guentei de ficar sozinha, fui lá escondido. Eu fiquei aqui,

atrás da árvore, assim. Vai pra lá.

Rikardo Mas espera aí. De onde é que veio o tiro?

Maurineide Não sei. Vai saber. Anda, vai lá.


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Eles refazem a cena desde o momento em que Oneurília espera, acena para

Marlon, ouvem-se 2 tiros, ele vem cambaleando até ela.

Maurineide Marlon vinha chegando na praça todo garboso...irresistívi! Neurília,

esperando, paciente já, bateu os zóio nele: "Marlon!". Fisgado pelo

rabo dos ouvido, ele olhou pra ela, abriu aquele sorriso completo -

faltando um dente só ou dois -, iscancarô os braço, ingual o Cristo que

arrebentô e...dois tiro no peito! O sangue começou a brotar de sua

carne...seus zóio foi ficano esbugaiado...a boca trêma...foi caino,

caino...

RiKardo Morreu?

Maurineide Inda não!

Rikardo Viveu!

Maurineide Neurília que nem istauta: "Marlon, meu amor, não morre não, meu

querido!". As pessoa tudo parou pra vê: o pipoqueiro, os gringo...

Rikardo As moças de família, sei. E aí?

Maurineide Eu detrás da árvre: "Que que aconteceu?". Neurília descongelou: "Ma

ocê tava aí? O quê? Ocê que atirou nele?". Os carro tudo paradinho

pra bisoiá; garrafamento chegava inté no aterro (Ele faz sons de buzina

e sirene). Eu gritei: "Atiraram nele? Marlon!". Fui correno na direção

dele, e Neurília também...os pombo tudo voano (Ele imita os

pombos)...inté que eu dei u'a rabanada em Neurília, ganchei Marlon em

meus braço, ele olhou bem no fundo dos meus zóio...(eles se abraçam)

Rikardo E disse:

Maurineide Eu vou morrer com essa lembrança.

Eles quase se beijam.Separam-se constrangidos.


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Rikardo (para si) Eu tô perdido. Todo errado. (levanta-se) Mas quem é que me

matou? Quem atirou?

Maurineide Vai saber. Ninguem não sabe, ninguém viu. Ih, com tanto tiroteio que

tem aqui, dia sim, outro dia também, quem que vai ligar? Õ louco.

Depois, um caipira, um ninguém.

Rikardo Chamaram a polícia?

Maurineide Ah, sei lá. Ãhn...a Neurília ficou achando que era eu que atirei. Brigou,

brigou, brigou comigo.

Rikardo É, é meio estranho...

Maurineide Ocê tá pensando...? Eu nunca que eu ia fazer isso. Nunca. O Marlon.

Rikardo É...Eu sei. Mas ela não sabia.

Maurineide Foi embora, me deixou sozinha, pensando sempre que eu que...

Rikardo Mas de onde veio o tiro?

Maurineide Ué. De onde. D´uma arma, uai.

Rikardo Mas a polícia não...

Maurineide O comparsa! A polícia diz que deve de ter sido ele, que o Marlon

parece que entregou ele, eu sei lá.

Rikardo (desconfiando) Sei.

Maurineide Sabe nada, que sabe o quê? O quê que cê sabe? Tssq... Ah!

Rikardo Calma.

Maurineide É calma, o quê. Inferno. A pessoa chega fica com os nervo da cor da

pele.

Rikardo À flor da pele.

Maurineide E pronto. Chega. Contei. Não era isso que cê queria? Contei, agora já

sabe. Tem Marlon nenhum, Neurília, tem pai nem mãe, nem dinheiro,
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então vou-me embora.

Rikardo Embora pra onde?

Maurineide Eu vou... ah, eu vou ora.

Rikardo Olha a bobagem.

Maurineide Tssq. E lá tem onde ir, nesse inferno que é essa cidade d´ocês?

Rikardo Olha, pra onde ir, tem... você quer...? (pausa) Ãhn...Espera aí, deixa eu

entender: você está com saudades da sua terrinha? Aquela poeira

toda, mosquito, muriçoca e porco e vaca e galo cantando às 5 da

manhã, aquela delícia cremosa, é isso?

Maurineide Ó, cê não sabe, devia era se abastecer de dar opinião.

Rikardo Tá, vou me abster, não vamos nos matar por causa disso, certo? Mas

vai dizer que na roça tem muitas atrações, muitos lugares onde se

possa ir?

Maurineide Êia. Cê é besta, já foi lá? Tá falando sem saber. Lá tem campo, tem

pasto, tem mato. A pessoa quer andar, vai. Aqui, andou, tem rua, tem

carro, tem poste, barulho, fumaça. E gente, gente que não acaba mais.

Rikardo Ah, é verdade, tem gente de todos os tipos, formas e cores. Tem até

Marineide.

Maurineide Ô quê. Lá é bicho solto. Aqui, inté os gato só sabe ver televisão. Sabe

brincar, não! Fica lá o gato, deitadão no sofá, comendo comida de

pacote, igualzinho que os dono. Vida besta, isso lá é vida? Tssq. Ah.

Rikardo Posso te fazer uma pergunta?

Maurineide Poder, pode. Tem boca.

Rikardo Por quê que você veio pra cá?

Maurineide Aqui no Rio? Aqui na Copacabana?


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Rikardo É. Por quê?

Maurineide Neurília. Ela que veio primeiro. Eu foi depois.

Rikardo E ela? Por que é que ela veio pro Rio?

Maurineide Ah, pra quê. Trabalhar. (pausa) Causa do Marlon.

Rikardo O Marlon. Então ela sabia... Mas você... Você também veio atrás dele.?

Maurineide Eu foi depois que eu ...

Rikardo Sei. E ele sabia que você vinha procurar por ele? Quer dizer, vocês.

Maurineide Nada. Que já tinha tempo que ele já tava pra cá, ninguém mais nem

sabia dele.

Rikardo Então foi por acaso que vocês se encontraram no metrô?

Maurineide Uai, foi. E foi, é assim, a vida. Acontece. Sorte. Ou azar. Nem sei.

Rikardo No meio da multidão... (olha para ela) É. (pausa) E agora?

Maurineide Agora eu vou subir pro meu puleiro, que é pra encurtar essa...

Rikardo A vida! Estou perguntando o que vai ser agora, você, sozinha.

Maurineide Com tanta gente, né? De todos tipo, forma e cor. (pausa) Se olhar bem,

tá todo mundo sozinho. É eu só, não. (pausa) Ocê, aí. Cadê a Jack?

Rikardo Que Jack?

Maurineide Cada um na sua toca. Tudo empoleirado, cada um na sua gavetinha,

cada um com a sua televisãozinha, deus que me livre, quem que

inventa essas coisa horrorosa?

Rikardo Qual, a gavetinha ou a televisãozinha? (pausa) Engenheiro, é

engenheiro que inventa. Ou arquiteto, também.

Maurineide Genheiro, ô, raça. Não sei o quê que passa na cabeça dessa gente-

genheiro, não sabe que pessoa é que nem bicho? Tem que respirar,

tem que olhar...


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Rikardo O que passa na minha cabeça?

Maurineide ... poder andar, abrir os braço... Ocê o quê?

Rikardo Ãhn... não falei nada... é que eu estudo isso.

Maurineide Ah, então bom, cê sabe o que que eu tô falando.

Rikardo Sei, mas prefiro não falar sobre assuntos profissionais agora. Logo

agora.

Maurineide Ué, não quer, não fala. (pausa) Logo agora por causa de quê? (pausa)

Então eu vou subir pro meu puleiro, que tá...

Rikardo Fica. Ãhn... Eu trabalho num escritório. Trabalhava, nem sei. (pausa) É

isso mesmo que você deve estar pensando.

Maurineide Eu, nada. (pausa) Genheiro?

Rikardo Ainda não. Faço estágio na área de construção imobiliária.

Maurineide É o quê?

Rikardo Moradia vertical.

Maurineide Puleiro, né? Então diz: o que é que passa?

Rikardo Ó, atenção, isso já não é da sua alçada.

Maurineide Fosse só a calçada... ô louco. Tem vergonha, não?

Rikardo Bem, a questão é complexa. É...Veja bem, tem o lado econômico;

ninguém vive sem dinheiro.

Maurineide Dinheiro. Ninguém não vive sem dinheiro. E vida é o quê, me diz? É

isso? É comprar casa, carro, bicicleta? É ir no shopping comprar mais,

é vestido, é bolsa, é sapato? Eu nunca vi tanta coisa na vida. Só não

sei pra quê. Pra quê! Pra quê tanto, se tem só 2 pé, pra quê tanto

sapato, deus do céu? Nem que fosse centopéia, precisava era de

muitas vida, precisava de viver andando o tempo todo pra gastar


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aquele monte de sapato. E o tanto de roupa? É saia, é blusa, vestido,

calça cumprida, calça curta...

Rikardo Short. Calça curta é short.

Maurineide Cê é besta, então cê pensa que eu não sei o que é que short?

Rikardo Podia ser bermuda.

Maurineide Então, short, bermuda, biquini. Tô falando, tem de um tudo. Só não tem

pra quê. Só compra, compra, compra, pra fingir que tá vivendo, fingir

que não tá morrendo. Inferno. Um inferno, viver assim. Só louco. Tudo

louco!

Pausa

Rikardo Olha...Eu não estou me sentindo bem.

Pausa

Maurineide Também não.

Pausa. Ele se levanta

Maurineide O que é que cê vai fazer?

Rikardo Eu vou.

Maurineide Cê tá falando... ir embora?

Rikardo É. Não dá, eu não aguento mais. Tijolo em cima de tijolo. Um prédio

inteiro em cima de mim, agora desaba.

Maurineide Que cê tá falando?

Rikardo Aí fui ver, era eu desabando. Eu, o edifício...Depois, é o que você falou.

Maurineide Eu? Ãhn... do quê?

Rikardo Isso. Tem uma multidão, uma cidade com 7 milhões de habitantes, e

eu não tenho ninguém.

Maurineide Tem eu.


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Rikardo (não a ouve) ... qual o sentido, o quê que eu...Meu deus, o que é que

eu tô fazendo aqui nesse lugar estranho, esse deserto, em pleno dia de

semana, conversando com uma pessoa que eu nem conheço, me

expondo assim, sendo visto e ouvido talvez por um monte de seres

alienígenas que me observam de suas duplas janelas, me olham como

um inseto fosforescente? O que é isso? Chega? (sai)

Maurineide Para, Rikardo. (grita) Ô louco, doidou de vez! Onde cê vai? NÃO!!! (sai

correndo)

Ele aparece na janela do seu apartamento, já saindo para a marquise. Logo em

seguida ela aparece no dela.

Maurineide (entrando, grita) NÃO!!! Não vai agora ocê... Para. Eu vou junto.

Rikardo Você não tem nada com isso. Não se meta!

Maurineide Tenho. Tenho, que a idéia foi minha. E ocê que fez d´eu não pular, não

vai agora... ocê não pode!

Rikardo Você não sabe quantas vezes eu tive vontade, só que nunca tive

coragem. Você tem pra onde ir, tem a sua irmã, sua família.

Maurineide Tem nada, tem nada. Cê também não sabe. A companhia teve aqui

desligou o gás, luz já não tem, eu não... Ocê indo eu vou junto.

Rikardo Não, não é assim, não faça isso. Eu não posso ser responsável por...

Maurineide É nada disso. É só que a gente vai é junto. Tá vendo aqui? (mostra a

chave)

Rikardo O quê é isso?

Maurineide A chave Tudo trancado. Então agora, eu pra sair, é indo atrás da

chave, é ou não é? (joga a chave)

Rikardo Tá, tudo bem, vamos fazer um pacto.


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Maurineide Pato? Mas agora?

Rikardo Vamos juntos, Maurineide. Vou contar: um...dois...

Maurineide Péra. É... e se a gente fica? Vamos conversar. Você me dá 5 minuto,

contado no relógio?

Rikardo Você está com medo. Olha, ninguém está pedindo pra você pular.

Maurineide Medo nada. Cê esqueceu? Quê, medo. Medo tava ocê, d´eu pular.

Agora tá aí, todo...

Rikardo Você está me chamando de covarde? Quem é que estava ainda

agorinha disposta a acabar com tudo e me fez até perder a hora?

Quem é que achava a coisa mais normal do mundo a pessoa se jogar

do 15o. andar, só por morar aqui? Você muda de idéia assim e vem

cheia de moral achando que pode julgar os outros?

Maurineide Não, é... É que eu tô... eu tô estudando.

Rikardo Sei.

Maurineide Eu tô achando é que precisa mais de coragem é pra ficar de que pra ir-

se embora.

Ambos sentam no parapeito.

Rikardo Ô, Maurineide, eu fiquei pensando: as balas que mataram o Marlon não

podiam muito bem ter vindo de trás da árvore? Dali, de onde você

estava?

Maurineide Ôi, e isso agora?

Rikardo Também pode ter acontecido um erro trágico: as balas que seriam para

matar a sua irmã terem acertado justamente o Marlon. Não poderia?

Maurineide Cê doidou. Ô, louco. Errar na mira... Não podia? Então. Mas não foi. E

sabe por causa de quê? Que eu nem atirar eu não sei. Que meu pai
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ensinou foi coisa, mas da vida. Ó, mas vou falar, é, vou... dizer uma

coisa: errar, eu não errei, não.

Rikardo Como? Você quer dizer que foi você? Então você...

Maurineide Depois que acabou...depois, é, que Neurília foi embora, eu fiquei. Sabe

por causa de quê? (pausa) Foi porque eu fiquei achando...ai, ora, falei,

pronto. Foi por causa d’ocê.

Rikardo Eu? Como? A gente nem se conhecia!

Maurineide Ué, então não? De janela.

Rikardo Você está dizendo que fez de propósito?

Maurineide Ué, ocê que entrou aí foi gritando “NÃO!!!” Pouco mais e eu já fui. Ocê

demorou foi demais pra chegar.

Rikardo Não acredito. Você inventou tudo isso só pra se aproximar de mim?

Maurineide Ocê é besta, cê acha? Eu, como é que ia... Inté parece que eu

precisava disso tudo. E ocê nem merecia, olha bem.

Rikardo Mas você seria capaz de fazer isso, não seria?

Maurineide Êi. Capaz. Ninguém não sabe nunca se é, se não é, antes de ser. A

gente só sabe ali, sendo, na hora que tem que. Se não, não.

Rikardo Você é louca. (sorri) Doidinha, mesmo...Ai, ai, ai... Fica aí, não sai daí.

Ele pega uma peça de roupa.

Maurineide É o quê, isso? Cê tá fazendo?

Rikardo Escuta aqui, Maurineide: essa... essa roupa... por acaso é sua?

(mostra uma calcinha)

Maurineide Ocê roubou? Foi ocê que roubou minha calcinha?

Rikardo Não, eu não. O vento. Um dia deu um vento e isso veio parar na minha

sala.
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Maurineide Novinha. Adevolve!

Rikardo Eu vou morrer com essa lembrança.

Maurineide Parece o Marlon, ocê.

Rikardo Olha, eu só te vi uma única vez, de relance, mas eu via, eu convivia

com as roupas que você estendia no varal. Ah, eu gosto mesmo

daquela onça pintada...

Maurineide Ocê... ocê gosta?

Ele volta com uma corda, joga uma ponta para ela.

Maurineide É o quê, isso? Cê tá fazendo?

Rikardo Você não quer sua calcinha de volta?

Maurineide Ô, louco, cê pensa que eu ...? Ê, genheiro, alto demais!

Rikardo Tá com medo, Maurineide? Vem pegar.

Maurineide Ói, que descarado, inté parece. Medo, o quê, só não sou é tonta. Ôu,

ocê acha por que que eu punha as calcinha no varal?

Rikardo Não acredito. Você pensou isso? Uma armadilha, Maurineide?

Maurineide Ué. Camarão de rio, não tem jeito de pescar? E não tem jeito assim,

assim, de pegar passarinho? Pai que ensinou: cada bicho, um jeito...

Rikardo Ah, é? E foi seu pai também que te ensinou a pescar namorados no

15º. andar de um prédio em Copacabana?

Maurineide É não. Aí já foi eu que estudei. Peguei e comprei, de pagar em 12

vezes. Calcinha de todos tipo, forma e cor. Certeza, não podia de ter,

mas ni que sumiu uma...

Rikardo Espertinha.

Maurineide Nada. Fiquei foi sem dinheiro. Inda tô devendo.

Rikardo Espera aí.


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Ele pega um elástico, joga para ela no vão entre os apartamentos.

Maurineide Êia, o que é isso agora?

Rikardo Prende na marquise. Vem pra cá, vem. Eu não deixo você cair.

Maurineide Genheiro... (pega a ponta do elástico) Péra um pouco.

Ela sai, volta com uma sombrinha e sutiã ½ taça de oncinha.

Rikardo Maurineide! Anda, vem logo.

Começa a atravessar equilibrando-se no elástico, quando cai alguma coisa da sua

cintura e ela se desequilibra.

Maurineide Ai!

Rikardo O que foi, caiu alguma coisa?

Maurineide Nada, só a outra chave, não é duas que sempre vem? Deixa, não
precisa.

Ela segue a travessia, a luz cai. B. O.

FIM

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